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Neste texto, a autora compartilha suas experiências pessoais e científicas sobre a violência doméstica, o uso de drogas e o racismo, mostrando como essas questões estão relacionadas e como as ideias equivocadas sobre elas podem causar prejuízos graves. Ela refuta a ideia de que o uso de drogas significa vício e que as drogas são a causa principal de problemas sociais, como criminalidade e violência doméstica.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
Tradução: Clóvis Marques
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. De onde venho
“Nosso país sempre lutou para saber como deveria lidar com as pessoas pobres e de cor. … Tivemos uma guerra à pobreza que nunca chegou realmente a lutar contra a pobreza.” Maxine Waters
O que chegou a mim foram os sons: meu pai gritando “Vou te matar, piranha”, minha mãe se esgoelando, o horrível barulho surdo de carne batendo em carne, com força. Eu estava jogando alguma coisa num tabu- leiro – provavelmente Operation ou algo parecido – com três de minhas irmãs no quarto que compartilhava com meu irmão menor, Ray. Ele tinha três anos, era muito pequeno para jogar, mas eu estava de olho nele, para não haver problemas. O inclemente sol de Miami se punha, e dava para perceber que a briga estava ficando feia, porque meus pais tinham passado do quarto, onde tentavam manter as coisas numa esfera privada, para a sala, onde valia tudo. Era uma noite de sexta-feira ou sábado, e eu tinha seis anos. Logo passamos a ouvir objetos grandes jogados contra a parede, vi- dros quebrados, longos gritos lancinantes. Eu percebi que a noite ia ser daquelas quando minha irmã mais velha, Jackie, saiu e voltou para casa. Então com treze anos, Jackie era filha do companheiro anterior de minha mãe, nascida quando ela tinha dezoito anos, antes de meus pais se conhe- cerem e se casarem. Morava com Vovó, nossa avó materna, mas em suas frequentes visitas a nossa casa Jackie às vezes conseguia impedir que meus pais se digladiassem.
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Meu irmão Ray (à direita) e eu no domingo de Páscoa de 972.
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eu detestávamos os fins de semana. Minha mãe, Mary, bebia quando havia gente bebendo, mas no seu caso o álcool não era uma fuga, como para meu pai. Ela bebia socialmente, enquanto ele bebia para se drogar e desfrutar o efeito desinibidor do álcool. No entanto, apesar da presença do álcool, eu hoje sei que ele não era a verdadeira origem dos nossos problemas. Como cientista, aprendi a desconfiar das causas atribuídas às dificuldades enfrentadas pela minha família, vivendo inicialmente numa comunidade operária e mais tarde numa comunidade pobre. Fatores simples como bebida e drogas poucas vezes contam a história toda. Na verdade, como sabemos pela experiência com o álcool, o hábito de beber, em si mesmo, não é um problema para a maioria das pessoas. Como veremos, o mesmo se aplica às drogas ilegais, inclusive as que aprendemos a temer, como o crack e a heroína. Embora eu pudesse contar minha história sem destacar o que vim a aprender sobre essas questões, isso serviria apenas para perpetuar as inter- pretações equivocadas que ainda prevalecem em nossa maneira de encarar a questão. Para entender realmente de onde eu venho, é necessário com- preender onde eu fui parar – e de que maneira as ideias equivocadas sobre drogas, vício e raça distorcem nossa visão de vidas como a minha e, por- tanto, o tratamento que tais questões merecem por parte de nossa sociedade. Em primeiro lugar, para entender a natureza de influências como o álcool e as drogas ilegais, precisamos definir muito bem a verdadeira natureza dos problemas a eles relacionados. O fato de alguém fazer uso de drogas, ainda que regularmente, não significa que seja “viciado”. Não significa sequer que essa pessoa tenha um problema com as drogas. Para atender à definição mais amplamente aceita de vício – a que se encontra no manual psiquiátrico Diagnostic and Statistical Manual of Men- tal Disorders , ou DSM –, a utilização que uma pessoa faz das drogas deve interferir em funções vitais importantes, como os cuidados com os filhos, o trabalho e as relações íntimas. O uso deve prosseguir, apesar das conse- quências negativas, de ocupar muito tempo e energia mental, e persistir, não obstante renovadas tentativas de parar ou diminuir. Também pode incluir a experiência de precisar mais da mesma droga para conseguir o
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bastante na mente dos indivíduos, dano maior é causado quando influen- ciam o comportamento institucional, por exemplo, nas escolas, no sistema judicial e nos meios de comunicação. O racismo institucionalizado muitas vezes é mais insidioso e de difícil abordagem que o racismo de indivíduos isolados, pois não há um vilão específico para se culpar, e os líderes institu- cionais podem recorrer a respostas prontas ou adiar indefinidamente uma intervenção decisiva. Espero contribuir aqui para esclarecer como isso fun- ciona – mas nem de longe quero dar a impressão de que estou enfatizando demais sua força ou exagerando quando recorro ao conceito. O que tenho em mente é exatamente o papel que a crença na inferioridade racial inata desempenha na determinação dos comportamentos de grupo. Examinando de perto todos esses fatores, espero entender que forças me tolhiam em minhas primeiras experiências educacionais e o que me compelia para adiante; quais exigências precoces eram positivas e quais eram negativas; o que aconteceu por acaso e o que representou uma esco- lha; e o que ajuda ou prejudica as crianças que se defrontam com o mesmo tipo de caos em que eu vivia. O que me permitiu – mas não a muitos de meus parentes e amigos – escapar do desemprego crônico e da pobreza, evitando a prisão? Serei capaz de transmitir a meus filhos as ferramentas que funcionaram comigo? De que maneira as drogas e outras fontes de prazer interagem com fatores culturais e ambientais, como o racismo institucionalizado e a carência econômica? Muito cedo se tornou claro para mim que as coisas com frequência são muito diferentes da maneira como se apresentam na superfície; que as pessoas mostram faces muito diversificadas no trabalho, na igreja, em casa e com aqueles que mais amam. Essa complexidade também é encon- trada em certas interpretações dos dados de pesquisa. Para nós, cidadãos numa sociedade em que tantas pessoas com projetos diferentes tentam se acobertar sob o manto da ciência, é importante pensar de maneira crítica a respeito da informação que é apresentada como científica, pois às vezes até as pessoas mais bem-intencionadas podem se deixar enganar. Quero explorar com você o que aprendi, em especial a importância das comprovações empíricas – vale dizer, das provas que decorrem dire-
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tamente de experiências ou observações mensuráveis –, para entender questões como as drogas e o vício. É importante notar que esse tipo de prova é confiável, e que as experiências são concebidas com o objetivo de evitar equívocos e distorções decorrentes do exame de um ou dois casos que talvez não sejam típicos. O contrário da prova empírica é a informação episódica, incapaz de nos dizer se as histórias ouvidas consti- tuem discrepâncias ou casos comuns. Muitas pessoas recorrem a histórias pessoais envolvendo experiências com drogas para tentar entender que efeitos elas têm ou deixam de ter, como se fossem casos representativos ou dados científicos. Mas não são. É fácil se confundir quando não se dispõe de ferramentas específicas de pensamento crítico, como a compreensão dos diferentes tipos de provas e argumentos. Vou compartilhar essas fer- ramentas ao longo deste livro. Dito isso, o que posso afirmar como certo é que no meu bairro, muito antes da introdução do crack, diversas famílias já eram dilaceradas pelo racismo institucionalizado, a pobreza e outras forças. Em seu clássico livro World of Our Fathers , Irving Howe lembrou que a patologia constatada em bairros como o meu não é exclusividade de comunidades negras. Nos pri- meiros tempos da imigração, muitas famílias de origem judaica, chegadas da Europa Oriental, eram desestabilizadas ao enfrentar a hostilidade de outros grupos e a pobreza, que obrigavam seus integrantes a trabalhar em horários diferentes, impossibilitando-os de conviver em casa. Alguns eram obrigados a ocultar ou abandonar suas crenças religiosas e seus costumes até para conseguir empregos pouco valorizados. Não surpreende, assim, que muitas comunidades de imigrantes judeus, nos primeiros tempos, vivessem às voltas com questões como criminalidade, mulheres abando- nadas pelos maridos, prostituição, delinquência juvenil etc. Quando coisas assim aconteciam no meu bairro, nas décadas de 980 e 990, a culpa era posta no crack. Por exemplo, embora muitas vezes se responsabilize o crack pelo tratamento negligente ou o abandono dos filhos, ou pelo fato de as avós serem obrigadas a criar uma segunda geração de crianças, todas essas coisas aconteciam na minha família muito antes de o crack chegar às ruas. Minha mãe, que nunca foi alcoólatra nem viciada em qualquer
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É isso que veremos claramente ao examinar as penalidades adotadas nos casos de crack e cocaína em pó e ao explorar a falta de correlação entre gastos com ordem pública e prisões, uso de drogas e índices de vício. O crack, por exemplo, nunca chegou a ser usado por mais de 5% dos adolescentes, grupo que apresenta maior risco de se viciar. O risco de vício é muito maior quando o uso de drogas tem início no começo da adolescência do que na idade adulta. O uso diário de crack – padrão que evidencia maior risco de vício – nunca chegou a afetar mais de 0,2% dos universitários do último ano. O aumento de 3.500% nos gastos de combate às drogas entre 970 e 20 não teve efeito no uso diário de maconha, heroína ou qualquer tipo de cocaína. E embora o crack fosse considerado em grande parte um problema das comunidades negras, na verdade é maior a probabilidade de uso por brancos, segundo esta- tísticas nacionais.⁴ Quando fui informado pela primeira vez dos índices de utilização do crack e da raça da maioria de seus usuários – entre as muitas outras falsas alegações a respeito da droga –, senti-me completamente traído. Eu me percebia vítima de uma fraude colossal, cometida não só contra mim, mas contra todo o povo americano. Para entender a minha história, não pre- cisamos apenas compreender os resultados de uma política, mas também analisar determinadas formas pelas quais as estratégias de combate ao uso de drogas vieram a ser usadas para fins políticos. Como explica Michelle Alexander com brilhantismo no magistral The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness , as polí- ticas americanas de combate ao uso de drogas muitas vezes encobrem deliberadamente certos objetivos políticos. A utilização das políticas relativas às drogas para “mandar uma mensagem” a respeito da questão racial era um elemento básico da famigerada “estratégia sulista” repu- blicana adotada por Richard Nixon. A estratégia buscava conquistar o Sul para os republicanos, explorando o medo dos brancos e o ódio aos negros na sequência da política de apoio dos democratas ao movimento pelos direitos civis. Ela transformou palavras como crime , drogas e ur- bano em códigos denotando “negros”, aos olhos de muitos brancos. Por
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conseguinte, legitimou políticas que na superfície pareciam infensas ao preconceito de cor, mas na realidade resultavam em aumento dos casos de encarceramento de negros e na negação de seus direitos civis. Embora governos posteriores dessem prosseguimento à suposta guerra às dro- gas sem necessariamente compartilhar as mesmas metas, os resultados continuavam tendenciosos. Na verdade, todos os resultados dessas políticas – o desperdício do potencial dos que estavam por trás das grades, o dilaceramento das fa- mílias, a violência constatada no tráfico de drogas e até os altos índices de desemprego entre homens negros – logo eram atribuídos à própria natureza do crack. Eu mesmo cheguei a concordar com esse ponto de vista quando estava na faixa dos vinte anos, muito embora, como vere- mos, minha experiência me devesse ter levado a questioná-lo. Na ver- dade, esses problemas eram agravados ou criados por escolhas políticas na esfera econômica e da justiça criminal. As decisões políticas e os equívocos a respeito dos perigos das drogas devastaram minha geração, embora nós mesmos fôssemos culpados por esses resultados. Antes de me tornar cientista, eu mesmo estava nessa. Enquanto isso, os verdadeiros problemas que haviam tornado nossas comunidades vulneráveis a muitas doenças sociais continuavam ausen- tes do debate público e ignorados. Eles são visíveis em histórias como a minha, mas só se você souber em que direção olhar e como pensar criteriosamente sobre o problema. Levei muitos anos para entendê-lo. Por infortúnio, muitas pessoas – sejam elas negras ou brancas – com- praram a ideia de que o crack era a causa principal de nossos problemas, e que era possível contribuir para resolvê-los construindo novas prisões e impondo sentenças mais pesadas. Hoje, embora o crack não seja mais uma preocupação central dos políticos ou dos meios de comunicação, 1⁄3 dos negros de sexo masculino nascidos depois de 2000 passará pela prisão se não mudarmos drastica- mente de rumo.⁵ Meu filho mais novo, Malakai, está nessa faixa etária, e eu remexo mundos e fundos para protegê-lo ao denunciar a injustiça dessa situação.