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Menocchio: Um Pensador Popular na Itália do Século XVI, Exercícios de Cultura

A história de menocchio, um camponês italiano que desafia as autoridades religiosas e acarrea ideias controversas durante o século xvi. Ginzburg utiliza a concepção de 'circularidade cultural' de mikhail bakhtin para analisar o contato entre as culturas dominantes e subalternas, e como as ideias fluem entre elas. Menocchio é um exemplo de como as classes subalternas podem influenciar a cultura erudita.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pipoqueiro
Pipoqueiro 🇧🇷

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Ariane Alves Eufrásio de Paula
O saber e a montagem: um estudo de
O Queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg
Belo Horizonte
2020
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Ariane Alves Eufrásio de Paula

O saber e a montagem: um estudo de

O Queijo e os vermes , de Carlo Ginzburg

Belo Horizonte

Ariane Alves Eufrásio de Paula

O saber e a montagem: um estudo de

O Queijo e os vermes , de Carlo Ginzburg

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagens. Linha de Pesquisa: Literatura, Cultura e Tecnologia Orientadora: Profa. Dra. Claudia Maia

Belo Horizonte

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), avaliada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Roniere Silva Menezes – POSLING/CEFET-MG

Profa. Dra. Bruna Fontes Ferraz – CEFET-MG

_______________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Lopes – POSLING/CEFET-MG (p/ Profa. Dra. Claudia Maia – orientadora – POSLING/CEFET-MG)

Belo Horizonte, setembro de 2020.

AGRADECIMENTOS

À orientadora deste trabalho, Professora Claudia Maia, agradeço pelos

muitos ensinamentos, pela atenção ao projeto, pela paciência com os

momentos de dispersão, pelo carinho e pelos inestimáveis incentivos.

Aos funcionários e docentes do CEFET-MG, pela solicitude e, em especial,

aos professores cujas disciplinas tive o privilégio de acompanhar e que

ampliaram imensamente minha compreensão do mundo.

Aos amigos e familiares, pela segurança e os ouvidos cuidadosos.

Agradeço, fundamentalmente, a meu esposo, filha, pais e irmão Weslley de

Paula, Julia, Paulo, Jacira e Breno, sempre em minha cabeça e coração.

RESUMO

Esta dissertação pretende investigar a relação entre o saber e a montagem no livro O queijo e os vermes , do historiador italiano Carlo Ginzburg, publicado originalmente em 1976. Esta obra reconstitui e narra a história de Domenico Scandella, também conhecido como Menocchio, um camponês que teve suas ideias reprimidas pelo poder inquisitorial do século XVI. Os saberes e as leituras de que Menocchio se valeu para construir uma cosmogonia própria são investigados a partir do pensamento de Michel Foucault sobre discurso, saber e poder, e também do conceito de montagem de Georges Didi-Huberman. As investigações sobre transdisciplinaridade do professor Ivan Domingues colaboraram no sentido de considerar que a cosmogonia de Menocchio movimenta o campo do saber, reinventando novas possibilidades.

Palavras-chave: saberes; montagem; micro-história; O queijo e os vermes ; Carlo Ginzburg

ABSTRACT

This paper aims at investigating the relation that exists between the knowledge and the assembly in the book O queijo e os vermes , written by the italian historian Carlo Ginzburg, originally published in 1976. This book, reconstitutes and tells Domenico Scandella‘s history, also known as Menocchio, a farmer that has had his own ideas repressed by the inquisitorial power in the 16th^ century. The knowledge and the readings that Menocchio used to construct his own cosmogony are investigated based on Michel Foucault's thought on discourse, knowledge and power, and also regarding the concept of assembly (montage) from Georges Didi-Huberman. The investigations of Professor Ivan Domingues about transdisciplinarity collaborated in the sense of considering that Menocchio‘s cosmogony puts into movement the field of knowledge, reinventing new possibilities.

Keywords: knowledge; assembly; microhistory; O queijo e os vermes ; Carlo Ginzburg

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Menocchio, o homem que ousou desconstruir saberes

[...] é um homem como nós, é um de nós. Mas é também um homem muito diferente de nós. Carlo Ginzburg

Carlo Ginzburg nasceu no dia 15 de abril de 1939, na cidade de Turim, Itália. É filho da escritora Natália Ginzburg e do intelectual antifascista Leone Ginzburg, ambos de origem judaica. Estudou na Escola Normal Superior de Pisa, mas deu continuidade a seus estudos no Instituto Warburg, em Londres, na Inglaterra. Renomado historiador, lecionou nas Universidades de Bolonha, Harvard, Yale e Princeton. É considerado um dos intelectuais mais notáveis da Itália e seus livros já foram traduzidos para 15 línguas. Tornou-se um dos principais nomes da micro-história e procurou esclarecer esse termo, recuperando os primeiros historiadores que propuseram discussões sobre o assunto, em ―Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito‖.^1 Num momento em que a História tradicional era a base do conhecimento, que se pretendia totalizador e generalizador, essa vertente se volta a fatos considerados ―menores‖, normalmente ignorados. Uma História menos elitista, contada por sujeitos não canônicos, despertou o interesse de muitos seguidores da Escola dos Analles, inclusive do pesquisador Carlo Ginzburg, que propõe uma visão que parte dos ―menores‖ para os ―maiores‖.^2 Segundo Jacques Revel (2010), ―o programa de uma micro-história foi recebido como uma proposta nova, incômoda, nem que fosse porque rompia com os hábitos da historiografia dominante‖ (REVEL, 2010, p. 434). Em O queijo e os vermes (1976), Ginzburg apresenta sua pesquisa com fundamentação na micro-história. Ele trata da história de Menocchio, um sujeito pertencente ao estamento dos camponeses, que tenta

1 GINZBURG, Carlo. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito_._ In: _____. O fio e o rastro: verdadeiro, falso, fictício. Trad. Bruna Freire D‘Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 2 ―Giovanni Levi, Simona Cerutti começaram a trabalhar numa coleção, publicada pela editora Einaudi, intitulada precisamente ‗Micro-histórias‘. Saíram, a partir de então, uns vinte volumes, de autores italianos e estrangeiros; alguns dos títulos italianos foram traduzidos para várias línguas; chegaram até falar de uma ‗escola micro-histórica italiana‘‖. (GINZBURG, 2007, p. 249-250).

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se incorporar no mundo das Letras, para que possa defender o seu pensamento, a sua cosmogonia sobre a criação do mundo. Esta dissertação propõe um estudo sobre esse livro de Ginzburg e usa sua tradução brasileira que inclui, além dos 62 capítulos que compõem o estudo, o prefácio à edição inglesa, o prefácio à edição italiana e o posfácio de Renato Janine Ribeiro, escrito para a tradução brasileira. Nos prefácios, Ginzburg explica que chegou à história de Menochio por acaso. Ele passou parte do verão de 1962 em Udine e consultou o arquivo da Cúria Episcopal daquela cidade. Esse arquivo preservava um acervo importante de documentos inquisitoriais e, àquela época, ainda inexplorado. O estudo dos julgamentos da seita de Friuli resultou em seu livro I benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento , publicado no ano de 1966, em Turim (GINZBURG, 2006, p. 9). Em um desses julgamentos, Ginzburg encontrou o material para o estudo de O queijo e os vermes , conforme expõe no excerto a seguir.

Ao folhear um dos volumes manuscritos dos julgamentos, deparei-me com uma sentença extremamente longa. Uma das acusações feitas a um réu era a de que ele sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. Essa frase atraiu minha curiosidade no mesmo instante, mas eu estava à procura de outras coisas: bruxas, curandeiros, benandanti. Anotei o número do processo. Nos anos que se seguiram aquela anotação ressaltava periodicamente de meus papéis e se fazia presente em minha memória. Em 1970 resolvi tentar entender o que aquela declaração poderia ter significado para a pessoa que a formulara. Durante esse tempo todo a única coisa que sabia a seu respeito era o nome: Domenico Scandella, dito Menocchio. (GINZBURG, 2006, p. 9)

Graças a uma grande documentação, Ginzburg teve condições de contar a história de Menochio, de saber quais eram suas ―leituras e discussões, pensamentos e sentimentos: temores, esperanças, ironias, raivas e desesperos‖ (GINZBURG, 2006, p. 9). O historiador, para tratar de reconstruir a história desse integrante da classe popular, precisou ter um conhecimento da época, aproximar-se das fontes e analisá-las. Através desse trabalho Ginzburg passa a utilizar, em O queijo e os vermes , o conceito de circularidade cultural,^3 para apresentar a história de um moleiro que foi muito

3 Circularidade cultural é um conceito cunhado pelo autor Mikhail Bakhtin na obra Estética da criação verbal (2003) e foi utilizado por Carlo Ginzburg na obra O queijo e os vermes (2006). O conceito expressa um entrecruzamento da cultura erudita com a popular, que ora convivem, ora se distanciam. ―Bakhtin resume o termo ‗circularidade‘: entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas, acontecia um relacionamento circular feito de influências recíprocas‖. (GINZBURG, 2006, p. 10).

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realidade. Em frases que se tornam pouco a pouco mais rápidas e quase febris, Serra registra o ritmo de um pensamento que gira em torno da alta contradição não resolvida entre a certeza da existência da ―coisa em si‖ e a desconfiança na possibilidade de alcançá-la por meio dos depoimentos. (GINZBURG, 2007, p. 272)

Ginzburg (2007) cita, ainda, uma importante argumentação de Serra, do livro em questão, sobre os documentos e a veracidade deles, como se pode ver no excerto a seguir.

Tem gente que imagina de boa fé que um documento pode ser uma expressão da realidade [...]. Como se um documento pudesse exprimir algo diferente de si mesmo [...]. Um documento é um fato. A batalha, outro fato (uma infinidade de outros fatos). Os dois não podem fazer um. [...] O homem que age é um fato. E o homem que conta é outro fato. [...] Todo depoimento dá testemunho apenas de si mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais. [...] Todas as críticas que fazemos à história implicam o conceito da história verdadeira, da realidade absoluta. É preciso enfrentar a questão da memória; não na medida em que é esquecimento, mas na medida em que é memória. Existência das coisas em si (SERRA apud GINZBURG, 2007, p. 273). Esse ponto de vista corresponde à suposta neutralidade existente na História, algo difícil de acontecer, quando se entendem as relações entre as pessoas impregnadas de interesse, já que em toda ação há um objetivo. Assim, o documento deve ser lido acatando influências do tempo e da identidade daquele que o faz. Dessa maneira, pode- se inferir que a decifração final do documento depende da intenção, da realidade e da visão do sujeito presente, em relação a um fato e a um indivíduo do passado, tendo que seguir o pressuposto da inexistência de uma verdade absoluta, e ao mesmo tempo preservar a existência das coisas em si como memória, isto é, uma espécie de gaveta que contém objetos necessários para a composição de um resultado final. A ingenuidade constitui um desses instrumentos determinantes de um todo, e, para tanto, Cobb utiliza- se da irônica simpatia de Queneau pelos personagens modestos, para relatar a atração pelos saberes ainda não reconhecidos, como exposto por Ginzburg (2007), no excerto transcrito a seguir.

Cobb também partia da irônica simpatia de Queneau pelos personagens tímidos, modestos, provincianos dos seus romances; apropriava-se das suas palavras para contrapor os fatos do cotidiano — os únicos interessantes — aos da política; e concluía assumindo como mote a colorida imprecação lançada Zazie sobre Napoleão.

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Essencialmente, uma exaltação da historiografia menor Cobb não usa o termo ―micro-história‖) contra a historiografia centrada nos grandes e poderosos. A ingenuidade dessa interpretação é evidente. Queneau não se identificava em absoluto com seus personagens. A ternura pela vida provinciana de Le Havre coexistia nele com uma onívora, enciclopédica, paixão pelos saberes mais imprevisíveis. (GINZBURG, 2007, p. 256)

No meio dessa multiplicidade de saberes, procura-se alcançar a convivência dos saberes não reconhecidos. Para tanto, Ginzburg (2007) destaca uma discussão entre ―Furet e Le Goff, que sugeriam reatar os laços fazia tempo desfeitos entre história e etnologia, adotando uma perspectiva largamente comparada, baseada na recusa explícita (Le Goff) de um ponto de vista eurocêntrico‖. (GINZBURG, 2007, p. 258-259). Nessa perspectiva, é importante compreender que a história não é um mero relato, mas sim uma reconstituição de uma verdade flexível, influenciada por seu interlocutor. E, ao ―reatar laços entre história e etnologia‖, o estudo, a partir das fontes, ou seja, dos documentos, possibilita a interpretação no âmbito da antropologia sociocultural, com a finalidade de uma apreciação comparativa das culturas, como se pretende mostrar neste estudo, quais sejam, a popular e a erudita. O título do texto de Ginzburg, ―Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito‖, é provocativo porque ele relata quase todo o contexto histórico de micro- história, desde seus seguidores da Escola dos Annales até as discussões da História Moderna. Em um momento do texto, Ginzburg informa que ―Le Goff ressaltava que a atenção ao homem cotidiano sugerida pela etnologia ‗conduz naturalmente ao estudo das mentalidades, entendidas como ‗o que menos muda‘ na evolução histórica.‖ (GINZBURG, 2007, p. 259).

Assim, a História estava mudando; naquele momento, ―Furet se dedicava àqueles temas de história política e história das ideias que havia considerado intrinsecamente refratários a histoire sèrielle. Questões consideradas periféricas pulavam para o centro da disciplina e vice-versa. As páginas dos Annales (e das revistas de meio mundo) eram invadidas pelos temas indicados por Le Goff, em 1973, como: a família, o corpo, as relações entre os sexos, as classes de idade, as facções, os carismas‖. (GINZBURG, 2007, p. 260).

Era um momento diferente da história, que, durante muitos anos, dava prioridade aos assuntos puramente políticos e econômicos, além de voltar seu olhar basicamente aos grandes ―heróis‖. Essa história começou a ser superada quando surgiu a Escola dos Annales e alguns pesquisadores se dedicaram àqueles sujeitos simples da história, isto é,

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desenvolvimento econômico proporcionaram sucessivamente aos historiadores, conforme o ponto de vista e a escala de observação adotados, um princípio unificador que era ao mesmo tempo de ordem conceitual e narrativa. A história etnográfica de tipo serial propõe romper com essa tradição. Nesse ponto os caminhos percorridos pela história serial e pela micro-história divergem: uma divergência que é, ao mesmo tempo, intelectual e política. (GINZBURG, 2007, p. 261-

Na parte final do texto ―Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito‖, fica clara a visão de Giovanni Levi sobre a micro-história, que engloba o estudo daqueles sujeitos até então ignorados, cita até a palavra historietas, como as histórias menores, não tão importantes quanto às canônicas, e resgata a palavra ―micro-história‖ de Queneau ( Les fleurs bleues, 1965). Giovanni Levi trabalha com o termo ―herança imaterial‖, que representa toda a rede de contatos sociais que as pessoas realizam, pelas quais se identificam pertencentes a determinado núcleo; com isso, as pessoas adquirem a capacidade de se reconhecerem e, consequentemente, criam uma identidade. Essa ideia, tal como defendida por Levi, citado por Ginzburg 2007, pode ser entrevista no excerto a seguir.

Recentemente, Giovanni Levi falou da micro-história, concluindo: ―É um autorretrato, não um retrato de grupo‖. Eu tinha me proposto a fazer a mesma coisa, mas não consegui. Tanto os limites do grupo de que eu fazia parte quanto os limites do meu próprio me pareceram retrospectivamente móveis e incertos. Descobri com surpresa quanto haviam sido importantes, sem eu saber, livros que eu nunca tinha lido, acontecimentos e pessoas de que ignorava a existência. (GINZBURG, 2007, p. 277)

Isso é a micro-história, que concede a oportunidade de descobrir novos saberes em fontes até então desconsideradas ou não conhecidas. O moleiro lia os livros não aceitos pela igreja, naquele momento, considerava relevantes as informações muitas vezes desconsideradas, ou como afirmava Menocchio, questões que não renderiam lucros para a igreja; isto é, fatos locais de sujeitos anônimos, entre outros, conforme evidenciado no fragmento a seguir.

Piero della Francesca, Galileu, uma comunidade de tecelões piemonteses do século XIX, um vale da Ligúria do século XVI: esses exemplos escolhidos ao acaso mostram que as pesquisas micro-históricas italianas examinaram tanto temas de importância reconhecida, ou dada como evidente, quanto temas antes ignorados

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ou relegados a âmbitos considerados inferiores, como a história local. (GINZBURG, 2007, p. 276)

O livro de Ginzburg busca reconstruir a cultura e o contexto social em que viveu Menocchio e como ele se envolveu nesse contexto, sobretudo como leu alguns livros a que teve acesso e que impacto essa leitura teve na cultura oral que era seu patrimônio e de grande parte da sociedade da época. O contato entre as duas culturas foi estudado por Ginzburg a partir do conceito de circularidade cultural de Mikhail Bakhtin: ―entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré- industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo‖ (GINZBURG, 2006, p. 18). No texto de Ginzburg, um fenômeno, também de interação entre os diferentes, é conhecido como uma ―configuração social‖ que consiste no ―resultado da interação de incontáveis estratégias individuais: um emaranhado que somente a observação próxima possibilita reconstituir‖ (GINZBURG, 2007, p. 277). A personagem de Ginzburg (2006) também se manifestava individualmente, além de se sentir orgulhoso, quando estava junto dos letrados, numa perspectiva de se reorganizar, na exposição dos pensamentos, mesmo sob condição de agente subversivo. Diante de tais discussões, torna-se premente a análise de algumas questões, que serão discutidas nesta dissertação, como: até que ponto a ciência é desprovida dos interesses, é apolítica? Como avaliar as aspirações do personagem (Menocchio) objetivamente e entender a importância da sua cosmogonia, que é influenciada por outros de seu estamento social e das leituras de sujeitos ―letrados‖? A busca do novo pensamento, ainda não reconhecido, altera a forma de ver, sentir e imaginar de uma sociedade. Essa questão é muito complexa, principalmente quando atinge as pessoas, segundo o entendimento de Ginzburg (2007, p.262), ao afirmar que ―a identificação dos indivíduos com o papel que representam como atores econômico ou sociocultural é duplamente enganadora, porque põe entre parênteses um elemento óbvio, pois, em qualquer sociedade, a documentação é intrinsecamente distorcida.‖ (GINZBURG, 2007, p. 262). Essa forte presença intelectual e política é característica marcante do moleiro de O queijo e os vermes. No tocante a sua personalidade, Menocchio era um homem que

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postos à pesquisa eram elementos constitutivos da documentação, logo deviam tornar-se parte do relato; assim como as hesitações e os silêncios do protagonista diante das perguntas dos seus perseguidores. (GINZBURG, 2007, p. 265)

Abordando elementos como o cotidiano de comunidades ou a biografia de indivíduos anônimos, os historiadores se dedicam à exploração das fontes por meio de narrativas e da descrição etnográfica que permitiu incluir no trabalho desses pesquisadores um grande número de fontes de pesquisas até então desconsideradas. Uma frase que melhor se encaixa a esta pesquisa poderia ser: ―a realidade é fundamentalmente descontínua e heterogênea‖, pois foi a partir da ―primeira experiência de micro-história com Kracauer que ela se evidenciou‖:

Segundo Kracauer a melhor solução é a seguida por Marc Bloch em Lá Société féodale (a sociedade feudal): um contínuo vaivém entre micro e macro-história, entre close-ups e planos gerais ou grandes planos gerais ( extreme long shots) , por manter continuamente em discussão a visão conjunta do processo histórico, por meio de exceções aparentes e causas de breve período. Essa receita metodológica desembocava numa afirmação de natureza decididamente ontológica, a frase citada acima‖. (GINZBURG, 2007, p. 269)

Assim como defendia Kracauer, Domenico Scandela também acreditava que ―não há uma verdade ou religião absoluta‖, o processo acaba por ser descontínuo e heterogêneo. Esse personagem, apesar de ―ser um homem como nós, era bem diferente de nós‖ (GINZBURG, 200), afinal, seu contexto histórico apresentava um ponto de vista bem diferente dos tempos atuais. O século XVI foi agitado porque a esfera religiosa se via conturbada com a Contrarreforma,^5 a imprensa era acusada de trazer ideias nefastas à população, porém de maneira superficial, ao entender que os camponeses majoritariamente eram analfabetos e o acesso aos livros era limitadíssimo. Os documentos eram raros e poucas pessoas sabiam escrever. A partir de 1200, as cortes reais, os departamentos do governo, os funcionários da Igreja e os administradores de feudos começaram a fazer registros detalhados de suas atividades. Eles tinham muitos escribas treinados para ajudá-los.

(^5) A Contrarreforma foi um movimento em resposta a Reforma Protestante de Martinho Lutero, que em pleno século XVI foi responsável por gerar grandes tensões e conflitos no continente europeu entre católicos e protestantes. Os atos aplicados pela instituição católica ganhavam as indagações do ex-monge e teólogo, que examinou as Escrituras Sagradas e logo promoveu a tradução na qual defendeu, entre outros argumentos, a salvação pela fé. Com a expansão desse movimento religioso, a Igreja Católica promoveu a Contrarreforma, um projeto de evangelização organizado e estruturado para difundir a fé cristã católica com atuação da Companhia de Jesus e o apoio dos países mercantilistas Portugal e Espanha, a fim de recuperar os adeptos à salvação através das obras.

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Nesse contexto, havia algumas exceções, como o moleiro, um homem comum, que em meio a essas mudanças se via, de certa forma, instigado a pensar no seu dia a dia com uma amplitude maior de saberes que não fosse apenas a rotina do campesinato. Com isso, aumentaram os conflitos das pessoas que ousavam disseminar um pensamento diferente e acabavam por entrar em embates com as autoridades, como é o caso de Menocchio perseguido pela inquisição, que, apesar de trabalhar em seus dois moinhos, também sabia ler e escrever. Quando Menocchio leu as Viagens de Mandeville , uma literatura fantástica, não reconheceu esse gênero como uma ficção. Na verdade, ele leu essa literatura como um documento e, para ele, não havia nenhuma fé ou religião absoluta. Com essa cabeça moderna, foi considerado um ecumênico do seu tempo. Devido a sua opinião, acabou por ser denunciado ao Tribunal da Santa Inquisição e, quando foi interrogado, usou um manto de pessoa herética, mas, mesmo assim, sentiu-se orgulhoso por estar pela primeira vez debatendo com pessoas eruditas. Assim, sentindo-se como um filósofo ou profeta, ao falar do mundo, por meio de sua cosmogonia, automaticamente, ele questionou o mundo real, o que, naquele período, era inadmissível. O queijo e os vermes , livro a que se dedica esta dissertação, é um dos trabalhos que trouxe notoriedade a Ginzburg (2007), no que diz respeito à micro-história. O historiador, ao se dedicar à história de Menocchio, adentra o terreno da cultura para analisar os diferentes discursos entre a cultura erudita e a popular, desenvolvendo assim um raciocínio por meio do qual compreende que essas duas culturas não se sobrepõem uma à outra; ao contrário, ele procura argumentar que há uma interação entre a cultura letrada e a cultura não letrada, a partir dos estudos bakhtinianos sobre o conceito de circularidade cultural. Há nesse livro de Ginzburg um utopismo mundano de viés humanista: ―A imagem de uma sociedade mais justa era projetada de maneira consciente num futuro não escatológico. Não o filho do Homem no alto sobre as nuvens, mas homens como Menocchio, os camponeses de Montereale que ele tentara inutilmente convencer, por exemplo, através de sua luta, deveriam ser os mensageiros do ‗mundo novo‘‖ (GINZBURG, 2006, p. 139). Quando esse personagem propõe a leitura de um ―mundo novo‖, é evidente a observação de um processo que ora se constrói, ora se desconstrói. Assim, um dos objetivos desta pesquisa é ler a história desse moleiro a partir do conceito de montagem de Georges Didi-Huberman, para quem a ―montagem se origina