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Valores Humanos, corpo e prevençao, Notas de estudo de Educação Física

A PROCURA DE NOVOS PARADIGMAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Secretaria de Educação Física e Desportos

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 15/09/2010

najala-matos-4
najala-matos-4 🇧🇷

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Baixe Valores Humanos, corpo e prevençao e outras Notas de estudo em PDF para Educação Física, somente na Docsity!

Presidente da República Federativa do Brasil José Sarney

Ministro da Educação Carlos Sant'Anna

Secretário-Geral do MEC Ubirajara Brito

VALORES

HUMANOS,

CORPO

E PREVENÇÃO

A PROCURA DE NOVOS PARADIGMAS

PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA

Autores: Cláudio Cortes Paiva Denise Doneda Denise Vourakis Dias Eduardo Henrique de Rose José Mário Simil Cordeiro Lamartine Pereira da Costa Richard Bucher Silvino Santin

Organizador: Geraldo Quintas

Apoio: Centro de Orientação Sobre Drogas e Atendimento a Toxicómanos - CORDATO/Universidade de Brasília Fundação Educacional do Distrito Federal

Ministério da Educação Secretaria de Educação Física e Desportos

Brasflia-DF, outubro de 1989

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS

Manoel Gomes Tubino

SUBSECRETARIA DE ESPORTE PARA TODOS Geraldo Gonçalves Soares Quintas

Revisão Ivone T. Cogo

B823v Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Física e Desportos Valores humanos, corpo e prevenção: a procura de novos paradigmas para a educação físi- ca / Ministério da Educação, Secretaria de Educa- ção Física. - Brasília: A Secretaria.

120p.

  1. Educação física - Paradigmas
  2. Prevenção I. Título.

CDU 796.

DA CRISE ATUAL DA EDUCAÇÃO FÍSICA PARA A BUSCA DE NOVOS PARADIGMAS

Há algum tempo, o Ministério da Educação, através de sua Secretaria de Educação Física e Desportos, associou-se ao Ministério da Saúde, buscando as interseções possíveis do exercício físico com aspectos relacionados com a prevenção da saúde dos brasileiros.

Por sua vez, a Educação Física, como campo de atuação humana, prossegue na busca de novos paradigmas, que possam enriquecer o seu conteúdo, quanto ao alcance social de seus caminhos, e ao mesmo tempo consiga redimensionar a sua própria relevância diante dos seus usuários. Tudo isto acontece justamente no momento em que a Educação Física atravessa sua maior crise de identidade. Para a percepção desta crise da Educação Física, basta recordá-la nas suas delimitações anteriores e através de seus conteúdos e objetos, ora relacionados com a escola, ora com a saúde, ora com a recreação, ora com o esporte.

Quando verifica-se o esgotamento dessas abrangências como conteúdos únicos da Educação Física, observa-se com nitidez que não se pode mais entendê-la por objetos isolados e sim através de sua multidiversidade de propósitos e relações, as quais formam a sua própria rede de penetração social.

Para encontrar-se uma possível saída nesta crise de identidade, recorre-se a Santin, o qual ao reconhecer que a realidade da Educação Física é a realidade humana, nega o conceito de corpo material, e reconhece no homem uma corporeidade, compreendendo movimento, gesto, expressividade e presença. Nesta mesma direção, o corpo para Cagigal, entendido como a primeira experiência cosmológica do homem, e o fenómeno corporal, explicado por Merleau Ponty pela expressividade, palavra e linguagem, podem ser sintetizados e explicitados como todo o contato com o mundo.

Desse modo, ao reconhecer-se que na questão do corpo estarão as possibilidades de novos paradigmas da Educação Física, é essencial que também se entenda que os valores humanos e a prevenção, ganharão ênfase nesta nova perspectiva de discussão.

Assim sendo, ao relacionar-se a Educação Física com a prevenção, atinge-se toda a problemática das possíveis agressões ao corpo vivido, enquanto que na referência aos valores humanos, estará inserida a sua própria ética.

MANOEL JOSÉ GOMES TUBEMO

Presidente do Conselho Nacional de Desportos e Secretário de Educação Física e Desportos do MEC

INTRODUÇÃO Lamartine Pereira da Costa Richard Bucher

A prevenção para a saúde em geral, ao uso e abuso de drogas em particular, se deixa conceber de várias maneiras. O sanitarista pensa em termos epide- miológicos, o agente da ordem em termos de repres- são, o intelectual pensa na liberalização dos costumes acompanhada da responsabilização de cada um, o reli- gioso na renúncia em prol de valores "superiores", o moralista na pregação da abstinência em benefício do "bem" coletivo. No entanto, para que a ideia da pre- venção seja bem sucedida, encontre receptividade na "população alvo" - representada, no fundo, pela so- ciedade como um todo - e surta efeitos tangíveis, é fundamental que as suas ações ou "campanhas" sejam norteadas por ideais construtivos, por valores humanos claramente pensados e expostos, por objetivos basea- dos em uma concepção humana do humano do homem

  • em suma, por balizas bem definidas que levem em conta as características psicológicas e sociais do ser humano sobre o qual se quer intervir. Para tanto, e pa- ra que os tipos de intervenção preventiva possíveis não fiquem abstratamente pendurados no ar, cabe pergun- tar-se o que se quer prevenir, para quem e ao pedi- do de quem, uma vez que uma "prevenção geral e ir- restrita"não é passível de realização.

A hesitação de intelectuais diante do problema de consumo de drogas legais ( tabagismo, álcool, medi- camentos etc) ou ilegais ( cocaína, maconha, heroína e outras) é, em princípio, justificável: como definir posi- ções contra ou a favor, se de um lado interfere-se na liberdade e de outro se compartilha da degradação de

pessoas? Como difundir ideias libertárias e simulta- neamente agir de forma repressiva? Como assumir atitudes contra a indução ao consumo sem imiscuir-se com interesses policialescos?

Embora estes dilemas e outros afins incentivem a reflexão, a elite pensante não conseguiu superar seu estado de perplexidade diante das substâncias que ofe- recem momentos de liberação e prazer, às vezes à custo do próprio corpo, senão da mente. Incluem-se neste grupo, com mais razão, reformistas ainda surpre- endidos com uma forma de dominação social não pre- vista por qualquer das ideologias políticas correntes, aquela do narco-tráfico. Enquanto tal, este domínio começa a suplantar governos e deteriorar a ordem so- cial de vários países, o que tem levado à repressão, por vezes violenta, por parte de alguns deles, sem distin- ção de regime político, de religiões praticadas ou de convicções liberais afixadas.

Excluem-se forçosamente dos hesitantes aqueles dedicados às áreas de saúde - intrinsecamente física, psíquica e social — que por razões de dever profissio- nal envolvem-se diretamente com consumidores termi- nais de drogas necessitados de auxílio. Mesmo assim, o conhecimento temático e as intervenções ocorrem no plano da prática científica, mantendo-se o estado de passividade quanto às demais implicações de uma pro- blemática nitidamente mais ampla. Algo semelhante pode ser verificado quanto às áreas de direito, serviço social, sociologia política etc, que compartilham de

Hoje em dia, a insistência sobre a responsabili- dade pela preservação do mundo ambiental, o cresci- mento da consciência ecológica e as advertências con- tra o abuso de drogas formam uma unidade temática que exige com certeza abordagens diferenciadas, mas que devem respeitar o seu elo de interseção: o homem. Assim, há semelhanças entre a poluição ambiental da atmosfera, das florestas, dos rios e mares, e a poluição mental provocada pelas drogas; cabe a uma ecologia verdadeiramente holística, isto é, humana, destrinchar estes elementos e combiná-los em intervenções cons- cientes, baseadas na reflexão ética sobre os valores humanos que a eles dão sentido.

Quanto a intervenções específicas em prevenção ao abuso de drogas, cabe não esquecer que os fenóme- nos de drogadição resultam, eles também, de um en- contro que comporta uma sequência semelhante àquela que forma o título desta publicação: ò encontro entre a pessoa (a sua personalidade e os áeus valores), o pro- duto (e os seus efeitos no corpo) e o contexto sócio- cultural (que, em perfeita ambiguidade, incentiva con- sumos viciantes de tudo o que der lucro, e preconiza ações preventivas contra os danos que aqueles provo- cam). Tomara que as ideias discutidas a seguir, contri-

buam para conscientizar mais a respeito destas ques- tões e contradições, tanto os professores e alunos de educação física quanto outros interessados, desmasca- rando as ambiguidades apontadas e levando, paulati- namente, à elaboração de ações preventivas tecnica- mente viáveis e eticamente aceitáveis.

Esta confiança num futuro melhor inclui necessa- riamente aqueles que estudam e debatem o problema da credibilidade, competência e legitimação das auto- ridades que intervém nos fatos sociais por força da função. Sendo um problema mais amplo do que o te- matizado por esta publicação, não se julgou conve- niente abordá-lo nas superficialidades, o que não sig- nifica que deva ser minimizado. Note-se que um desa- fio tão importante quanto ao abuso de drogas é o aper- feiçoamento das instituições nacionais. Neste evoluir depararemos com as tradições culturais da nação e sua consequente moral social, que solicitam estudos mais profundos do que o presente, ora em apresentação. Al- guramos, então, que os textos que se seguirem sirvam também para meditação e exemplo para as autoridades hoje questionadas, tanto quanto para os destinatários desta publicação na sociedade civil.

CAMINHOS

DE RESTAURAÇÃO

DO HUMANO Silvino Santin

  • O Enigma da Vida
  • Sonhos de liberdade e de autonomia
  • A procura do humano
  • Um mundo sem sentido
  • Um laboratório de ilusões
  • O reencontro das harmonias
  • As ideias como arte

"O Herói, o Homem. O culto dos heróis é de sempre. Mas enquanto que uma civilização crê, para além deste mundo presente, em um outro mundo eterno onde o bem supera o mal, o grande homem não está só, ele é o ministro de uma Providência." (Merleau-Ponty, Sens e Non-Sens)

Sente que é preciso recuperar sua identidade de pes- soa. Por isso mais uma vez indaga com toda a força e com muita esperança, que é o homem? A pergunta é a mesma, não é nova, mas ela precisa ser entendida de outra forma. A resposta que reduz o homem a um ob- jeto cientifico fracassou. Como retomá-la?

Talvez, neste momento, seja bom lembrar Kant e suas quatro perguntas. 1. Que posso saber? 2. Que de- vo fazer? 3. Que me cabe esperar? 4. Que é o homem? A quarta pergunta, segundo Martin Buber, sintetiza as três primeiras. Isto porque, no momento em que se de- fine quem é o homem, será ele, como homem, aquele que pode conhecer, aquele que deve fazer e aquele que lhe cabe esperar. Portanto as respostas de Kant deve- riam começar pela difinição do homem. Sabendo-se que é o homem teríamos a chave para as outras três respostas. Mas lamenta Buber que Kant não respon- deu, nem sequer tentou responder a pergunta sobre o homem. E Buber se consola, talvez seja o nosso con- solo também, que, pelo menos, a pergunta "que é o homem?" continua na base da formulação da missão da antropologia filosófica e se constitui no legado que em nenhum momento podemos renunciar, sem correr o risco de perdermos nossa própria identidade. A per- gunta, "que é o homem?", será sempre o despertar da consciência do homem na errância de seu próprio des- tino?; será sempre a voz que convoca para o retorno de sua própria morada. (2)

Sem dúvida, a pergunta, "que é o homem?", tor- na-se o grande convite e o grande desafio para recolo- car o tema do humano, para reformular velhas e novas questões que ressurgem toda vez que homem se sente ameaçado e perdido. Hoje, realmente, o drama que mais aflige o homem não é a iminência da destruição por uma tragédia nuclear, nem a preocupação com as possibilidades da conquista dos planetas, mas o que o aflige sobremaneira é o reencontro dos caminhos existenciais e a construção da moradia que abrigue e ponha a salvo o humano do homem. Não se trata de construir ou dominar o universo, mas de construir o mundo das existências humanas.

SONHOS DE LIBERDADE

E DE AUTONOMIA

Em que princípios a existência humana deveria sustentar-se ou inspirar-se? As filosofias modernas, fundamentalmente, colocaram nas mão do homem toda responsabilidade de auto-definir-se e auto-construir-se. O homem seria a imagem do homem. Uma vez coloca- da a razão como o centro de todas as decisões e a ra- cionalidade como o critério último de validade e de verdade, o homem moderno pensou que tudo seria apenas uma questão de tempo. Ele sentia-se seguro e responsável para realizar enfim esta tarefa que devia

ter sido sua desde sempre, mas que não a assumira de- vido a velhas crenças.

Jacques Monod, em sua obra "O Acaso e a Ne- cessidade", anuncia que a biologia molecular colocara o cientista a caminho do sagrado da vida. Diz ele ex- plicitamente: "O 'sagrado da vida' ", podia então pa- recer inacessível em seu próprio princípio. Atualmente ele está em grande parte desvendado." (3) (Monod p.

  1. E tudo parece indicar que ele acredita que a ciên- cia vai chegar lá.

Com o desenvolvimento da física moderna, desde Galileu Galilei, e confiante no princípio de Francis Bacon de que "saber é poder", o homem contemporâ- neo acreditou ter chegado a hora de sua autonomia ab- soluta. Tal convicção parecia solidificar-se diante dos grandes inventos científicos e dos sofisticados artefa- tos tecnológicos. Com eles seria possível vencer as barreiras tidas, até pouco, como intransponíveis e que, no passado, nem mesmo se pensava em poder trans- pô-las. As próprias correntes filosóficas apontavam nesta direção proclamando o homem como sujeito da história e dotado de plena liberdade.

Numa observação rápida tudo parecia dispor-se dentre desta previsão. As ciências experimentais con- seguiram homogeneizar o universo. Tudo podia ser transformado em objeto do conhecimento. E o que não era objetivável não seria digno de crédito. A diferença entre os céus e a terra, na análise de Japiassu, havia desaparecido. Deus fora dispensado. Sartre chegou a afirmar que "Deus tornar-se-ia uma hipótese inútil e dispendiosa que morreria em sossego e por si pró- prio". (14) (O Existencialismo é um Humanismo pp. 151/52). Com isto o homem da ciência e da técnica se proclamava senhor absoluto dos céus e da terra. Fizera sua, a audaciosa confissão de Nietzshe: "se há um Deus, como suportaria não ser Deus?" O Iluminismo já elevara aos altares da divindade a razão. Tudo pare- cia encaminhar-se na direção da auto-suficiência do homem. A liberdade constantemente proclamada ga- rantia-lhe o caminho desta auto-realização.

Os fatos, porém, conspiraram contra o homem. E a previsão não ocorreu como se esperava. Ou, talvez, melhor observado, tudo ocorreu como seria previsível, mas o quê falhou foi a previsão do homem da ciência. De fato a ciência e a técnica construiram, e ainda po- dem construir, obras maravilhosas, mas acontece que nestas suas construções fantásticas o homem foi redu- zido a um simples objeto científico, entre outros obje- tos. Ele deixou de ser uma pessoa, um cidadão dotado de consciência e de vontade. Ele deixou de pensar pa- ra ser pensado. Ele só pensou para propor-se construir a ciência, daí em diante ele passou a ser pensado pela ciência. Ele deixou de querer. Sua vontade se mani- festou na hora de optar pelo conhecimento objetivo, daí em diante ele passou a executar as tarefas que este

conhecimento lhe estabelecia. Assim o homem viu-se transformado em uma função, em um autómato a servi- ço de sua própria ciência. A sociedade humana trans- formou-se num sistema tecnocrático,ou se quisermos a democracia tornou-se tecnocracia. Assim o homem descobre com perplexidade e desencanto que já não é tão livre quanto sonhara, e que se convertera num mero produto de um sistema de planificação feito por ele, mas que lhe fugiu do controle e, o que é pior, o controla a ele, homem. Dentro desta planificação o homem tornou-se uma simples peça substituível e des- cartável.

Em meio a esta situação volta-se a retomar a re- flexão sobre a dimensão humana e o significado da existência. Coloca-se de imediato a exigência de que precisamos pensar numa existência que se fundamenta no humano do homem. Pensar na existência significa- ria voltar-se, não para o conceito abstrato do homem, mas para os homens. Este homem que está aqui e ago- ra, isto é, o homem situado dentro dos limites de um momento e de um lugar. Os conceitos metafísicos ge- raram imagens universais. Os experimentos científicos construiram indivíduos padronizados. É preciso recuj perar a face original e inconfundível de cada pessoa. É preciso reencontrar os caminhos do homem existencial. Desta maneira a figura da estátua abstrata do conceito da metafísica e as faces frias e calculistas do autómato da ciência precisam ser substituídas, por um homem de carne e osso.

A PROCURA DO HUMANO

Como definir o humano? Os gregos se espelha- ram na natureza (PHYSIS). A humanidade do homem e de cada indivíduo fundava-se na natureza e vinha desde o nascimento. A natureza encarregava-se de de- senhar a fisionomia, não só física, mas também psíqui- ca e social de cada ser humano. O indivíduo nascia plenamente identificado. Era só assumir sua condição. A tradição cristã colocou Deus como o espelho do homem. O homem fora criado por Deus imprimindo- lhes sua imagem e semelhança, segundo diz o relato do livro de Génesis. Cada indivíduo recebe desde o berço uma missão. Cabe a cada um descobrir e executar a vocação a que foi destinado. Assim, o humano do ho- mem está estreitamente vinculado, no caso dos gregos, à natureza, e à Divindade, na tradição cristã.

Com os humanisinos antropocêntricos, que co- meçam desde o movimento renascentista do séc. XIV, o homem passou a bastar-se a si mesmo. Ele pretende ser a imagem de si mesmo. Ele coloca-se como o su- jeito da história, o fundador da verdade, o dominador do universo e sua auto-criação. Esta ambição fica sin- tetizada no pensamento de Sartre, "cada um desenha o

seu retrato e para lá deste retrato não há mais nada." (5) (O existencialismo é um humanismo p. 10).

Mas este sonho de auto-realização na autonomia e Uberdade através dos ditames da racionalidade pare- ce ter-se transformado num terrível pesadelo. Os cien- tistas e filósofos atuais parecem concordar com esse desvio do processo de humanização, e mesmo aceita-se uma aceleração provocada pelos avanços da técnica e da industrialização. Há uma quase unanimidade em aceitar que o mundo tecnocrático representa uma de- composição do mundo humano. Jacques Monod afirma categoricamente, e parece querer expressar o pensa- mento de muitos cientistas, que "nenhuma sociedade antes da nossa conheceu uma dilaceração semelhante". (6) ( O Acaso e a Necessidade p. 189).

Tais fatos despertaram uma consciência generali- zada sobre a gravidade do perigo. Constata-se também uma preocupação cada vez mais crescente com a res- tauração do humano. A crise da humanidade na civili- zação da ciência e da técnica é, sem dúvida, uma ideia que se impõem cada dia com mais força e convicção. É preciso se fazer alguma coisa sem perda de tempo. In- felizmente tal convicção em aceitar o estado de crise não significa uma tomada de posição concreta. Nem sempre o conhecimento do perigo traz a consciência do mesmo. Por isto embora muitos concordem com a desumanização crescente da ordem social, são poucos, no dizer de Konrad Lorenz, que reconhecem "na de- molição do humano uma enfermidade". (7) (Demoli- ção do Homem p. 13).

A constatação da perda do humano e o esforço para sua recuperação acontecem em dois níveis, possí- veis de serem identificados, mas que não podem andar separados. O primeiro desenvolve-se como denúncia de todas as situações que agridem e comprometem o humano. O segundo nível dá-se ao se propor como humano, os movimentos ecológicos de aproximação da natureza, a volta às questões dos valores de beleza, de bem e de equilíbrio, os gestos de simpatia, de respeito e de contemplação de todas as belezas e harmonias do universo.

Ao nível das denúncias encontramos uma litera- tura muito consistente. As denúncias são concordes na sua totalidade em colocar no banco dos réus, como principais responsáveis pelos crimes de desumaniza- ção, a ciência e a técnica. E esta atitude não é só da nossa atualidade. Começa desde o momento em que Pascal sente-se aterrorizado pelo silêncio eterno desses espaços infinitos, surgido a partir no Heliocentrismo. O homem acabara de perder seu ponto de referência. Antes o mundo geocêntrico era fechado e ordenado. A terra era o centro e o homem ocupava o centro da ter- ra. Ele era o rei da criação. A partir de agora o homem vê seu mundo destruído, ao mesmo tempo que perde seu lugar. E mais, ele se torna um habitante de um mi-

cantatas dos anjos." (13) (In Morte das Ciência Hu- manas.) E, mais recentemente, Max Scheller acres- centa que "o espaço de Newton é o vazio do coração" (14) (A Agonia da Nossa Civilização). A física Gali- leana e Newtoniana haviam criado o silêncio e o vazio dos espaços infinitos matematizados e geometrizados, despidos de calor humano e de poesia. O homem co- meçara a perder a palavra e a voz, silenciadas pelos ruídos das engrenagens da grande máquina cósmica, e substituídas pelos algarismos, pelas linhas e pelos cál- culos. Os espaços, o tempo e os fenómenos da nature- za não terão mais o significado inspirado na maneira de viver dos homens, as intencionalidades subjetivas perderam seu valor. Agora só há durações, distâncias e fatos físicos quantificáveis e mensuráveis. Não há mais, para as ciências da objetividade, juízos de valor, mas apenas conhecimentos objetivos. Jacques Monod explicita com muita clareza esta situação ao dizer que "é verdade que a ciência atenta contra o valores, não diretamente, uma vez que ela não é juiz deles e deve ignorá-los mas destrói todas as antogenias míticas e filosóficas nas quais as culturas tradicionais faziam re- pousar os valores, a moral, os deveres, os direitos, as proibições". (15) (O Acaso e a Necessidade, 190).

As ciências, sem dúvida nenhuma, destruíram to- dos os pontos de referência, inspirados nas tradições míticas e do sagrado, a partir das quais o homem ela- borava a compreensão do mundo e de si mesmo, ao mesmo tempo que estabelecia suas ligações com o uni- verso. A tecnologia científica fez com que os rituais sagrados e mágicos se tornassem inúteis e ineficazes, símbolos do primitivismo do homem, a ser superado e esquecido. Este desmoronamento de todas as tradições, de todos os valores, escreve Gusdorf, arrisca tragar a comunidade humana na catástrofe de um niilismo radi- cal. (16) ( A agonia da nossa civilização p. 21)

Hoje e cada vez mais, a humanidade está tendo consciência de que a proposta da ciência e da técnica em transformar o mundo num mero aglomerado de objetos manipuláveis, significou a destruição do mun- do do homem e, o que é muito pior, está ameaçando aniquilar o mundo e, com ele, varrer da face da terra não só o homem mas também toda forma de vida. "Muitos pensadores já notaram esse fato, e muitos li- vros contêm já claramente o reconhecimento de que o extermínio do meio ambiente e a decadência da cultura caminham juntas, passo a passo." (17) (A demolição do Homem p. 13) É preciso salvar o homem, mas pa- ra salvar o homem é indispensável que se comece por salvar a natureza. Em nome de quem e de que propor a salvação? Em nome da ciência? Mas foi ela a grande responsável pela tragédia. Em nome das tradições? Mas foram todas destruídas. Em nome do próprio ho- mem? Mas que homem? O homem da era industrial é um homem sem história, sem tradição e sem memória. A ciência o deixou sozinho na imensidão indiferente do universo de onde teria emergido por acaso. (18) ( O

Acaso e a Necessidade p. 198) Rompido com sua tra- dição cultural o homem contemporâneo tornou-se um homem do momento, da moda, do último lançamento, da última notícia. Um homem que vive da novidade, do sabor das novas emoções, do desprezo do que aconteceu ontem. O descartável e o renovável são os valores fundamentais do seu pensar e agir.

A perda do seu solo cultural, onde podia pisar com seguraça, jogou o homem aos espaços, e um sen- timento de solidão, de vazio, de sem sentido, instalou- se na mente e no coração de cada ser humano. E agora precisa reconstruir o mundo para reencontrar-se. É preciso reencontrar um referencial capaz de rendimen- sionar a existência humana. Esse parece, no momento, ser o ponto mais crucial da reconstrução do humano. Jacques Monod, aparentemente, parece mostrar que não haveria saída quando afirma que "é supérfluo bus- car sentido objetivo da existência. Ele simplesmente não existe. O homem não é um elemento dentro de um plano que preside todo o universo. É o produto do mais cego e absoluto acaso que imaginar se possa. Os deuses estão mortos e o homem está só no mundo. Ele é apenas aquilo que ele mesmo fizer de si mesmo. De- mócrito tem razão: tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade. O mito de Sísito é verdadeiro: o homem está só e o rochedo ainda rola e rolará sempre."(19) (O Acaso e a Necessidade). O texto não significa necessariamente o fechamento do caminho das soluções, mas coloca nos ombros do pró- prio homem a responsabilidade de construir o sentido da existência. Não há um sentido objetivo, "a priori" determinado, mas isto não significa que o homem não possa estabelecer um sentido subjetivo de sua existên- cia. A história das culturas mostra que, no fundo, as ordenações do universo das diferentes tradições cultu- rais são fruto da subjctividade da humanidade. Por- tanto caberia ao homem, em nome de si mesmo como exigência de sua sobrevivência reconstruir o sentido da vida e do universo. É, sem dúvida, nesta direção que apontam as filosofias contemporâneas.

As diferentes correntes existencialistas, de ma- neira especial, desenvolveram-se como consequência da solidão humana gerada, quer pela ciência, quer pe- las metafísicas clássicas. Em ambos os casos o homem existencial mergulhava na solidão porque perdia sua condição de ser-no-mundo para torna-se um conceito ou um objeto. O homem como um ser encarnado no mundo é assaltado pelos sentimentos de angústia, de abandono, de desespero, ao mesmo tempo que ele se manifesta como um ser de compreensão, de preocupa- ção e de sentimento, o que lhe abre a janela da espe- rança. A angústia, o abandono e o desespero, pelo fato de estar só, não significam um resultado, pois ao per- ceber-se como um ser de compreensão e de sentimen- to, elas se transformam em forças dinâmicas que o conduzem a construir sua existência. A angústia o im- pulsiona a buscar um sentido da existência. Assim co-

mo a angústia foi a criadora de todos os mitos, de to- das as religiões, de todas as filosofias, e inclusive a própria ciência. (20) (Monod), p. 185.

O grande mal da sociedade industrializada não está só em ter gerado estes sentimentos de impotência, de vazio e de solidão, mas em ter monopolizado o sentido do universo nos critérios da racionalidade, nos princípios da cientificidade e na eficácia da técnica. A ciência e a técnica constituem uma possibilidade, entre outras, de explicar o universo. Elas não podem ser ex- clusivas.

Não se trata, portanto, de negar a ciência e a téc- nica. Elas representam, sob certos aspectos, um aper- feiçoamento da própria natureza. O homem, desde o momento que deixou de agir guiado apenas por seus instintos, procurou organizar sua ação e sua vida se- gundo os conhecimentos que ia produzindo. Foi assim que o homem dedicou-se com muito empenho em am- pliar seus conhecimentos até conseguir construir as ciências. O mesmo pode-se dizer da técnica. Sempre houve um componente técnico na vida do homem. To- da a ação humana está vinculada ao instrumento ou à ferramenta. O homem da pedra lascada fabricava seus utensílios segundo uma técnica, embora rudimentar. Conhecimento e técnica andaram sempre juntos. A mudança que se operou ao longo do tempo transfor- mou a relação do homem com a técnica. Nesta mudan- ça a técnica e a ciência foram consideradas como ele- mentos de definição do homem. A ciência e a técnica escaparam do controle do homem. Elas tornaram-se o único critério de verdade do saber e da validade da ação. A verdade científica confunde-se com a funcio- nalidade, e a validade da técnica confunde-se com a produtividade. São estas transformações que são visa- das quando se pretende questionar a ciência e a técni- ca. Acontece que a verdade da ciência não é necessa- riamente a verdade do homem. A produtividade da técnica não é garantia da criatividade do trabalho hu- mano. O trabalhador não é mais o criador de sua obra. Ele é apenas o detentor de uma técnica. O trabalhador artesanal foi substituído pelo operador de técnicas. Ele não é identificado pela obra, mas pela técnica. O que se propõe é conciliar a produtividade tecnológica à criatividade artesanal, reaproximar a verdade da ciên- cia com a verdade do homem.

Diante disto compreende-se porque se tenta vol- tar ao passado para reencontrar as raízes de nossas tra- dições culturais. Mas com esta volta ao passado não se pretende recuperar um paraíso perdido. Talvez não seja também uma nostalgia dos valores do passado. Trata-se, isto sim, de resgatar possibilidades de desen- volvimento abandonadas pelas escolhas e opções que a humanidade fez no processo de seu próprio progresso. A existência humana pode ser desenvolvida de dife- rentes maneiras. Cada indivíduo tem uma existência estabelecida a partir de suas opções. Toda opção im-

plica em deixar de lado outras alternativas. Uma mu- dança de vida, nada mais seria que recuperar as possi- bilidades preteridas pelas nossas escolhas. A ciência e a técnica foram opções feitas pela civilização ociden- tal. Hoje tentamos buscar outras alternativas esqueci- das, com a esperança de que restituam a humanidade do homem.

UM LABORATÓRIO DE ILUSÕES

O homem da sociedade industrial e filho do sis- tema tecnocrático, jogado no fundo de um abismo de solidão, apesar de cercado por barulho infernal, sente a necessidade de construir um sistema de valores para reencontrar o caminho do sentido de sua existência. Tal aspiração do homem contemporâneo não escapa ao olho mágico e onipresente de nossa civilização. Ela ardilosamente lhe oferece respostas ilusórias para seus sentimentos de solidão e de vazio. De fato o homem, numa primeira tentativa de preencher o vazio do cora- ção, a solidão da vida e a falta de sentido da existência e do mundo, busca nos próprios recursos da ciência e da técnica uma solução.

Na espectativa de fugir deste sem-sentido, o ho- mem cerca-se dos aperfeiçoamentos tecnológicos que o enchem de conforto. Cada dia mais sente-se estimula- do a consumir os artefatos mais confortáveis que a in- dústria com presteza se prontifica a criar para todos os momentos e para qualquer situação. Desde as máqui- nas que nos livram dos trabalhos penosos, passando pelas químicas que nos imunizam contra qualquer dor, até os estimulantes que ampliam nossas capacidades de prazer, no comer, no beber e no fazer sexo, tem o mesmo objetivo, proporcionar o bem-estar e evitar o desprazer. A todo momento e em toda parte somos es- timulados insistentemente a buscar mais prazer, mais conforto e mais divertimento, ao mesmo tempo que fu- gimos de todas as formas de esforço, fadiga e sofri- mento. A toda hora recebemos ofertas de organiza- ções, de produtos químicos, de novas gerações de computadores que se preocupam diutumamente pen- sando e trabalhando por nós. Não precisamos fazer mais nada. O único trabalho é aceitar o convite e a oferta. Podemos ficar, depois, tranquilos estendidos na rede ou acomodados em poltronas, consumindo wisky importado, fumando um cigarro de classe e assistindo nosso programa preferido, onde, em pequenos inter- valos a propaganda vem confirmar o acerto de nossa decisão e a lucidez de nossa inteligência. Isto porque os nossos negócios prosperam, as nossas lavouras pro- duzem safras recordes e o nosso dinheiro se multiplica.

Assim se constrói um mundo de ilusões. A pri- meira e mais séria ilusão é aquela que gera a impressão que só há prazer, e mais, o desprazer não pode fazer parte da vida do homem. O amor, por exemplo, só é

sociedade industrial, volte-se para a natureza na tenta- tiva de reencontrar o caminho do equilíbrio e das har- monias. Os estóicos, filósofos do período de decadên- cia da filosofia grega, propuseram a volta à vida do campo como forma de fugir dos males da vida em so- ciedade, já que esta era a responsável pelo mal-estar das pessoas. Rousseau, no século XVIII festeja o bom selvagem, enquanto acusa a sociedade como a grande responsável pela perversão dos cidadãos.

Em todos esses movimentos de volta à natureza e de condenação da sociedade, pode-se incorrer num dualismo perigoso. Coloca-se de um lado a ordem so- cial como a fonte de todos os males, do outro lado proclama-se a bondade absoluta da natureza. Assim, tudo o que diz respeito à civilização da ciência e da técnica é mau, ou no mínimo; é colocado sob suspeita; e tudo o que se refere à natureza é bom e merece cré- dito.

Neste momento, talvez, a posição de Maria Da- raki coloque a questão nos seus devidos termos ao afirmar que "nós não diríamos que simbolizar a natu- reza é melhor do que transformá-la. Mas pode-se em contrapartida afirmar sem hesitar que a melhor solução consiste em transformar o meio natural respeitando- o tanto quanto o fazemos quando o simbolizamos. Não diríamos também que os rituais do curandor são prefe- ríveis à medicina ocidental. Melhor médico, entretanto, é aquele que aplica sua ciência ao homem inteiro, con- siderado, como no ritual 'corpo e alma', mais do que reduzi-lo - por abstração científica - ao único membro doente e de chamá-lo 'a úlcera da sala 7"'(23) (Repen- sar o Projeto Antropológico Rev. Sprit. Paris. 1984 pp. 70/71.)

Todos esses esforços começam fundamental- mente por uma consciência da situação de mal-estar provocado pela ordem existente. Nem todos porém aceitam os diagnósticos feitos. As razões são múlti- plas. A razão principal, talvez, seja porque parte con- siderável de nossa sociedade, mergulhada nos ideais de conforto, bem-estar e luxo, ficou embotada para perceber o mundo que a rodeia. Tal embotamento pode ser irreversível porque, a pessoa possuída pela ideia fixa do prazer acaba defendendo e justificando as mais cruéis tiranias. Outra parte de nossa sociedade, margi- nalizada das comodidades da civilização, facilmente adota atitudes de revolta, recorre a expedientes duvi- dosos de compensação ou, simplesmente, deixa-se abater por um niilismo que a leva a desacreditar com- pletamente na ordem social. Em ambos os casos os in- divíduos são vitimados pela cegueira e pela surdez, em consequência não falam e perdem a capacidade de co- municação com seu meio ambiente. Alguns ficam transformados em autómatos que executam tarefas já pré-estabelecidas para obter os benefícios da ordem existente. Outros, seguem o caminho contrário, recu- sam e agridem a ordem existente porque dela são ex-

cluídos, mas no fundo buscam seus privilégios. Para estes últimos, a nossa sociedade é uma canoa furada, diz Lorenz, que os descrentes da sociedade, em espe- cial a juventude, procuram abandoná-la. Os primeiros continuam tranquilos, apoiam todos os movimentos que a mantém, em especial os meios de segurança e de repressão, confiantes que a canoa não vai afundar, fa- zer água é normal. Provavelmente, os dois grupos es- tão muito próximos da tragédia. Uns porque desconhe- cem o perigo, outros porque julgam que abandonando a canoa ao jogar-se ao mar pensam que fogem do nau- frágio. O caminho da sobrevivência seria desenvolver uma consciência crítica, a única capaz de desenvolver atividades criativas, sem as quais a verdadeira huma- nidade do homem não pode subsistir.

Numa observação, ainda que superficial, é possí- vel se verificar que a maior parte dos indíviduos de nossa sociedade, seja os que se sentem beneficiados pela ordem social, seja os que se sentem excluidos, to- dos assemelham-se na crença de que a vida é, exclusi- vamente prazer e bem-estar. A diferença está nos meios de obtenção destes prazeres. Uns permanecem dentro da ordem vigente, outros, insatisfeitos com o que lhes é oferecido, buscam outros caminhos.

Acontece que, nos dois casos, há uma incapaci- dade de perceber as harmonias do universo porque to- dos estão afastados dos contactos com as belezas da natureza e, ao mesmo tempo, estão jogados sobre o as- falto, cercados entre paredes de concreto; convivendo com indivíduos que perderam o semblante de pessoas para assumir as faces da função profissional e, às ve- zes, iluminadas por um sorriso comercial.

É preciso, portanto, restaurar a capacidade con- templativa que inspira a criatividade e faz ressurgir a crença de que esta ordem social não é a única, se as- sim o fosse, de fato o mundo não teria sentido. Saltar do barco, para fugir do naufrágio, pode significar a morte por afogamento. Fugir das ilusões da sociedade civilizada para refugiar-se nos mundos irreais dos alu- cinógenos, poderá significar a destruição da própria identidade e perda da liberdade. Podemos estar diante de duas formas de suicídio. Um traz a morte física, outro leva à morte espiritual.

Erich Fromm falando da nossa sociedade afirma que ela é cada vez mais inadequada para garantir a sa- nidade mental dos cidadãos. As neuroses são cada vez maiores e sempre mais extensas. Mas ele, numa atitude até certo ponto surpreendente, não vê nas neuroses apenas um desequilíbrio das pessoas e produto de uma sociedade insana. Ele pensa que as neuroses podem ser consideradas como sintomas de que a sociedade está reagindo contra a desumanização. E quem reage mos- tra vitalidade, que é o caminho da esperança.

Há, além disso, em meio a tanto asfalto, concreto

e plástico, a valiosa teimosia da natureza em mostrar suas belezas e suas harmonias. Costuma-se dizer que a natureza se vinga das agressões sofridas das mãos do homem. A resposta da natureza não é vingança, ela mostra apenas sua dinâmica criativa em se adaptar diante das forças que querem destruí-la. A natureza mostra como podem ser os processos de restauração de equilíbrios perdidos. Não é de estranhar, portanto, que hoje aumente cada vez mais o número daqueles que acreditam ter encontrado o caminho da sobrevi- vência do humano no reencontro com a sabedoria da natureza. Ela nos mostra o equilíbrio existente dentro da diversidade e da variedade. As suas harmonias não se estabelecem por classificações ou ordenações simé- tricas e homogeizantes. Ela sabe aproximar e juntar as diferenças. Por isto, quando nós, pela nossa maneira lógico-matemática de pensar querendo classificar os sentimentos de amor, ódio, fidelidade, esperança, ira, etc. em bons ou maus separadamente, podemos incor- rer em perigosas distorções. Por exemplo, o amor de- masiado pode estragar a criança. A super-proteção po- de gerar o paternalismo. A natureza nos mostra que todos esses impulsos trabalham ordenada e harmonio- samente como um todo. Eles são componentes da vida humana que se manifestam em conjunto. Neste mo- mento, talvez, seja interessante ouvir e aceitar a acusa- ção contra o homem civilizado, e ainda, aprender a linguagem da natureza, na manifestação do índio ca- nadense, Tatanga Mani: "Vocês sabiam que as árvores falam? Bem, elas falam entre si e falam para você, se você escuta. O problema é que os brancos não escu- tam. Eles nunca escutaram os índios, logo suponho que não escutam outras vozes da natureza. "(24) (Diá- rio do Sul)

Mais uma vez podemos voltar a ouvir os ensina- mentos e o testemunho do grande amigo da natureza e há pouco falecido, Konrad Lorenz, expressos nesta passagem de sua obra, "A demolição do humano". "Para que não aconteça o apocalipse que nos ameaça, é necessário que justamente nos adolescentes e nos jo- vens sejam despertadas novamente as sensações valo- rativas que lhes permitam perceber o belo e o bom, sensações essas que são reprimidas pelo cientismo e pelo pensamento tecnomorfo. As medidas educacionais começam pelo treinamento das faculdades de percep- ção e sensação de uma imagem (gestalt), pois só estas podem transmitir a sensibilidade por harmonias. Para que possam funcionar adequadamente, precisam ser alimentadas, como qualquer computador, também, por uma grande quantidade de dados e informações. Um contato tão íntimo quanto possível com a natureza vi- va, tão cedo quanto possível na vida das crianças, é um caminho altamente promissor para que se atinja es- se objetivo". (25) (Dem. do Homem p. 16). Mas estas capacidades, como todas as demais, precisam ser de- senvolvidas a tempo. Caso isto não aconteça a situação poderá ficar irreversível. Neste caso pouco ou nada se pode sonhar em relação a uma nova ordem social e

humana. Lorenz tem uma profunda crença de que será pelo reencontro do homem com a natureza que será possível restaurar o humano, pois ele acredita que qualquer pessoa que sente alegria pela criação e prazer pela beleza está imunizada contra qualquer dúvida contra seu sentido. (26) (Dem. do Homem. p. 190).

Para que isto aconteça são indispensáveis duas atitudes. A primeira é afastar todas as barreiras que impedem às pessoas ter contatos imediatos com a natu- reza. A segunda é oferecer oportunidades indispensá- veis para despertar a sensibilidade das harmonias do universo e abrir espaços para que a natureza seja pre- servada.

AS IDEIAS COMO ARTE

Nem sempre denunciar a destruição do humano e proclamar a necessidade urgente de sua recuperação significa estar plenamente convertido às causas huma- nizantes. Apesar de nossa consciência e da nossa ex- periência cotidiana diante de tantos desequilíbrios e de tanto mal-estar provocados pela civilização comandada pelo sistema tecnocrático, continuamos com uma série de hábitos provenientes desta mesma civilização. E, o que é pior, sentimos certa satisfação com seus engodos capciosos.

Todos sabemos que a super organização científi- ca e tecnológica é exigida para manter em funciona- mento esses monstruosos complexos industriais e co- merciais, e também para garantir uma ordem funcional nas megalópoles infernais. E sabemos todos, também, que esta super organização, aceita e até admirada, se dá com o sacrifício mortal de todo o calor humano. Diante disto podemos cair na tentação de nos conten- tarmos com um discurso humanista justificante, mas não efetivo.

Não é só aqui, entretanto, que se manifesta a nossa indisfarçada simpatia pelo bem-estar e funciona- lidade da tecnologia. Ela aparece sutilmente em muitas ocasiões. Onde, talvez, mais facilmente podemos sur- preender nossos amores tecnicistas, seja quando ten- tamos elaborar novas compreensões, expor ideias e ideais humanizantes e desenvolver interpretações mais justas da realidade para fundamentar propostas de uma nova ordem social. Facilmente encontramos simpati- zantes, admiradores e até adeptos destas propostas, mas de imediato somos interpelados sobre a operacio- nalidade das mesmas. Toda vez que uma ideia é ex- posta, exige-se sua instrumentalidade. O pensamento só se torna válido, parece, quando ele já vem mani- festo com sua vinculação prática. No fundo não há mais distinção entre o teórico e o prático. Ou, pelo menos, a ordem está invertida, o critério de valor é a prática, não a teoria. Esta atitude, sem dúvida, é a mais