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Autoajuda Literatura e Papéis de Gênero: Empoderamento e Normas de Conduta para Mulheres, Resumos de Literatura

Uma pesquisa sobre o cenário editorial de livros de autoajuda no brasil e o papel reservado às mulheres nesses livros. O texto discute como, embora esses livros sejam frequentemente desvalorizados, eles podem reforçar papéis de gênero e também ajudar a empoderar as mulheres. O artigo explora o crescimento do número de livros de autoajuda no mundo e como os títulos voltados para mulheres seguem sendo populares desde o século xix. Além disso, o texto discute a fenomenologia da hipermodernidade e como ela influencia a busca pela autogestão e o consumo de livros de autoajuda.

O que você vai aprender

  • Como os livros de autoajuda se relacionam às questões sociais na sociedade hipermoderna?
  • Quais são os livros de autoajuda mais vendidos no Brasil e o que eles ensinam?
  • Como os livros de autoajuda influenciam a formação de papéis de gênero?
  • Qual é a importância da busca pela autogestão na sociedade líquido-moderna?

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Gisele
Gisele 🇧🇷

4.5

(55)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ANA PAULA LAPORT DE FREITAS SILVA
AUTOAJUDA PARA MULHERES: uma contradição ao movimento feminista?
RIO DE JANEIRO
2017
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Baixe Autoajuda Literatura e Papéis de Gênero: Empoderamento e Normas de Conduta para Mulheres e outras Resumos em PDF para Literatura, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ANA PAULA LAPORT DE FREITAS SILVA

AUTOAJUDA PARA MULHERES: uma contradição ao movimento feminista?

RIO DE JANEIRO

Ana Paula Laport de Freitas Silva

AUTOAJUDA PARA MULHERES: uma contradição ao movimento feminista?

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção de grau de bacharel em Comunicação Social

Orientadora: Cristiane Costa

Rio de Janeiro 2017

A todas as mulheres que sofrem ou sofreram abusos de todos os tipos e que ainda buscam a sua própria liberdade. Às mulheres que já encontraram sua própria liberdade e que se tornaram exemplo para outras mulheres que ainda continuam nessa busca. Às mulheres que me inspiram a cada dia a ser uma pessoa melhor. Aos homens que passaram pela minha vida e me ensinaram que devo me amar primeiro. Aos que confiaram em mim, no meu trabalho e no meu potencial.

AUTOAJUDA PARA MULHERES:

UMA CONTRADIÇÃO AO MOVIMENTO FEMINISTA?

SILVA, Ana Paula Laport de Freitas. Autoajuda para mulheres: uma contradição ao movimento feminista? Orientadora: Cristiane Costa. Rio de Janeiro, 2017. Monografia (Graduação em Comunicação Social) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 43f.

RESUMO

O objetivo da pesquisa é apresentar o cenário editorial dos livros de autoajuda no Brasil e mostrar como esse tipo de literatura, habitualmente menosprezado, tende a reforçar papéis de gênero, mas também pode ajudar a empoderar as mulheres. Para fazer essa análise, será analisado o livro Mulheres que correm com lobos da Clarissa Pincola Estés, que identifica o arquétipo da mulher selvagem por meio de lendas antigas.

Palavras-chave: Autoajuda. Best-sellers. Feminismo. Mercado editorial (Brasil).

ABSTRACT

The objective of the research is to present the editorial scenario of self-help books in Brazil and to show how this type of literature, usually underestimated, tends to reinforce gender roles, but can also help empower women. For this purpose, the book Women who run with the wolves will be analyzed, in which the author Clarissa Pincola Estés identifies the archetype of the wild woman through ancient legends.

Key words: Self-help. Best sellers. Feminism. Editorial market (Brazil).

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1 INTRODUÇÃO

Por que os livros de autoajuda voltados para mulheres são, na maioria dos casos, normas de conduta para conquistar homens? Este não é o caso do livro Mulheres que correm com os lobos (1992), da psicóloga Clarissa Pinkola Estés, que trata do arquétipo da mulher selvagem por meio de contos antigos, e objeto de estudo deste trabalho. O livro ficou na lista dos mais vendidos por um ano nos Estados Unidos após o lançamento. No Brasil, ele ganhou sucessivas reimpressões pela editora Rocco desde sua primeira publicação em português em 1994. A equipe de marketing da editora não fornece o número de vendas, mas afirmou que o livro está sempre na lista dos mais vendidos, sendo categorizado, por isso, como um long-seller. Em 2014, a obra ganhou uma nova capa. Existe uma grande quantidade de livros de autoajuda voltados para o público feminino, mas a maioria deles traz conselhos ainda pautados por valores patriarcais. São manuais sobre como as mulheres devem agir para seduzir os homens visando o casamento. Exemplos de títulos que seguem essa proposta: Mulheres inteligentes, relações saudáveis (Augusto Cury, 2011); Por que os homens amam as mulheres poderosas? (Sherry Argov, 2009); O que toda mulher inteligente deve saber (Steven Carter e Julia Sokol, 2006). Esse tipo de leitura entra em contraponto com o discurso feminista, que prega que as mulheres empoderadas são as que conquistam o que almejam para si mesmas, não com a intenção de conquistar os homens ou competir com outras mulheres. O propósito deste trabalho é compreender como a literatura de autoajuda constrói um modelo feminino e introduz uma norma de conduta para as leitoras. Essa pesquisa se justifica pela necessidade de uma reflexão sobre o papel reservado às mulheres nos livros de autoajuda, gênero que tem forte impacto na vida das pessoas. É de conhecimento geral que há uma grande quantidade de analfabetos funcionais no país: em 2014, já chegava a aproximadamente 13,2 milhões de brasileiros, 8,3% da população nacional, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse número já é maior do que a quantidade de habitantes de São Paulo – cerca de 12 milhões de pessoas. É preciso conhecer o nosso histórico como leitores para entender as nuances da grande produção de livros de autoajuda. Só assim é possível saber que tipo de relação esse gênero tem com o público, seus sentidos e significados.

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Segundo a pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) em 2015, em apoio com a Câmara Brasileira do Livro (CBL), as mulheres correspondem à maior parte do público leitor do país, e a faixa etária leitora é de 35 anos. Levando em conta o crescimento do número de livros de autoajuda no mundo, os títulos voltados para mulheres seguem crescendo desde o século XIX, quando eles eram basicamente manuais para elas se tornarem melhores mães, esposas e donas de casa. A partir do século XX, os títulos passaram a ensinar a conquistar o “príncipe encantado”, com a falsa ideia de empoderamento feminino cuja intenção real era apenas atingir os homens. Ou seja, o casamento ainda é considerado o evento mais importante na vida da mulher, o sinônimo de uma vida bem-sucedida. Esse trabalho discutirá, em três capítulos, o que são livros de autoajuda, seu recorte no mercado editorial, a diferença de títulos para os públicos feminino e masculino e por que a maioria das obras desse gênero voltadas para as mulheres não são consideradas pró- feminismo. Em contrapartida, o título Mulheres que correm com os lobos será analisado como exemplo de um livro de autoajuda para mulheres que estimula o empoderamento feminino.

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2.1 O GÊNERO COMO PRODUTO DO CAPITALISMO

Em seu artigo “Biopolítica, mídia e autoajuda: segredo ou sintoma?” (2010), Ieda Tucherman afirma que a “autoajuda pertence à cultura de massa do século XX” (TUCHERMAN, p.41), e seu sucesso está relacionado ao avanço do capitalismo e à mudança das necessidades pessoais que esse modelo econômico despertou nas pessoas, como a busca por dinheiro, prestígio, saúde e beleza, mas também autoestima, autoconhecimento, bem-estar e felicidade. Analisada mais de perto, a autoajuda pertence à cultura de massa do século XX. Por um lado, se pulveriza em mil e um formatos, misturando-se a gêneros literários diversos, incluindo os de ficção e os de divulgação científica, uma das suas associações mais exitosas, bastando ver o sucesso do filme e do livro O segredo , de Rondha Byrne, que vendeu em um ano 2 milhões de DVDs e 6 milhões de livros impressos. (TUCHERMAN, 2010, p. 41) Como exemplo, três livros de autoajuda que bateram recorde de vendas: As sete leis espirituais do sucesso (Deepak Chopra, 1994), vendeu 50 milhões de exemplares no mundo e ainda hoje está entre os cinco livros mais vendidos no Brasil pela Amazon; Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes (Stephen Covey, 1989), foi traduzido para 38 idiomas,vendeu 25 milhões de exemplares no mundo, ficou oito anos consecutivos na lista dos mais vendidos e ainda hoje está entre os 40 livros mais vendidos do Brasil pela Amazon; e O poder do agora (Eckhart Tolle, 2002), vendeu mais de 8 milhões de exemplares no mundo, ficou 29 semanas na lista dos mais vendidos da revista Veja e até hoje está na lista dos mais vendidos da Amazon e da PublishNews. A procura por livros desse gênero no Brasil cresceu tanto na última década que os sites e revistas que informam quais são os livros mais vendidos da semana, como, por exemplo, o PublishNews, tiveram que acrescentar uma nova categoria. Antigamente os livros de autoajuda faziam parte da categoria “obras gerais”, separando-se dos didáticos, acadêmicos e religiosos; depois o site teve que separar ficção e não ficção, portanto eles foram encaixados nessa segunda categoria. Mais tarde, o site criou uma lista específica para autoajuda, separando-os de vez dos livros de não ficção que incluíam biografias e livros de História. No ano 2000, o nicho das “obras gerais”, de que são parte os livros de autoajuda, e que se distingue do segmento de “didáticos”, cresceu 7%. De 1997 a 1998, as vendas quase dobraram, passando de 1,1 milhão para 2,1 milhões de exemplares (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, 2001). Esse segmento, de acordo com os dados da Câmara, teve um crescimento global de 700% a partir de 1994, para um crescimento das vendas de livros em geral de meros 35%! (SOBRAL, 2006, p. 19) Historicamente, os livros de autoajuda desempenharam diferentes papéis à medida que a procura foi mudando. Na verdade, o gênero só começou a ganhar real visibilidade no

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mercado editorial a partir dos anos 1960, quando “a noção de autoestima foi assimilada” (FREIRE FILHO, 2011, p. 717). Isso não ocorreu à toa, pois esse período foi marcado pela crise no moralismo rígido da sociedade, que começou com o descontentamento da população americana com o american way of life na metade dos anos 1950 e pelas manifestações socioculturais que culminavam nos Estados Unidos e também no Brasil nessa época. Foi uma década de revolução sexual e artística e de protestos estudantis. A nova geração que surgia idealizava uma vida melhor, não tão focada no consumo e com mais liberdade. Assim, surgiram livros com formas prescritivas que serviriam como um manual para uma vida mais feliz e harmônica. Um exemplo é o livro Atitude mental positiva (Napoleon Hill, 1960) que, apesar de só ter chegado ao Brasil em 2015, vendeu mais de 100 milhões de exemplares no mundo todo. O autor usa a psicologia positiva para ensinar, por meio de 20 hábitos cotidianos, a encontrar o que ele chama de “a chave-mestra do sucesso”. Sua frase de efeito era: “Tudo que a mente pode conceber e acreditar, a mente pode realizar”. Nas décadas seguintes, os autores de autoajuda passaram a usar outros métodos para passar veracidade aos livros e alcançar um público maior, consagrando o gênero como uma verdadeira máquina de fazer dinheiro. Portanto, além do “faça você mesmo” e “como chegar lá”, se popularizaram as biografias e depoimentos de casos de sucesso, que serviriam como exemplo aos que também querem atingir seus objetivos, seja no empreendedorismo, nas relações sociais ou nos amores. Se vivemos num mundo caracterizado por tal unipolarização, qual seja, o capitalismo como modelo virtuoso – em que a livre economia é o elemento pulsante e motivador do próprio sistema – o mercado apresenta-se como o mecanismo regulador e gerador de gostos e duvidosas carências. Nesse sentido, pela velocidade e dinamismo do processo, questões relacionadas ao afeto se apresentam como produtos de consumo com forte propensão ao lucro, por ser-lhes implementada notabilidade de fast-food pela exploração mercadológica dos sentimentos humanos. (SILVA, 2010, p. 105) Podemos dizer, então, que a sociedade hipermoderna introduziu à autoajuda? Segundo o psicólogo Jean Marlos Borba em seu artigo “Subjetividade e cultura de consumo de livros de autoajuda na hipermodernidade” (2009), a busca pela autogestão da própria vida se cristalizou na sociedade líquido-moderna, em que os objetos de consumo não têm um valor emocional, são fluidos e efêmeros, apenas satisfazem momentaneamente, contribuindo para o individualismo tão marcante na sociedade contemporânea. Assim, surgiu o hiperconsumidor, que busca constantemente a felicidade e a satisfação imediata pessoal. Seguindo essa linha de raciocínio, a sociedade hipermoderna é marcada pela necessidade de o indivíduo viver o momento, e o hiperconsumismo se tornou um modo de ser e de se expressar. O capitalismo é o responsável por incentivar esse consumo exagerado e

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proposta da obra, como um produto a ser direcionado para quem o procura. Alguns exemplos de livros internacionais e brasileiros que unem autoajuda a outros gêneros e se consagraram como sucesso de vendas: A mágica da arrumação (Marie Kondo,

  1. também faz parte da categoria “saúde e família”, apresenta dicas de organização segundo um método japonês, vendeu mais de 5 milhões de exemplares no mundo todo, ficou 125 semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times e 60 semanas na lista dos mais vendidos da Veja; Ágape (Padre Marcelo Rossi, 2010) também faz parte da categoria “religião e espiritualidade”, vendeu mais de 10 milhões de exemplares no Brasil; Uma vida sem limites (Nick Vujicic, 2010) também faz parte da categoria “biografias e histórias reais”, o autor usa a espiritualidade somada à sua própria superação para inspirar os leitores a fazer o mesmo, ficou três anos na lista dos mais vendidos do PublishNews no Brasil; e Não se apega não (Isabela Freitas, 2014) também é considerado romance, pois a autora dá dicas de relacionamento se baseando nas suas próprias experiências, está até hoje na lista dos mais vendidos do PublishNews desde o lançamento, ao lado de mais três livros do mesmo estilo da autora, ganhou um quadro no Fantástico em 2015 de mesmo nome no qual os atores encenam as histórias contadas no livro, seu público-alvo é o infanto-juvenil. O que esses livros têm em comum, além de serem best-sellers , é que todos apresentam uma leitura fácil recheada de frases de efeito, que, quando não são claramente um “manual de sobrevivência”, provocam um sentimento de identificação que tem por intuito motivar os leitores a pensarem soluções para seus problemas. A pesquisadora Anna Flora Brunelli cita, em seu artigo “A qualificação do dever: diálogo entre a análise do discurso e a abordagem funcional” (2009), algumas características presentes nos livros clássicos de autoajuda, ou seja, aqueles que usam o imperativo “faça”: a linguagem persuasiva (frases imperativas que estimulam o pensamento positivo), o discurso da certeza (somente pela ação positiva o homem alcança a felicidade e o sucesso) e as supostas receitas e segredos para solucionar problemas da vida cotidiana. Uma característica desse tipo de discurso é a objetividade [...]. Assim, qualquer um desses livros “prioriza o que interessa” ao apresentar, ao lado de um conjunto relativamente pequeno de teses, um conjunto de frases que orienta os seus leitores em seus caminhos rumo ao sucesso. Isso explica a grande quantidade de frases imperativas que se encontra nesses livros. Espécie de manual de sobrevivência do mundo atual, os livros de autoajuda dispensam as discussões de suas teses ao apresentá-las como verdades inquestionáveis. (BRUNELLI, 2009, p. 181) Para isso, os autores se colocam em uma posição de “sábios”, em que, ou têm um grande poder de influência, ou são pessoas que alcançaram o tão almejado sucesso e mostram como chegar lá, ou se utilizam de seus títulos acadêmicos e profissionais para transmitir

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credibilidade. Esse último recurso ficou famoso no final do século XX, onde a psicologia se tornou uma aliada para alcançar grandes públicos leitores que buscavam alguma ajuda profissional nos livros. Um exemplo é o livro O sucesso não ocorre por acaso (1992), do médico brasileiro Lair Ribeiro, que ensina as pessoas a se relacionar com o mundo de uma forma que possam conseguir o que quiserem, segundo ele, trazendo para o dia a dia a técnica da neurolinguística, com frases como “se você mudar, o mundo muda também”. O livro foi um sucesso no Brasil na época, por ter sido pioneiro nacional na categoria autoajuda. A obra se manteve durante muitos meses na lista dos mais vendidos do país e estima-se que tenha vendido aproximadamente um milhão de exemplares. “Se você não gosta de si mesmo, como vai convencer os outros a gostarem de você?” é uma das suas frases de efeito que se popularizou após sua entrevista no programa “De frente com Gabi” com a apresentadora Marília Gabriela no mesmo ano de lançamento do livro. Na década de 1920, tal como o cinema, a literatura de aconselhamento era uma indústria cultural emergente, e viria a se revelar a plataforma mais duradoura para a difusão de ideias psicológicas e para a elaboração de normas afetivas. A literatura de aconselhamento combina diversas exigências: por definição, deve ser de caráter geral, isto é, usar uma linguagem nomológica que lhe confira autoridade e lhe faculte fazer afirmações normativas; deve variar os problemas abordados, a fim de ser um produto consumido regularmente; além disso, se quiser dirigir-se a vários segmentos do público leitor, com diferentes valores e pontos de vista, deve ser amoral, isto é, oferecer uma perspectiva neutra sobre problemas relacionados com a sexualidade e a condução das relações sociais. Por fim, deve ter credibilidade, ou seja, ser proferida por uma fonte legítima. (ILLOUZ, 2011, p. 19) Atualmente, o guru da autoajuda brasileira é o psiquiatra paulista Augusto Cury, pesquisador na área de qualidade de vida e desenvolvimento da inteligência. Baseado em seus estudos, escreveu seu primeiro livro, Inteligência multifocal (1999), no qual fala sobre uma teoria de mesmo nome criada por ele que ajuda a promover o desenvolvimento emocional das pessoas. Seus romances e livros de autoajuda voltados para educação emocional e religiosidade já venderam mais de 25 milhões de exemplares só no Brasil e foram traduzidos para mais de 70 idiomas. Títulos como Nunca desista de seus sonhos (1995), Você é insubstituível (2011) e Dez leis para ser feliz (2011) venderam aproximadamente 2 milhões de exemplares cada. Já o romance O semeador de ideias (2005) vendeu 12 milhões de cópias somente no Brasil. Em uma entrevista para a Livraria da Folha de S. Paulo (2009), Cury foi descrito como um dos autores mais lidos do país desde 2005, já tendo vendido 15 milhões de exemplares na época. Quando perguntado sobre a importância da sua literatura para a sociedade atual, Cury disse que “a sociedade se converteu em um hospital psiquiátrico”, onde se tornou normal ser estressado, e afirmou que seus livros na verdade se tratam de psicologia aplicada e têm como

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espécie de treinamento para melhorar o próprio desempenho. Para explicar a biopolítica, Tucherman relembra a definição de Foucault em seu livro História da sexualidade (1980), no qual ele homenageia Nietzsche ao definir biopolítica como “o momento em que o biológico se inseriu no político, fazendo ingressar a vida no domínio do cálculo, constituindo um saber-poder como agente das transformações da vida humana” (TUCHERMAN, 2010, p. 33). Ao relacionar biopolítica com mídia, a pesquisadora faz um contraponto entre o saber-poder definido por Foucault e o “fenômeno da autoajuda”, onde as formas de saber se transformam em formas de poder, interferindo no modo como as mensagens são recebidas e interpretadas. Além disso, a origem da biopolítica está ligada ao liberalismo econômico, no qual o homem econômico é um empreendedor. Com a autoajuda, ele passa a ser seu próprio empreendedor, sua própria fonte de renda, seja com a ajuda da genética, seja com um investimento em educação. Isso é exemplificado no caráter desses livros e na quantidade de títulos desse gênero no mercado editorial, mostrando que aspessoas estão cada vez mais buscando soluções práticas para suas próprias questões financeiras e pessoais por meio do marketing de si mesmos. Então viver se torna uma operação de marketing: uma estratégia de valorização de si, de aumento da autoestima a partir de condutas valorizantes e escolhas estratégicas. Como mobilizar condutas possíveis e desejáveis, seria a pergunta decorrente? No nosso Ocidente tagarela, através de narrativas competentes. Eis aí a autoajuda, oferecendo conselhos, exemplos e certezas num fast-food emocional, em que são servidas porções calculadas de autoestima, liberdade, felicidade, saúde, bem-estar e realização. (TUCHERMAN, 2010, p. 42) Como exemplo, alguns títulos que oferecem o segredo para o sucesso em listas práticas sobre como fazer determinada coisa: Vença o estresse em 4 passos: o treinamento mental para uma vida plena e saudável (Vera Garcia, 2016), 30 dias para atrair e conquistar o homem dos seus sonhos: segredos para aumentar a autoestima, desvendar a mente masculina e ter o namorado que você merece (Paula Machado, 2016) e Faça acontecer hoje! Atinja os seus sonhos em 3 passos simples (Diego Possamai, 2013). Nesses títulos percebe-se um diálogo direto com o possível comprador, em uma tentativa de atraí-lo. Esse tipo de livro não tem como propósito estimular a reflexão, mas sim encaixar o leitor em um grupo de pessoas que tem certo problema a ser resolvido sem levar em conta suas questões pessoais. Para esse tipo de livro atrair o comprador com títulos imperativos, o autor precisa se colocar em uma posição de autoridade e, consequentemente, transmitir ao leitor a posição de inferioridade, colocando-o como uma pessoa desprovida de conhecimentos e que precisa de ajuda. Brunelli sugere uma qualificação deôntica para os discursos da autoajuda, em que os

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autores são vistos como moralmente responsáveis para dar conselhos sobre a vida alheia, impondo vontades sobre o enunciatário e regulando seu comportamento por meio de ordens e proibições. Com essa atenuação do carácter autoritário, o enunciatário passa a ser caracterizado como aquele que tem uma obrigação ou necessidade instaurada. “Assim, a avaliação deôntica pressupõe sempre uma fonte ou causa e um alvo sobre quem incide a avaliação” (BRUNELLI, 2009, p. 184). Um exemplo é o grande uso do pronome “você” e da conjugação na terceira pessoa do singular ou na primeira pessoa do plural. Se, por um lado, cada vez que o sujeito-enunciador manifesta sua autoridade ele está atestando o saber que o autoriza a anunciar tal como faz, por outro lado, suas manifestações de autoridade reforçam a posição inferior do enunciatário, caracterizado no discurso de autoajuda como alguém que necessita de uma “ordem”, de uma orientação a respeito do modo como deve conduzir sua vida, seja porque é uma pessoa infeliz, seja porque é uma pessoa insatisfeita com a vida, etc. (BRUNELLI, 2009, p. 187) A autoajuda romantizada tem uma proposta diferente, na qual o autor se utiliza de histórias, que podem ser pessoais ou não, para exemplificar seus argumentos, e não há um diálogo direto com o leitor. Um exemplo é o livro O monge e o executivo (James Hunter,

  1. que, apesar de ter vendido apenas 200 mil exemplares nos Estados Unidos, no Brasil vendeu mais de 3 milhões de cópias. Nele, o personagem John viaja para um mosteiro em busca de elevação espiritual, onde encontra um famoso ex-executivo que se tornou monge e passou a dar palestras sobre os princípios da liderança. As palavras-chave desse livro são: superação, motivação e eficácia. Outro exemplo é o livro Pai rico, pai pobre (Robert Kiyosaki, 1997) que vendeu 9 milhões de exemplares no mundo todo. Em forma de narrativa, o autor conta uma história pessoal para ensinar sobre planejamento financeiro. Esses dois modelos, somados aos exemplos do Augusto Cury, fazem parte de um tipo de autoajuda que também pode se enquadrar em outras classificações, como romance ou espiritualidade. Apesar de não ter um carácter prescritivo direto como a autoajuda clássica, esses livros romantizados também partem do mesmo pressuposto meritocrático: só quem chega lá é quem faz por merecer. Então esses autores se utilizam de metáforas e crenças espirituais para despertar determinada reflexão, mas no sentido de mobilizar o leitor para encontrar o que ele busca: a solução dos seus problemas pessoais, que ele julga capaz de resolver apenas com uma mudança de atitude.

2.3 A AUTOAJUDA NO BRASIL

O cenário literário no Brasil nunca foi muito promissor, por causa do analfabetismo e