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Hume e Quine: Ceticismo e Naturalização da Epistemologia - Análise da Causalidade., Manuais, Projetos, Pesquisas de Epistemologia

Neste documento, analisamos as dúvidas céticas de hume sobre a fundação do princípio de causalidade e argumentamos a favor de sua solução cética em face de uma potencial acusação de petição de princípio. Além disso, examinamos o programa de naturalização da epistemologia proposto por quine e discutimos como esta circularidade não deve ser encarada como viciosa. O texto aborda as palavras-chave: hume, quine, epistemologia, ceticismo e naturalismo.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aldair85
Aldair85 🇧🇷

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Síntese, Belo Horizonte, v. 30, n. 96, 2003
53
Síntese - Rev. de Filosofia
V. 30 N. 96 (2003): 53-64
EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA:
UMA PETIÇÃO DE PRINCÍPIO?
Sérgio Ricardo Neves de Miranda
UFOP
Resumo: Minha intenção neste artigo é oferecer uma resposta à seguinte questão: a Minha intenção neste artigo é oferecer uma resposta à seguinte questão: a
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epistemologia naturalizada deve ser entendida como uma falácia? Discuto inicialmente emepistemologia naturalizada deve ser entendida como uma falácia? Discuto inicialmente em
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que medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção de
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prioridade epistêmica. Apresento em seguida as dúvida cépticas de Hume sobre a funda-prioridade epistêmica. Apresento em seguida as dúvida cépticas de Hume sobre a funda-
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mentação do princípio de causalidade e argumento a favor de sua solução céptica frentementação do princípio de causalidade e argumento a favor de sua solução céptica frente
mentação do princípio de causalidade e argumento a favor de sua solução céptica frentementação do princípio de causalidade e argumento a favor de sua solução céptica frente
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a uma potencial acusação de petição de princípio. Essa discussão prepara a principal tesea uma potencial acusação de petição de princípio. Essa discussão prepara a principal tese
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raciocínio circular que não implica uma falácia.raciocínio circular que não implica uma falácia.
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Palavras-chave: Hume, Quine, Epistemologia, Ceticismo, Naturalismo. Hume, Quine, Epistemologia, Ceticismo, Naturalismo.
Hume, Quine, Epistemologia, Ceticismo, Naturalismo. Hume, Quine, Epistemologia, Ceticismo, Naturalismo.
Hume, Quine, Epistemologia, Ceticismo, Naturalismo.
Abstract: I’m concerned in this paper in providing an answer to the following question: I’m concerned in this paper in providing an answer to the following question:
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should naturalized epistemology be understood as a fallacy? Firstly I consider to whatshould naturalized epistemology be understood as a fallacy? Firstly I consider to what
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causality and argue for his sceptical solution facing a potential charge of causality and argue for his sceptical solution facing a potential charge of
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This discussion prepares the main thesis of this paper: Quine’s naturalized epistemologyThis discussion prepares the main thesis of this paper: Quine’s naturalized epistemology
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can be understood as a kind of circular reasoning that doesn’t imply a fallacy.can be understood as a kind of circular reasoning that doesn’t imply a fallacy.
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Key words: Hume, Quine, Epistemology, Scepticism, Naturalism.Hume, Quine, Epistemology, Scepticism, Naturalism.
Hume, Quine, Epistemology, Scepticism, Naturalism.Hume, Quine, Epistemology, Scepticism, Naturalism.
Hume, Quine, Epistemology, Scepticism, Naturalism.
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Síntese - Rev. de Filosofia

V. 30 N. 96 (2003): 53-

EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA :

UMA PETIÇÃO DE PRINCÍPIO?

Sérgio Ricardo Neves de Miranda UFOP

Resumo: MinhaMinhaMinhaMinhaMinha intençãointençãointençãointençãointenção nestenestenestenesteneste artigoartigoartigoartigoartigo ééééé oferecerofereceroferecerofereceroferecer umaumaumaumauma respostarespostarespostarespostaresposta ààààà seguinteseguinteseguinteseguinteseguinte questão:questão:questão:questão:questão: aaaaa epistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologia naturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizada devedevedevedevedeve serserserserser entendidaentendidaentendidaentendidaentendida comocomocomocomocomo umaumaumaumauma falácia?falácia?falácia?falácia?falácia? DiscutoDiscutoDiscutoDiscutoDiscuto inicialmenteinicialmenteinicialmenteinicialmenteinicialmente ememememem que medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção deque medida um raciocínio circular implica uma falácia: o cerne do problema é a noção de prioridadeprioridadeprioridadeprioridadeprioridade epistêmica.epistêmica.epistêmica.epistêmica.epistêmica. ApresentoApresentoApresentoApresentoApresento ememememem seguidaseguidaseguidaseguidaseguida asasasasas dúvidadúvidadúvidadúvidadúvida cépticascépticascépticascépticascépticas dedededede HumeHumeHumeHumeHume sobresobresobresobresobre aaaaa funda-funda-funda-funda-funda- mentaçãomentaçãomentaçãomentaçãomentação dododododo princípioprincípioprincípioprincípioprincípio dedededede causalidadecausalidadecausalidadecausalidadecausalidade eeeee argumentoargumentoargumentoargumentoargumento aaaaa favorfavorfavorfavorfavor dedededede suasuasuasuasua soluçãosoluçãosoluçãosoluçãosolução cépticacépticacépticacépticacéptica frentefrentefrentefrentefrente aaaaa umaumaumaumauma potencialpotencialpotencialpotencialpotencial acusaçãoacusaçãoacusaçãoacusaçãoacusação dedededede petiçãopetiçãopetiçãopetiçãopetição dedededede princípio.princípio.princípio.princípio.princípio. EssaEssaEssaEssaEssa discussãodiscussãodiscussãodiscussãodiscussão preparapreparapreparapreparaprepara aaaaa principalprincipalprincipalprincipalprincipal tesetesetesetesetese destedestedestedestedeste artigo:artigo:artigo:artigo:artigo: aaaaa epistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologiaepistemologia naturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizadanaturalizada dedededede QuineQuineQuineQuineQuine podepodepodepodepode serserserserser entendidaentendidaentendidaentendidaentendida comocomocomocomocomo umumumumum tipotipotipotipotipo dedededede raciocínioraciocínioraciocínioraciocínioraciocínio circularcircularcircularcircularcircular quequequequeque nãonãonãonãonão implicaimplicaimplicaimplicaimplica umaumaumaumauma falácia.falácia.falácia.falácia.falácia.

Palavras-chave: Hume,Hume,Hume,Hume,Hume, Quine,Quine,Quine,Quine,Quine, Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia,Epistemologia, Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo,Ceticismo, Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.Naturalismo.

Abstract: I’mI’mI’mI’mI’m concernedconcernedconcernedconcernedconcerned ininininin thisthisthisthisthis paperpaperpaperpaperpaper ininininin providingprovidingprovidingprovidingproviding ananananan answeransweransweransweranswer tototototo thethethethethe followingfollowingfollowingfollowingfollowing question:question:question:question:question: shouldshouldshouldshouldshould naturalizednaturalizednaturalizednaturalizednaturalized epistemologyepistemologyepistemologyepistemologyepistemology bebebebebe understoodunderstoodunderstoodunderstoodunderstood asasasasas aaaaa fallacy?fallacy?fallacy?fallacy?fallacy? FirstlyFirstlyFirstlyFirstlyFirstly IIIII considerconsiderconsiderconsiderconsider tototototo whatwhatwhatwhatwhat extent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemicextent a circular reasoning implies a fallacy: the core of the problem is the idea of epistemic priority.priority.priority.priority.priority. ThenThenThenThenThen IIIII exposeexposeexposeexposeexpose thethethethethe HumeanHumeanHumeanHumeanHumean doubtsdoubtsdoubtsdoubtsdoubts concerningconcerningconcerningconcerningconcerning thethethethethe foundationfoundationfoundationfoundationfoundation ofofofofof thethethethethe principleprincipleprincipleprincipleprinciple ofofofofof causalitycausalitycausalitycausalitycausality andandandandand argueargueargueargueargue forforforforfor hishishishishis scepticalscepticalscepticalscepticalsceptical solutionsolutionsolutionsolutionsolution facingfacingfacingfacingfacing aaaaa potentialpotentialpotentialpotentialpotential chargechargechargechargecharge ofofofofofpetitiopetitiopetitiopetitiopetitio principiiprincipiiprincipiiprincipiiprincipii..... ThisThisThisThisThis discussiondiscussiondiscussiondiscussiondiscussion preparespreparespreparespreparesprepares thethethethethe mainmainmainmainmain thesisthesisthesisthesisthesis ofofofofof thisthisthisthisthis paper:paper:paper:paper:paper: Quine’sQuine’sQuine’sQuine’sQuine’s naturalizednaturalizednaturalizednaturalizednaturalized epistemologyepistemologyepistemologyepistemologyepistemology cancancancancan bebebebebe understoodunderstoodunderstoodunderstoodunderstood asasasasas aaaaa kindkindkindkindkind ofofofofof circularcircularcircularcircularcircular reasoningreasoningreasoningreasoningreasoning thatthatthatthatthat doesn’tdoesn’tdoesn’tdoesn’tdoesn’t implyimplyimplyimplyimply aaaaa fallacy.fallacy.fallacy.fallacy.fallacy.

Key words: Hume,Hume,Hume,Hume,Hume, Quine,Quine,Quine,Quine,Quine, Epistemology,Epistemology,Epistemology,Epistemology,Epistemology, Scepticism,Scepticism,Scepticism,Scepticism,Scepticism, Naturalism.Naturalism.Naturalism.Naturalism.Naturalism.

IIIII

O

s recentes avanços teóricos e tecnológicos em áreas como psicologia, biologia, neurociência e ciência da computação contribuíram para for talecer a crença de que finalmente resolveremos, de um ponto de vista

empírico, questões acerca da cognição humana que antes pertenciam ao domí-

nio exclusivo da Filosofia. Esta expectativa, contudo, é frustrada tão logo ampli-

amos o horizonte de investigação e questionamos a natureza do próprio co-

nhecimento, deslocando, desse modo, o foco de interesse para as normas que

permitem avaliar o que conta e o que não conta como conhecimento. Qualquer

disciplina de caráter empírico que se proponha a responder esta questão encon-

trar-se-ia envolvida em um argumento circular, pois ao tentar construir uma

teoria acerca da natureza do conhecimento, estaria sujeita às mesmas normas

que prescrevem o que é conhecimento que através dela esperava-se estabelecer.

Ficamos, portanto, com uma gama de problemas que resistem firmemente a serem

tratados em um capítulo das ciências cognitivas, problemas que são relativos à

dimensão normativa do conhecimento e que exigiriam a reposição da cisão entre

o que pode ser tratado por estas ciências e aquilo que é próprio da Filosofia.

Este raciocínio parece comprometer seriamente qualquer tentativa de naturali-

zação da epistemologia, que fica imediatamente condenada como falácia do tipo

petitio principii, visto que envolve circularidade. Minha intenção neste texto é

discutir se o programa de naturalização da epistemologia constitui tal falácia.

Primeiramente, seguindo o comentário de Barnes sobre os modos de Agrippa e

a discussão de Hume sobre o princípio de causalidade, mostrarei em que me-

dida o argumento de circularidade aponta para uma falácia. Em seguida, a

partir da obra de Quine, apresentarei o programa de naturalização da

epistemologia, procurando mostrar que, embora seu modo de tratar o problema

não afaste um procedimento circular, esta circularidade não deve ser encarada

como viciosa e implicar uma petição de princípio. Na conclusão procuro tirar

algumas conseqüências do raciocínio desenvolvido no texto.

IIIIIIIIII

No elenco das técnicas e estratégias argumentativas do ceticismo antigo encon-

tramos o modo de reciprocidade, atribuído por Diógenes Laertius a Agrippa, e

apresentado por Sextus Empiricus nos seguintes termos:

“O modo de reciprocidade ocorre quando o que deveria ser confirmatório do

objeto sob investigação necessita ser tornado convincente pelo objeto sob inves-

tigação; assim, incapazes de assumir um deles de maneira a estabelecer o outro,

suspendemos o juízo sobre ambos” 1.

(^1) S. EMPIRICUS ,Outlines of Scepticism, J. Barnes, Cambridge, Cambridge University Press,

1994, 41.

de vista, ser anterior a P. O problema que se coloca é como determinar qual tese

ou conjunto de teses teria prioridade epistêmica sobre a outra: esta não seria

uma tarefa fácil, pois o fantasma da circularidade estaria sempre à espreita

daqueles que assim procedem, a exemplo do empirista ingênuo que tenta jus-

tificar por meios racionais por que os sentidos teriam prioridade epistêmica

sobre as construções da razão. A relação de prioridade epistêmica permitiria

assim esclarecer por que raciocínios circulares devem ser evitados: trata-se de

uma petição de princípio decorrente das tentativas deprovar P a partir de P, e

por sua vez lançar mão de P parajustificar P.

A discussão de Hume sobre o princípio de causalidade é um exemplo clássico

de uma crítica bem sucedida:justificar a crença na regularidade da natureza ou

no princípio de indução através da experiência é umapetitio principii, visto que

todo raciocínio derivado da experiênciabaseia-se em uma relação de causa e

efeito, constituindo, portanto, uma inferência indutiva, o que pressupõe justa-

mente aquilo que se espera provar, a saber, a validade do princípio de indução.

Sua solução para o problema será a seguinte: a inferência causal sustenta-se em

uma propensão da natureza humana — o hábito ou costume — de renovar a

mesma relação anteriormente constatada entre dois eventos sempre que a situ-

ação novamente se apresente. Vimos regularmente o sol aparecer no horizonte

todas as manhãs, diria Hume, somos então levados apenas pelo hábito ou cos-

tume a inferir com segurança que o sol se levantará amanhã.

A discussão humeana sobre o princípio de causalidade encaminha nossa refle-

xão para duas direções aparentemente opostas: do ponto de vista da crítico, ele

seria um filósofo céptico, colocando em xeque a possibilidade de uma justifica-

ção última para o conhecimento baseado na relação de causa e efeito, enquanto

que, do ponto de vista da solução, ele seria um filósofo naturalista, chamando

a atenção para um aspecto da natureza humana que colocaria um ponto de

basta nas dúvidas levantadas pelo ceticismo. Não é minha intenção neste texto

discutir se é na direção do cepticismo ou do naturalismo que devemos entender

a filosofia humeana; mas a aposta em um princípio da natureza humana como

solução para o problema da causalidade abre espaço para o seguinte tipo de

suspeita: qual o estatuto deste princípio? o que prescreve sua aceitação? como

ele pode ser justificado ou provado? Sabemos que as teses de Hume sobre o

conhecimento humano e sobre o princípio de causalidade em particular fazem

parte do que ele denominaciência da natureza humana. Não dizendo respeito a

relações entre idéias, como seria o caso da lógica e das matemáticas, ela trataria de

questões fatuais. Deste modo, devemos conceder que, se toda afirmação sobre os

fatos fundamenta-se em uma inferência causal, responder através desta ciência

qual o princípio sobre o qual esta inferência se sustenta constitui um raciocínio

circular. A dúvida que levantamos se concretiza então do seguinte modo: o texto

humeano estaria condenado como uma falácia do tipopetitio principii?

Não seria de se esperar que Hume tenha cometido de maneira tão ingênua uma

falácia por ele mesmo anteriormente denunciada. Devemos tomar o seu texto

literalmente:

“Sempre que a repetição de qualquer ato ou operação produza a propensão de

renovar o mesmo ato ou operação sem ser impelido por qualquer raciocínio ou

processo do entendimento, diremos que esta propensão é o efeito do costume.

Empregando esta palavra, não pretendemos ter dado a razão última de tal pro-

pensão. Somente apontamos para um princípio da natureza humana que é uni-

versalmente admitido e que é bem conhecido por seus efeitos” 4.

Suponho que o raciocínio de Hume seja de fato circular, mas não se caracteriza

como uma falácia do tipo petitio principii, porque não procura oferecer um

princípio ou razão última a fim de justificar nossa propensão para realizar

inferências causais. O texto humeano sugere, assim, que interromper a nossa

índole crítica em um ponto não pertence ao domínio de provas empíricas ou

demonstrativas: o hábito ou costume não constitui uma razão, mas indica sim-

plesmente um aspecto da natureza humana. Sem dúvida o raciocínio soa aqui

imperfeito enquanto não se investigar de maneira adequada o tema da natureza

humana na filosofia de Hume; esta discussão, porém, está fora do escopo deste

texto. Nosso interesse no momento é extrair algumas conseqüências do modo

como o filósofo apresenta o seu ponto de vista. Primeiramente, o raciocínio é

circular: temos notícia do hábito ou costume em função de seus efeitos, ou seja,

trata-se de uma inferência causal; por sua vez, as inferências causais são torna-

das possíveis pela existência deste princípio da natureza humana. Em segundo

lugar, estes dois temas, o princípio da natureza humana e a inferência causal,

não entram em conflito em uma situação de assimetria epistêmica: embora o

raciocínio que nos leva até o hábito ou costume se baseie em inferências causais,

este princípio da natureza humana não constitui uma justificação, prova, ou

razão para tais inferências. Finalmente, que a crítica de circularidade promove

a suspensão do juízo somente se associada à crença de que devemos oferecer

provas definitivas para toda e qualquer tese que porventura venhamos a susten-

tar.

Essa é, a meu ver, a maneira como raciocínios circulares apontam para uma

falácia petitio principii e também o modo como podemos pensar uma

circularidade não viciosa.

IIIIIIIII IIIIII

Quine avança uma resposta similar à resposta de Hume frente às críticas de

circularidade que atingem o programa de naturalização da epistemologia, quan-

do afirma:

“Aceito nossa teoria física corrente e com ela a fisiologia de meus receptores, e

(^4) D. HUME,An Enquiry Concerning Human Understanding, L.A. Selby-Bigge, Oxford: Oxford

Clarendon Press, 1999, 43.

dogma do reducionismo. Quanto à oposição analítico e sintético, Quine afirma

que não encontramos uma linha divisória entre os enunciados verdadeiros em

função do significado e os verdadeiros em função de seu conteúdo fatual que

seja suficiente para caracterizar a noção de analiticidade. Frente a esta

indeterminação, nosso autor conclui que o limite entre enunciados analíticos e

sintéticos é meramente um artigo de fé, um dogma do empirismo que pode ser

abandonado sem acarretar qualquer tipo de prejuízo. Com relação ao dogma do

reducionismo, Quine considera que em uma situação realista de teste apresenta

mais do que o simples contraste de enunciados individuais com os dados da

experiência; em uma situação realista de teste estão envolvidas partes relevan-

tes da teoria à qual o enunciado pertence. Decorre desta sua concepção holista

do teste empírico, conhecida ainda como holismo epistemológico ou tese de

Duhem-Quine, que nenhum enunciado possui um conjunto exclusivo de situa-

ções empíricas que o confirmam ou negam, pois torna-se indeterminado qual

dos enunciados da rede que compõe a teoria deve ser abandonado ou mantido

frente a uma experiência adversa.

Estas considerações atingem o programa fundacionista no seguinte sentido: não

há uma base segura ou fundamento último para o conhecimento, pois tanto os

enunciados cuja verdade seria revelada pela razão, quanto aqueles cuja verdade

seria derivada da experiência, podem ser substituídos em alguma etapa do

desenvolvimento da ciência, sendo o valor de qualquer enunciado dependente,

em última instância, de considerações pragmáticas acerca do que devemos manter

e o que podemos abandonar ao longo do progresso científico. Quine conclui

assim o seu artigo:

“Carnap, Lewis e outros tomam posição pragmática na questão da escolha entre

formas lingüísticas, ou estruturas científicas, mas seu pragmatismo se detém na

fronteira imaginada entre o analítico e o sintético. Repudiando tal fronteira, es-

poso um pragmatismo mais completo. A cada homem é dada uma herança cien-

tífica mais um contínuo fogo de barragem de estimulação sensorial; e as consi-

derações que o guiam na urdidura de sua herança científica para ajustar suas

contínuas incitações sensoriais são, quando racionais, pragmáticas” 6.

Esta passagem é crucial: primeiro, porque indica qual é o alcance exato que a

dissolução da oposição analítico e sintético tem nas discussões da tradição à

qual nosso autor pertence, particularmente em relação à obra de Carnap; segun-

do, pela maneira peculiar que ele qualifica aqui a sua filosofia, pois a referência

ao pragmatismo simplesmente desaparece da sua obra posterior, preferindo

então qualificar-se como realista e naturalista. É interessante agora desenvolver

estes dois pontos, pois, contrapondo a instância pragmática assumida por Carnap

com a instância naturalista de Quine, poderemos ter acesso ao caráter positivo

(^6) W.V. Quine, Dois dogmas do empirismo, in: IDEM,De um ponto de vista lógico, Col. Os

Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1977, 254.

desta instância e encaminhar a solução do nosso problema.

VVVVV

A orientação intelectual de Carnap sofre uma mudança gradual ao longo de sua

obra, partindo de um empirismo radical, passando pelas discussões sobre a

sintaxe lógica e a semântica, até a adoção de uma instância pragmática, que

encontraremos, por exemplo, em “Empiricism, Semantics and Ontology”. Ele

procura, neste artigo, afastar um prejuízo nominalista e as acusações de

platonismo que seu trabalho em semântica, por apelar a entidades abstratas

como proposições, recebera na ocasião de sua publicação. A intenção do artigo

é defender que a aceitação de entidades abstratas não é incompatível com uma

perspectiva empirista; a estratégia utilizada é mostrar que prejuízos são gerados

quando aceitamos a formulação equivocada de um problema.

Carnap distingue, nesse artigo, dois tipos de problemas, internos e externos.

Questões como “Há um livro sobre a mesa?” ou “Existiu um homem chamado

Moisés?” são problemas internos, quer dizer, internos a um esquema conceitual

que postula a existência de objetos físicos. Elas admitem uma resposta de um

ponto de vista empírico, que será positiva, caso seja possível localizar estas

entidades em um espaço-tempo determinado, ou negativa, caso contrário. Em

contrapartida, “Existem objetos físicos?” não é uma questão passível de respos-

ta, pois não há aqui um esquema com regras claras que prescreva o modo como

podemos respondê-la. Ela apresenta, portanto, um problema externo, que pre-

ferencialmente deveria ser formulado como uma questão que versa sobre a

linguagem ou escolha de um esquema conceitual. A sua formulação correta

deveria ser então: “Devemos adotar um esquema conceitual que pressupõe a

existência de objetos externos?”. A partir destas considerações, Carnap conclui:

“Aqueles que colocam em questão a realidade do próprio mundo das coisas

talvez tenham em mente não uma questão teórica como sua formulação parece

sugerir, mas antes uma questão prática, uma demanda de decisão prática quanto

à estrutura da linguagem” 7.

Problemas ontológicos são aqui convertidos em questões sobre a linguagem,

questões sobre a aceitação de esquemas conceituais, sendo a decisão sobre qual

linguagem assumir, pautada por considerações pragmáticas, por exemplo, o

propósito que ela serve, sua eficiência, sua simplicidade, etc.

Esse quadro proposto por Carnap parece a alguns críticos insustentável, pois

deixa indeterminado que tipos de esquemas conceituais, portanto, que tipo de

(^7) R. CARNAP , Empiricism, Semantics, and Ontology, in R. RORTY ,The Linguistic Turn, Chicago,

University of Chicago Press, 1967, 73.

investigação ou debate. O advérbio “necessariamente” geralmente serve para

introduzir uma afirmação do primeiro tipo, em contraste com aquelas que são

questionáveis. A utilidade desta distinção é evidente, mas sua dependência das

circunstâncias do momento deveriam ser mantidas em mente. A utilidade é com-

parável à inegável utilidade de pronomes pessoais e outras locuções indexicais” 8.

De acordo com esta compreensão da analiticidade, não há como decidir acerca

do conjunto de enunciados que compõem um esquema conceitual exceto no

interior de um esquema prévio. Portanto, não há como avaliar um esquema

conceitual através de considerações pragmáticas assumindo um ponto de vista

externo, e todas as questões que podemos formular devem ser entendidas como

questões internas. É exatamente neste sentido que Quine afasta-se do

pragmatismo de Carnap, assumindo uma instância realista, o que, na sua obra,

quer apenas dizer que a nossa posição cognitiva é sempre interna a uma teoria

ou esquema conceitual previamente aceito e compartilhado entre os membros

de uma determinada comunidade. Assim, se para Carnap as questões sobre a

justificação de crenças (epistemologia) e a aceitação de teorias e das entidades

por elas veiculadas (ontologia) somente poderiam ser adequadamente respon-

didas apelando-se para a distinção entre questões internas e externas, na pers-

pectiva inaugurada por Quine somente podemos respondê-las de um ponto de

vista interno, quer dizer, realista.

Quanto à ontologia, podemos dizer que, mesmo assumindo que nossas teorias

possam ser falsas, aplicamos a elas o predicado “verdadeiro” em um sentido

não relativo e absoluto, pois, de acordo com Quine:

“(...) é uma confusão supor que podemos permanecer indiferentes e reconhecer

todas as ontologias alternativas como verdadeiras, todos os mundos figurados

como reais. Trata-se de uma confusão da verdade com o suporte por evidências.

A verdade é imanente e não há nada além. Devemos falar do interior de uma

teoria, mesmo que seja uma entre várias” 9.

Devemos assim considerar, no trecho dos “Dois dogmas” citado acima, ao lado

da instância pragmática, a qualificação que Quine faz de sua filosofia ao afirmar

que “a cada homem é dada uma herança científica”, quer dizer, nossas questões

surgem sempre no interior de um esquema conceitual que consideramos verda-

deiro. Esta interpretação realista do pensamento quineano afasta o prejuízo que

imputamos ao pragmatismo de Carnap, pois, ao assumir nossa herança cientí-

fica, damos, por princípio, resolvidas as questões relativas a quais entidades

iremos aceitar. Ela anula igualmente a motivação inicial do programa

fundacionista, pois partimos de uma concepção de realidade interna à própria

ciência, isto é, interna a um esquema conceitual, não havendo, pois, razões para

uma dúvida global acerca da adequação do conhecimento a uma realidade tal

como ela é em si mesma. Esta compreensão da filosofia quineana permite ainda

justificar o seu programa de naturalização da epistemologia, pois, se o ponto de

(^9) W.V. Quine, Things and their Place in Theories, in I DEM,Theories and Things, MA, Harvard

University Press, 1981, 22.

partida é a assunção de um esquema conceitual, nossas questões são sempre

imanentes a esse esquema, não existindo, deste modo, nenhum constrangimento

em utilizá-lo para a sua solução. Podemos enfim apresentar a epistemologia

naturalizada de Quine:

“Nosso falar de coisas externas, nossa própria noção de coisas, é um aparato

conceitual que ajuda-nos a predizer a controlar as estimulações de nossos recep-

tores sensorais à luz de estimulações prévias. A estimulação, princípio e fim, é

tudo o que temos para avançar. Dizendo isto, também estou falando de coisas

externas, a saber, pessoas e suas terminações nervosas (...) Mas resta o fato — um

fato da ciência em si mesmo — que a ciência é uma ponte conceitual de nossa

própria autoria, ligando estimulações sensoriais a estimulações sensoriais; não há

percepção extra-sensorial” 10.

O problema da epistemologia naturalizada é assim explicar como se relacionam

as teorias com as estimulações sensoriais, ou ainda, mostrar como construímos

pontes entre estimulações sensoriais passadas e futuras. Para levar adiante esta

tarefa, assumimos um esquema conceitual, qual seja, a nossa ciência corrente,

que admite coisas como estimulações, terminações nervosas etc. Assim, é por

assumir estebackground das ciência naturais que ele afirma que a epistemologia

deve ser encarada como um capítulo das ciências naturais. Trata-se de um pro-

grama circular, porque pressupõe a ontologia, isto é, assume as entidades vei-

culadas nas ciências naturais, para os propósitos da epistemologia (a ciência é

aqui a sua própria norma), mas que não implica uma petição de princípio, pois

abandona o projeto de uma filosofia primeira, ou seja, a encontrar a pedra de

toque (um critério epistêmico neutro) que mostre a adequação da ciência a uma

realidade tal como ela deve ser em si mesma.

Devemos agora perguntar-nos se Quine, assumindo o fato da ciência como ponto

de partida para a sua investigação, abre mão da dimensão normativa da

epistemologia, isto é, da questão de direito. EmPursuit of Truth ele afirma:

“À medida que a epistemologia teórica torna-se naturalizada como um capítulo

da ciência teórica, a epistemologia normativa torna-se naturalizada como um

capítulo da engenharia: a tecnologia de antecipação de estimulações sensoriais. A

mais notável norma da epistemologia naturalizada realmente coincide com a

epistemologia tradicional. Trata-se simplesmente da senha do empiricismo: nihil

in ment quod non prius in sensu. Este é o primeiro espécime da epistemologia

naturalizada, pois é um achado da própria ciência natural que, embora falível,

nossas informações sobre o mundo chegam somente através dos impactos de

nossos receptores sensoriais. E ainda o ponto é normativo, guardando-nos contra

telepatas e profetas” 11.

(^10) Ibidem, 1. (^11) W.V. Q UINE ,Pursuit of Truth, MA, Harvard University Press, 1992, 19.