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Um balanço da antropologia da saúde no brasil, abordando sua história, a visibilidade de suas publicações acadêmicas e os desafios atuais do campo. O texto discute como a antropologia da saúde se desenvolveu no brasil, suas contribuições para a antropologia em geral e suas implicações para o diálogo norte-sul.
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Tipologia: Esquemas
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Anuário Antropológico, Brasília, UnB, 2012, v. 37, n. 1: 51-
Esther Jean Langdon Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Maj-Lis Follér University of Gothenburg, Suécia Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
O início da antropologia da saúde contemporânea no Brasil pode ser datado da década de 1970, quando um grupo interinstitucional de Brasília e o Museu Nacional realizaram uma pesquisa sobre as práticas alimentares em vários gru- pos subalternos no país. Desde este data, as pesquisas antropológicas em temas relacionados à saúde vêm crescendo e antropólogos têm participado de eventos organizados no campo de saúde coletiva e em simpósios e grupos de trabalho sobre o tema da saúde e em outros mais gerais da antropologia e das ciências sociais. Porém, os estudos dos processos de saúde e doença de uma perspecti- va antropológica nem sempre têm sido reconhecidos como formadores de um campo específico dentro da antropologia, e os próprios pesquisadores têm se questionado sobre sua identidade (Minayo, 1998). Argumentamos neste artigo que a pesquisa antropológica sobre saúde e do- ença realizada no Brasil tem se multiplicado suficientemente para que se possa identificar a formação de um programa de pesquisa específico no país a partir dos anos 1980. Se comparado à antropologia médica desenvolvida em países do Atlântico Norte, o programa brasileiro de pesquisa mostra tanto uma identida- de profissional própria quanto paradigmas teóricos e analíticos singulares. Este trabalho analisa o surgimento desse programa de pesquisa emergente à luz das discussões recentes sobre as antropologias mundiais (Escobar, 2004; Ribeiro, 2006; Ribeiro & Escobar, 2006). Destacamos os/as antropólogos/as e seus gru- pos mais atuantes no campo da saúde, bem como as publicações representativas desse programa de pesquisa. Incluímos pesquisadores/as associados/as tanto aos programas de pós-gradu- ação em antropologia quanto aos programas de saúde pública ou saúde coletiva. Esta última disciplina prosperou com o retorno das políticas democráticas no
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Brasil nos anos 1980, constituindo-se de forma mais significativa a partir de uma ligação estreita com as reflexões e os debates das ciências sociais e políticas do que propriamente em função das discussões epidemiológicas no âmbito da saúde pública. Por fim, trataremos da visibilidade das publicações de pesquisas brasileiras em saúde para examinar a presença desse programa de pesquisa no discurso mais amplo das antropologias médica e da saúde do Atlântico Norte e nos diálogos norte-sul. Procuraremos mostrar que nem sempre uma quantidade maior de publicações resultantes de pesquisas brasileiras, tanto em termos de artigos quanto de periódicos, significa um impacto e/ou um reconhecimento maior da pesquisa em saúde no campo da antropologia de modo geral e nos es- tudos de antropologia da saúde no plano internacional. De acordo com Arturo Escobar (2005), os participantes de programas de pesquisa que discutem modernidade e colonialismo na América Latina contes- tam as ideias universalizantes das ciências sociais e humanas e procuram intervir na discursividade das ciências modernas, buscando pluralizar e descentralizar a produção de conhecimentos e a construção de novos paradigmas. Esses novos paradigmas são resultantes dos “pensamentos de fronteira” e das “epistemologias de fronteira”, que se distinguem, em certa medida, do discurso hegemônico.^1 A antropologia brasileira – caracterizada por Roberto Cardoso de Oliveira (1999-
Algumas considerações teóricas e conceituais Para analisar a expansão e a consolidação da produção de conhecimentos relacionados à antropologia e à saúde, utilizaremos os seguintes conceitos, de- finidos logo adiante: programa de pesquisa; forças estruturais externas e inter- nas; perfil de interesse; e ethos e valores. Tais conceitos nos permitem identi- ficar tanto a emergência da saúde como um campo de pesquisas antropológicas quanto examinar estruturas de poder, eventos e atores que têm influenciado sua evolução. Além disso, buscamos compreender suas características particu- lares e saber até que ponto os estudos sobre saúde são reconhecidos no Brasil como uma agenda de pesquisa antropológica legítima. Um “programa de pes- quisa”, conforme Escobar, se desenvolve como uma perspectiva emergente e
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projetos de pesquisa, que é feita com base em revisão por pares. Devido ao número limitado destas bolsas, os pesquisadores do CNPq formam uma elite pela visibilidade que alcançam na comunidade acadêmica. Além disso, o CNPq divulga sistematicamente chamadas para financiamento de pesquisas, algumas dirigidas a áreas e a temáticas específicas, outras com temática aberta. Além das forças estruturais, tanto os perfis de interesse dos pesquisadores quanto o ethos e os valores de um determinado meio acadêmico influenciam o desenvolvimento de um programa de pesquisa. As escolhas individuais e coleti- vas afetam paradigmas epistemológicos, temas, teorias e métodos que originam as questões de pesquisa. Um “perfil de interesse” representa a combinação de experiências pessoais e profissionais e também a capacidade do pesquisador de transformar seus in- teresses em ensino, pesquisa e publicações. Os investigadores são reconhecidos e identificados por seus perfis de interesse. Os candidatos à pós-graduação são atraídos pelos departamentos ou por professores cujos interesses correspondem aos seus interesses pessoais de estudo, obviamente sem descartar outros fatores para a escolha de uma institução ou de um orientador. Como em outras univer- sidades, os perfis de interesse dos professores influenciam na seleção dos alunos e, de certa forma, delimitam os tópicos investigados. Como uma característica distintiva que marca qualquer antropologia nacio- nal, o ethos ou estilo, juntamente com os valores, é talvez a mais difícil de ser identificada. Segundo Clifford Geertz (1973), o ethos é a dimensão moral e es- tética da interação coletiva que molda seu estilo, tom ou sua disposição. Joanna Overing (1989, 2003) amplia essa noção enfatizando a estética da vida diária, referindo-se à atenção dada às formas e aos desenhos nas habilidades produtivas e sociais. Seguindo estes autores, reconhecemos que a interação social, o estilo da escrita e a constituição de redes no interior da comunidade científica são afetados não somente pelos fundamentos epistemológicos da prática da ciência, mas também pelo ethos e pelos valores coletivos. No caso do Brasil, mais impor- tante do que o uso da língua portuguesa para marcar a distinção, nos parece que sejam as diferentes estéticas e outras dimensões qualitativas que caracterizam a interpretação e a natureza da produção social, evidenciadas na escrita e na cons- tituição das redes sociais entre pesquisadores, como já apontou Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2008). O ethos, que é parte integrante da produção de outros conhecimentos (Escobar, 2004), pode se perder ou ser mal entendido na tradução das antropologias. A produção do conhecimento envolve uma dimensão coletiva que está além das estruturas. Esta produção – as epistemologias; a criação e a renovação de
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conceitos; o surgimento de novos paradigmas; o papel de pensadores seminais; e a interpenetração de ideias – dá origem ao que Escobar tem chamado de uma “mudança epistemológica de perspectiva”. Ou seja, o surgimento de um progra- ma de pesquisa depende não só das forças estruturais externas e internas que o moldam, mas também do ambiente interno, de ethos e valores, dos contextos histórico-sociais, políticos e econômicos que trazem para o primeiro plano um “pensamento de fronteira” em diálogo tenso com perspectivas eurocêntricas. Portanto, o crescimento de uma antropologia nacional ou programa de pesquisa não depende somente das epistemologias e dos interesses que circulam entre os seus pesquisadores, nem, podemos acrescentar ainda, da quantidade de pesqui- sas e publicações realizadas, mas também da estética da produção científica num sentido abrangente.
Os primeiros estudos antropológicos de saúde no Brasil 2 Apesar de não ter se constituído nem ter sido percebida como campo de pes- quisa na antropologia brasileira durante muitas décadas, a saúde apareceu como tema embutido em discussões sobre folclore, magia, religião e nos estudos de comunidade, entre outros, e em alguns trabalhos esparsos. As diversas revisões que buscam traçar um itinerário desse campo de estudos no Brasil (Canesqui & Queiroz, 1986; Canesqui, 1986, 2003; Nunes, 1987, 1992, e outros) tem es- tabelecido diferentes etapas desses anos iniciais de formação, ligadas a distintas abordagens ou escolas teóricas. Não cabe aqui retraçar de forma detalhada essa trajetória, mas resgatar alguns elementos mais gerais desse período, e reter um elemento importante desses primeiros anos, que é o foco nas práticas populares. Esse foco está presente nas diferentes abordagens marcadas por uma in- fluência evolucionista, como os estudos sobre religião e raça e as interpretações médicas de práticas religiosas populares (Nina Rodrigues, 1897), os estudos de folclore (Cascudo, 1971; Cabral, 1942), que buscavam fazer o inventário das práticas tradicionais, assim como nos primeiros estudos de campo voltados para as medicinas populares, abordando a saúde e as práticas de cura como tradições culturais que tenderiam a desaparecer. Um exemplo tardio desta perspectiva é o capítulo sobre saúde escrito por Charles Wagley no livro Amazon Town ( [1953]), no qual ele oferece uma interpretação evolucionista, descrevendo a me- dicina popular a partir de seus fundamentos na magia e na religião, fadada, por- tanto, a desaparecer com o avanço da medicina moderna. Arthur Ramos (1934), antropólogo e psiquiatra, explorou a questão da loucura e do pensamento primitivo, apoiado na psicanálise, de um lado, e nas nas ideias de Lévy-Brühl sobre mentalidade pré-lógica primitiva, de outro. Ele
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no Brasil, não constituindo até esse momento um campo de estudos ou um pro- grama de pesquisa propriamente dito.
O período de formação: anos 1970 e 1980 O período da transição para a democracia, em final dos anos 1970 até a ra- tificação da nova Constituição Federal brasileira, em 1988, marca uma fase im- portante para os programas de pós-graduação em antropologia e para o começo dos estudos antropológicos sobre saúde no Brasil. Nessa época foram fundados programas de mestrado em antropologia na Universidade de Brasília (UnB) e no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim, os professo- res destas duas universidades definiram a agenda de pesquisa em saúde, delinea- da a partir de conceitos e paradigmas contemporâneos, com poucas referências aos discursos que circulavam na antropologia médica norte-americana. Um dos projetos preliminares mais relevantes no campo da saúde naquele momento abordou o tema dos hábitos alimentares e da ideologia em diversos segmentos da população brasileira, com participação de antropólogos da UnB e do Museu Nacional (Canesqui & Queiroz, 1986). O foco desse projeto foi dire- cionado para as representações culturais e a organização dos hábitos alimenta- res, analisadas primariamente a partir dos paradigmas do estruturalismo francês e da antropologia simbólica com o fim de entender como as forças políticas e econômicas influenciavam as estratégias de subsistência desses grupos. Foram realizados estudos entre camponeses, comunidades de pescadores e trabalhado- res da agricultura e da indústria (Woortmann, 1977). Entre os pesquisadores do grupo da UnB, Martin Ibáñez-Novión era, possivelmente, aquele que mais se identificava com a antropologia médica do Atlântico Norte (Ibáñez-Novión et al., 1978). Ele começou seu doutorado sob a orientação de Steven Polgar, na Inglaterra, e foi o responsável por introduzir leituras de publicações do campo da antropologia médica para os seus alunos, entre as quais os trabalhos de Byron Good, Arthur Kleinman e Alan Young.^6 Ibáñez-Novión ajudou a formar um grupo interdisciplinar interessado na inter- seção entre biologia e antropologia (Ibáñez-Novión & Ott, 1983) e organizou o primeiro Grupo de Trabalho intitulado “Antropologia Médica” para a Reunião da Associação Brasileira de Antropogia (ABA) de 1984. O assunto não apare- ceu novamente nas reuniões da ABA até a década de 1990. A visibilidade de Ibáñez-Novión no programa de pesquisa foi breve. Sem terminar seu doutorado, tornou-se marginalizado no programa de pós-graduação da UnB e, embora esta universidade tenha produzido uma série de dissertações de mestrado relevantes para a análise dos hábitos alimentares, os estudos sobre saúde deixaram de ser uma linha de pesquisa por mais de uma década.
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As atividades de pesquisa sobre este tema desenvolvidas no Museu Nacional tiveram maior continuidade. Ao longo da década de 1970, cresce o interesse pelos aspectos simbólicos do corpo, inspirado pelas obras de Marcel Mauss, Mary Douglas e Victor Turner, bem como de estudiosos norte-americanos como Clifford Geertz (Rodrigues, 1975). Em 1979, os etnólogos do Museu Nacional publicam um artigo seminal em que propõem pensar o corpo como o paradigma central para a compreensão das sociedades e das cosmologias ameríndias (Seeger et al ., 1987). Este artigo marcou profundamente os pri- meiros estudos em saúde indígena. Uma importante linha de trabalho se desenvolveu na década de 1980 no PPGAS do Museu Nacional (UFRJ), dirigida por Gilberto Velho, com foco no tema de indivíduo e sociedade, tendo sido publicados diversos trabalhos volta- dos para o diálogo entre antropologia e psicanálise (Velho & Figueira, 1981; Figueira, 1981, 1985) durante um período identificado como de expansão da psicanálise e de uma “cultura psi” na classe média intelectualizada do Rio de Janeiro (Figueira, 1985; Duarte, 1999-2000). Nas pesquisas realizadas nessa linha de trabalho, no campo das sociedades complexas contemporâneas, foram abordados tópicos como vida urbana, modernização, individualismo e estigma, desvio, cultura da psicanálise, atendimento psiquiátrico em camadas populares, entre outros. O próprio Gilberto Velho escreveu sua tese de doutorado sobre o consumo de “tóxicos” nas classes médias no Rio de Janeiro, com foco mais em questões de individualismo e sociabilidade do que no tema das drogas propria- mente (Velho, 1998). Em relação às pesquisas sobre saúde, a figura que mais se destaca nesse grupo do Museu Nacional é Luiz Fernando Dias Duarte. Sua tese de doutorado, pu- blicada em 1986,^7 é um estudo seminal sobre a “doença dos nervos” e se tornou uma referência clássica para os estudos antropológicos em saúde no Brasil. A pesquisa foca nas noções de perturbação, corpo e pessoa entre segmentos das classes trabalhoras urbanas. É também uma revisão das mais completas sobre os estudos antropológicos brasileiros na área da saúde realizados até a sua pu- blicação.^8 Duarte se vale explicitamente da tradição da sociologia francesa e é um crítico ativo do que considera o “viés biológico” da antropologia médica norte-americana. Em vários artigos (1993, 1997, 1998a, 1998b, 2003) opõe- -se ao que define como “perspectiva empírico-cultural” da antropologia norte- -americana sobre os processos e as experiências corporais. Ele propõe a noção de “perturbação”, que define como uma experiência físico-moral que escapa às racionalidades biomédica e psicológica, enquanto conceito-chave para os estu- dos antropológicos em saúde.^9
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sociais locais relacionados à saúde. Essas resenhas também afirmaram que para- digmas alternativos à abordagem biológica são fundamentais. Compartilhando esta perspectiva, os antropólogos que pesquisaram no campo da saúde indígena e dialogaram com a biomedicina e as políticas públicas argumentaram sobre a importância dos fatores sociais e culturais na produção ritual do corpo, nos pa- drões de doença e na cura (Buchillet, 1991b; Verani & Morgado, 1991).
A consolidação do programa de pesquisa: dos anos 1990 até o presente Há um certo consenso na área de que foi na década de 1990 que o programa de pesquisa em antropologia da saúde adquiriu visibilidade no Brasil.^12 Alguns antropólogos com interesse em saúde retornavam de estudos de doutorado no exterior. Disciplinas de pós-graduação intituladas antropologia da saúde, antro- pologia da doença e antropologia médica são então oferecidas aos estudantes; e as publicações aumentam em número e diversidade. A investigação dos temas associados à saúde cresce, estimulada por financiamentos com recursos nacio- nais e internacionais orientados para as políticas de saúde e a agenda global. Consequentemente, os tópicos estudados nos anos 1990 foram semelhantes aos pesquisados fora do Brasil, tais como gênero; saúde reprodutiva e sexualidade; HIV/AIDS; violência; abuso de drogas e outras substâncias; saúde mental; servi- ços primários de saúde; terapias alternativas; etnia e raça; e ética. Em 1993 realizou-se o primeiro Encontro Nacional em Antropologia Médica, reforçando a consolidação de uma rede de investigadores. A diversidade de temas foi expressiva, tratando de saúde e religião; “saúde mental”, “nervos” e problemas psicossociais; relações dialéticas entre sujeito e objeto no campo das terapêuticas e da própria produção da enfermidade; e questões presentes no campo profissional de produção de agentes e de práticas terapêuticas (Alves & Minayo, 1994:10). A associação de temas de saúde a temas antropológicos clássicos era evidente (Carrara, 1994). Um segundo encontro nunca chegou a acontecer e, ao contrário dos antropólogos norte-americanos e europeus, no Brasil não se estabeleceu uma associação formal específica para os pesquisadores em antropologia da saúde, nem se criou uma revista especializada.^13 No entanto, desde o encontro em 1993, a rede de antropólogos que trabalham nesse campo se multiplicou e sua participação em eventos nacionais intensificou-se. A expansão do programa de pesquisa em antropologia da saúde, ao longo da década de 1990, acompanhou o desenvolvimento de programas de doutorado em todo o país. Essa política educacional foi conduzida a fim de reduzir a depen- dência da Europa e da América do Norte na formação avançada de pesquisadores
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brasileiros. O número de programas de doutorado em antropologia aumentou de três, em 1989, para 12, em 2009. Os antropólogos que trabalham com temas relacionados à saúde estão distribuídos entre esses programas de antropologia, os institutos e os departamentos de pós-graduação em saúde coletiva, ou em or- ganizações governamentais e não governamentais que prestam serviços de saúde à população. A Tabela 1 apresenta os programas de doutorado em antropologia com gru- pos de pesquisa em temas de saúde. Não estão incluídos os grupos listados no diretório de pesquisa do CNPq vinculados a programas que não oferecem dou- torado. Esses dados se concentram nos pesquisadores do CNPq devido à sua visibilidade, mas não excluem outros pesquisadores. Algumas observações se fazem necessárias para uma compreensão do con- texto político interno às universidades e à pós-graduação no Brasil e das conse- quentes disputas de poder, bem como da forte ligação que a antropologia brasi- leira tem com a “antropologia clássica”. O PPGAS do Museu Nacional (UFRJ), um dos dois programas mais bem classificados pela Capes, continua contribuin- do para as pesquisas em saúde, porém, como nas décadas de 1970 e 1980, seus pesquisadores permanecem sem se alinhar com as teorias da antropologia médi- ca ou com as da antropologia da saúde. Luiz Fernando Duarte, um dos principais investigadores do Museu Nacional, vem desenvolvendo uma abordagem teórica orientada para as relações sociais e a “construção da pessoa”, que se reflete nos trabalhos que orienta e nas pesquisas de seus ex-alunos. A consolidação de novos grupos de pesquisa na década de 1990 foi reforça- da por pesquisadores que realizaram estudos de doutorado no exterior e pos- teriormente retornaram às suas respectivas universidades no país, incluindo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade da Bahia (UFBA) e a Universidade de São Carlos (UFSCar). Eles têm se destacado por introduzir paradigmas sociológicos e do Atlântico Norte nos estudos antropoló- gicos sobre saúde, tais como doença – illness , disease e sickness – experiência, nar- rativa, fenomenologia e teorias do corpo (Alves, 1993, 2006; Alves & Rabelo, 1997; Rabelo et al., 1999; Leal, 1995), de um lado, e as discussões sobre antro- pologia da doença e os sentidos sociais da doença, de outro. Grupos de pesquisa da UFRGS, da UFPE e da UFSC têm estabelecido co- operação com organizações governamentais e não governamentais envolvidas em causas sociais e legais, além da colaboração interdisciplinar com as ciências biomédicas e com as psicologias.
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A partir dos anos 1990, os antropólogos formados no Brasil estão cada vez mais se filiando a programas de pós-graduação em medicina preventiva, medici- na social, saúde pública e saúde coletiva. O campo da saúde coletiva, no Brasil, cresceu alimentado pelo movimento da reforma sanitária que acompanhou a transição para a democracia, a favor do estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), nos anos 1980 (Canesqui, 2008; Loyola, 2008; Nunes, 2006). Ele se diferencia da saúde pública, cujo foco teórico é a epidemiologia, e tem ligação com os movimentos políticos de reforma sanitária em toda a América Latina. A saúde coletiva se caracteriza como um campo de pesquisa mais politizado e in- terdisciplinar, que se desenvolveu a partir da década de 1980. As ciências sociais têm feito contribuições importantes a este campo.^14 A Tabela 2 apresenta os programas de doutorado em saúde que têm antro- pólogos em seus quadros. Utilizamos as palavras-chave “antropologia e saúde coletiva” para fazer a busca no diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, e assim identificamos 21 grupos de pesquisa, porém, nem todos são liderados por antropólogos.
Constituição de redes: reuniões, conferências e congressos O campo antropológico brasileiro, além da esfera institucional dos Departamentos e dos Programas de Pós-Graduação, é formado por redes de pesquisadores em torno de temas comuns, projetos ou mesmo encontros sis- temáticos nos congressos da área, além de conferências e eventos pontuais. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) mantém reuniões bianuais e os eventos regionais são realizados em anos alternados, sendo os principais o Encontro dos Antropólogos do Norte e Nordeste (Abanne) e a Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM). Ambos são compostos por participantes de outros países latino-americanos. A RAM é um grande evento regional que se realiza alternadamente em cidades da Argentina, do Uruguai e do Brasil. Em todos esses eventos, o número de sessões dedicadas ao tema da saúde tem au- mentado significativamente ao longo do tempo. Outro fórum acadêmico importante no campo das ciências sociais é a Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), fundada em 1977. Na década de 1980, houve tentativas para incluir neste fórum um grupo intitulado “Saúde e Sociedade”, que seria com- posto por sociólogos, antropólogos e pesquisadores da área de saúde coletiva. A proposta foi rejeitada duas vezes pela Anpocs, com a alegação de que seria um debate mais adequado para a Associação da Saúde Coletiva (Minayo, 1998). O primeiro grupo aprovado na Anpocs para discutir temas de saúde, o simpósio
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“Corpo, Pessoa e Doença”, estava voltado para os debates antropológicos clássi- cos e para a articulação de questões de saúde com a discussão antropológica so- bre corpo e pessoa, e foi coordenado por Luiz Fernando Dias Duarte na década de 1990.
Tabela 2: Programas de Doutorado em Saúde com participação de antropólogos
A Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), fundada em 1979, promove regularmente reuniões sobre saúde coletiva, or- ganizadas junto com o Fórum Latino-Americano e Internacional de Ciências Sociais e Saúde. Estes eventos têm sido decisivos tanto para o crescimento do programa de pesquisa quanto para a formação de uma rede de investigadores
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livros sobre antropologia e saúde (Alves & Minayo, 1994; Santos & Coimbra, 1994). Em 1998, esta editora deu início à coleção Antropologia e Saúde, que já conta com 21 títulos até o momento. Coimbra e seus colegas, que trabalham na saúde indígena, têm editado numerosos artigos e livros pela editora da Fiocruz e, em 2003, lançaram uma coleção sobre saúde dos povos indígenas, com três títulos até o momento. O periódico Ciência e Saúde Coletiva , da Abrasco, tem veiculado debates re- levantes e oportunos sobre a contribuição das ciências sociais para a saúde, em temas variados como violência, AIDS, serviços de saúde, entre outros. Muitos autores que publicam na revista são de outros países latino-americanos e, embo- ra a língua principal seja o português, alguns textos são escritos em espanhol. Tanto a revista Ciência e Saúde Coletiva quanto a Cadernos de Saúde Pública come- çaram, recentemente, a incluir artigos em inglês, com o intuito de favorecer o diálogo com os cientistas da América do Norte e da Europa. O Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) publica a Physis: Revista de Saúde Coletiva desde 1991, que também rece- be um grande número de trabalhos de antropólogos brasileiros e estrangeiros. Artigos sobre antropologia e saúde estão presentes na Revista de Saúde Pública , da Universidade de São Paulo (USP) e na Saúde e Sociedade , uma revista interdisci- plinar publicada conjuntamente pela Faculdade de Saúde Pública da USP e pela Associação Paulista de Saúde Pública. Apesar de não existir no Brasil uma revista de antropologia especializada em estudos de saúde, este tema tem aparecido em números temáticos de alguns pe- riódicos da área. A Horizontes Antropológicos , da UFRGS, lançou três edições espe- ciais sobre sexualidade, saúde e corpo, organizadas por membros do Nupacs (Leal, 1998; Knauth & Víctora, 2002; Victora et al ., 2006). A Revista Ilha , da UFSC, pro- duziu recentemente um número temático sobre religião e cura (Groisman, 2005), com artigos apresentados na Mesa Redonda do encontro da Abrasco de 2005. Outros periódicos publicados por programas de pós-graduação de antropologia, como a prestigiada Mana , do Museu Nacional, a Revista de Antropologia , da USP, o Anuário Antropológico, da UnB, Mediações: Revista de Ciências Sociais , da UEL, e a Tellus , vinculada a um núcleo de pesquisa sobre populações indígenas da UCDB, vêm publicando um número crescente de artigos sobre saúde, e a Vibrant , periódi- co electrônico editado pela ABA, apresenta de forma esparsa artigos baseados em estudos antropológicos sobre saúde.^15 Por um lado, esse crescimento da produção de artigos e de pesquisas sobre antropologia e saúde evidencia a consolidação e a importância desse programa de pesquisa no Brasil, mas uma pergunta a ser feita neste balanço do campo é sobre
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que impacto tem essa produção no plano internacional. Um indicador interes- sante para essa discussão é trazer alguns dados e análises sobre artigos a respeito de saúde que são editados em periódicos nacionais e estrangeiros, sua circulação, indexação e inclusão em bases de dados, distribuição das referências, entre outros.
Visibilidade das revistas brasileiras Para avaliar a visibilidade das pesquisas brasileiras em antropologia da saúde no circuito internacional, utilizamos métodos bibliométricos.^16 A maioria dos bancos de dados é produzida nos EUA e na Europa, e neles as revistas latino- -americanas pouco apareciam até recentemente, o que mudou na última década (Biblioteca Virtual em Saúde, 2008). Em 1997, a Scientific Electronic Library Online – SciELO – lançou um portal brasileiro a fim de melhorar a comunica- ção científica entre países em desenvolvimento do Cone Sul, especialmente da América Latina e do Caribe. O objetivo da SciELO é publicar online periódicos científicos brasileiros que disponibilizem artigos com texto completo e permi- tam acesso livre e universal aos seus conteúdos, para superar o fenômeno carac- terizado por Gibbs (1995) como “ciência perdida”. Para serem incluídas nesta base de dados virtual, as revistas são avaliadas tanto por seu mérito científico quanto pela regularidade e qualidade da produção científica que veiculam. Em março de 2009, o portal brasileiro da SciELO incluiu 193 títulos de to- dos os campos de conhecimento. Atualmente, a rede SciELO é constituída por portais completos para oito países, além de sete novos portais em construção e duas coleções temáticas em saúde pública e ciências sociais. No total, abriga 473 periódicos de 12 países íbero-americanos e um do Caribe (Meneghini, 2007).^17 Ao ser selecionado para publicação na SciELO, um periódico alcança visibilida- de dentro e fora do país. A Tabela 3 informa sobre o acesso aos periódicos mencionados acima que têm publicado artigos relevantes para o programa de pesquisa. Destes, apenas três não estão na SciELO e um, a Revista de Antropologia , da USP, está com a in- dexação interrompida desde 2007. A pressão para publicar se tornou uma grande força interna na academia brasileira ao longo dos últimos 15 anos. A produtividade é central nas avaliações conduzidas pela Capes e pelo CNPq para classificar e hierarquizar os programas de pós-graduação e agraciar pesquisadores. Nos últimos dez anos, as equipes de avaliação que trabalham para essas agências têm se esforçado na construção de escalas para classificar as publicações, o que deve permanecer na pauta de discussão dos avaliadores nos próximos anos. Atualmente, a tendência é de se atribuir melhor classificação para publicações em revistas internacionais.
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alcançam visibilidade internacional, apesar de as revistas da área de saúde públi- ca apresentarem uma visibilidade maior do que aquelas da área de antropologia.
Tabela 4: Revistas Brasileiras Indexadas
Fonte: Ulrich’s Periodicals Directory, Latindex Catálogo, Capes – Qualis 2007
Conforme ilustra a Tabela 4, alguns periódicos da área médica ou de saúde pública aparecem no Sociological Abstracts, o que indica seu perfil interdisci- plinar. Por outro lado, os dois periódicos antropológicos que constam nesses indexadores não estão presentes nos indexadores da área de saúde. Uma das primeiras revistas de antropologia lançadas no Brasil, o Anuário Antropológico da UnB, não aparece em qualquer dessas bases.*^1 A Revista de Antropologia , da USP,
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o mais antigo periódico antropológico brasileiro, fundado em 1953, esteve inde- xado em duas bases, mas sua indexação na SciELO foi interrompida porque não conseguiu manter uma periodicidade regular de publicação. A Figura 1 é uma análise de agrupamentos^18 que utiliza escalonamento multi- dimensional, o qual examina a direção e a distribuição de referências cruzadas em 15 revistas estrangeiras e brasileiras, com base nos dados do Scopus^19 para artigos publicados entre 2000 e 2009. As revistas brasileiras, que aparecem como círculos cinza claro, são as mesmas listadas acima com a cobertura completa no Scopus. As revistas estrangeiras selecionadas, marcadas como círculos cinza escuro, são aquelas que representam a antropologia médica ou da saúde do Atlântico Norte. A espessura das setas direcionais, bem como a proximidade entre elas indicam o número de referências à outra revista em relação ao número total de publicações na revista citada. O tamanho dos pontos aponta o número total de publicações em cada número de revista durante o período. A análise demonstra que as revistas brasileiras tendem a se agrupar separada- mente das revistas estrangeiras, denunciando um intercâmbio limitado entre as nacionais e as outras. As principais revistas brasileiras de saúde pública têm uma interface mais próxima das revistas estrangeiras, porém, em geral, o referencia- mento se restringe aos respectivos agrupamentos. Os periódicos de saúde pública se agregam na porção superior do gráfico e as revistas antropológicas na parte in- ferior do mesmo, revelando uma divisão nas revistas brasileiras entre o agregrado de saúde pública e o da antropologia. As revistas estrangeiras em saúde com ênfase social aparecem mais estreitamente relacionadas com as publicações brasileiras.
Figura 1: Análise de agrupamento das revistas nacionais e internacionais em saúde e antropologia