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Guias e Dicas
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A Voz Sagrada em 'Cavaleiro de Copas' (2015), Manuais, Projetos, Pesquisas de Eletrônica

Este documento analisa a utilização da voz over na película 'cavaleiro de copas' (2015) dos eua, onde a voz sagrada de um pai interage com os personagens e guia a história. O texto descreve como a voz sagrada é apresentada em diferentes momentos do filme, nomeadamente através de cartas de tarô e interagindo com personagens como rick, barry e joseph. O documento também destaca a importância da voz sagrada na crise existencial de rick e na exploração da liberdade e da memória.

O que você vai aprender

  • Como a voz sagrada influencia a exploração da liberdade e da memória no filme?
  • Qual é a relação entre a voz sagrada e a crise existencial de Rick?
  • Qual é a importância da voz sagrada na história de 'Cavaleiro de Copas'?
  • Quais personagens interagem com a voz sagrada no filme?
  • Como a voz sagrada é apresentada no filme?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Kaka88
Kaka88 🇧🇷

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Revista Eletrônica Correlatio v. 16, n. 1 - Junho de 2017
“Uma pérola no fundo do oceano”:
voz over e sagrado no filme
Cavaleiro de Copas (EUA, 2015)
Sander Cruz Castelo*
RESUMO
Da geração da Nova Hollywood, o cineasta norte-americano Terrence
Malick construiu um estilo fílmico singular, caracterizado, dentre outros
elementos, pelo uso intensivo da voz over, empregado de forma a (re)sa-
cralizar o mundo, objetivo-mor do seu cinema. Investiga-se, neste artigo,
como o diretor utiliza esse recurso estético no filme Cavaleiro de Copas
(EUA, 2015), atinando para os efeitos transcendentais por ele suscitados.
Palavras-chave: Filme Cavaleiro de copas; voz over; sagrado.
“A PEARL FROM THE DEPTHS OF THE SEA”: VOICE-OVER
AND SACRED IN THE MOVIE KNIGHT OF CUPS (USA, 2015)
ABSTRACT
From the new Hollywood generation, American filmmaker Terrence Ma-
lick constructed a unique film style, characterized, among other elements,
by the intensive use of voice-over, where he (re)sacralizes the world,
which is the main purpose of his cinema. In this article, we investigate
how the director uses this aesthetic feature in the movie Knight of Cups
(USA, 2015), paying attention to the transcendental effects he generated.
Keywords: Movie Knight of cups; voice-over; sacred.
A cinematografia de Terrence Malick
Terrence Malick é um cineasta da Nova Hollywood, movimento
que vicejou entre meados dos anos 60 e 70 da centúria passada, num
* Graduação em História, Mestrado em História Social e Doutor em Sociologia pela UFC.
Professor adjunto do curso de História e do Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em
História e Letras (MIHL) da FECLESC/Universidade Estadual do Ceará. Pós-doutorando
no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi
(UAM), sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.
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Baixe A Voz Sagrada em 'Cavaleiro de Copas' (2015) e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Eletrônica, somente na Docsity!

“Uma pérola no fundo do oceano”:

voz over e sagrado no filme

Cavaleiro de Copas (EUA, 2015)

**Sander Cruz Castelo ***

RESUMO Da geração da Nova Hollywood, o cineasta norte-americano Terrence Malick construiu um estilo fílmico singular, caracterizado, dentre outros elementos, pelo uso intensivo da voz over , empregado de forma a (re)sa- cralizar o mundo, objetivo-mor do seu cinema. Investiga-se, neste artigo, como o diretor utiliza esse recurso estético no filme Cavaleiro de Copas (EUA, 2015), atinando para os efeitos transcendentais por ele suscitados. Palavras-chave : Filme Cavaleiro de copas ; voz over ; sagrado.

“A PEARL FROM THE DEPTHS OF THE SEA”: VOICE-OVER AND SACRED IN THE MOVIE KNIGHT OF CUPS (USA, 2015)

ABSTRACT From the new Hollywood generation, American filmmaker Terrence Ma- lick constructed a unique film style, characterized, among other elements, by the intensive use of voice-over, where he (re)sacralizes the world, which is the main purpose of his cinema. In this article, we investigate how the director uses this aesthetic feature in the movie Knight of Cups (USA, 2015), paying attention to the transcendental effects he generated. Keywords : Movie Knight of cups ; voice-over; sacred.

A cinematografia de Terrence Malick Terrence Malick é um cineasta da Nova Hollywood, movimento que vicejou entre meados dos anos 60 e 70 da centúria passada, num

  • Graduação em História, Mestrado em História Social e Doutor em Sociologia pela UFC. Professor adjunto do curso de História e do Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em História e Letras (MIHL) da FECLESC/Universidade Estadual do Ceará. Pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico.

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contexto de crise da indústria cinematográfica estadunidense, que facul- tou a entrada no sistema de estúdios de uma nova geração de cineastas, formada nas nascentes escolas de cinema e inspirada nas novas correntes do segundo pós-guerra, especialmente a nouvelle vague francesa e seu epítome, Jean-Luc Godard. Perfeccionista e muito cioso da autonomia criativa, Malick celebri- zou-se, contudo, por atuar nas margens de Hollywood, mais a submeten- do do que se curvando a ela, algo surpreendente para um cineasta cujos filmes são apreciados pela crítica, mas ignorados pelo grande público. Mas esse compromisso com um cinema autoral no seio de Hollywood não se fez sem ônus. Do primeiro filme, Terra de Ninguém ( Badlands, EUA, 1973 ), ao segundo , Cinzas do Paraíso ( Days of heaven, EUA, 1978), passaram-se cinco anos. O terceiro filme, Além da linha vermelha ( The thin red line, EUA, 1998), somente veio a lume vinte anos depois. O novo mundo ( The new world, EUA/RU, 2005), filme seguinte, levou sete anos para chegar aos cinemas. O próximo, A árvore da vida ( The tree of life , EUA, 2011), assomou seis anos depois. Desde então, o inter- valo entre as suas produções diminuiu sensivelmente, atingindo a média de dois anos, usual na indústria cinematográfica, primeiro com Amor pleno ( To the Wonder , EUA, 2013), depois com Cavaleiro de copas ( Knight of cups , EUA, 2015) e, por fim, Song to song (EUA, 2017) 1. Infelizmente, a produção regular de filmes foi acompanhada por progressiva perda de qualidade, granjeando ao diretor o abandono cres- cente da crítica sem a conquista do público, pressagiando a retomada da descontinuidade da carreira. Desde Amor pleno , o cinema de Malick tem abusado da mesma fórmula, cada vez mais desgastada: narrativa de triângulos amorosos, por meio de montagem elíptica – com cortes secos –, travellings frontais de avanço, grandes angulares, câmeras baixas e altas, e voz over sussurrada, recurso mais incômodo para os críticos.

Malick e a voz over Diferentemente da voz off , relativa a uma fonte sonora fora do nos- so campo de visão (tela), mas que se supõe como fisicamente presente, a voz over dá vazão aos pensamentos dos personagens, incluindo suas

(^1) Caso não se leve em conta o documentário Voyage of time (EUA, 2016), lançado meses antes do último filme citado.

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mesmo ano e o final do ano seguinte (CAVALEIRO DE COPAS [2015], 2017), não sendo bem recebido pelos críticos e pelo público (KNIGHT OF CUPS [FILM], 2017). Ele não foi lançado nos cinemas brasileiros, aportando, todavia, aqui, via Netflix, em setembro de 2016. Filme mais autobiográfico de Malick, Cavaleiro de Copas versa sobre Rick, roteirista de Hollywood em profunda crise existencial, cuja raiz, aparentemente, é a morte de um dos seus irmãos. Sua vida é regra- da por festas e casos amorosos, entremeadas com encontros conflituosos com o irmão – à beira da delinquência – e o pai – cego e desesperado –, que degeneram em violência física e verbal, e com seus agentes, que tentam convencê-lo a aceitar encomendas de roteiros. O filme se baseia em três textos de matriz religiosa: o batista O peregrino (1678), do pastor John Bunyan, o apócrifo/gnóstico “Hino da Pérola”, dos Atos de Tomé (sec. III), e o islâmico A Tale of the Western Exile (séc. XII), de Suhrawardi. Ele também se funda nas cartas de Tarô, que nomeiam cada um dos oito capítulos do filme, a depender dos personagens com os quais Rick engata relação: a outsider Della (“Lua”); Barry, seu irmão, e Joseph, seu pai (“O enforcado”); o playboy Tonio (“O eremita”); sua ex-mulher, Nancy (“Julgamento”); a modelo budista Helen (“A torre”); a dançarina erótica Karen (“Sacerdotisa”); a amante Elisabeth (“Morte”); e a jovem Isabel (“Liberdade”) 3 (KNIGHT OF CUPS [FILM], 2016).

Voz over no 1º ato do filme Cavaleiro de Copas O usoOO Sobre fundo negro com os créditos, ouve-se a recitação, pelo ator Ben Kingsley, do título completo d’ O peregrino : “O processo do pe- regrino, deste mundo ao que está por vir, dado sob a similaridade de um sonho, onde se descobre o modo como ele funciona, sua perigosa jornada, e sua chegada a salvo na terra desejada”. Rick, o protagonista, encontra-se desorientado, num terreno relativamente desértico 4 , à beira de uma estrada, onde passa um carro. Seguem imagens espaciais da Terra, às quais se sobrepõe a leitura do texto inicial d’ O peregrino :

(^3) Outra fonte do filme foi o romance The Moviegoer , de Walker Percy (KNIGHT OF CUPS [FILM], 2016). 4 Há poças de água.

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Enquanto eu andava por este mundo deserto, cheguei a um lugar onde havia uma caverna. Entrei na caverna e deitei para dormir. Enquanto dormia, tive um sonho. Vi um homem vestido com trapos, parado em um lugar, de costas para sua própria casa, com um livro na mão e carregando um grande fardo.

Acoplada a essas imagens e a de um túnel com fundo iluminado^5 – sob o ponto de vista de um motorista –, a fala do protagonista: “Todos esses anos, vivendo a vida de alguém, que sequer conheço”. Seguem imagens amadoras de um pai com um filho, na praia. Crianças brincam num jardim e, em seguida, Rick, adulto, diverte-se com duas jovens orientais num conversível 6 , enquanto Joseph, pai de Rick, rememora ao filho, em voz over , o “Hino da Pérola”: “Lembra-se da história que eu contava quando você era pequeno, sobre um jovem príncipe? Um cavaleiro enviado por seu pai, o rei do Oriente, ao Egito, para encon- trar uma pérola. Uma pérola no fundo do oceano”. Sucedem planos de ondas do mar, de nadadores no fundo de uma piscina e de pessoas se divertindo ao redor dela, em festa num terraço de hotel 7 – que inclui Rick e suas acompanhantes, que se deleitam com bebidas, brincadeiras e seus corpos, observados por Barry, irmão do protagonista –, tudo guiado pela voz do pai: “Mas quando o príncipe chegou lá, o povo lhe deu uma bebida que apagou sua memória. Ele esqueceu-se de que era filho do rei. Esqueceu-se da pérola e caiu num sono profundo”. Veem - -se, então, Rick, sério, observando a cidade – ouvem-se sirenes –, no final da festa, da sacada do terraço, e um vídeo performático, em preto e branco 8 , exibido no seu interior, sob a voz de Joseph: “O rei não se esqueceu de seu filho. Ele continuou a enviar avisos, mensageiros, guias, mas o príncipe continuava dormindo”. Assiste-se, então, a planos fixos de terreno árido, de praia 9 e do interior do loft de Rick 10 , que servem, provavelmente, à localização. Os objetos do apartamento começam a tremer, evidenciando o início de

(^5) Provavelmente, o 2nd Street Tunnel, na área central do condado de Los Angeles, Califórnia. (^6) Crê-se que na S Western Avenue, Koreatown, centro de Los Angeles. (^7) The Standard, no centro de Los Angeles. (^8) Paint test no.1 , de Quentin Jones. (^9) Neste, há, na verdade, movimento lateral, quase imperceptível. (^10) Na Glencoe Avenue, em Marina Del Rey, oeste de Los Angeles.

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doristicamente, do seu interior. Vê-se, então, letreiro com o título do primeiro segmento do filme: “A lua”.

Voz over no 2º ato do filme Cavaleiro de Copas

A lua Rick corteja, num hotel 15 , uma jovem outsider , de nome Della, com quem se dirige a um quarto do estabelecimento, onde se divertem. Em voz over , ela faz o seguinte convite a Rick – com o rock “The Coconut”, do Thee Oh Sees , ao fundo –, enquanto experimentam a liberdade propiciada pelo carro em movimento: “Vamos viver como se ninguém nunca viveu. Loucamente. Com coragem”. Imiscui-se, então, na voz da jovem, passagem de Fedro , de Platão, lida pelo ator Charles Laughton – e acompanhada por um órgão –, pairando sobre as ima- gens da visita que o casal faz a um aquário 16 , repleto de belos animais marinhos e crianças:

A alma era perfeita com suas asas. Voava no céu, onde só criaturas aladas poderiam estar. Mas a alma perdeu suas asas e caiu na terra. E na terra, ela usa um corpo mundano. Nesse corpo mundano não há nem sinal das asas que existiram. No entanto, as raízes dessas asas ainda existem e a natureza das asas é tentar elevar o corpo humano e levá-lo até o céu. Quando vemos uma mulher ou um homem bonito, a alma se lembra da beleza que conheceu no céu. Começam a brotar asas e isso faz com que a alma queira voar. Mas ela não consegue, pois ainda está fraca. Então o homem contempla o céu como um passarinho novo [Rick levanta a cabeça, observando peixes que se movem para cima, atrás do vidro] e perde todo o interesse pelo mundo ao redor.

Em seguida, o casal perambula pelos sets vazios de estúdio – onde Rick é pressionado pelos seus agentes a aceitar encomenda de roteiro para o comediante mais importante do local, a preço de ouro – e pelas calçadas de Los Angeles, sob a voz over de Della: “Eu vejo como você me olha. Você acha que eu poderia te deixar louco e te tirar da tua concha? Te fazer sofrer... Você não quer amar. Você quer uma experi- ência amorosa”. Ela ainda o chama de “fraco”, em voz in mesmo. Num

(^15) The Standard. (^16) Presumivelmente, o Aquário do Pacífico, na cidade de Long Beach, sudeste de Los Angeles.

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quarto, antes de retirar a roupa dele, pergunta, ironicamente, se o está trazendo de volta à vida_._ “O desejo é tão profundo que vou jogar fora a minha vida”, diz, em over , Rick, num cais e, em seguida, fazendo amor com ela. Depois, Della diz a ele que não foram designados para tal vida. Numa taróloga, Rick descobre “olhar em volta” e andar “na beira do abismo”. Sua voz over é associada, então, aos planos de detalhe de cartas de tarô e de loira tatuada, que pratica um ritual: “Quando vou te encontrar? Que caminho devo seguir? Suponho que isso não seja para mim... no fim das contas”. Após movimento dos braços da loira para frente, corta-se para mergulho de uma jovem no mar – o barulho é anunciado na cena anterior –, visto do seu interior. Prossegue a voz do protagonista, conjugada ao plano geral de um píer 17 , encimado por gaivotas: “Por onde eu começo?”. Isabel desenha na areia da praia, acompanhada de Barry e de Karen, objeto do sexto segmento do filme. Ricky caminha por elevação 18 e se deita no chão, de onde observa uma planta, semelhante a uma sarça. Corta-se para caminhada dos irmãos pelas calçadas de zona co- mercial. Ouve-se Rick, em over : “Lembra-se de como você chegou? Com os pulsos enfaixados como um tenista? Você caminhou como se nada tivesse acontecido. Você sempre fez isso. Finge que está tudo bem, quando não está”. Corta-se para letreiro com o título do segundo segmento: “O enforcado”.

O enforcado A câmera na mão os segue em ruas da área central de Los Angeles, primeiro, numa ocupada por joalherias 19 , depois, noutra, onde se concen- tram moradores de rua negros 20 , apresentados por Barry. Rick comenta, em over : “Sonhei que uma onda gigante tinha invadido a cidade. Parecia que seríamos engolidos a qualquer momento. Tinha uma porta que eu temia atravessar. Toquei na maçaneta e ouvi uma voz”. “E se eu enfiar esse garfo no seu olho?” – brinca Barry, sentado com o irmão à mesa de um restaurante. Ele deseja sentir algo – espeta o garfo na palma da

(^17) Crê-se que seja o da praia de Malibu, oeste de Los Angeles. (^18) Em torno da praia? No Death Valley? (^19) Jewelry District. (^20) Skid Row.

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Diga. Eu te ceguei. A minha vida te cegou [“Entrei naquele emprego de merda”, ele diz, em voz in ]. Mas só porque rodei ladeira abaixo como um bêbado, isso não quer dizer que foi a rua errada. Eu te virei de ca- beça para baixo [“Agarre-se a um fio de vida. Arrisque-se”, ele afirma, ainda]. Meu filho.

Corta-se para letreiro com o título “O eremita”.

O eremita O terceiro segmento do filme inicia com Rick no interior de um elevador panorâmico de vidro^23 , olhando para a cidade abaixo. Continua- -se a ouvir a voz do pai. “O brilho deixou seus olhos. Mulherengo. Isolado”. Mulher seminua abre as cortinas do quarto de hotel. Vira o líquido de uma taça de champanhe sobre a cabeça de Rick, esparramado no sofá, sonolento – a noite pareceu longa. Há outra jovem no aparta- mento. Os três se divertem correndo uns atrás dos outros com plantas

  • retiradas de vasos – nas mãos. Rick as persegue com uma, dentro de um vaso, colocado, depois, sobre o ventre, e apontado em direção a elas, que se encontram de pé, sobre a cama do quarto. Eles se enrolam sobre a cama, uma das jovens despeja o conteúdo de sua carteira ao lado de Rick. “Vida. Uma deusa” – segue Joseph, em over. Eles também se divertem numa Limusine, inclusive jogando dinheiro fora. Corta-se para bola de tênis afundando na piscina, seguida por um cachorro, captados em câmera baixa. Outro cachorro tenta agarrar um segundo objeto jogado na água. Uma mulher se joga vestida na piscina. No exterior, multidão de convivas acompanha efusivamente a ação, exceto o sério Rick. Tonio, o anfitrião da festa – numa mansão de estilo Versalhes 24 –, puxa os aplausos para a nadadora, cumprimenta e corteja os convidados, especialmente as mulheres, e conversa com Rick, parte em voz in , parte em voz over (pois ele também interage com outros):

A música é muito importante. Ajuda a me apaixonar. Eu me apaixono 20 vezes por dia. Ouvir música no fone sem deixar notarem que você as está encarando como um velho tarado. Por mim, não haveria divórcio. Nunca deixei de amá-las. Mas o modo como eu as amava mudou.

(^23) Do hotel The Westin Bonaventure, no centro de Los Angeles. (^24) Na cidade de Beverly Hills, noroeste de Los Angeles.

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Continua a voz over , enquanto ele se engraça com duas convida- das: “Elas são como sabores. Às vezes você quer framboesa e após um tempo enjoa e quer morango”. Rick se interessa pela modelo Helen, com que procura conversação. Ele caminha pelo exterior e pelo interior da suntuosa casa, típica de um magnata de Hollywood, acompanhando conhecidos e recém-conhecidos

  • crê-se, com base em sua conversa com Helen, que ele não conhece quase ninguém na festa. Ouve-se a voz over do pai: “A pérola. Está em algum lugar do mar. O caos. Faminto. Desejando alguma outra coisa que ainda não se sabe o que é”. Quando Rick é assediado por uma jovem, que lhe inquire sobre o rosa das unhas dela, retorna a voz over de Tonio: “Parece que elas sabem das coisas. Estão mais próximas do mistério”. Tonio exibe passos de dança a uma companhia feminina e Rick perambula pela festa, a voz over do primeiro pontificando ao fundo: “Trate esse mundo como ele merece. Não existem princípios, somente circunstâncias. Ninguém é confiável”. À medida que a bebida vai intensificando seus efeitos nos partici- pantes, a festa se torna mais dionisíaca. A voz over do pai retorna, como contraponto: “Erga-se. Encontre-a”. Os convidados pulam vestidos na piscina, incitados por Tonio, que se agarra com uma mulher debaixo da água. Antes disso, o anfitrião já havia retomado a voz over : “Caro amigo. Eu me pergunto onde estive todo esse tempo. Um sonâmbulo. Apaixonado pelo mundo, apaixonado pelo amor. O mundo é um pân- tano. Você tem que sobrevoá-lo. Voe! Voe bem alto, onde tudo parece cisco”. Rick caminha, vestido, dentro de outra piscina, suspende-se, depois, com braços e olhos abertos, no seu fundo. Corta-se para letreiro, onde se lê: “Julgamento”.

Julgamento Nancy, ex-esposa de Rick, caminha pelos sets vazios de um estú- dio, seguida pela câmera. Ouve-se a voz over dela: “Você mudou. O mundo te sugou cada vez mais”. A voz over se transforma em voz in : “Sinto muito por ter terminado como terminou”. Retorna a voz over : “Você sempre queria ir embora”. Reaparece a voz in : “Eu queria um parceiro. Não podia contar com você. Eu não queria ficar só”. Con- firma-se, então, que o ex-marido a acompanhava, por meio de câmera

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Você queria que eu te ajudasse a enfrentar os problemas da juventude. Ambição. Medo. Acho que você tinha medo de se perder. Não consegui te ajudar a permanecer no caminho. Seu olhar já estava na direção errada. Você nunca quis estar por inteiro no nosso casamento. Mas também não queria sair. Você foi sincero nas promessas que fez. No entanto, elas não vieram do seu coração.

Rick caminha, em seguida, por calçada de boutiques 26 e flerta, in- discretamente, com outras mulheres, a despeito da presença de Nancy, que agarra o seu braço, assim que ele parece lhe dar atenção. Veículo percorre autoestrada 27 coberta pela neblina. O casal hospe- da-se num hotel de beira de praia^28. Eles caminham num calçadão, onde uma criança brinca com a água que esguicha do concreto. Essas cenas são combinadas com a voz over de Rick: “Eu tinha medo quando era jovem. Medo da vida. Paga-se por isso. Lamento que isso também tenha te afetado”. Nancy nada na piscina, cheia de crianças. Ela pega na mão de uma delas, dentro da água, e se ouve sua voz: “Minha esperança”. O casal se abraça na beira do mar, ao pôr do sol. Rick caminha por um estrado de madeira na areia, Nancy se deleita com a visão de um parasail , tudo acompanhado da voz over de Rick: “Você me deu paz. Me deu o que o mundo não pode me dar: compaixão, amor, alegria. Todo o resto é só névoa. Neblina. Fique comigo. Para sempre”. Antes da última frase, o casal retorna para casa numa rodovia, entretido com os aviões que o sobrevoam. Estaciona, mesmo, num descampado ao lado da pista do aeroporto 29 , talvez para observá-los melhor – antes, entremeia- -se plano dos dois na residência deles. Nancy diz, em voz over : “Você é ainda o amor da minha vida. Eu deveria ter te falado isso?”. Rick é captado sozinho, num terreno pedregoso, por uma câmera alta. Eles são vistos, agora, de dentro de um prédio. Em meio a con- junto de edifícios ultramodernos 30 , Rick sobe uma escada, captado por detrás, em câmera baixa. Corta-se, então, para letreiro com as palavras “A torre”.

(^26) Provavelmente, na La Brea Avenue, que liga o norte e o sul de Los Angeles. (^27) Pacific Coast Highway. (^28) Annenberg Community Beach House, na cidade de Santa Mônica, oeste de Los Angeles. (^29) Aeroporto Internacional de Los Angeles, acredita-se, localizado a sudoeste de Los Angeles. (^30) Incluindo as torres gêmeas do Century Plaza, em Century City.

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A torre Rick encontra-se na frente de um prédio 31. Dois executivos gabo- las conversam entre si, orgulhando-se de seus conhecimentos sobre as mulheres e de suas vidas selvagens. Em voz over , ouve-se Rick: “Por que não aceitamos ‘sim’ como resposta?”. No saguão e na escada do prédio, ele acompanha Herb, um alto executivo, que lhe diz:

Deixe-me te falar sobre você. Você deu duro para chegar aqui. Está no topo. Liberdade. O que vai fazer? Vai descer porque não gosta da alti- tude? Você tem uma oportunidade única. Falei sobre você. Agora vou te falar sobre mim. Eu quero lhe tornar rico. Tem alguém com quem você queira se encontrar? Alguém que queira conhecer?

Enquanto o roteirista sobe, sozinho, escada rolante do prédio, conhece-se a sua resposta, em voz over : “Quer subir os seus degraus ou os deles?”. A voz segue, costurada com planos de uma loira nua, na varanda do apartamento dele, que a observa, do interior; deles, num elevador, com outras pessoas; dele, perambulando, sozinho, no apartamento; saindo do saguão do prédio supracitado; na cobertura de outro prédio, antigo 32 , com seu pai: “Nunca teve a sua chance, o seu momento na terra. Só precisa dizer sim. Acenar. Piscar. Para onde mais você iria? Será a mesma coisa lá. Não dê o passo maior que a perna”. Na cobertura, seu pai diz a ele e a Barry ter se sacrificado pelos dois não por nobreza, mas por ter sido educado para agir assim – interpõe-se plano, traseiro, de mulher andando de frente para o mar, uma mão sobre o seu ombro e Rick passando na outra direção. Joseph discute agressivamente com Barry, afirma que, ao contrário do filho, passara fome, que tudo está acabando. Segue a voz over do pai, co- brindo planos de Rick, de costas, perscrutando a altura, nas beiradas da cobertura: “Quando chega uma certa idade, você acha que as coisas vão fazer sentido. E você descobre que está tão perdido quanto estava antes. Acho que isso é estar amaldiçoado. Os pedaços de sua vida nunca se encaixam. Estão todos espalhados”.

(^31) Da Creative Artists Agency, possivelmente. (^32) Palace Theatre, crê-se.

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calçada de rua escura. Eles são vistos, depois, brincando nas areias de praia 36 , persistindo a atitude defensiva dela para com ele 37. A voz over dela acompanha essas passagens: “O que quer de mim? Que eu lance um feitiço sobre você? Que te faça sonhar? É bom sonhar, mas não dá para viver de sonhos. Há um outro lugar onde precisamos chegar. Eu sei disso”. Rick é mostrado guiando. Rick deambula, despreocupadamente, pelas calçadas de área do centro de Los Angeles ocupada por orientais 38. Entretêm-se com um bebê que passa no carrinho, com a programação de cinema de jornal, com o aviso, colado na porta de estabelecimento, de que ele não se en- contra em funcionamento – inserem-se dois planos de Helen, no último, fazendo movimentos corporais na praia. Vê moradora de rua cabisbaixa e se dirige a ela, a montagem elíptica dando a entender que ele deixou uma esmola no seu copo. Em seguida, ele se encontra com Berry num cais, onde deparam com água imunda e um ganso coxo; num carro, onde brincam com as mãos; numa lanchonete, onde trocam afagos; numa loja de roupas femininas; em calçada de zona comercial 39 , onde Rick flerta com uma passante – Barry, em seguida, comenta querer ser como Rick; num jardim, ao lado de calçadão perto da praia, onde se deitam; na praia, ao entardecer, onde novamente brincam de lutar, na areia, e onde pisam na água do mar 40. A voz over de Joseph subjaz às cenas com os dois irmãos:

Agora recordei-me da ternura com que você tocava meu rosto quando tinha quatro anos. E eu te balançava no colo. Eu recebi tanto! E tanto eu deixei para trás. Você cuidou da nossa família o tempo todo. Lembra- -se? A pérola. Sussurrando. Chamando. Cada homem. Cada mulher. Uma guia. Um Deus. Você vive exilado. Um estranho numa terra estranha. Um peregrino. Um cavaleiro. Encontre o seu caminho da escuridão para a luz.

Rick aparece, ao anoitecer, na varanda de seu loft. De dia, vê-se ele interagindo, numa calçada, com uma família a passeio na cidade, composta pelos pais e por três filhos – ele empresta os seus óculos a

(^36) De Santa Mônica. (^37) Terá essa sequência precedido a anterior? (^38) S. Western Avenue, em Koreatown, imagina-se. (^39) Main Street, na altura de Santa Mônica. (^40) Avista-se, ao longe, o píer de Santa Mônica.

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uma das crianças. Ele e Barry visitam a casa da mãe, Ruth. Os três almoçam num restaurante, onde Rick observa, de passagem, homem 41 sentado a uma das mesas, examinando um feto na tela do notebook, com uma mulher a sua frente. O trio é visto, igualmente, na praia, ao entardecer. As cenas são escoltadas pela voz over dela:

Você me disse que, às vezes, sentia-se como um espião. Sempre tinha que fingir. Você estava com medo. Você se escondia atrás da cadeira de balanço antes dele chegar em casa. Você ficava tenso. Espero que tenha filhos. Você sempre está pensando se eles estão com frio, se estão bem aquecidos, em vez de preocupar-se consigo.

Chegando ao apartamento, Rick nota que os móveis foram revira- dos. Descobre, em seguida, dois assaltantes no seu interior. Tomam-lhe a carteira e o blazer Armani, reclamam por não haver nada no local – um deles afirma que, apesar de pobre, possui mais coisas que o roteirista. Depois que eles se evadem, Rick perambula, irritado, pelos cômodos do apartamento – num dos planos, avista-se, de costas, uma companhia feminina, aparentada a Isabel. Rick dirige pela cidade à noite. Câmeras baixas captam árvores iluminadas por postes, planos fixos exibem manequins numa vitrine e uma rua solitária, com a voz over do roteirista sublinhando: “Passei 30 anos sem viver a vida, e sim arruinando-a, para mim e para os outros. Eu não me lembro do homem que eu queria ser”. Plano do trajeto à frente do carro é acelerado, seguido de plano aberto de um estaciona- mento vertical. A voz over , agora, é da stripper Karen: “Em que clima estou? Conte-me. O que eu acho de você? Ninguém mais liga para a realidade”. Entra o letreiro do próximo segmento: “A sacerdotisa”.

A sacerdotisa Rick circula pelo interior de uma boate de strip-tease, parando para observar as dançarinas. Senta diante de uma delas, Karen, com quem engata o seguinte diálogo, primeiro em voz over , depois em voz in :

(^41) Futuro genitor? Médico?

“Uma pérola no fundo do oceano”: voz over e sagrado no filme Cavaleiro de Copas (EUA, 2015)

335

A vida real é tão difícil de encontrar. Onde ela fica? Como se chega lá? [Rick para, com Isabel, provavelmente, a sua frente, perante uma escultura de Nossa Senhora]. Saia da grande nuvem de poeira onde todo mundo está. A única saída está dentro de si. Respire. A sua mente é um teatro. Quer saber? Se jogue. Por que não?

Planos noturnos da praia entraram em cena, num dos quais se avista Rick de costas andando na beira da água^43. Ouve-se sua voz over : “E eu caí no sono. Cante para mim. Para eu sonhar um sono novo”. A área externa do píer, incluído o estacionamento, é salientada. Rick, perplexo, está colado a uma parede e a uma porta, em plano fechado. Carro em movimento dá a ver a arquitetura suntuosa e kitsch de avenida de Las Vegas 44 : réplicas da torre Eiffel, do Arco do Triunfo 45 , da estátua da Liberdade 46 , da cabeça de um faraó e de uma pirâmide 47. Voz over de Charles Laughton , recitando versículos do Salmo 104, escolta-as, em dissonância radical de som e imagem:

Firmaste a terra sobre seus fundamentos para que jamais se abale. As águas subiram acima dos montes. Puseram-se em fuga ao som do Teu trovão. Escorreram pelos vales, para os lugares que Tu lhes designaste. O Senhor fez crescer o pasto do gado e as plantas que o homem cultiva para retirar da terra o seu alimento.

A estátua de um anjo com trombeta, circundada por anúncios lumi- nosos de hotéis e cassinos, é tomada em câmera baixa e em travelling de avanço, pela lateral e por detrás. Num descampado em frente à avenida, Rick, Karen e duas mulheres estão juntos de uma espécie de cafetão, que carrega vários adereços, incluindo um crucifixo. Ele o justifica dizendo crer na luz, apesar de viver na escuridão. Diz, ainda, com voz over : “Fui criado com a informação de não fazer parte do mundo, nem das coisas mundanas, mas sou muito humilde e fico louco quando vejo mulheres bonitas, carrões e muito dinheiro. Eu quero fazer parte disso”.

(^43) Com o píer de Santa Mônica ao norte. (^44) Strip Avenue. (^45) No Paris Las Vegas Hotel e Cassino, no qual se veem, crê-se, o casal e Isabel de costas, em plano curto. (^46) Do hotel New York, New York. (^47) Do hotel Luxor.

336 Sander Cruz Castelo

Rick e Karen percorrem a área interna e externa – onde se veem de um sósia de Elvis a um altar de Brahma – de monumental hotel 48 , tendo como anfitrião Sergei, provavelmente um magnata russo, que mantém uma suíte ali. Ouve-se a voz over de Rick: “E o mundo me mostrava um espelho. ‘Tome. Pegue o que quiser. Tudo pode ser seu. Por que está hesitando?’”. Depois, a narração d’ O peregrino de Bunyan é retomada , cobrindo também imagens de estação de metrô envidraçada 49 e de um corredor de cassinos 50 , atravessado, numa tirolesa, por Karen:

Que tolo eu seria para deitar nessa masmorra fedorenta, se posso andar em liberdade? Tenho no coração uma chave chamada promessa, a qual, tenho certeza, abrirá todas as fechaduras do castelo da dúvida. Apesar deste estado de sombras e escuridão, ele transformou a sombra da morte na manhã.

Rick perambula, em seguida, numa boate, iluminada pelo neon azul e vermelho, onde os frequentadores se divertem – incluindo a modelo halterofilista e um anão, com os quais ele interage –, artistas performáticos se exibem e ele se desorienta cada vez mais, parecendo impassível ao flerte de uma dançarina – ouve-se voz over de Karen: “Você está com medo?”. Ele sussurra, em over , durante a deambulação: “Vá! Para onde? Encontre. Como eu te alcanço? Vou dar meu próprio jeito”. Vê-se, então, um show noturno, do ângulo da multidão. Em seguida, visualiza-se paisagem desértica, em plano aberto; uma pedra, rente ao solo rachado; carro percorrendo a estrada; um cachorro na calçada de uma rua deserta; e o letreiro do próximo segmento: “A morte”.

A morte A voz over de Elisabeth cujo formato e conteúdo se avizinham ao de uma carta –, surgindo nas imagens finais do segmento anterior, acompanha o casal entrando num apartamento, acariciando-se suave- mente e, depois, bruscamente, esboçando uma relação sexual:

Querido, meu amor. Não sinto culpa por ter me apaixonado por você. Sinto prazer. Gratidão por ainda poder me sentir assim. Você tem medo

(^48) Hotel e cassino Caesars Palace. (^49) A Estação Central de Berlim serviu como locação. (^50) A Fremont Street Experience.