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Identificação de Temas Religiosos na Personagem Sete-de-Ouros de João Guimarães Rosa, Notas de aula de Literatura

Este documento discute a hipótese de que a personagem sete-de-ouros de joão guimarães rosa pode ser usada para analisar temas importantes na religião, como a memória cultural, a experiência de sentido da vida, os ritos de iniciação, as virtudes da alma e a busca da transformação do ser. O texto é baseado em uma publicação na revista último andar em 2015.

O que você vai aprender

  • Quais são os temas religiosos explorados na obra de João Guimarães Rosa através da personagem Sete-de-Ouros?
  • Qual é a importância da personagem Sete-de-Ouros na obra de João Guimarães Rosa?
  • Como a personagem Sete-de-Ouros contribui para a narrativa de João Guimarães Rosa?
  • Qual é a importância da análise da personagem Sete-de-Ouros para a compreensão da obra de João Guimarães Rosa?
  • Como as temas religiosos são abordados na personagem Sete-de-Ouros?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Birinha90 🇧🇷

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RELIGIÃO E LITERATURA: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS RELIGIOSOS
EM O BURRINHO PEDRÊS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Marlene Duarte Bezerra1
Resumo: O presente artigo apresenta algumas reflexões sobre o conto O burrinho pedrês
(1946) de João Guimarães Rosa (1908-1967) a partir de um exercício de Ciência da Religião
aplicada à Literatura em suas concepções mítica e místicas. Minha hipótese é demonstrar que
é possível identificar por meio da personagem Sete-de-Ouros a abordagem de temas caros do
universo da religião, tais como: a memória cultural, a experiência de sentido da vida, os ritos
de iniciação, as virtudes da alma e a busca da transformação do ser.
Palavras-chave: Religião; Literatura; Ciência da Religião; Guimarães Rosa; O burrinho
pedrês.
Abstract: The present subject presents some thoughts about the text Pedres the donkey
(1946) from João Guimarães Rosa (1908-1967) as from an exercise of religion applied in
myth and mystic conceptions of literature. My hyphotesis is to show that it is possible to
identify through Gold-Seven personage the aproachment of universe religion themes like: The
culture memory, the life sense experience, the beginning rites, the soul value and the search
for a self remaking.
Keywords:. Religion; Literature; Religion Science; Guimarães Rosa; Pedres the donkey.
O universo do conto
Na obra do escritor brasileiro João Guimarães Rosa, no conto O burrinho pedrês2,
publicado em 1946, em Sagarana, podemos encontrar algumas características que fazem parte
da construção de uma narrativa que se move em torno de encontros e desencontros. Em O
burrinho pedrês algumas dessas características são vigoradas pelos minicontos que são
narrados dentro do conto principal, são eles que dão a investidura para o universo ficcional de
travessias, veredas e sertões. A localização geográfica, os temas repetitivos como o da
viagem, as personagens que rebatem umas nas outras e todas as partes que compõem o enredo
1Mestranda em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. marlene.mdb@gmail.com
2ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
[revista Último Andar (ISSN 1980-8305), n. 25, 2015]
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RELIGIÃO E LITERATURA: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS RELIGIOSOS

EM O BURRINHO PEDRÊS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Marlene Duarte Bezerra^1 Resumo: O presente artigo apresenta algumas reflexões sobre o conto O burrinho pedrês (1946) de João Guimarães Rosa (1908-1967) a partir de um exercício de Ciência da Religião aplicada à Literatura em suas concepções mítica e místicas. Minha hipótese é demonstrar que é possível identificar por meio da personagem Sete-de-Ouros a abordagem de temas caros do universo da religião, tais como: a memória cultural, a experiência de sentido da vida, os ritos de iniciação, as virtudes da alma e a busca da transformação do ser. Palavras-chave: Religião; Literatura; Ciência da Religião; Guimarães Rosa; O burrinho pedrês. Abstract: The present subject presents some thoughts about the text Pedres the donkey (1946) from João Guimarães Rosa (1908-1967) as from an exercise of religion applied in myth and mystic conceptions of literature. My hyphotesis is to show that it is possible to identify through Gold-Seven personage the aproachment of universe religion themes like: The culture memory, the life sense experience, the beginning rites, the soul value and the search for a self remaking. Keywords:. Religion; Literature; Religion Science; Guimarães Rosa; Pedres the donkey. O universo do conto Na obra do escritor brasileiro João Guimarães Rosa, no conto O burrinho pedrês^2 , publicado em 1946, em Sagarana, podemos encontrar algumas características que fazem parte da construção de uma narrativa que se move em torno de encontros e desencontros. Em O burrinho pedrês algumas dessas características são vigoradas pelos minicontos que são narrados dentro do conto principal, são eles que dão a investidura para o universo ficcional de travessias, veredas e sertões. A localização geográfica, os temas repetitivos como o da viagem, as personagens que rebatem umas nas outras e todas as partes que compõem o enredo (^1) Mestranda em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. marlene.mdb@gmail.com (^2) ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

estão intimamente entrelaçadas dando um sentido geral. O burrinho pedrês possui rede de narrativas, conjuntos pequenos de textos que são narrados dentro de um conjunto maior que é o texto em si. Podemos considerar como histórias com potencial de apropriação e recriação da história em diferentes níveis. Rosa recepciona e recria as narrativas num processo de leitura atualizada de textos de um passado distante_._ O conto em si é virtualmente muitos contos em estruturas micro e macro, que, por sua vez, se dá na importância da cultura popular e da narrativa também da tradição popular que começa a ser gestada antes mesmo de sua redação. Há possibilidade de verificar o distanciamento temporal do autor na narrativa, este é um fator importante para a libertação de textos mais distantes. No campo da cultura popular, a distância é a palavra mais poderosa, pois saber mais acerca das culturas passadas é saber mais sobre o tempo presente. O burrinho pedrês , com as suas referências internas de minicontos, dá a importância para a compreensão da totalidade, pois as pequenas histórias formam uma só história com o conto principal. As várias narrativas que se articulam na composição do grande tema podem ser lidas pelo prisma da iniciação na aprendizagem. Sete-de-Ouros , personagem núcleo, poderá ser considerado como o arquétipo do aprendiz. Escuta Manico: É bom a gente ver tudo de longe. Assim como nós dois aqui vamos indo... Pelo rastro, no chão, a gente sabe de muita coisa que com a boiada vai acontecendo. Você também é bom rastreador, eu sei. Olha, o que eu entendo das pessoas, foi com o traquejo dos bois que eu aprendi (ROSA, 1984, p. 48). O pequeno trecho exemplifica o distanciamento e a possibilidade de ler no fragmento a imagem da totalidade, a passagem do microcosmo ao macrocosmo em um jogo de correspondências. A sabedoria da fala da personagem de seu Major fornece a evidência da visão do geral de se "ver tudo de longe" e também da visão de aproximação "pelo rastro do chão" em seus pormenores numa via que caminha do todo ao particular e deste para o todo. O conto selecionado permite-nos lidar com o desafio de uma leitura difícil, de uma narrativa dividida em múltiplas partes, a ponto de tornar o ato de ler hermético pelo emprego de complicados enigmas, de recursos populares e crenças com os aspectos que tocam uma subversão da linguagem articulada. Ademais, é notório que o autor retrata também um microcosmo da cultura brasileira à época dos seus escritos. Por exemplo, Rosa, desenha a figura da personagem seu Major, como aquela do bom governante, chamando para o progresso e a ordem social econômica e sem o emprego da violência^3. No entanto, o nosso direcionamento aponta para a personagem Sete-de-Ouros e para a sua chave de leitura. A confluência de vozes dada pelo autor João Guimarães Rosa permite-nos analisar cada (^3) Este era um típico comportamento dos governantes comerciais da época do Brasil República.

decrépito que sai do seu lugar de descanso atormentado, o cocho, para se encostar-se à pilastra próxima da varanda da casa da fazenda. O relato, sem requintes no seu percurso, se desdobra no clima de um dia chuvoso, que na falta de um cavalo para o apoio e transporte de uma boiada, o burro é posto por "tampa" servindo de cavalgadura para um dos vaqueiros. Afora também a calmaria e esquivas do animal, o cenário é marcado por rixas e ameaças entre os vaqueiros, dos animais se entrelaçando em desordem, da natureza tempestiva. Do encontro entre algumas personagens que representam a manutenção da ordem, e de outras que representam a sua transgressão. Rosa coloca a personagem certa no seu lugar verdadeiro. Como já antecipado, são narrados contos dentro do Conto, como que camadas de relatos das relações dos seres humanos com os animais, contos que são contados pelos vaqueiros na trajetória da viagem da vaquejada. Para Benedito Nunes "as histórias avulsas narradas no curso da história principal, são os múltiplos atalhos do mundo" (NUNES, 2013, p.78). Pois bem, a máxima do conto se dá no retorno da viagem, após a entrega da boiada, numa cena de intenso sufoco e "aperto" da chuva. O Rio da Fome é inundado e provoca a morte de oito cavaleiros com os seus nove cavalos. O burrinho Sete-de-Ouros é aquela personagem central, tomada como referência para análise de valores e significados místicos, o que constitui o elemento basilar da narrativa, pois Guimarães Rosa, além de outros, cria este ser situado num espaço separado, movendo-se numa determinada ação, definida por um traço tênue. O protagonista é o burro reconhecido por Sete-de-Ouros em ascensão, transformação e declínio: "Mas nada disso fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de- Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia noite" (ROSA, 1984, p. 18). O apresentado de modo sincrético e caótico vêm para complementar a história do burro, as "torrentes" de bois que inundam as estradas como "correntes de oceano" (ROSA, 1984, p. 18), com episódios que se sucedem, interpenetram-se e condicionam-se mutuamente. Rosa narra as aventuras, as vicissitudes da vida de Sete-de-Ouros repleta de dificuldades e maus bocados. O escritor brasileiro de O burrinho pedrês é um dos principais literatos da contemporaneidade, que contribuiu enormemente para a reflexão sobre a natureza do pensamento mítico e sobre o pensar brasileiro tradicional.

1. Entre as fronteiras da literatura e da religião A Literatura é integrada ao grupo das chamadas ciências do espírito, caracterizadas por possuírem escopos diversos dos das chamadas ciências da natureza, pois a primeira pressupõe o mundo criado pelo homem no transcurso dos séculos, por seu esforço em compreender a realidade no seu devir espacial e temporalmente condicionado^4. A religião como epistemologia, requer o seu lugar no diálogo entre as Ciências Literárias e a Ciência da Religião para a busca da sistematização dos fatos religiosos como objetividade, sem se limitar a expor uma doutrina religiosa. Guimarães Rosa, por meio deste conto, vem demonstrar a sua familiaridade com os textos "sagrados" e apresentar as narrativas antigas, fundamentais que constituem parte da herança que recebemos como a tradição da nossa memória social brasileira. Vejamos o que Rosa assinalava, em carta de 25 de novembro de 1963 a Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano: Sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes talvez, como Riobaldo de "G.S.:Veredas", pertenço eu a todas. E especulativo demais, daí todas as minhas constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros (UTÉZA, 1994 p. 21). No tocante aos elementos religiosos, a obra de Rosa traz um universo vasto de metáforas. Logo à entrada do conto, a linguagem metafórica do escritor pressupõe algo revelado e decifrado por intuição^5 , sem os respaldos da filologia cimentada no intelecto, pois "Literatura é linguagem carregada de significado" (POUND, 2006, p.32). Dados que são sensorialmente acessíveis a pesquisadores da religião que analisam e depuram insights do objeto religião dentro da Literatura, que rara ou dificilmente seriam acessíveis mediante outros meios que não o da Ciência da Religião. Pois ainda que a Ciência Literária se estruture em estudos analíticos, de estilo literário ou como, o que inspirou o autor a escrever a obra, seus conceitos e funções. É a Ciência da Religião que vai ditar se tais elementos, atos e ações se configuram como elemento religioso ou não. A crença ou a sensação religiosa subjetiva, bem como, a expressão religiosa manifestada empiricamente numa obra literária, é acessível a pesquisadores do ramo da Ciência da Religião. (^4) A teoria da literatura como ramo do saber incluído nas ciências do espírito, não aspira a objetividade, o rigor e a exatidão que caracterizam as ciências da natureza com suas leis verificáveis, elemento nuclear nas ciências da natureza. (^5) POUND, Ezra. Abc da literatura. O método ideogrâmico ou método da ciência em Ezra Pound, não exclui de forma alguma, o uso da lógica, das conjeturas, das intuições e das percepções globais, ou da visão.

Sete-de-Ouros na busca pelo sentido da vida, passa por provações, como num ritual de iniciação, como numa aprendizagem que exige um lento processo de amadurecimento, que por sua vez, requer uma enorme paciência. A narrativa apresenta as diferentes fases da aprendizagem e aponta a passagem de um para outro grau na mudança de comportamento da personagem-aprendiz. O autor narra o percurso da personagem que, da ignorância, chega ao conhecimento; da aflição à paz; do erro a verdade. Sete-de-Ouros , pensa, medita, vive imerso em seus pensamentos. Dele diz o autor: "mudo e moco vai Sete-de-Ouros , no seu passo curto de introvertido, pondo com precisão milimétrica, no rasto das patas da frente às mimosas patas de trás" (ROSA, 1984, p.46). "Sete-de-Ouros é velho, mas um burro bom, de gênio" (ROSA, 1984, p. 30). Esta personagem se economiza no comportamento, se contém nos gestos para a transubstanciação, para a transformação alquímica. Além do rito de iniciação de Sete-de-Ouros são narrados outros pequenos ritos iniciáticos, tais como, o do menino pretinho que foi transportado na garupa de um vaqueiro. No entanto, o principal conteúdo da narrativa é a história de um ser (uma alma) que vai pelo mundo afora aprender a conhecer-se, que procura aventuras para nela experimentar-se e que, através de uma prova, experimenta e descobre a sua própria essência. O burrinho pedrês viaja no tempo e no espaço: "Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no Sertão. Chamava- se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual. Agora, porém, estava idoso, muito idoso" (ROSA, 1984, p. 17). Uma personagem que viaja na companhia da mansidão e da agressividade, da cautela e da desconfiança, do perdão e da vingança, do afeto e da traição, exemplificado com a história do boi Calundú de Raymundão. Viaja também na geografia, na comitiva, na paisagem dos campos-gerais, no eu/ele, no eu/outro, no interior/exterior, na vida/morte: A marca-de-ferro - um coração no quarto esquerdo dianteiro - estava meio apagada: lembrança dos ciganos que o tinham raptado e disfarçado, ovantes, para a primeira baldroca de estrada. Mas o roubo só rendera cadeia e pancadas aos pândegos dos ciganos, enquanto Sete-de-Ouros voltara para a fazenda da Tampa (ROSA, 1984, p. 18). Parece que Sete-de-Ouros viaja também em outros contos de João Guimarães Rosa. Em " O outro ou o outro", encontramos o relato de queixa de furto de um animal, um burro, e alguns ciganos, que terminaram sendo presos. A passagem incita especulações das redes de textos que se espalham e se encontram na obra completa de João Guimarães Rosa, talvez, O burrinho pedrês, seja um microcosmo de sua obra maior.

A aprendizagem pressupõe uma fase difícil: a iniciação. A aprendizagem é a paciência, na combinação da viagem real com a "viagem interior". 1.2. A religião O tema do conto desponta enigmático: " O burrinho pedrês". Apenas um título comum? Um ícone? Um signo? Fonte inesgotável são a iconografia e os títulos de Rosa para a academia científica. No artigo de Leonardo Vieira de Almeida^7 , encontramos sucinta descrição do elemento "pedra". Ali a pedra significa queda e conhecimento, pedra que dá sentido ao "concreto sensorial", pedra que nos permite explorar as potencialidades de cada letra. O burrinho pedrês. Pedrês, Pedro ou Pedra salienta a ligação entre o homem e o símbolo num duplo movimento de subida e descida, no domínio do homem sobre a pedra, sobre si, domar a pedra. O ser humano pode empedernir-se e apresentar um coração insensível, ou comumente dito, de pedra. O homem como animal de estirpe não passa de um aglomerado de minérios em que predomina o cálcio, e a natureza quando analisada a fundo, revela os seus segredos, ou seja, qualquer pedra pode conter elementos preciosos como a platina ou o ouro, ou elementos comuns como o ferro. Pelo viés da Ciência da Religião, que epistemologicamente tem como objeto os elementos religiosos e que frequentemente incluem os textos sagrados, podemos extrair que a pedra é colocada no início da edificação como a primeira pedra. Jacó erigiu uma pedra por Coluna. Davi cantou no Salmo 118:22: A pedra que os construtores rejeitaram, esta veio a ser principal Pedra Angular. Isaías 28:16 enfatiza a pedra. Jó 38:46-6 também. Encontramos Moisés com as Tábuas da Lei. Pedra Angular foi o nome dado a Pedro referindo-se a futura construção da Igreja cristã. Em Mateus 24:1-2: Eu vos digo que não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada, e assim, sucessivamente, nos deparamos com o termo "pedra" nos evangelhos de Marcos, em São Paulo na carta aos Coríntios e nos ditos de Jesus. Não obstante, os mitos da pedra: No começo quando o Céu estava muito próximo da Terra, Deus compensava o casal primordial com presentes suspensos à extremidade de uma corda. Um dia enviou-lhes uma pedra, mas os nossos ancestrais, surpreendidos e indignados a recusaram (ELIADE, 2010, p.120). O burrinho pedrês é o Sete-de-Ouros! O leitor se reporta o tempo todo à construção da narrativa de Rosa, como uma nuvem de discursos sobre si. Logo à entrada do conto, Rosa faz (^7) O artigo de Leonardo Vieira de Almeida traz elementos enriquecedores para as questões iconográficas, pois o autor traça o panorama da viagem em seus sentidos historiográficos e imagéticos em três períodos distintos.

alusão aos quatro elementos? Pois, a terra que produz o alimento, o ar que alimenta o fogo e a água são aqueles que proporcionam com alegria o café bem quente de seu Major. O burrinho pedrês, vulgo Sete-de-Ouros , é a personagem que representa a perfeição em união da terra com o céu. Aquele representa todos os princípios antagônicos de luz e trevas, masculino e feminino, da ascensão e da queda, da mediação das posições de Hermes entre os limites infernais, terrestres e celestes. Sete-de-Ouros é aquela personagem que insiste na ligação entre homem e meio. Poderíamos seguir adiante analisando somente o número sete, também, avaliar a natureza mística do nome Sete-de-Ouros de acordo com o que cada espécie, subespécie, enfim organismos e micro-organismos têm nome. O nome possui um subjetivo de personalidade, entre nós, é costume denominar-se de "nome" o "prenome". Assim, o nome do burrinho poderia ser o seu sobrenome "Ouros" com a significativa de um rito de iniciação, tal como aquele que foi chamado para ser posto à prova numa travessia e salvo. Com minúcia na escolha das palavras e dos elementos que configuram a travessia de Sete-de-Ouros , João Guimarães Rosa tece o seu conto. A propósito, por que escolhe a carta de número sete, com o naipe de ouro como atributo do nome do burrinho? Será por que esse número evoca a atitude interior necessária para permitir ao burro Sete-de-Ouros entrar no espaço separado e ilimitado de seu próprio coração? Sabemos que na mitologia, o Deus Agrário é Deus-Sete, porque o número sete, também está intimamente ligado ao fenômeno astronômico da passagem do Sol pelo zênite que determina a estação das chuvas. Paralelamente à estação das chuvas, temos outro elemento religioso com o significado do nome de uma personagem bíblica do Antigo Testamento em analogia ao burrinho Sete-de-Ouros. Moisés ou "Mosché" em hebraico era filho de Amram e Joquebede, sendo bisneto de Levi "Esta lhe chamou Moisés e disse: Porque das águas o tirei” (FRANCISCO, 2012, p.191). A história do menino Moisés é conhecida mundialmente. O menino que, tendo apenas três meses de idade para escapar da decisão do Faraó de matá-lo, temeroso pela grande multiplicação do povo israelita no Egito, foi colocado em um cesto e lançado por sua irmã no rio Nilo e "salvo das águas" pela filha do Faraó. Um olhar atento para o Antigo Testamento nos mostrará um Moisés "salvo das águas" duas vezes, uma quando criança e outra quando adulto. Sete-de-Ouros foi salvo das águas: "Aí, nesse meio-tempo, três pernadas pachorrentas e um fio propício de corredeira levaram Sete-de-Ouros ao barranco de lá, agora reduzido a margem baixa e ele tomou terra e foi trotando" (ROSA, 1984, p.79).

Moisés enfrentou vários obstáculos: o comportamento dos egípcios, tanto do Faraó quanto dos súditos. Sete-de-Ouros enfrentou também vários obstáculos com os outros animais da fazenda. Moisés enfrentou as dificuldades no deserto. O maior obstáculo para Moisés foi a travessia do Mar Vermelho. Para Sete-de-Ouros o "Rio da Fome". Apesar das inúmeras dificuldades, ambos se entregaram ao destino. Seria o nascimento ou êxodo de Moisés a chave de leitura que Rosa propõe para o seu conto O burrinho pedrês? Os cavaleiros com seus animais e perseguidores de Sete-de-Ouros sucumbiram no rio tal qual o sepultamento pelas ondas que tragou o exército egípcio, com os seus soldados, armamentos e carros de guerras. Para somar, o conto deixa claro o tempo, "mês das chuvas" e o espaço, "de Conceição do Serro ou não sei onde no sertão" (ROSA, 1984, p. 17). Rosa mostra-nos Sete-de-Ouros , um bichano de estimação, que promove o contato direto com a natureza e com o ser humano. A narrativa da travessia do burrinho Sete-de-Ouros , que sobrevive à enchente do Rio da Fome, é marcada por uma forte carga simbólica e religiosa, que aponta para a renovação do herói que sobrevive na experiência do caminho e da mudança, da vigilância e da auto- observação. Com sutileza é possível ao leitor identificar os elementos que coadunam com a linearidade do comportamento sem surpresas do bichano, o que vai de encontro com as ações densas, enigmáticas, contraditórias, rebeldes de outras personagens. Sete-de-Ouros "todo calma, renúncia e força não usada" (ROSA, 1984, p.21), diante de todas as adversidades "se faz pequeno” (ROSA, 1984, p.22). Uma personagem passível de ser observada por meio de um dos atributos que toda e qualquer divindade pressupõe como um meio de elevação espiritual, a virtude da paciência: "Sete-de-Ouros, que vinha até então, desatual, na marchinha costumeira, sem demonstrar cansaço, sem veleidade de empacar" (ROSA, 1984, p.58), como o velho burrinho filósofo de quem todos faziam algazarra. O conto inteiro satiriza a inferioridade e a fraqueza do burro perante aos demais. Por acaso, o escritor faz alguma conotação a personagem de Noé do livro de Gênesis, quando se referiu ao mês das chuvas? Noé também foi salvo de águas por obedecer aos seus instintos, na Arca de Noé no Gênesis, encontramos um Noé que tinha seiscentos anos de idade quando as águas do dilúvio cobriram a terra, conforme o Antigo Testamento e o Alcorão. A reunião de elementos religiosos no conto, como a enchente do Rio da Fome, remete-nos aos mitos do dilúvio numa perspectiva de morte e vida. O dilúvio é um tema comum na mitologia mundial. O Grande Dilúvio, geralmente, destrói a raça humana para que um deus ou criador

virtude e da paciência simplificados na providência do "meio" como o cotidiano da vida, afinal "quem é visto é lembrado" (ROSA, 1984, p.23). Ele foi visto e lembrado por sair do seu local cheio de intempéries para encontrar um lugar de remanso nos pilares da varanda da fazenda. A atmosfera plena de imagens surreais traz-nos os bichos humanizados, tal como o bicho Calundu, que mata o menino Vadico e logo adiante em outra cena se mostra arrependido, vale dizer também que as formas animalescas mudam conforme a transformação da natureza. Há no conto de João Guimarães Rosa várias possibilidades de ascensão ao plano do divino, do transcendente, da elevação, da iluminação ou qualquer que seja a concepção religiosa, pois, para conceitualizar a metáfora, a narrativa de viagem de Sete-de-Ouros consagra a travessia humana pelo viver, que encara a vida como passagem, não temendo a morte. Em Rosa, é perceptível que a travessia é a vivência. É a vida. É a via. É a peregrinação. O texto é enfático: "Pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia" (ROSA, 1984, p. 79). Passagem significativa marcada pelo momento da entrega de Sete-de-Ouros ao destino das águas que levam a morte. Temos então um ensinamento doutrinário, teórico-literário, no qual um burrinho, designado pelo nome de Sete-de-Ouros , vence uma prova iniciática por se abster de rixas e de todo e qualquer tipo de conflito. Urge considerar que a lucidez é um dos elementos ou atributos a ser trabalhado e desenvolvido a partir do ensinamento deste conto, pois Rosa provoca uma leitura calma e harmônica que leva em conta a cultura dos homens e dos animais, nelas a diferença é de grau e não de tipo. Ao pensar na ordem do mundo natural e nas relações humanas com a natureza, a narrativa enfatiza o aparecimento da cultura humana ligada à cultura animal e todos os elementos que traz, funcionam conjuntamente preparando a necessária reflexão humana. Reflexão que ultrapassa as fronteiras da literatura e das ciências humanas voltando-se para os mitos. Sete-de-Ouros sofreu transformação que influenciou diretamente as outras personagens, de insignificante tornou-se necessário, graças à qualidade de seus sentidos: "e imediatamente tomou conhecimento da aragem, do bom e do mau: primeiro, orelhas firmes, para cima - perigo difuso, incerto; depois as orelhas se mexiam para os lados - dificuldade já sabida, bem posta no seu lugar" (ROSA, 1984, p. 79). O momento não permite, mas os cinco sentidos poderiam ser avaliados em Sete-de-Ouros como elementos simbólicos da religião. Rosa ensina-nos que seus heróis estão atrelados à condição histórica e mítica. A solução do drama traduz os valores coletivos da sociedade e não mais os do herói solitário.

Sua obra traduz os fundamentos de uma organização social em sua totalidade indissolúvel com todos os campos e esferas da organização da vida. Para Rosa, o religioso também se insere na cultura animal e vice-versa. Tanto que o personagem Sete-de-Ouros chama todos os holofotes para nos mostrar a natureza heroica de sua ação - partida/iniciação/retorno bem delineados ao longo da narrativa. O relato mitológico parte da realidade concreta e cotidiana da vida, para propor uma reflexão sobre aquilo que ultrapassa o nosso entendimento. Rosa aborda a questão do mito do herói em todos os seus níveis: artístico, estético, psicológico, gramatical, estrutural e religioso e o contextualiza historicamente, entendendo este como um fato social. Sete-de-Ouros , alma trágica que se situa entre dois universos marcados pela contradição: por um lado, exaltado por valores heroicos e por outro correspondente as indagações surgidas na sua vivência cotidiana, em que não existia nenhuma noção de livre arbítrio, autonomia e vontade. Dentre essas e outras considerações chamamos atenção para o pássaro João, corta pau, no final do conto, com sua mensagem "profética". Ele poderia também ser objeto de um estudo sob o ponto de vista da Ciência da Religião. O que escrever sobre cem anos de saga? Acompanhar passo a passo a jornada de Guimarães Rosa torna-se tarefa difícil, porém podemos dar vazão à nossa imaginação. Os animais não são partículas insignificantes no cosmo de Rosa, aliás, são nobres. Rosa nos convida a percorrer a literatura sagrada do Gênesis ao Apocalipse e possibilita ao seu leitor encontrar elementos religiosos em todos os seus contos. "Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar" (ROSA, 1984, p. 79) a morte, mas logo emerge seus pensamentos de ressurreição "No fim de tudo - tem o pátio com os cochos, muito milho na Fazenda; e depois o pasto: sombra, capim e sossego" (ROSA, 1984, p. 79), ou seja, a terra que mana leite e mel, ou numa versão apocalíptica a cidade celestial [...]. Com virtuosa habilidade de um burro, com a coragem no peito, tal como o ouro provado no fogo e "as orelhas espelho da alma". Cheio de esperança no coração e elevação de sua condição na história de pequeno ao grande Sete-de- Ouros permaneceu. Vários são os atos que podem ser analisados da perspectiva religiosa, por exemplo, numa versão aristotélica da tragédia, o acontecimento se dá no intervalo de um dia, no conto, tudo ocorre num dia de trabalho - das seis da manhã à meia noite, da fazenda da Tampa, no vale do Rio Velhas, centro de Minas. As particularidades apresentadas, a interpretação do

No campo da intuição, podemos observar um burrinho que avisa dos perigos, por meio do seu agir, numa elegância instintiva, que o faz salvar-se e guiar outros animais e humanos em qualquer situação de perigo: "O burrinho é quem vai resolver: se ele entrar n'água, os cavalos acompanham e nós podemos seguir em susto" (ROSA, 1984, p. 73), este trecho, desmetaforizado, traz a experiência da maturidade, responsabilidade e lucidez. Rosa deixa a figuração da consciência religiosa expressa no burrinho que imita o Cristo, que sai do seu retiro e volta ao mundo, como guia da salvação. Tal como o Virgílio que guia o Dante na Divina Comédia. Também na figuração de Krishna, a oitava encarnação ou avatar de Vishnu, o preservador da ordem. Para finalizar, ressalto que a Ciência da Religião está apta para analisar nosso patrimônio cultural literário. Paulo Mendes nos convida a empreender esta jornada: "Os gêneros da literatura oral tradicional, que uma vez produzidos, ganham uma razoável autonomia em relação ao seu processo de produção, enriquecendo-se no contexto de uso intergeracional: cancioneiros, contos, populações, paremiologia" (MENDES, 2013, p. 643). Mendes incita ao estudo do nosso Tesouro cultural, que tem muito que ver com os estágios da vida e as mitologias da nossa sociedade numa perspectiva de criação transversal de valores e significados, numa transcendência territorial civilizatória definida como, o Patrimônio da Humanidade. No entanto, "mais que musealizar, devemos avançar para tratamentos reais que incluam a dimensão vivencial" (MENDES, 2013, p. 643). João Guimarães Rosa é um patrimônio brasileiro que ultrapassa nossas fronteiras culturais e tem o sido explorado por outros estrangeiros. Por que não, por nós, brasileiros? Considerações Finais Iniciamos com uma breve análise das redes de textos que compõem a narrativa do conto O burrinho pedrês, buscando demonstrar que Rosa faz uma planta arquitetônica que articula suas pequenas histórias com a história principal e intratextualmente. Foi ressaltada a importância da memória cultural e também explicitada a potencialidade da Ciência da Religião para dialogar com a Literatura, sempre eivada de elementos religiosos. Pensar a literatura pelo viés da religião é um caminho necessário na atualidade. João Guimarães Rosa, nosso patrimônio cultural, com seus textos convida-nos a realizar a travessia da vida com atenção, com meditação e responsabilidade com o próximo. Findas as considerações, resta agora as dívidas para com o escritor João Guimarães Rosa, por ter-nos proporcionado momentos de reflexão, introspecção e gozo estético.

Seria inútil a tentativa de comentar as palavras do grande mestre da alquimia do verbo e do logos. Acrescento, apenas que João Guimarães Rosa nos ensina, seus textos deixam-nos um legado religioso-místico, marcado pela memória cultural e pela oralidade, que deve ser preservado e transmitido como patrimônio mineiro-brasileiro. A Ciência da Religião pode e deve pesquisar os escritos do autor como pergaminhos que precisam ser decifrados, já que tem recursos epistemológicos para realizar tal tarefa. Referências bibliográficas ALMEIDA, Leonardo Vieira de. Artigo sobre. Centenário de Guimarães Rosa Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/literatura/0027.html>Acesso em 11.11.2014. BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume I: Da idade da pedra aos mistérios de Eleusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. FRANCISCO, Edson de Faria. Antigo Testamento Interlinear Hebraico-Português. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. JOHNSON, Paul. História ilustrada do Egito Antigo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. NUNES, Benedito: A Rosa o que é de Rosa : Literatura e filosofia em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Difel, 2013. PASSOS, João Décio; USARSK, Frank (organizadores). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2013. POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006. POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. REGULA, de Traci. Os Mistérios de Isis : Seu culto e magia. São Paulo: Madras,

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