Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

A Poesia de José Saramago: Um Balanço Crítico, Slides de Poética

Análises de críticos literários sobre a poesia de josé saramago, incluindo suas obras os poemas possíveis, provavelmente alegria e o ano de 1993. Os autores discutem a importância da poesia de saramago para o estabelecimento de sua 'maioridade expressiva' na literatura, sua relação com a origem etimológica da palavra poesia, e a função metalinguística da poesia em sua obra.

O que você vai aprender

  • Quais são as novas formas de expressão empregadas no segundo livro de poemas de Saramago, Provavelmente alegria?
  • Qual é a relação de Saramago com a origem etimológica da palavra poesia?
  • Como a função metalinguística é utilizada na poesia de Saramago?
  • Qual é a importância da poesia de José Saramago para o estabelecimento de sua 'maioridade expressiva' na literatura?
  • Como a poesia de Saramago funciona como 'divisor de águas' e 'manancial' na literatura?

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Amanda_90
Amanda_90 🇧🇷

4.6

(86)

223 documentos

1 / 13

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS
n.3. julho, 2016 ISSN 2359 3679
13
“VEM DE QUE O POEMA?”
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
POESIA DE JOSÉ SARAMAGO
SANDRA FERREIRA
Ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento
Carlos de Oliveira
As redes de pescar palavras são feitas de palavras
Octavio Paz
O primeiro livro de poemas de José Saramago, Os poemas possíveis, foi
publicado em 1966, na reverenciada coleção Poetas de Hoje, da Portugália Editora.
Saramago voltou à poesia em 1970, com Provavelmente Alegria e, cinco anos
depois, em 1975, encerraria o ciclo poético com O ano de 1993, que singularmente
une prosa e poesia na forma criativa de versículos desprovidos de pontuação. A
produção poética de Saramago, comparada à de romances, é quase exígua, mas
digna de nota como prática escritural.
Ao realizar um balanço crítico da poesia saramaguiana, focalizando o papel
decisivo dessa poesia para o estabelecimento da “maioridade expressiva” do autor,
alcançada com os romances da década de 1980, Horácio Costa afirma que, no
tocante à totalidade e à fragmentaridade, a experiência poética de José Saramago
considerada pelo ensaísta em relação à obra posterior, mas sobretudo em si
mesma funciona tanto como “divisor de águas” quanto como “manancial”, por
constituir uma etapa decisiva de embate com a linguagem e suas plurais operações
textuais, em que aflora “uma sensibilidade linguística que jamais deixou de estar
presente na sua prosa” (COSTA, 1997, p.84)
O crítico Fernando J. B. Martinho (1999), em “Para um enquadramento
periodológico da poesia de José Saramago”, afirma que a obra poética de José
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd

Pré-visualização parcial do texto

Baixe A Poesia de José Saramago: Um Balanço Crítico e outras Slides em PDF para Poética, somente na Docsity!

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

“VEM DE QUE O POEMA?”

CONSIDERAÇÕES SOBRE A

POESIA DE JOSÉ SARAMAGO

SANDRA FERREIRA

Ó palavras de ferro, ainda sonho dar-vos a leve têmpera do vento Carlos de Oliveira As redes de pescar palavras são feitas de palavras Octavio Paz

O primeiro livro de poemas de José Saramago, Os poemas possíveis , foi publicado em 1966, na reverenciada coleção Poetas de Hoje, da Portugália Editora. Saramago voltou à poesia em 1970, com Provavelmente Alegria e, cinco anos depois, em 1975, encerraria o ciclo poético com O ano de 1993 , que singularmente une prosa e poesia na forma criativa de versículos desprovidos de pontuação. A produção poética de Saramago, comparada à de romances, é quase exígua, mas digna de nota como prática escritural. Ao realizar um balanço crítico da poesia saramaguiana, focalizando o papel decisivo dessa poesia para o estabelecimento da “maioridade expressiva” do autor, alcançada com os romances da década de 1980, Horácio Costa afirma que, no tocante à totalidade e à fragmentaridade, a experiência poética de José Saramago – considerada pelo ensaísta em relação à obra posterior, mas sobretudo em si mesma – funciona tanto como “divisor de águas” quanto como “manancial”, por constituir uma etapa decisiva de embate com a linguagem e suas plurais operações textuais, em que aflora “uma sensibilidade linguística que jamais deixou de estar presente na sua prosa” (COSTA, 1997, p.84) O crítico Fernando J. B. Martinho (1999), em “Para um enquadramento periodológico da poesia de José Saramago”, afirma que a obra poética de José

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

Saramago mantém relação estreita com a origem etimológica do vocábulo poesia, que remete a fazer. O próprio Saramago, em entrevista a Carlos Reis, declarou:

Quando escrevi poesia, tudo aquilo foi pensado; lembro-me de que o poema era muito fabricado , no melhor sentido que a palavra tem [...], ao passo que os afloramentos poéticos nos meus romances surgem, não há fabricação poética nos meus romances. A mesma coisa não posso dizer, talvez, da poesia. A poesia é fabricadamente poesia. ( apud REIS, 1998, p.111)

Em “Da possibilidade da poesia: Os Poemas Possíveis de José Saramago”, a ensaísta Maria de Lourdes Cidraes (1999, p. 37) mostra-se convicta do interesse e do valor daquela tríade poética saramaguiana. Elege, para análise detida, Os poemas possíveis , assinalando a notória individualidade dessa obra a partir do estabelecimento dos eixos semânticos estruturadores dos livros de poemas. Avalia que, embora exista uma linha de continuidade temática entre os dois livros, Os poemas possíveis e Provavelmente alegria , são empregadas novas formas de expressão no segundo, a exemplo dos longos poemas em verso. Para Cidraes, a validade da poesia em apreço é decorrente de “sua específica realização escritural” (1999, p. 38) e não apenas de sua possível natureza de depositária de temas e motivos recorrentes, em que seriam perceptíveis certas obsessões da obra de Saramago. O propósito deste artigo é considerar alguns poemas de José Saramago em que especificidades do fazer poético ou de seu ingrediente fundamental, a palavra, são convertidas em motivo, a partir do qual é realizado um movimento em que o poema contempla sua própria face e sonda seus ângulos diversos, constituindo, assim, um nítido núcleo metapoético. No ensaio “Linguística e Poética”, Roman Jakobson afirmou que a Poética trata especificamente de uma ampla questão: “Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?” (JAKOBSON, 1995, p. 118). Conforme Jakobson, o objeto principal da poética é o estabelecimento das differentia specifica entre a arte verbal e as demais artes, por meio da descrição dos valores intrínsecos da obra literária. Chamou poética à função da linguagem cuja tônica é centrada na mensagem e, por essa razão, possui, como traço característico indispensável, a projeção do princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. Para o linguista russo, embora o verso se defina como figura de som recorrente, as convenções poéticas não se podem restringir ao plano sonoro, porque o princípio de equivalência na sequência tem significado muito mais amplo, o que o leva a afirmar que a concepção de poesia, defendida por Valéry, como “hesitação entre o som e o sentido” (JAKOBSON, 1995, p. 144) será sempre mais válida que o isolacionismo fonético.

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

ou erva, floresta e fruto”. A figura inicialmente dada, “esquadria da semente”, combina os universos arquitetônico e vegetal, subordinando o segundo ao primeiro. A geometria implícita no conceito de esquadria (ângulo reto) é dada como ordenadora da semente, submetida às leis do mundo natural. A metáfora “esquadria da semente”, ao conotar engenho, reprodução e crescimento, remete à proporção áurea^2 , que matematicamente rege a natureza e, com frequência, a arte. O terceiro verso, aposto do segundo, enumera recortes do crescimento da semente, nos seus desdobramentos possíveis. Os três versos iniciais, portanto, combinam questionamento e resposta acerca do poema como uma criação de espontaneidade aparente, como a da natureza. Tanto é assim que a próxima sequência, composta por três versos metafóricos, se inicia adversativamente: “Mas avançar um pé não é fazer jornada/ Nem pintura será a cor que não se inscreve / Em acerto rigoroso e harmonia”. A negação opositiva enfatiza a desproporção entre A (avançar um pé; cor) e B (jornada; pintura), aludindo a um dificultoso desvão a ser cuidadosamente suprimido, desvão idêntico ao existente entre encadear palavras e compor um poema, teor das metáforas nos versos ora referidos. Os atributos que conferem arte à pintura são o “acerto rigoroso” e a “harmonia” da cor. De modo equivalente, o que equilibra o amor, nos três últimos versos da primeira estrofe, é uma capacidade de submeter os apetites à convivência harmônica, sobrepondo os prazeres da mente aos do corpo^3. Mesmo com essa sobreposição, o amor é ainda apreciado como objeto complexo de uma procura, à qual Edgar Morin outorga, recorrendo à fórmula de Rimbaud, um duplo estatuto: “procura de uma verdade que esteja, ao mesmo tempo, numa alma e num corpo” (MORIN, 1997, p. 34). O percurso figurativo da primeira estrofe contém metáforas oriundas dos âmbitos natural, artístico e afetivo, os três referidos como instâncias de contínuo exercício de busca da justa medida, aquela que torna o poema arte da palavra. Essa arte de criação do poema é definida por uma predicação em que são estabelecidas qualidades (“ritmo, segurança e consciência”) vinculadas semanticamente ao percurso figurativo anterior. Conforme declara Alfredo Bosi:

Predicar é admitir a existência das relações: atribuir o ser à coisa; dizer de suas qualidades reais ou fictícias, de seus movimentos, de seus liames com outras coisas, referir o curso da experiência. Predicar é exercer a possiblidade de ter um ponto de vista. (BOSI, 1983, p. 25)

O poema “Arte poética”, portanto, é tecido com versos em que o eu-lírico projeta o eixo das semelhanças no eixo das contiguidades, compondo uma analogia tríplice para chegar à genealogia do poema, cuja estrutura ôntica compõe-se de palavras, sendo-lhe crucial a seleção e a combinação, a eleição do tema, o modo de

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

compor, a cadência do verso, dentre outros aspectos. A poética saramaguiana parece propor um contínuo-harmonioso em que, como postulava T. S. Eliot, a poesia não se afastasse demais da língua cotidiana. Consideremos o poema “Processo”:

As palavras mais simples, mais comuns, As de trazer por casa e dar de troco, Em língua doutro mundo se convertem: Basta que, de sol, os olhos do poeta, Rasando, as iluminem. (SARAMAGO, 1984, p. 20)

Esse poema breve, um quinteto, assinala a peculiar tensão da forma da mensagem literária como desautomatizadora do valor de sugestão das formas verbais depauperadas pelo emprego prático cotidiano. Por meio dessa tensão entre linguagem cotidiana e linguagem literária, o eu-lírico sonda o poético enquanto código linguístico e celebra a alquimia produzida pelos poetas no trato com as palavras, matéria-prima compartilhada por todos os usuários da língua, mas a que o poeta, como criador-alquimista, consegue infundir vida nova. Keneth Burke afirmou que o retorno dos símbolos na poesia é semelhante à ritualização da experiência religiosa e, quando o símbolo retorna, a repetição evidencia “um novo fator, que é o estilo” (BURKE, 1989, p. 72). A recorrência da consideração sobre o poema, a palavra e o poeta, tornados símbolos^4 de criação/criatividade, é patente na obra poética de Saramago, constituindo uma de suas marcas estilísticas. No poema “Processo”, o eu-lírico sugere que a linguagem poética possui função distinta daquela comunicativa, característica do uso rotineiro da língua. Para Hugo Friedrich, “a língua poética adquire o caráter de um experimento, do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. O vocabulário usual aparece com significações insólitas” (FRIEDRICH, 1978, p. 18). Esse mecanismo, intensificado pela lírica moderna, consiste no funcionamento básico da significação dos textos literários, que, como lembra Paul Ricouer, são opostos aos científicos, cujas significações se devem entender literalmente. Essa diferença resulta do “excesso de sentido, característico das obras literárias” (RICOEUR, 2009, p. 67). A metáfora, definida como “poema em miniatura”, é um dos fatores principais desse excesso que contribui para que, no discurso literário, várias coisas sejam simultaneamente especificadas, resultando disso um “uso positivo e produtivo da ambiguidade” (RICOEUR, 2009, p. 70). A potência transfiguradora das palavras, inerente à poesia, é cantada nos decassílabos de “As palavras são novas”:

As palavras são novas: nascem quando

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

provocativamente em “Circo”). Saramago, assim, soma às suas virtudes poéticas a faculdade argumentadora de um crítico, o que lhe confere uma aura clássica. Às tantas definições possíveis de clássico, Valéry acrescentou uma especialmente eficaz para explicar por quais razões, às vezes, o romântico Baudelaire parece ganhar aura clássica: “clássico é o escritor que traz um crítico em si, associando-o intimamente a seus trabalhos” (VALÉRY, 1991, p. 25). Sem exagerar na reificação do fazer poético ou cair na tentação tecnicista da mera exposição de um know-how , Saramago focaliza o ofício do poeta valendo-se de detalhes circunstanciais de longa irradiação, cumprindo com mérito o seu propósito de poeta, que, nas palavras de Valéry, assim se define: O dever, o trabalho, a função do poeta são colocar em evidência essas forças de movimento e encantamento, esses excitantes da vida afetiva e da sensibilidade intelectual em ação que, na linguagem usual, são confundidos como sinais e meios de comunicação da vida comum e superficial. O poeta consagra-se e consome-se, portanto, em definir e construir uma linguagem dentro da linguagem. (VALÉRY, 1991, p. 30)

Um aspecto recorrentemente cantado por Saramago é a tendência desestabilizadora da linguagem poética, tanto que, em um poema-manifesto, conclama a poesia a pôr em dúvida tudo que se apresenta à fatura do verso como certo e fácil, para eliminar todo o falso poético e chegar a uma experiência que será a da poesia enquanto artefato:

Dia não De paisagens mentirosas De luar e alvoradas De perfumes e de rosas De vertigens simuladas Que o poema se desnude De tais roupas emprestadas Seja seco, seja rude Como pedras calcinadas Que não fale em coração Nem de coisas delicadas Que diga não quando não Que não finja mascaradas De vergonha se recolha Se as faces sentir molhadas Para seus gritos escolha As orelhas mais tapadas

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

E quando falar de mim Em palavras amargadas Que o poema seja assim Portas e ruas fechadas

Ah que saudades do sim Nestas rimas desoladas. (SARAMAGO, 1985, p. 30)

O ceticismo metódico de José Saramago transparece na escolha, para intitular o poema, de um dos termos do par opositivo “dia sim, dia não”, síntese das intermitências de tudo na vida humana. A opção pelo polo negativo, no que diz respeito ao exercício poético, propõe a abolição dos padrões de experiência estereotipados. Nessa chave, são tecidos – por um eu-lírico bastante cioso do caráter discursivo do poema – versos sobre o espetáculo literário da poesia, que deve expulsar da imagística poética os lugares-comuns e eleger o distanciamento irônico como procedimento primordial. “Dia não”, contudo, é um poema em que convivem uma exuberante propedêutica (defendida nos vinte versos da primeira estrofe) e uma sintética e cortante irreverência (dois versos da última estrofe), que termina evocando dialeticamente o “sim” e, desse modo, o poema revela-se uma intervenção metapoética sensível às inalienáveis contradições da arte e da vida. Em entrevista à Folha de São Paulo , conforme fragmento transcrito no blog “Outros Cadernos” ( site da Fundação José Saramago), o autor de História do cerco de Lisboa declarou ser “não” a sua palavra preferida, por haver momentos inevitáveis em que é imperioso dizê-la, dada sua potência transformadora do status quo , não sem, todavia, acrescentar: “A fatalidade do não – ou a nossa própria fatalidade – é que não há nenhum não que não se converta em sim. Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim”. Esse padrão dialético de experiência, simultaneamente visível na afirmação do escritor português e na construção do poema “Dia não”, traz à cena o desejo de totalidade das eternidades momentâneas elaboradas pelos poetas, já que, conforme Octavio Paz:

O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas simultaneamente. Ao falar-nos, porém, sobre todos esses acontecimentos, sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo à nossa frente e em nós. Fala-nos do próprio poema, do ato de criar e nomear. E mais: leva-nos a repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e, ao fazê-lo, revela-nos o que somos. (PAZ, 1990, p. 191)

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

O desejo de um descarnado e volátil verso – que, no entanto, abrigue a quintessência do eu-lírico ou que diga tudo sendo quase nada – alinha-se à perfeição à geometria metapoética saramaguiana, que inclui a reflexão sobre o alcance da palavra como estopim do ato criativo e receptivo, reiterado em:

Diz tu por mim, silêncio

Não era hoje um dia de palavras, Intenções de poemas ou discursos Nem qualquer dos caminhos era nosso. A definir-se bastava um acto só, E já que nas palavras não me salvo, Diz tu por mim, silêncio, o que não posso (SARAMAGO, 1985, p. 174)

Os paroxismos do silêncio eloquente e da eloquência silenciosa se combinam nesses poemas voltados para o estatuto literário da poesia, em dicção assumidamente autorreflexiva, lembrando que não são poucos os vínculos que unem poesia e mundo, porém tais vínculos são submetidos à prospecção dos limites variados entre realidade e representação exercida na poesia moderna. Os dois poemas antes referidos montam e desmontam conceitos antinômicos (palavra e silêncio) os quais instituem uma contradição, que é positiva, ao conter a sua própria negação: a palavra se projeta no silêncio, que a nega e, a partir dessa negação, a palavra se afirma (“Diz tu por mim, silêncio, o que não posso”) e se reconhece: é o que não é o silêncio – cisão superada no poema. Não por acaso, Os Poemas Possíveis se encerra com um poema cujo título, “Canção”, compõe-se por um vocábulo de muitas conotações – sob as quais se abrigam poemas de natureza vária ao longo da história literária, desde os obedientes a padrões formais do século XV até os descontraídos versos livres do XX – irmanadas pelo vínculo entre poesia e música:

Canção Canção, não és ainda. Não te bastem Os sons e as cadências, se do vento O acenar da asa não tiveres. Aqui me voltarás um outro dia: Nocturno escurecido da lembrança Coral resplandecente de alegria. (SARAMAGO, 1985, p. 182)

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

Espécie de balanço autorreflexivo, “Canção” propõe o inacabamento como observação final de um eu-lírico seduzido pelas límpidas arquiteturas do verso, para quem importa, mais que o domínio técnico, alcançar uma difícil simplicidade, um modelo de concentração rítmico-verbal, uma construção feita de linhas, frequentemente poucas, em que se aninhe uma pluralidade harmônica de sons e imagens, conforme executado e proposto no poema:

Forja Quero branco o poema, e ruivo ardente O metal duro da rima fragorosa, Quero o corpo suado, incandescente, Na bigorna sonora e corajosa, E que a obra saída desta forja Seja simples e fresca como a rosa. (SARAMAGO, 1999, p. 20)

O poema emerge queimando nas brasas de sua fatura, metaforizada na laboriosa forja poética do metal-palavra, destinado a superar a inação de matéria- prima, metamorfoseando-se em organismo vivo, de modo a fazer esquecer que os artifícios poéticos são de fato artifícios. A recorrência a elementos da natureza cinzelados para definir o exercício da poesia vigora também em:

O poema é um cubo de granito O poema é um cubo de granito, Mal talhado, rugoso, devorante. Roço com ele a pele e o negro da pupila, E sei que por diante Tenho um rasto de sangue à minha espera No caminho dos cães, Em vez de primavera. (SARAMAGO, 1999, p.70)

No poema antes transcrito, o percurso metafórico é o da geometria mineralizada (poema = cubo de granito), ressaltando-se, mais uma vez, a condição de artefato de todo poema, porém em dimensão soturna, que pode evocar, por exemplo, a sequência surreal do olho seccionado por uma navalha, em Un chien andalou , de Luis Buñuel e Salvador Dalí (França, 1928). O poema como objeto de estililização e autoflagelação evidencia o quanto o Pathos poético pode ser congênere do religioso e, ainda, harmoniza a tonalidade ética com a estética. Submetido à ação criativa, o poema, objeto verbal multifacetado, é imantado pelo

REVISTA DE ESTUDOS SARAMAGUIANOS n.3. julho, 2016 • ISSN 2359 3679

“evento de discurso”, enquanto o símbolo “mergulha suas raízes nas constelações duradoiras da vida e do sentimento do universo”. (RICOEUR, 2009, p. 67-91).

(^5) Em “Situação de Baudelaire”, ao discorrer sobre a transição do romantismo para os – ismos subsequentes, Valéry afirma que parnasianos e realistas abriram mão da aparente intensidade, calcada na abundância oratória, em favor de maior profundidade, assentada na qualidade técnica e intelectual (cf. VALÉRY, 1991, p.21-31).

Referências

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983. BURKE, Keneth. Teoria da forma literária. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix/Edusp,

CIDRAES, Maria de Lourdes. Da possibilidade da poesia: Os Poemas Possíveis, de José Saramago. In: Colóquio/Letras. Lisboa: Calouste Gulbenkian. 151/152, p. 37-50, 1999. COSTA, Horácio. José Saramago : o período formativo. Lisboa: Caminho, 1997. CRUZ, Gastão. A vida da poesia. Lisboa: Assírio e Alvim, 2008. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna : da metade do século XIX a meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 20ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. MARTINHO, Fernando. J. B. Para um enquadramento periodológico da poesia de José Saramago, In: Colóquio/Letras. Lisboa: Calouste Gulbenkian. 151/152, p. 21-23, 1999. MORIN, Edgar. Amor. Poesia. Sabedoria. Trad. Ana Paula de Viveiros. Lisboa: Instituto Piaget, s.d. PAZ, Octavio. El arco y la lira. El poema. La revelación poética. Poesía e Historia. México: Fondo de Cultura Economica, 1990. RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação : o discurso e o excesso de significação. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2009. SARAMAGO, José. “Chega sempre um momento em que é preciso dizer não”. Disponível em: http://caderno.josesaramago.org/159478.html. Último acesso em: 20/02/2016. SARAMAGO, José. Os poemas possíveis. 5 ed. Lisboa: Presença, 2009. SARAMAGO, José. Provavelmente alegria. 5.ed.. Lisboa: Caminho, 1999. VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.