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Neste documento, analisamos as dúvidas céticas de hume sobre a fundação do princípio de causalidade e argumentamos a favor de sua solução cética em face de uma potencial acusação de petição de princípio. Além disso, examinamos o programa de naturalização da epistemologia proposto por quine e discutimos como esta circularidade não deve ser encarada como viciosa. O texto aborda as palavras-chave: hume, quine, epistemologia, ceticismo e naturalismo.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA :
UMA PETIÇÃO DE PRINCÍPIO?
Sérgio Ricardo Neves de Miranda UFOP
Resumo: MinhaMinhaMinhaMinhaMinha intençãointençãointençãointençãointenção nestenestenestenesteneste artigoartigoartigoartigoartigo ééééé oferecerofereceroferecerofereceroferecer umaumaumaumauma respostarespostarespostarespostaresposta ààààà seguinteseguinteseguinteseguinteseguinte questão:questão:questão:questão:questão: aaaaa epistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologia naturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizada devedevedevedevedeve serserserserser entendidaentendidaentendidaentendidaentendida comocomocomocomocomo umaumaumaumauma falácia?falácia?falácia?falácia?falácia? DiscutoDiscutoDiscutoDiscutoDiscuto inicialmenteinicialmenteinicialmenteinicialmenteinicialmente ememememem que medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção de prioridadeprioridadeprioridadeprioridadeprioridade epistêmica.epistêmica.epistêmica.epistêmica.epistêmica. ApresentoApresentoApresentoApresentoApresento ememememem seguidaseguidaseguidaseguidaseguida asasasasas dúvidadúvidadúvidadúvidadúvida cépticascépticascépticascépticascépticas dedededede HumeHumeHumeHumeHume sobresobresobresobresobre aaaaa funda-funda-funda-funda-funda- mentaçãomentaçãomentaçãomentaçãomentação dododododo princípioprincípioprincípioprincípioprincípio dedededede causalidadecausalidadecausalidadecausalidadecausalidade eeeee argumentoargumentoargumentoargumentoargumento aaaaa favorfavorfavorfavorfavor dedededede suasuasuasuasua soluçãosoluçãosoluçãosoluçãosolução cépticacépticacépticacépticacéptica frentefrentefrentefrentefrente aaaaa umaumaumaumauma potencialpotencialpotencialpotencialpotencial acusaçãoacusaçãoacusaçãoacusaçãoacusação dedededede petiçãopetiçãopetiçãopetiçãopetição dedededede princípio.princípio.princípio.princípio.princípio. EssaEssaEssaEssaEssa discussãodiscussãodiscussãodiscussãodiscussão preparapreparapreparapreparaprepara aaaaa principalprincipalprincipalprincipalprincipal tesetesetesetesetese destedestedestedestedeste artigo:artigo:artigo:artigo:artigo: aaaaa epistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologia naturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizada dedededede QuineQuineQuineQuineQuine podepodepodepodepode serserserserser entendidaentendidaentendidaentendidaentendida comocomocomocomocomo umumumumum tipotipotipotipotipo dedededede raciocínioraciocínioraciocínioraciocínioraciocínio circularcircularcircularcircularcircular quequequequeque nãonãonãonãonão implicaimplicaimplicaimplicaimplica umaumaumaumauma falácia.falácia.falácia.falácia.falácia.
Palavras-chave: Hume,Hume,Hume,Hume,Hume, Quine,Quine,Quine,Quine,Quine, Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia, Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo, Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.
Abstract: I’mI’mI’mI’mI’m concernedconcernedconcernedconcernedconcerned ininininin thisthisthisthisthis paperpaperpaperpaperpaper ininininin providingprovidingprovidingprovidingproviding ananananan answeransweransweransweranswer tototototo thethethethethe followingfollowingfollowingfollowingfollowing question:question:question:question:question: shouldshouldshouldshouldshould naturalizednaturalizednaturalizednaturalizednaturalized epistemologyepistemologyepistemologyepistemologyepistemology bebebebebe understoodunderstoodunderstoodunderstoodunderstood asasasasas aaaaa fallacy?fallacy?fallacy?fallacy?fallacy? FirstlyFirstlyFirstlyFirstlyFirstly IIIII considerconsiderconsiderconsiderconsider tototototo whatwhatwhatwhatwhat extent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemic priority.priority.priority.priority.priority. ThenThenThenThenThen IIIII exposeexposeexposeexposeexpose thethethethethe HumeanHumeanHumeanHumeanHumean doubtsdoubtsdoubtsdoubtsdoubts concerningconcerningconcerningconcerningconcerning thethethethethe foundationfoundationfoundationfoundationfoundation ofofofofof thethethethethe principleprincipleprincipleprincipleprinciple ofofofofof causalitycausalitycausalitycausalitycausality andandandandand argueargueargueargueargue forforforforfor hishishishishis scepticalscepticalscepticalscepticalsceptical solutionsolutionsolutionsolutionsolution facingfacingfacingfacingfacing aaaaa potentialpotentialpotentialpotentialpotential chargechargechargechargecharge ofofofofofpetitiopetitiopetitiopetitiopetitio principiiprincipiiprincipiiprincipiiprincipii..... ThisThisThisThisThis discussiondiscussiondiscussiondiscussiondiscussion preparespreparespreparespreparesprepares thethethethethe mainmainmainmainmain thesisthesisthesisthesisthesis ofofofofof thisthisthisthisthis paper:paper:paper:paper:paper: Quine’sQuine’sQuine’sQuine’sQuine’s naturalizednaturalizednaturalizednaturalizednaturalized epistemologyepistemologyepistemologyepistemologyepistemology cancancancancan bebebebebe understoodunderstoodunderstoodunderstoodunderstood asasasasas aaaaa kindkindkindkindkind ofofofofof circularcircularcircularcircularcircular reasoningreasoningreasoningreasoningreasoning thatthatthatthatthat doesn’tdoesn’tdoesn’tdoesn’tdoesn’t implyimplyimplyimplyimply aaaaa fallacy.fallacy.fallacy.fallacy.fallacy.
Key words: Hume,Hume,Hume,Hume,Hume, Quine,Quine,Quine,Quine,Quine, Epistemology,Epistemology,Epistemology,Epistemology,Epistemology, Scepticism,Scepticism,Scepticism,Scepticism,Scepticism, Naturalism.Naturalism.Naturalism.Naturalism.Naturalism.
IIIII
s recentes avanços teóricos e tecnológicos em áreas como psicologia, biologia, neurociência e ciência da computação contribuíram para for talecer a crença de que finalmente resolveremos, de um ponto de vista
empírico, questões acerca da cognição humana que antes pertenciam ao domí-
nio exclusivo da Filosofia. Esta expectativa, contudo, é frustrada tão logo ampli-
amos o horizonte de investigação e questionamos a natureza do próprio co-
nhecimento, deslocando, desse modo, o foco de interesse para as normas que
permitem avaliar o que conta e o que não conta como conhecimento. Qualquer
disciplina de caráter empírico que se proponha a responder esta questão encon-
trar-se-ia envolvida em um argumento circular, pois ao tentar construir uma
teoria acerca da natureza do conhecimento, estaria sujeita às mesmas normas
que prescrevem o que é conhecimento que através dela esperava-se estabelecer.
Ficamos, portanto, com uma gama de problemas que resistem firmemente a serem
tratados em um capítulo das ciências cognitivas, problemas que são relativos à
dimensão normativa do conhecimento e que exigiriam a reposição da cisão entre
o que pode ser tratado por estas ciências e aquilo que é próprio da Filosofia.
Este raciocínio parece comprometer seriamente qualquer tentativa de naturali-
zação da epistemologia, que fica imediatamente condenada como falácia do tipo
petitio principii, visto que envolve circularidade. Minha intenção neste texto é
discutir se o programa de naturalização da epistemologia constitui tal falácia.
Primeiramente, seguindo o comentário de Barnes sobre os modos de Agrippa e
a discussão de Hume sobre o princípio de causalidade, mostrarei em que me-
dida o argumento de circularidade aponta para uma falácia. Em seguida, a
partir da obra de Quine, apresentarei o programa de naturalização da
epistemologia, procurando mostrar que, embora seu modo de tratar o problema
não afaste um procedimento circular, esta circularidade não deve ser encarada
como viciosa e implicar uma petição de princípio. Na conclusão procuro tirar
algumas conseqüências do raciocínio desenvolvido no texto.
IIIIIIIIII
No elenco das técnicas e estratégias argumentativas do ceticismo antigo encon-
tramos o modo de reciprocidade, atribuído por Diógenes Laertius a Agrippa, e
apresentado por Sextus Empiricus nos seguintes termos:
suspendemos o juízo sobre ambos” 1.
(^1) S. EMPIRICUS ,Outlines of Scepticism, J. Barnes, Cambridge, Cambridge University Press,
1994, 41.
de vista, ser anterior a P. O problema que se coloca é como determinar qual tese
ou conjunto de teses teria prioridade epistêmica sobre a outra: esta não seria
uma tarefa fácil, pois o fantasma da circularidade estaria sempre à espreita
daqueles que assim procedem, a exemplo do empirista ingênuo que tenta jus-
tificar por meios racionais por que os sentidos teriam prioridade epistêmica
sobre as construções da razão. A relação de prioridade epistêmica permitiria
assim esclarecer por que raciocínios circulares devem ser evitados: trata-se de
uma petição de princípio decorrente das tentativas deprovar P a partir de P, e
por sua vez lançar mão de P parajustificar P.
A discussão de Hume sobre o princípio de causalidade é um exemplo clássico
de uma crítica bem sucedida:justificar a crença na regularidade da natureza ou
no princípio de indução através da experiência é umapetitio principii, visto que
todo raciocínio derivado da experiênciabaseia-se em uma relação de causa e
efeito, constituindo, portanto, uma inferência indutiva, o que pressupõe justa-
mente aquilo que se espera provar, a saber, a validade do princípio de indução.
Sua solução para o problema será a seguinte: a inferência causal sustenta-se em
uma propensão da natureza humana — o hábito ou costume — de renovar a
mesma relação anteriormente constatada entre dois eventos sempre que a situ-
ação novamente se apresente. Vimos regularmente o sol aparecer no horizonte
todas as manhãs, diria Hume, somos então levados apenas pelo hábito ou cos-
tume a inferir com segurança que o sol se levantará amanhã.
A discussão humeana sobre o princípio de causalidade encaminha nossa refle-
xão para duas direções aparentemente opostas: do ponto de vista da crítico, ele
seria um filósofo céptico, colocando em xeque a possibilidade de uma justifica-
ção última para o conhecimento baseado na relação de causa e efeito, enquanto
que, do ponto de vista da solução, ele seria um filósofo naturalista, chamando
a atenção para um aspecto da natureza humana que colocaria um ponto de
basta nas dúvidas levantadas pelo ceticismo. Não é minha intenção neste texto
discutir se é na direção do cepticismo ou do naturalismo que devemos entender
a filosofia humeana; mas a aposta em um princípio da natureza humana como
solução para o problema da causalidade abre espaço para o seguinte tipo de
suspeita: qual o estatuto deste princípio? o que prescreve sua aceitação? como
ele pode ser justificado ou provado? Sabemos que as teses de Hume sobre o
conhecimento humano e sobre o princípio de causalidade em particular fazem
parte do que ele denominaciência da natureza humana. Não dizendo respeito a
relações entre idéias, como seria o caso da lógica e das matemáticas, ela trataria de
questões fatuais. Deste modo, devemos conceder que, se toda afirmação sobre os
fatos fundamenta-se em uma inferência causal, responder através desta ciência
qual o princípio sobre o qual esta inferência se sustenta constitui um raciocínio
circular. A dúvida que levantamos se concretiza então do seguinte modo: o texto
humeano estaria condenado como uma falácia do tipopetitio principii?
Não seria de se esperar que Hume tenha cometido de maneira tão ingênua uma
falácia por ele mesmo anteriormente denunciada. Devemos tomar o seu texto
literalmente:
versalmente admitido e que é bem conhecido por seus efeitos” 4.
Suponho que o raciocínio de Hume seja de fato circular, mas não se caracteriza
como uma falácia do tipo petitio principii, porque não procura oferecer um
princípio ou razão última a fim de justificar nossa propensão para realizar
inferências causais. O texto humeano sugere, assim, que interromper a nossa
índole crítica em um ponto não pertence ao domínio de provas empíricas ou
demonstrativas: o hábito ou costume não constitui uma razão, mas indica sim-
plesmente um aspecto da natureza humana. Sem dúvida o raciocínio soa aqui
imperfeito enquanto não se investigar de maneira adequada o tema da natureza
humana na filosofia de Hume; esta discussão, porém, está fora do escopo deste
texto. Nosso interesse no momento é extrair algumas conseqüências do modo
como o filósofo apresenta o seu ponto de vista. Primeiramente, o raciocínio é
circular: temos notícia do hábito ou costume em função de seus efeitos, ou seja,
trata-se de uma inferência causal; por sua vez, as inferências causais são torna-
das possíveis pela existência deste princípio da natureza humana. Em segundo
lugar, estes dois temas, o princípio da natureza humana e a inferência causal,
não entram em conflito em uma situação de assimetria epistêmica: embora o
raciocínio que nos leva até o hábito ou costume se baseie em inferências causais,
este princípio da natureza humana não constitui uma justificação, prova, ou
razão para tais inferências. Finalmente, que a crítica de circularidade promove
a suspensão do juízo somente se associada à crença de que devemos oferecer
provas definitivas para toda e qualquer tese que porventura venhamos a susten-
tar.
Essa é, a meu ver, a maneira como raciocínios circulares apontam para uma
falácia petitio principii e também o modo como podemos pensar uma
circularidade não viciosa.
IIIIIIIII IIIIII
Quine avança uma resposta similar à resposta de Hume frente às críticas de
circularidade que atingem o programa de naturalização da epistemologia, quan-
do afirma:
(^4) D. HUME,An Enquiry Concerning Human Understanding, L.A. Selby-Bigge, Oxford: Oxford
Clarendon Press, 1999, 43.
dogma do reducionismo. Quanto à oposição analítico e sintético, Quine afirma
que não encontramos uma linha divisória entre os enunciados verdadeiros em
função do significado e os verdadeiros em função de seu conteúdo fatual que
seja suficiente para caracterizar a noção de analiticidade. Frente a esta
indeterminação, nosso autor conclui que o limite entre enunciados analíticos e
sintéticos é meramente um artigo de fé, um dogma do empirismo que pode ser
abandonado sem acarretar qualquer tipo de prejuízo. Com relação ao dogma do
reducionismo, Quine considera que em uma situação realista de teste apresenta
mais do que o simples contraste de enunciados individuais com os dados da
experiência; em uma situação realista de teste estão envolvidas partes relevan-
tes da teoria à qual o enunciado pertence. Decorre desta sua concepção holista
do teste empírico, conhecida ainda como holismo epistemológico ou tese de
Duhem-Quine, que nenhum enunciado possui um conjunto exclusivo de situa-
ções empíricas que o confirmam ou negam, pois torna-se indeterminado qual
dos enunciados da rede que compõe a teoria deve ser abandonado ou mantido
frente a uma experiência adversa.
Estas considerações atingem o programa fundacionista no seguinte sentido: não
há uma base segura ou fundamento último para o conhecimento, pois tanto os
enunciados cuja verdade seria revelada pela razão, quanto aqueles cuja verdade
seria derivada da experiência, podem ser substituídos em alguma etapa do
desenvolvimento da ciência, sendo o valor de qualquer enunciado dependente,
em última instância, de considerações pragmáticas acerca do que devemos manter
e o que podemos abandonar ao longo do progresso científico. Quine conclui
assim o seu artigo:
contínuas incitações sensoriais são, quando racionais, pragmáticas” 6.
Esta passagem é crucial: primeiro, porque indica qual é o alcance exato que a
dissolução da oposição analítico e sintético tem nas discussões da tradição à
qual nosso autor pertence, particularmente em relação à obra de Carnap; segun-
do, pela maneira peculiar que ele qualifica aqui a sua filosofia, pois a referência
ao pragmatismo simplesmente desaparece da sua obra posterior, preferindo
então qualificar-se como realista e naturalista. É interessante agora desenvolver
estes dois pontos, pois, contrapondo a instância pragmática assumida por Carnap
com a instância naturalista de Quine, poderemos ter acesso ao caráter positivo
(^6) W.V. Quine, Dois dogmas do empirismo, in: IDEM,De um ponto de vista lógico, Col. Os
Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1977, 254.
desta instância e encaminhar a solução do nosso problema.
VVVVV
A orientação intelectual de Carnap sofre uma mudança gradual ao longo de sua
obra, partindo de um empirismo radical, passando pelas discussões sobre a
sintaxe lógica e a semântica, até a adoção de uma instância pragmática, que
encontraremos, por exemplo, em “Empiricism, Semantics and Ontology”. Ele
procura, neste artigo, afastar um prejuízo nominalista e as acusações de
platonismo que seu trabalho em semântica, por apelar a entidades abstratas
como proposições, recebera na ocasião de sua publicação. A intenção do artigo
é defender que a aceitação de entidades abstratas não é incompatível com uma
perspectiva empirista; a estratégia utilizada é mostrar que prejuízos são gerados
quando aceitamos a formulação equivocada de um problema.
Carnap distingue, nesse artigo, dois tipos de problemas, internos e externos.
Questões como “Há um livro sobre a mesa?” ou “Existiu um homem chamado
Moisés?” são problemas internos, quer dizer, internos a um esquema conceitual
que postula a existência de objetos físicos. Elas admitem uma resposta de um
ponto de vista empírico, que será positiva, caso seja possível localizar estas
entidades em um espaço-tempo determinado, ou negativa, caso contrário. Em
contrapartida, “Existem objetos físicos?” não é uma questão passível de respos-
ta, pois não há aqui um esquema com regras claras que prescreva o modo como
podemos respondê-la. Ela apresenta, portanto, um problema externo, que pre-
ferencialmente deveria ser formulado como uma questão que versa sobre a
linguagem ou escolha de um esquema conceitual. A sua formulação correta
deveria ser então: “Devemos adotar um esquema conceitual que pressupõe a
existência de objetos externos?”. A partir destas considerações, Carnap conclui:
Problemas ontológicos são aqui convertidos em questões sobre a linguagem,
questões sobre a aceitação de esquemas conceituais, sendo a decisão sobre qual
linguagem assumir, pautada por considerações pragmáticas, por exemplo, o
propósito que ela serve, sua eficiência, sua simplicidade, etc.
Esse quadro proposto por Carnap parece a alguns críticos insustentável, pois
deixa indeterminado que tipos de esquemas conceituais, portanto, que tipo de
(^7) R. CARNAP , Empiricism, Semantics, and Ontology, in R. RORTY ,The Linguistic Turn, Chicago,
University of Chicago Press, 1967, 73.
De acordo com esta compreensão da analiticidade, não há como decidir acerca
do conjunto de enunciados que compõem um esquema conceitual exceto no
interior de um esquema prévio. Portanto, não há como avaliar um esquema
conceitual através de considerações pragmáticas assumindo um ponto de vista
externo, e todas as questões que podemos formular devem ser entendidas como
questões internas. É exatamente neste sentido que Quine afasta-se do
pragmatismo de Carnap, assumindo uma instância realista, o que, na sua obra,
quer apenas dizer que a nossa posição cognitiva é sempre interna a uma teoria
ou esquema conceitual previamente aceito e compartilhado entre os membros
de uma determinada comunidade. Assim, se para Carnap as questões sobre a
justificação de crenças (epistemologia) e a aceitação de teorias e das entidades
por elas veiculadas (ontologia) somente poderiam ser adequadamente respon-
didas apelando-se para a distinção entre questões internas e externas, na pers-
pectiva inaugurada por Quine somente podemos respondê-las de um ponto de
vista interno, quer dizer, realista.
Quanto à ontologia, podemos dizer que, mesmo assumindo que nossas teorias
possam ser falsas, aplicamos a elas o predicado “verdadeiro” em um sentido
não relativo e absoluto, pois, de acordo com Quine:
Devemos assim considerar, no trecho dos “Dois dogmas” citado acima, ao lado
da instância pragmática, a qualificação que Quine faz de sua filosofia ao afirmar
que “a cada homem é dada uma herança científica”, quer dizer, nossas questões
surgem sempre no interior de um esquema conceitual que consideramos verda-
deiro. Esta interpretação realista do pensamento quineano afasta o prejuízo que
imputamos ao pragmatismo de Carnap, pois, ao assumir nossa herança cientí-
fica, damos, por princípio, resolvidas as questões relativas a quais entidades
iremos aceitar. Ela anula igualmente a motivação inicial do programa
fundacionista, pois partimos de uma concepção de realidade interna à própria
ciência, isto é, interna a um esquema conceitual, não havendo, pois, razões para
uma dúvida global acerca da adequação do conhecimento a uma realidade tal
como ela é em si mesma. Esta compreensão da filosofia quineana permite ainda
justificar o seu programa de naturalização da epistemologia, pois, se o ponto de
(^9) W.V. Quine, Things and their Place in Theories, in I DEM,Theories and Things, MA, Harvard
University Press, 1981, 22.
partida é a assunção de um esquema conceitual, nossas questões são sempre
imanentes a esse esquema, não existindo, deste modo, nenhum constrangimento
em utilizá-lo para a sua solução. Podemos enfim apresentar a epistemologia
naturalizada de Quine:
percepção extra-sensorial” 10.
O problema da epistemologia naturalizada é assim explicar como se relacionam
as teorias com as estimulações sensoriais, ou ainda, mostrar como construímos
pontes entre estimulações sensoriais passadas e futuras. Para levar adiante esta
tarefa, assumimos um esquema conceitual, qual seja, a nossa ciência corrente,
que admite coisas como estimulações, terminações nervosas etc. Assim, é por
assumir estebackground das ciência naturais que ele afirma que a epistemologia
deve ser encarada como um capítulo das ciências naturais. Trata-se de um pro-
grama circular, porque pressupõe a ontologia, isto é, assume as entidades vei-
culadas nas ciências naturais, para os propósitos da epistemologia (a ciência é
aqui a sua própria norma), mas que não implica uma petição de princípio, pois
abandona o projeto de uma filosofia primeira, ou seja, a encontrar a pedra de
toque (um critério epistêmico neutro) que mostre a adequação da ciência a uma
realidade tal como ela deve ser em si mesma.
Devemos agora perguntar-nos se Quine, assumindo o fato da ciência como ponto
de partida para a sua investigação, abre mão da dimensão normativa da
epistemologia, isto é, da questão de direito. EmPursuit of Truth ele afirma:
telepatas e profetas” 11.
(^10) Ibidem, 1. (^11) W.V. Q UINE ,Pursuit of Truth, MA, Harvard University Press, 1992, 19.