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Psicologia do Adulto: Ciclos de Vida e Educação de Jovens e Adultos, Manuais, Projetos, Pesquisas de Saúde do Idoso

Este artigo apresenta reflexões sobre a possibilidade de formular uma psicologia do adulto, baseada na definição do desenvolvimento psicológico como transformação que ocorre ao longo da vida e da postulação da idade adulta como uma etapa culturalmente organizada. O artigo discute a importância das atividades e práticas culturais na constituição do psiquismo e busca caminhos para a historicização da psicologia do adulto, especialmente em relação aos adultos trabalhadores que frequentam cursos supletivos. O artigo também apresenta dados empíricos obtidos durante a fase inicial de uma pesquisa sobre urbanos trabalhadores que frequentam cursos supletivos.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2024

Compartilhado em 03/04/2024

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Artigos /Reviews

212 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 211-229, maio/ago. 2004

Life cycles: some questions on the psychology of the adult

Marta Kohl de Oliveira

Universidade de São Paulo

Abstract

This article seeks to systematize some reflections on the possibility of formulating a psychology of the adult, starting from the definition of psychological development as a transformation that occurs throughout the life, and from the postulation of adulthood as a culturally organized stage of the subject’s passage through the typically human existence. Based on the assertion of the importance of the cultural practices and activities to the constitution of the psyche, especially through the execution of tasks and the use of instruments and signs as mediators of the psychological activity, ways of historicizing the psychology of the adult are pursued. To that end, a deeper understanding of the organization of different cultural practices is proposed, as well as of the shared construction of sense and meanings, of the internalization of ways of doing, thinking and producing culture in each one of its concrete domains, whose purpose is to go beyond the more common practice in Psychology, i.e., that of presenting as universal that which is historically contextualized. With the intention of enhancing the understanding about a specific group of adults, a discussion is included in this article of empirical data obtained during the preliminary stage of a research on urban workers attending a supletivo course (a substitute course for secondary education) with the purpose of increasing schooling in connection with their preparation for work. Implications for the education of youngsters and adults, implied throughout the text, are briefly elucidated at the end.

Keywords

Culture and psychological development – Adult psychology – Education of youngsters and adults.

Contact: Marta Kohl de Oliveira Faculdade de Educação/USP Av. da Universidade, 308 05508-900 – São Paulo – SP e-mail : mkdolive@usp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 211-229, maio/ago.2004 213

As idéias elaboradas neste texto provêm, originalmente, de duas situações específicas: a participação em um seminário sobre ciclos da vida, realizado na cidade de Porto Alegre, 1 e o desenvolvimento da etapa preliminar de uma pesquisa junto a adultos trabalhadores, alunos de um curso supletivo (Moraes et al., 2002). A participação no referido seminário possibilitou a sistematização de reflexões já em andamen- to sobre a questão da psicologia do adulto e alimentou a elaboração de segmentos de um texto anteriormente publicado, em co-autoria, e aqui parcialmente reproduzido (Oliveira; Teixeira, 2002). O desenvolvimento da pesquisa gerou a coleta e a análise de dados empíricos sobre a condição de um grupo de adultos tra- balhadores imersos num contexto histórico es- pecífico.

Ciclos de vida e estágios de desenvolvimento

No contexto atual de diversos sistemas de ensino estaduais e municipais no Brasil, a idéia dos ciclos de vida remete aos ciclos de formação, um modo de organização da escola alternativo ao sistema seriado. No contexto da psicologia, essa idéia remete aos estágios de desenvolvimento humano, um modo de orga- nização das etapas da vida humana. É do lugar da psicologia da educação que buscamos argu- mentar, aqui, que o conceito (e o termo) “ciclos de vida” pode ser mais promissor para uma compreensão de maior alcance do fenômeno do desenvolvimento do que a idéia, normalmente utilizada em psicologia, dos estágios. 2 Podemos definir desenvolvimento, sinte- ticamente, como transformação. Processos de transformação ocorrem ao longo de toda a vida do sujeito e estão relacionados a um conjunto complexo de fatores. Na abordagem histórico- cultural encontramos a postulação do desenvol- vimento humano como sendo resultado da interação entre quatro planos genéticos — a filogênese, a ontogênese, a sociogênese e a microgênese (Vygotsky; Luria, 1996; Wertsch,

1988, Oliveira; Rego, 2003). Num outro contex- to teórico, Palacios elabora essa mesma idéia, sintetizando os três fatores aos quais se rela- cionariam os processos de transformação, ou de desenvolvimento: “1) a etapa da vida em que a pessoa se encontra; 2) as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua exis- tência transcorre e 3) experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas” (1995, p. 9). O primeiro desses fatores, correspondente ao plano ontogenético estudado por Vygotsky e decorrente de deter- minações biológicas advindas da pertinência à espécie humana (plano filogenético), introduz uma certa homogeneidade entre todos os su- jeitos que se encontrem em uma determinada etapa de sua vida individual. O segundo fator, correspondente ao plano sociogenético, introduz uma certa homogeneidade entre aqueles que vivem em uma mesma cultura, em um mesmo momento histórico e dentro de um determinado grupo social. O terceiro dos fatores (plano microgenético), prossegue Palacios, introduz elementos idiossincráticos que fazem com que o desenvolvimento psicológico seja um fenô- meno único, que não ocorre da mesma maneira em dois sujeitos diferentes. Os estágios de desenvolvimento habitu- almente definidos nas teorias psicológicas fun- damentam-se, principalmente, no primeiro des- ses fatores, focalizando o indivíduo isolado e as transformações que ocorrem para todos os seres humanos de forma similar (por exemplo, o aparecimento dos dentes, a capacidade de caminhar, a aquisição da linguagem, o amadu- recimento sexual, o envelhecimento do orga- nismo). Ao proceder desta maneira, a psicolo- gia nos tem fornecido modelos de desenvolvi-

  1. Seminário Nacional de Educação: Culturas e ciclos da vida: desafios da (re)invenção da escola na Cidade Educadora, promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre de 13 a 15 de maio de 2002.
  2. Não se trata, aqui, de uma referência ao chamado modelo do ciclo vital (oulife-span model, em inglês), que busca estudar o desenvolvimento humano ao longo de todo o ciclo de vida de uma pessoa e não apenas nos seus primeiros anos de existência, embora certos pressupostos desse modelo sejam compatíveis com as reflexões desenvolvidas no presente texto (cf., por exemplo, Palacios, 1995).

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rar pessoas de diferentes grupos culturais nas mesmas etapas de desenvolvimento: uma criança de classe média alta, de sete anos, em Nova York, freqüentando a escola, e uma criança de sete anos na zona rural do Afeganistão, que trabalha no campo e cuida dos irmãos menores; uma jo- vem paulistana que faz curso de inglês com in- tenção de inscrever-se num programa de inter- câmbio e ir estudar na Austrália e outra jovem paulistana que mora nas ruas e está grávida do segundo filho; e uma dona de casa carioca, um monge do Tibete e um cientista inglês, o que têm em comum como adultos? A perspectiva universalizante não con- templa, tampouco, a própria essência do de- senvolvimento, isto é, a transformação. Como explicar os inúmeros casos de pessoas que superam condições adversas ocorridas em sua infância? Ou dos jovens que percebem sua adolescência mais como continuidade do que como ruptura com seu percurso anterior? Onde ficaria o potencial transformador das intervenções educativas na idade adulta? E os idosos que iniciam uma nova atividade em idade avança- da e tornam-se criativos, produtivos, indepen- dentes? Diante dessas reflexões, a questão não é eliminar o problema da etapização do desenvol- vimento, mas historicizar sua compreensão. Toda sociedade é

organizada por idades e toda sociedade tem um sistema de expectativas sociais com relação ao comportamento apropriado às idades. O indiví- duo passa por um ciclo socialmente regulado do nascimento à morte tão inexoravelmente como passa pelo ciclo biológico: uma sucessão de status de idade delineados socialmente, cada um com seus direitos, deveres e obrigações reconhe- cidos. (Neugarten apud Merrian; Caffarella, 1999, p. 120)

É nesse sentido que a idéia dos ciclos da vida pode ser mais promissora para uma com- preensão minuciosa do fenômeno do desenvol- vimento do que a idéia dos estágios: não nos

remete a uma passagem por um percurso abs- trato (natural) da vida humana, mas por um per- curso contextualizado historicamente (cultural). Pode ser que terminemos, mais uma vez, falan- do em crianças, jovens, adultos e idosos. Mas será importante dar substância a esses ciclos da vida, atrelando-os aos modos concretos de inserção dos sujeitos no seu mundo social, em situações histórico-culturais específicas.

Atividade como princípio explicativo na psicologia cultural

Tomo emprestado, aqui, o título de um artigo escrito por Tulviste (1999), bem como o desenvolvimento de seu argumento nesse mes- mo ensaio, para sugerir caminhos para a pro- posta de historicização da psicologia ou cons- trução de uma psicologia cultural. O argumento se inicia com uma referência ao conhecido es- tudo de Luria com camponeses soviéticos en- tre 1931 e 1932. Luria, em colaboração com Vygotsky, realizou uma pesquisa sobre proces- sos psicológicos com comunidades soviéticas da Ásia Central, região bastante isolada, estag- nada economicamente, com alto grau de anal- fabetismo e predomínio da religião muçulmana. Seu objetivo era estudar as relações entre cul- tura e formas de funcionamento psicológico. Os adultos pouco escolarizados por ele estudados tenderam a apresentar um modo de pensamen- to baseado na experiência individual e nas re- lações concretas observadas na vida cotidiana, ao passo que aqueles com maior grau de esco- laridade operaram de forma desvinculada das situações concretas, trabalhando de modo abs- trato e descontextualizado (Luria, 1990). Tulviste menciona que ele próprio, ao tomar conhecimento desse estudo, inicialmente se perguntou: por que os adultos sem escolarização respondem assim? É interessante pensar que essa tem sido exatamente nossa pergunta mais comum quando, em estudos de psicologia e áreas correlatas, olhamos para fora de nós mesmos: por que os “outros” não funcionam

216 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questões ...

como nós? O que lhes falta? Especificamente com relação à compreensão do funcionamen- to psicológico do adulto pouco escolarizado, normalmente o que se faz é uma comparação com um adulto abstrato, supostamente universal, mas que na verdade é um adulto bastante espe- cífico e historicamente contextualizado: ociden- tal, urbano, branco, pertencente às camadas médias da população, com um nível instrucional relativamente elevado e com inserção no mundo do trabalho em ocupações razoavelmente quali- ficadas (Oliveira, 2001). Ele prossegue relatando que demorou a perceber que a questão real era, na verdade, por que as pessoas que freqüentaram a escola resolvem essas questões do modo que o inves- tigador considera correto? Isto é, “não é a variação cultural e histórica da mente que deve ser explicada via cultura e história; é a própria mente, seu desenvolvimento e funcionamento, que só podem ser explicados se a cultura e a história forem empregadas de uma nova forma na explicação” (1999, p. 72). O que precisa ser explicado por meio da cultura não são as ca- racterísticas de diferentes indivíduos e grupos que divergem das normas européias e america- nas de funcionamento mental, mas a própria mente humana e seu funcionamento. A cultu- ra tem que ser o princípio explicativo da men- te especificamente humana. Explorando melhor essa idéia geral, Tulviste mostra que as atividades executadas numa cultu- ra — aquilo que as pessoas fazem — constituem o fator que permite explicar a mente especificamente humana, ou os processos mentais superiores.^3 Essas atividades envolvem diferentes tarefas e instrumen- tos semióticos, que por sua vez estão funcional- mente relacionados a formas de pensar. “Pessoas envolvidas em diferentes tipos de atividade e, portanto, resolvendo diferentes tipos de tarefas, disporão de diferentes meios semióticos ou instru- mentos fornecidos pela sociedade, e por usarem diferentes instrumentos, pensarão de formas dife- rentes” (1999, p. 69). Qualquer ser humano, em qualquer cultura, tem à sua disposição tantos mo- dos de pensar quantos forem os diferentes tipos de

atividade. O pensamento humano, em qualquer cultura, é heterogêneo por natureza. Voltando aos sujeitos pouco escolarizados estudados por Luria — que traziam para a situa- ção de resolução de silogismos informações ex- traídas de sua própria experiência cotidiana, ao invés de se limitarem às regras dessa modalidade de raciocínio formal —, Tulviste afirma que seu modo de pensar não era “exótico”. Era apenas senso comum, um modo universal de pensar associado a situações e atividades práticas. Os sujeitos escolarizados resolveram corretamente os silogismos aplicando um modo de pensar específico adquirido na escola e dirigido à solução de problemas escolares. Obviamente esse modo de pensar não poderia existir em sociedades sem ciência e sem escola. Destaca, entretanto, que não há cultura em que os su- jeitos se ocupem apenas de atividades práticas — em todas as culturas há atividades como arte, religião e jogo, separadas das atividades práti- cas; e certamente essas atividades têm relação com o pensamento. Tulviste tem como centro de seu argu- mento a idéia de que a construção de uma psicologia cultural deve utilizar a atividade não meramente como um contexto em que o fun- cionamento psicológico ocorre, mas como um princípio explicativo: a mente, e sua origem e desenvolvimento, seriam explicados por meio da atividade. Nesse quadro, os ciclos de vida, isto é, os ciclos culturalmente organizados de pas- sagem dos sujeitos pela existência humana, poderiam ser definidos a partir dos tipos de atividade em que os sujeitos estão envolvidos e os correspondentes instrumentos, signos e modos de pensar. Destaca-se aqui, entretanto, a necessidade de se ir além de uma mera “catalogação de ativi- dades”, como se elas constituíssem elementos preexistentes com relação aos sujeitos e suas prá- ticas de construção conjunta de sentidos e, portan- to, da própria cultura. Conforme afirma Smolka,

  1. O trabalho de Tulviste está fundamentado, em grande medida, na chamada “teoria da atividade”, cujo principal proponente é o psicólogo soviético A. N. Leontiev.

218 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questões ...

etapa de vida em que se encontra o adulto fa- zem com que ele traga consigo diferentes habi- lidades e dificuldades (em comparação à crian- ça) e, provavelmente, maior capacidade de re- flexão sobre o conhecimento e sobre seus pró- prios processos de aprendizagem. (Oliveira, 2001, p. 18)

Alguns autores têm destacado a especi- ficidade da inteligência adulta como mais asso- ciada a conhecimentos (e menos a processos), particularmente conhecimentos especializados e referidos a domínios específicos, por um lado, e conhecimentos tácitos, ligados a procedimen- tos e necessidades práticas, por outro (Ackerman, 1998; Torff; Sternberg, 1998). Continuamos, entretanto, num plano de análise muito genérico. A compreensão apro- fundada de uma psicologia do adulto não pode ser feita em termos abstratos. Se, conforme dis- cutido anteriormente, os ciclos de vida deve- riam ser compreendidos a partir dos tipos de atividade em que os sujeitos estão envolvidos e os correspondentes instrumentos, signos e modos de pensar, temos que estabelecer de que adultos estamos falando. A busca de caminhos para a histori- cização da psicologia do adulto nos conduziu a trabalhar não com a categoria abstrata “adul- to”, mas a focalizar um grupo cultural especí- fico: os adultos trabalhadores que freqüentam cursos supletivos. Em termos de uma caracte- rização geral, esses sujeitos adultos são trabalha- dores, excluídos da escola regular, inseridos no mundo do trabalho em ocupações de baixa qualificação profissional e de baixa remuneração (para um aprofundamento dessa caracterização, veja-se Oliveira, 2001). É importante destacar que, no contexto da presente discussão, enfo- camos especificamente o adulto, embora os cursos supletivos sejam voltados também à educação de jovens. O jovem atendido por es- ses cursos é também um excluído da escola, po- rém geralmente incorporado aos cursos supleti- vos em fases mais adiantadas de escolaridade, com maiores chances, portanto, de concluir o

ensino fundamental ou mesmo o ensino médio. Tende a ser mais ligado ao mundo urbano, en- volvido em atividades de trabalho e lazer mais relacionadas com a sociedade letrada, escola- rizada e urbana. Certamente uma das primeiras tarefas na direção da compreensão desse ciclo de vida pós-infância é uma melhor explicitação da categoria jovem, em contra-posição ao estágio biopsicológico da adolescência, por um lado, e em contraposição ao adulto por outro, espe- cialmente quando tratamos da questão da edu- cação de jovens e adultos. Partindo dessa caracterização geral, ain- da insuficiente, temos que mapear as condições específicas de pertinência cultural dos sujeitos adultos focalizados. Quando falamos em traba- lhadores, de que tarefas efetivamente desempe- nhadas estamos falando? De tarefas coletivas ou desempenhadas isoladamente? De que grau de responsabilidade na condução do cotidiano no mundo do trabalho? De que história ocupa- cional, experiências prévias, formação profis- sional, projetos para o futuro? De que tipo e grau de envolvimento com sindicatos e outras associações de classe? E a exclusão da escola, o que significa exatamente? Qual a história concreta de passagem pela escola, as represen- tações sobre valor e interesse da escola, moti- vações, projetos? A que tipo de tecnologia e de linguagens o sujeito tem acesso? Para que fi- nalidade e com que grau de domínio?

Adultos trabalhadores como sujeitos de desenvolvimento e aprendizagem

Com a intenção de aprofundar a compre- ensão desse grupo cultural específico, nos reme- temos, neste item, a dados coletados na pesqui- sa inicialmente mencionada (Moraes et al., 2002). Tal pesquisa foi desenvolvida em cooperação com o Centro de Educação, Estudos e Pesquisas (CEEP), organização que implementou o Progra- ma “Supletivo Profissionalizante — Educação dos Trabalhadores pelos Trabalhadores” juntamente com o Centro Estadual de Educação Tecnológica

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“Paula Souza”, com sindicatos de trabalhadores de diferentes categorias e com entidades do mo- vimento popular. Esse programa de ensino suple- tivo busca propiciar, ao aluno trabalhador, eleva- ção da escolaridade associada à preparação para o trabalho e se propõe a gerir a experiência pe- dagógica com base na cooperação entre vários grupos, oriundos de diferentes instituições — sin- dicatos, movimentos populares, universidade e escolas de ensino fundamental, médio e técnico. A pesquisa em foco, coordenada por quatro pesquisadoras da Faculdade de Educa- ção da USP, 4 foi planejada com o objetivo de contribuir para a definição de práticas pedagó- gicas que possam servir como referência a po- líticas públicas de educação de jovens e adul- tos e está referida a quatro eixos de investiga- ção que se complementam: a compreensão do adulto trabalhador como sujeito de conheci- mento e aprendizagem, o desenvolvimento de metodologias de ensino para adultos trabalha- dores, a construção de itinerários de formação profissional correspondentes a diferentes ocu- pações demandadas no mercado de trabalho e a criação de possibilidades de organização dos trabalhadores em atividades econômicas a partir de princípios associativistas. Os procedimentos de pesquisa incluíram levantamento e organização de documentos e materiais referentes ao curso supletivo (leis, regu- lamentos, estatísticas e outras fontes escritas ofi- ciais, bem como material didático e iconográfico diverso, registro de reuniões pedagógicas, produ- ções de alunos e professores), acompanhamento de reuniões pedagógicas de planejamento e ava- liação, observação de aulas de diferentes discipli- nas e de estudos do meio, participação em ceri- mônias e festividades promovidas pelos alunos e professores do curso, aplicação de questionários e realização de entrevistas. O questionário dos alunos foi respondido pela quase totalidade dos quinhentos alunos das turmas de ensino fundamental (141 respondentes) e médio (trezentos respondentes) e incluiu per- guntas sobre idade, sexo, situação socioeco- nômica, trajetória cultural e profissional, histó-

ria de passagem pela escola, cursos de qualifi- cação realizados, profissão e escolaridade dos pais, representações dos sujeitos sobre a escola e sua relação com o trabalho e expectativas de profissionalização e formação. Foi aplicado no primeiro semestre de 2002, em situação coleti- va de sala de aula, pelas pesquisadoras e pelas bolsistas da pesquisa, que auxiliaram os alunos na compreensão das questões e na elaboração das respostas, quando necessário. Os 45 profes- sores e coordenadores do curso também respon- deram a questionários, aplicados pessoalmente por integrantes da equipe da pesquisa, nos dife- rentes locais de realização do programa. Uma vez tabuladas e analisadas as res- postas aos questionários, elaborou-se um rotei- ro de entrevista semi-estruturada, com a fina- lidade de aprofundar a compreensão da histó- ria de vida dos sujeitos, especialmente no que diz respeito a sua passagem pela escola, forma- ção profissional, história ocupacional, ativida- de junto ao sindicato e às suas reflexões sobre o mundo do trabalho, da escola e da ativida- de sindical. As entrevistas foram realizadas com uma amostra selecionada de doze alunos, priorizando aqueles que eram sindicalistas. Foram também colhidos os depoimentos de três sindicalistas integrantes do conselho peda- gógico do curso, em geral responsáveis pelas atividades de formação profissional realizadas no sindicato de sua categoria, e de três profes- sores, totalizando-se, assim, dezoito entrevistas, realizadas pelas pesquisadoras e demais inte- grantes da equipe de pesquisa. Os dados de pesquisa explorados no pre- sente item são oriundos dos questionários e en- trevistas realizados com os alunos e sindicalis- tas, e se referem ao primeiro eixo de investiga- ção, que diz respeito ao aprofundamento da reflexão sobre como os adultos trabalhadores pensam e aprendem e às relações entre fun- cionamento intelectual e vida adulta, escola e trabalho.

4.Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Marta Kohl de Oliveira, Nídia Nacib Pontuschka e Sonia Maria Portella Kruppa.

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outras dimensões da vida desses sujeitos. As- sim, por exemplo, embora declarem ter entra- do na escola em idade regular e nela permane- cido durante um período relativamente prolon- gado, os alunos do supletivo estudado apresen- taram marcada dificuldade de fornecer informa- ções precisas sobre a história de sua passagem pela escola. Esse fato fica bastante evidente com relação à pergunta do questionário “Com que idade você entrou na escola pela primeira vez?”. Essa pergunta não produziu uma resposta automática e inequívoca, como costuma pro- duzir em sujeitos para os quais a passagem pela escola faz parte essencial de sua narrati- va autobiográfica. Ao contrário, a pergunta não foi imediatamente compreendida por muitos dos entrevistados e gerou dúvidas sobre o con- teúdo da resposta. Conforme pudemos obser- var no momento de aplicação do questionário, parece que, uma vez esclarecido o significado da pergunta, vários alunos arbitraram uma ida- de de ingresso na escola que não tinha um sentido de precisão cronológica, mas, ao con- trário, consistia numa referência bastante sub- jetiva a um período da própria biografia, talvez correspondente genericamente à infância, à vida antes do ingresso no mercado de trabalho ou ao momento em que prevalecia um certo modo de relação com a família, com a cidade ou com as instituições sociais. É interessante mencionar alguns dados referentes a essa relação subjetiva com o pro- cesso de escolaridade e com a própria infância. O sindicalista V., por exemplo, quando fala de seus tempos de infância respondendo a uma pergunta sobre sua vida escolar feita na entre- vista, passa de um discurso de análise política bastante sofisticada para um tom nostálgico, personalista, emocional. Vejamos os dois tipos de discurso:

Sobre o curso supletivo: O supletivo eu penso que é parte de um sonho que a gente tinha, que é essa forma de trabalhar a educação do trabalhador de um modo geral. Nós sempre ti-

vemos aquela experiência, aquele negócio de dizer assim, ele é um trabalhador que contribui com a formação de outros, e assim era a gente. Na fábrica, por exemplo, eu vou contar uma experiência da fábrica. A maioria do pessoal que vem do interior (...) para Limeira, por exemplo, uma cidade de um nível razoavelmente industrial, os que vieram na década de 1970, 1980, a maioria tem muito pouca escolaridade e como se aprende a ser inspetor de qualidade, se aprende a ser um torneiro mecânico? Aprende na raça. O peão que chega ali já fica trabalhando de ajudante ge- ral, o operador da máquina já está bem próxi- mo ali e o operador daquela máquina, seja torneiro, plainador, acaba ensinando o ajudan- te. É uma forma do trabalhador ensinar a ou- tros trabalhadores. É o que a gente pensa do curso supletivo. Nós achamos que é possível essa troca de experiência entre o aluno trabalhador e o professor. O professor é o trabalhador da área da educação e está dando a sua contribui- ção de formação, escolaridade, àqueles que não tiveram oportunidade de ter um nível de escola- ridade como deveriam ter.

Sobre a vida escolar na infância: Na verdade, lembrar do tempo de escola, de infância, dá sau- dade. A gente fazia um percurso grande, a esco- la na zona rural ficava oito, dez quilômetros dis- tante de casa e era gostoso, porque a gente pas- sava no meio das [?], corria das vacas, você via aquele monte de gado, você trilhava e corria e saía uma criança para um lado, outra para o outro no meio do mato se desviando. É interes- sante, encontrava escorpião, cobra no meio do mato e também na volta da escola catava fruta, porque não sei se vocês conhecem, tem uma planta interessante no mato, é nativa, chamada de ‘ingá’, tem até umas vagens, uma delícia, ingá e a pindaíba, pindaíba é tipo a fruta-do-conde, o formato é igual, só que é rosada e dá em ár- vores grandes. Então a gente matava o tempo, porque tinha que chegar em casa, catar o que tinha, que era o café para o meio-dia, levava para o pai lá e os irmãos, e já ficava trabalhan- do, então aos oito, dez anos, já era no trampo

222 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questões ...

direto, mas o bom que eu lembro era isso, a dis- tância, mesmo com a dificuldade que tinha, mais o orvalho; mês de inverno então era horrí- vel, mas era bom.

Observa-se como o “tempo de escola, de infância” parece estar mapeado subjetivamen- te, por impressões, sensações, lembranças pes- soais de movimentos, relações, sabores, sem referência a marcadores burocráticos ou de alguma forma objetivamente compartilhados sobre a passagem do tempo ou a passagem do sujeito por etapas estabelecidas no discurso típico do mundo letrado e escolarizado. Embora a narrativa mencione a idade de “oito, dez anos” essa referência cronológica não parece ter a função de precisar marcos bem definidos, mas remeter ao tempo da vida rural, da corre- ria com as crianças, do ingá e da pindaíba. Esse sujeito provavelmente responderá à pergunta “Com que idade você entrou na escola pela primeira vez?” a partir desse mapea-mento sub- jetivo, segundo o qual as idades de oito ou dez anos, por exemplo, correspondem a um mesmo momento biográfico. Essa “falta de precisão” (do ponto de vista do pesquisador), que certamente afeta a fidedignidade dos dados quantitativos sobre es- colaridade constantes de um relatório de pes- quisa, poderia ser tomada, talvez, como evidên- cia de uma relação não letrada, não esco- larizada, com a própria passagem pela escola, sugerindo uma modalidade de exclusão que não transparece em indicadores mais objetivos. Mas poderia ser tomada, também, como um indício da importância das condições de vida e das diferentes pertinências culturais na consti- tuição de diversos modos de pensar, sentir, lembrar, esquecer, narrar, omitir, possíveis para cada sujeito, a cada momento de sua história pessoal. De qualquer forma, uma possível relação de exclusão com o mundo da escola pode ser considerada como estando presente em outros aspectos das entrevistas, tais como: dificulda- des no uso da terminologia referente aos ciclos

escolares (“Quando apareceu essa oportunida- de lançada em 1999, começou na primeira turma, eu fiquei esperando, porque eu já tinha a oitava série, vamos dizer o ensino médio, né?”), falta de informação sobre idade própria para ingresso na escola (“Já comecei meio atra- sado, com sete anos”) e inconsistências nos relatos sobre a história da própria escolaridade, como fica evidente no diálogo a seguir, retira- do da entrevista com o sindicalista A.

Entrevistador: Com que idade você entrou na escola? A.: Veja eu sou nordestino, nasci nas Alagoas (...) Eu nasci em 1953, vim embora aqui para São Paulo em 1968. E.: Com quinze anos? A.: Exatamente. Com essa idade aí eu não tinha nem o ensino fundamental, eu não tinha. Eu comecei a estudar, fazer supletivo desde os... Eu estudei no Senai, primeiro eu fiz o Sesi, depois eu fiz supletivo segundo grau no Santa Inês, e prestei vestibular, passei (...). Eu me formei no Mackenzie. E.: Você fez um supletivo? A.: É, eu comecei estudando no ensino funda- mental, estudei em Alagoas, já estudei em Sergipe, também, moramos uns dois anos. E.: Você fez escola antes de vir para cá aos quinze anos? A.: Fiz até o terceiro ano primário. E.: Em que idade começou a escola? A.: Eu comecei em torno de uns oito anos, mais ou menos. E. : E aí fez até que série? A.: Fiz primeira, segunda e terceira, aí vim para São Paulo, fiz um teste. E.: Parou quanto tempo? A.: Parei assim uns dois anos sem estudar, mais ou menos, aí depois eu fiz um teste no Sesi, era Sesi, né? E passei para fazer o quarto ano e passei para o quinto ano, só que do quinto ano em diante fiz só supletivo, para recuperar a idade, porque eu fiquei muito tempo também sem estudar, eu comecei a estudar... E.: Isso me interessa muito, conclui essa história,

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Ao mesmo tempo, entretanto, a elevação da escolaridade é apontada como relevante não só pelas exigências do mercado de trabalho, mas principalmente porque educação é importante para elevar a consciência das pessoas, da reali- dade, eleva a consciência política, eleva a ne- cessidade do saber. Ela é fundamental, funda- mental para a vida das pessoas (a educação) e para os trabalhadores isso para nós está entre as prioridades. (C.)

Essa postulação está estreitamente liga- da à questão do papel da escolarização no de- senvolvimento psicológico, tema que tem sido por nós tratado em trabalhos anteriores (Olivei- ra, 1995, 1996, 2001). Por um lado podemos arrolar algumas características do funcionamen- to cognitivo geralmente associadas aos adultos pouco escolarizados, tais como pensamento referido ao contexto da experiência pessoal imediata, dificuldade de operação com catego- rias abstratas, dificuldade de utilização de es- tratégias de planejamento e controle da própria atividade cognitiva, bem como pouca utilização de procedimentos metacognitivos (Oliveira, 1995). A escola parece estar ligada, portanto, à promoção de um modo de funcionamento in- telectual que envolve capacidade de análise e reflexão, de articulação do pensamento verbal, de planejamento e tomada de decisão, de dis- tanciamento do contexto concreto da vida cotidiana, de transcendência das condições objetivamente vivenciadas. Por outro lado, entretanto, sabemos que a passagem pela escola não garante, de modo homogêneo, o acesso a essa forma de funcio- namento intelectual, já que entre sujeitos esco- larizados há aqueles que não apresentam as características mencionadas e entre sujeitos pouco escolarizados há aqueles que as apre- sentam. É necessário, portanto, buscar outras práticas culturais que poderiam constituir fon- tes relevantes de desenvolvimento psicológico numa determinada direção. É interessante men- cionar, aqui, uma observação pontual que indi- ca a importância de diferentes atividades cul-

turais na implementação de modos de funcio- namento psicológico. O uso sistemático de agendas e o uso do registro escrito em reu- niões, modos de ação tipicamente letrados e, portanto, normalmente associados à exposição a níveis relativamente altos de escolaridade, são práticas totalmente disseminadas entre os sin- dicalistas estudados, independentemente de seu grau de instrução escolar. A fonte dessas práticas letradas, portanto, não é a escola e deve ser buscada em outras formas de ativida- de cultural. Além do trabalho, já mencionado como categoria fundamental de análise na pre- sente pesquisa, a participação na atividade sin- dical se apresenta neste contexto, portanto, como prática potencialmente relevante para a constituição de um determinado modo de fun- cionamento psicológico. Podemos afirmar que nos dados obtidos na pesquisa em foco, escola e sindicato apare- ceram como fontes alternativas ou complemen- tares de desenvolvimento psicológico. Assim, se, por um lado, os alunos que se destacam no curso supletivo são aqueles que participam mais ativamente da atividade sindical, por ou- tro lado, a escolaridade é considerada importan- te e, quando baixa, aparece como falta, como algo que definitivamente faz diferença no de- sempenho pleno no âmbito do sindicato. No- vamente as entrevistas apresentam depoimen- tos bastante relevantes a esse respeito:

Bom, tem desde os alunos que não estão na dire- ção do sindicato: a partir do momento em que começaram o curso eles melhoraram até na sua participação na atividade do sindicato, desde o curso de formação sindical, política, as questões das discussões de negociações, das assembléias, decisões de salários; qualquer evento que o sindica- to faça os alunos têm participado. Agora, nós te- mos um grupo, basicamente três a quatro alunos, que são diretores do sindicato que têm mostrado a importância desse curso, têm dado seu resultado. Por exemplo, tem o sr. S., um senhor que já está com seus cinqüenta e poucos anos e está na dire- ção do sindicato. Tinha parado um bom tempo de

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estudar e voltou e é um dos mais assíduos partici- pantes, vai lá, não falta a uma aula. O curso in- teiro acho que ele faltou umas três vezes porque teve que viajar para alguma atividade. Então é nesse sentido que a gente vê a expectativa dessas pessoas e principalmente a nossa, enquanto direção do sindicato, da importância que está sendo esse curso na formação de trabalhadores. (M.)

O sindicalista dentro da sala de aula ajuda, eu acho que é um dos pontos; mas um ponto mais forte mesmo é a ligação entre professor e sindica- to, e o elo de ligação que existe — que é o traba- lho dentro da sala de aula. É lógico que com o sindicalista lá dentro tem mais poder de inserção, de pedir a fala e poder mostrar um pouco. (AC.)

P: Você acha que quem tem baixa escolarida- de é mais despolitizado ou é igual? J.: No meu caso, eu não tinha escolaridade mas tinha formação política, muita gente também que não tem escolaridade tem formação políti- ca. Quem não tem o estudo, acho que é meio difícil ter formação política. Têm pessoas mes- mo que ligam a televisão e, quando está em horário político, desligam, não querem nem sa- ber o que está passando. P: Mas e aí, você não tem um caso de um sin- dicalista que tenha pouca escolaridade, mas que tivesse uma atuação política legal? J.: Tem [cita alguns nomes]. (...) P: Então a escola para eles não fez falta? J.: Eu acho que faz falta, sim, porque se eles tivessem estudo eles poderiam sentar em uma mesa de negociação, negociar melhor, saber os números, entendeu, que era o meu caso. Como eu vou analisar uma negociação de (?), vamos supor, se eu não tiver estudo, como eu vou fa- zer um cálculo daqueles? Que é a dificuldade de um deles, que é um diretor de sindicato. P:– Então você acha que a escola faz diferença? J.:– Faz diferença.

Para além dessas relações mais gerais ob- servadas, os dados preliminares sobre como os

adultos trabalhadores pensam e aprendem e sobre as relações entre funcionamento intelectual e vida adulta, escola e trabalho indicaram, de modo geral, a importância de se considerar as trajetórias singulares dos diferentes sujeitos e a questão de que não haveria um único caminho de desenvolvimento ou uma única forma de funcionamento psicológico para o ser humano. Ser adulto, trabalhador, estudante, participante de sindicato — e pai de família, membro de grupo religioso, militante de partido político, etc. — são condições que, em diferentes combinações e com diversos significados, constituem formas peculiares de construção de conhecimento e de aprendizagem, evidenciando que o desenvolvi- mento psicológico é um processo de constante transformação e de geração de singularidades. A esse respeito podemos citar brevemente algumas informações extraídas das entrevistas. O sindicalista AC., por exemplo, nos fala da morte da mãe como um fator significativo em seu processo de desenvolvimento — juntamente com a escola e o sindicato esse evento especí- fico moldou, de acordo com o próprio sujeito, algumas de suas características pessoais:

P: Agora, onde que você, além da escola, lógi- co, onde você conseguiu essa facilidade de con- versa, de expor suas idéias? AC.: Não, eu estive em várias escolas, uma delas foi a perda de um membro da família, que era minha mãe, eu tive que morar sozinho e pra morar sozinho a gente tem que ser desinibido pra pedir alguma coisa pras pessoas, porque a gente depen- de uma da outra. Pra lavar uma roupa eu pedia para os vizinhos. E eu conversava muito pouco. A segunda é o sindicato. Agora, a terceira que está melhorando o meu vocabulário é a escola.

A sindicalista Si. menciona, além da escola e dos cursos de formação no sindicato, a inten- sa prática de leitura e a atividade na Igreja Ca- tólica como fontes de conhecimento:

P: E quais outras atividades na sua vida social, fora da escola, que você acha que te trazem co-

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processo de constituição dos sujeitos. Assim, mesmo num grupo relativamente homogêneo de trabalhadores adultos urbanos, em cujo discur- so, na situação de entrevista contextualizada na presente pesquisa, destacam-se os temas do tra- balho, da escola e do sindicato, emergem temas peculiares, únicos, singulares. Para um sujeito a morte prematura da mãe é um fator fundamen- tal, para outro as práticas de leitura e a Igreja; para um enfatiza-se o trabalho na infância, liga- do à esfera familiar; para outro a experiência na fábrica. A construção de categorias que levem em conta esses temas fundamentais para cada sujeito, sem perder de vista o objetivo de uma ordenação generalizante dos dados obtidos, é um desafio a ser enfrentado numa fase de apro- fundamento da análise. Relacionado a isso delineia-se, aqui, uma questão teórico-metodológica: é fundamental transitar entre os objetivos de compreensão mais complexa dos temas centrais na constituição das singularidades dos sujeitos estudados e de construção de categorias de análise que permi- tam certa ordenação generalizante dos dados obtidos. Como afirma Ecléa Bosi “uma história de vida, ou mil histórias de vida jamais substi- tuirão um conceito ou uma teoria da História. (...) Muito mais que qualquer outra fonte, o de- poimento oral ou escrito necessita esforço de sistematização e claras coordenadas inter- pretativas” (2003, p. 49). O trabalho de pesquisa de Bernard Lahire (1997) sobre o sucesso e o fracasso escolar de crianças provenientes de um meio social bastan- te homogêneo, cujos perfis individuais foram analisados em termos do processo de constitui- ção de singularidades, funda-se numa meto- dologia exemplar, nesse sentido. Esse pesquisa- dor mergulha nos casos individuais, procuran- do superar o plano de análise correlacional com uma análise aprofun-dada de configura- ções únicas. Mas retoma a empreitada cientí- fica da generalização ao encontrar temas re- correntemente associados ao sucesso escolar presentes nos diversos casos estudados. Como afirma ele, o

problema central de construção do objeto consiste em passar de uma reflexão estatística sobre as relações, as correlações entre “meio social” e de- sempenhos escolares, a uma microscopia socioló- gica dos processos e das modalidades dos fenôme- nos sociais, sem cair, no entanto, em puras descri- ções monográficas. (Lahire, 1997, p.31)

Com relação à educação de jovens e adultos, campo que dialoga diretamente com as reflexões aqui propostas, as implicações da pre- sente análise são bastante claras. Os sujeitos da ação educativa nesse campo encontram-se jus- tamente nos ciclos de vida pós-infância, para os quais, como vimos, não há conhecimento teó- rico muito bem estruturado disponível, e per- tencem a segmentos sociais específicos, que têm sido objeto de generalizações pouco fun- damentadas sobre supostas relações entre fun- cionamento psicológico e pobreza, baixo nível instrucional e baixa qualificação profissional (ver, por exemplo, pesquisas mencionadas em Haddad, 2000 e Kleiman, 1995). Neste artigo procuramos enfatizar a ne- cessidade de historicizar a compreensão do desenvolvimento, tomando os ciclos de vida como etapas culturalmente organizadas de passagem do sujeito pela existência tipicamen- te humana. As atividades e práticas culturais, e especialmente os instrumentos, signos e mo- dos de pensar a elas relacionados, foram pos- tulados como constitutivas da mente humana. Nesse sentido os jovens e adultos concretos que se encontram na sala de aula deveriam ser objeto de conhecimento aprofundado, por meio da investigação sobre seu modo de in- serção na vida social, suas atividades, seu acesso a diferentes tecnologias e linguagens, a partir do qual poderia ser estabelecido um diálogo com os instrumentos, signos e modos de pensar que são próprios da escola (para um exemplo de um trabalho com adultos na escola no sentido de constituí-los como sujei- tos da aprendizagem e do próprio processo de escolarização, veja-se Fonseca, 2001). As prá- ticas escolares assim construídas tomariam es-

228 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questões ...

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ses alunos como sujeitos humanos plenos, em constante constituição por meio da imersão em situações concretas de construção de sig- nificações. A superação da exclusão do mundo letrado e escolarizado passaria, desse modo,

não apenas pela oferta de oportunidade formal de elevação de escolaridade, mas pela apropri- ação da escola, pelos sujeitos adultos, como lugar social que é de todos os atores que nela interagem.