



Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Explorações introspectivas e poetas sobre a vida, a morte, o tempo e a escrita de clarice lispector. A autora reflete sobre a natureza da existência, a busca de sentido na vida e a importância da liberdade. O texto é uma mistura de reflexões filosóficas e literárias, com uma forte influência existencialista.
Tipologia: Notas de aula
1 / 5
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e in- tranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Prova- velmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço- -me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coi- sas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve es- tar sendo o que é. Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou ca- minhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o cor- po. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disse- ram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodreci- mento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de
evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imu- tável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela vo- racidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar de- pressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espé- cie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multi- plicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espan- to-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E ama- nhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abe- lha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia. Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgo- taram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição. Escrevo ou não escrevo? Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas ve- zes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensina- da a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Se- rei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosse- guem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a mi- nha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desis- tência? Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações so- bre os «fatos»? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspi- ração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira
12 Clarice Lispector
Será que estou me traindo? será que estou desviando o curso de um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante. Ou será que ponho uma barreira no curso de um rio? Tento abrir as comportas, quero ver a água jorrar com ímpeto. Quero que cada frase deste li- vro seja um clímax. Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes. Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco — recém-saído do nada. Ele é tocado ao piano delicada e firmemente ao piano e todas as notas são límpi- das e perfeitas, umas separadas das outras. Este livro é um pombo- -correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu ape- nas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em pro- curar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão peri- goso. Me deram um nome e me alienaram de mim. Sinto que não estou escrevendo ainda. Pressinto e quero um lin- guajar mais fantasioso, mais exato, com maior arroubo, fazendo espirais no ar. Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados — a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. Existem leis que re- gem a comunicação. A impessoalidade é uma condição. A separati- vidade e a ignorância são o pecado num sentido geral. E a loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo. Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a meus personagens. Só que não agüento e faço-os chorar à toa. Raízes semoventes que não estão plantadas ou a raiz de um den- te? Pois também eu solto as minhas amarras: mato o que me per- turba e o bom e o ruim me perturbam, e vou definitivamente ao en-
14 Clarice Lispector
contro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma. Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de ín- tima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu pró- prio coração trêmulo sofrendo a incalculável dor que parece ser necessária ao meu amadurecimento — amadurecimento? Até ago- ra vivi sem ele! É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a mis- teriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar- -me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudan- ça, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue. Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penum- bra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é prece- dido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento — palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei. Su- ponho que o compositor de uma sinfonia tem somente o «pensa- mento antes do pensamento», o que se vê nessa rapidíssima idéia muda é pouco mais que uma atmosfera? Não. Na verdade é uma atmosfera que, colorida já com o símbolo, me faz sentir o ar da at- mosfera de onde vem tudo. O pré-pensamento é em preto e bran- co. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensa- mento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré- -pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está inti- mamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem.
Um Sopro de Vida 15