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Este documento aborda a tutela da posse no direito brasileiro, discutindo conceitos, natureza jurídica, objeto e classificação da posse. Além disso, analisa as ações possessórias, a função social da posse e propriedade, e a publicização da posse. Também é feita uma análise sobre a tutela antecipada na proteção da posse velha e nova, bem como os requisitos para a concessão da liminar e tutela antecipada.
Tipologia: Provas
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Não perca as partes importantes!
Aline Maria da Rocha Lemos^1
SUMÁRIO: 1- Reflexões introdutórias; 2- Algumas considerações sobre a posse; 3- A medida liminar e a proteção da posse nova; 3.1- Momentos procedimentais oportunos para a apreciação do pedido liminar; 3.2 – Embates sociais e a defesa possessória; 4- A tutela antecipada na proteção da posse velha; 5- O uso de tutela específica na proteção possessória; 6- À guisa de conclusão.
1- Reflexões introdutórias:
“Todo este trecho aqui, de uma a outra linha, com suas matas e campinas ricas, com rios caudalosos e seus prados de larga bordadura, te pertencem. De tua prole e de Albânia, como posse perpétua vai ficar. Que diz agora nossa segunda filha, a queridíssima Regane, esposa de Cornualha? (...)”^2
Com efeito, a história Shakespeariana retrata a realidade inconteste das diversas sociedades. A posse é herdada entre clãs familiares^3 , também é ela objeto de disputa irracional entre as pessoas. Na ficção, uma vez na posse das terras, as duas filhas - Goreil e Regane - logo encetam uma série de contatos, a fim de usurpar o reino de Lear, e é neste contexto, de vilanias e traições, que se desenvolve toda a famosa peça de Shakespeare.
(^1) Professora UNIFACS, UNIVERSO e advogada. Graduada em Administração de Empresas e Direito pela UFBA e UnP. Possui Mestrado em Direito Constitucional pela UFRN e especializações em Direito Público e Processo Civil. Foi assessora judiciária do TJRN. Atuou prestando serviços de assessoria jurídica à Procuradoria Geral do Estado do RN. Foi auditora da Price WaterHouse Coopers Auditores Independentes. 2 3 SHAKESPEARE, William.^ Rei Lear , p. 16. No Direito brasileiro, a posse em si mesma não pode ser objeto de alienação e nem é transferida por sucessão. A posse é uma situação de fato. Mas, os direitos decorrentes da posse podem ser alienados ou transferidos via sucessão.
Na realidade, “A arte que imita a vida, que imita a arte que... é a própria vida” e surgem disputas pela posse no meio social. Logo, devido a sua importância de ordem prática, merece que seja tratada de forma precisa pelo ordenamento jurídico, para que os direitos patrimoniais postos em liça sejam efetivamente resolvidos.^4
Revela-se a posse, quando alguém exerce, ou tem o poder de exercer, algum dos poderes correspondentes ao direito de propriedade, como guarda, uso, gozo ou disponibilidade de uma coisa. Mas, encontrar-se na posse não significa, necessariamente ter direito a ela.
A lei dá proteção ao possuidor, mediante institutos processuais, quais sejam, os interditos possessórios, independentemente de prévia comprovação do direito à posse, mas pelo fato de posse fática do bem.^5 Se no decorrer do processo, ou ao seu final, restar comprovado que a ela não se apóia em algum direito subjetivo, seja real (propriedade, servidão, usufruto) ou obrigacional (arrendamento, comodato e outros) cessará a tutela judicial.^6
A posse recebe a tutela estatal, em decorrência do seu caráter socioeconômico potestativo, e ainda, ou melhor, diante da sua função social, econômica e política que desempenha, por si só, em toda sociedade organizada. Permite-se, com a sua proteção, que
(^4) Em âmbito familiar, a posse de imóveis não foge de disputa. Surgem diversas ações envolvendo confronto entre parentes. Neste sentido: “USUCAPIÃO - Incabível a pretensão da herdeira de somar posse da falência tia, se esta deixou outros irmãos que o sucedido José Victor da Silva na linha direta sucessória - posse diversa da portada pela promovente e não-exclusiva, anteriormente à abertura da sucessão - Direitos dominiais e possessórios de de cujus transmitidos, por igual, a todos herdeiros colaterais do mesmo grau e não só ao irmão José Victor - Ação improcedente - Recurso não provido.” (Apelação Cível n. 268.394-1 - Patrocínio Paulista- 3ª Câmara de Férias "B" de Direito Privado - Relator: Alfredo Migliore - 30.07.96 - v.u.). 5 As ações possessórias (interditos possessórios) classificam-se em: reintegração, nos casos de esbulho; manutenção, nas turbações; interdito proibitório, quando a posse resta ameaçada. Convém destacar, que só as ações possessórias reclamam a fungibilidade, ou seja, admite-se uma ação possessória por outra. Nas ações petitórias, a posse é veiculada como causa de pedir, uma vez que a sua tutela ocorre com base no direito de propriedade. Não se discute nestas, exclusivamente, a disputa da posse, e por isso não podem ser entendidas como ações possessórias stricto sensu. São espécies de ação petitória: a imissão na posse e reivindicatória. Nesta, o proprietário requer a posse que já teve e perdeu, naquela é reclamada a que nunca se teve. 6 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 28.
Observa-se que, em muitas situações, a função social da posse não é prestigiada, sendo entendida como desnecessária. Seguindo-se, pois, a nefasta idéia de que o patrimônio deve ser protegido em primeiro lugar.
Dessa feita, Luiz Edson Fachin chama-nos atenção para que os estatutos fundamentais da posse e propriedade saiam do santuário do clássico privado e restem definitivamente constitucionalizados. A “publicização” da posse revela a sua importância ao uso e gozo das coisas pelas pessoas, para a satisfação de suas necessidades vitais. Trata- se de concessão à necessidade, ao lado das exigências da política de implementação da reforma agrária.^10
Assim, o ordenamento oferece institutos antecipatórios a sua proteção. Pode-se pleitear uma medida liminar para reintegração ou manutenção, em faze de uma turbação ou esbulho, quando estas situações ocorrerem no prazo de ano e dia (posse nova). Enquanto que, na posse velha, quando o constrangimento possessório alcançar prazo maior que ano e dia, a liminar antecipatória não é possível, mas há possibilidade de concessão de tutela antecipada, nos moldes do art. 273 do Código de Processo Civil.
Claramente, para se conceder tutelas antecipatórias nas lides possessórias, além dos requisitos processuais mencionados, é necessário verificar o cumprimento de sua função social, para a devida proteção.
2- Algumas considerações sobre a posse
O estudo das tutelas antecipatórias nas possessórias não prescinde de uma abordagem, ainda que sucinta, sobre o instituto da posse, em especial seu conceito, natureza jurídica, objeto e classificação.
(^10) In Leituras Complementares de Direito Civil: o direito civil-constitucional em concreto. FARIAS, Cristiano Chaves de. (Org.). Salvador: Juspodium, 2007, p. 269/275.
Há divergências quanto ser a posse um direito ou uma situação fática. Em sede doutrinária, há duas teorias acerca do conceito de posse: a subjetiva e a objetiva.
Savigny desenvolveu a teoria subjetiva, segundo a qual a posse nasce de dois elementos, quais sejam, o poder físico da pessoa sobre a coisa ( corpus ) e a vontade do possuidor de ter a coisa como sua ( animus ). Ao seu pensar, sem o caráter volitivo ocorre apenas a detenção. Ihering, por sua vez, sustentou a teoria objetiva, que assentava na posse o poder de fato sobre a coisa, diferentemente da propriedade, que é o poder de direito sobre a coisa.^11
Na doutrina pátria, Silvio Rodrigues esclarece que a posse consiste numa relação entre pessoa e coisa, fundada na vontade do possuidor, criando uma mera relação de fato. Já a propriedade, traduz-se numa relação entre pessoa e coisa, que advém da vontade objetiva da lei, implicando um poder jurídico e estabelecendo uma relação de direito.^12
O Código Civil de 2002 conserva a mesma linha de redação dada ao Código de
O atual Código Civil, aliás, considera adquirida a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.204). Permanece também o conceito de detentor no art. 1.198, com a novidade de no seu parágrafo único restar plasmada a presunção relativa da qualidade de detentor.
(^11) SANTOS, Nelton dos. Código de Processo Civil interpretado. MARCATO, Antonio Carlos (Coord). São Paulo, Atlas, 2005, p. 2466. Cf. IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito , trad. João de Vasconcelos, Rio de Janeiro: Forense, 1972. 12 13 Direitos das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 21. Parte da doutrina entende que o atual Código Civil, repetindo a mesma idéia da ordem anterior, não consagrou totalmente a teoria objetiva. Cf. MOREIRA ALVES, Posse - evolução histórica. V.1, p. 336-371. GOMES, Orlando. Direitos reais , p. 24.
É que toda atividade econômica privada, tanto a titularidade dominial, quanto o exercício de direitos patrimoniais, vincula-se aos princípios fundamentais da república, dispostos no Título I da Constituição Federal, que tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho e da livre iniciativa.^17
O art. 1.223, CC, ao contrário do art. 520 do Código antigo, remete que a perda da posse ocorre quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder de fato sobre a coisa. Ao revés do art. 508, do Código de Beviláqua, o atual absteve-se de dispor sobre a disciplina do rito procedimental da tutela da posse, muito embora tenha colocado a possibilidade de ação de esbulho ou de indenização contra terceiro, que recebera a coisa esbulhada consciente dessa circunstância (art. 1.212).
Importante verificar a classificação da posse, pois, a depender de suas características, o tratamento processual para assegura-la será diferenciado.
De acordo com a forma aquisitiva, a posse pode ser justa ou injusta. Quando adquirida de forma violenta, clandestina ou precária será considerada injusta; quando em conformidade com as normas jurídicas, a posse será justa. 18
Pode ser também de boa-fé, quando o possuidor ignora o vício que lhe impede a aquisição, ao contrário sucede a de má-fé.^19 Mas, deve-se considerar também como de má-fé
(^17) TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. O papel do Judiciário na efetivação da função social da propriedade. In Questões Agrárias – julgados comentados e pareceres. STROZAKE, Juvelino José (org). São Paulo: Método, 2002, 91-131. (^18) CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO ORDINÁRIO. FALTA DE PROVA MANSA.REIVINDICATÓRIA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AUSÊNCIA DE POSSE INJUSTA. Improcede a ação de usucapião por falta de prova da posse mansa e pacífica durante o tempo necessário para a prescrição aquisitiva. Pelas peculiaridades da espécie, improcede o pedido reivindicatório uma vez que o possuidor não exerce posse injusta já que por força de contrato de promessa de compra e venda, do qual já pagou parte substancial do preço, não tendo sido previamente rescindido. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ - REsp 241486 / CE ; RECURSO ESPECIAL 1999/0112716-5. Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA. T4 - QUARTA TURMA. DJ 04.02.2002). (^19) EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. IMÓVEL ALIENADO E NÃO TRANSCRITO NO REGISTRO IMOBILIÁRIO. DEFESA DO POSSUIDOR DE BOA-FÉ. SÚMULA 84/STJ. DISCUSSÃO ACERCA DA POSSE. 1. Nos termos da Súmula 84/STJ: "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse, advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido
a posse de quem por erro inescusável, ou ignorância grosseira, desconhece o vício que mina a sua posse.^20
Será, ainda, indireta, no momento em que o seu titular se afasta da detenção da coisa, por sua própria vontade, continuando a exercê-la de forma mediata, após transferir a posse direta a outrem.
O fato de a lei reconhecer a condição de possuidor tanto ao que exerce diretamente a posse, como ao que indiretamente a exerce, constitui enorme vantagem, pois ambos podem fazer uso dos interditos para proteger sua posição ante terceiros. E mais, quando se encontre ameaçado, cada qual pode lançar mão dos remédios possessórios contra o outro.^21
Examinado sobre o critério do tempo, pode ser velha ou nova, conforme o art. 924 do CPC. A posse é considerada velha com duração superior a um ano e dia; às avessas, trata-se de posse nova. Essa distinção concorre para o procedimento a ser adotado para assegurar a sua tutela, uma vez que a posse nova segue o procedimento especial (liminar) e a velha o ordinário.
3- A medida liminar e a proteção da posse nova
Costuma-se confundir o termo liminar com medida de urgência e, às vezes, chega- se a afirmar que a liminar não é mais que uma “medida cautelar”, a exemplo observa-se as liminares em ação direita de inconstitucionalidade, em ação popular, ação civil pública e outras. Mas, na linguagem jurídica, a expressão liminar identifica qualquer medida ou provimento, não apenas cautelar, tomado no início do processo. Em regra, dar-se-á antes da
de registro". 2. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ - REsp 582932 / PR ; RECURSO ESPECIAL 2003/0113243-2. Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI. T1 - PRIMEIRA TURMA DJ 26.10.2006). 20 21 RODRIGUES, op. cit. p. 31 Ibdidem, p. 26.
procedência; e, sendo antecipatório, será necessariamente `satisfativo´ do direito provável do autor.”^26
Todavia, para o seu deferimento é preciso demonstrar os requisitos previstos no CPC, art. 927 e não os previstos no art. 273.
Note-se que o provimento liminar inaudita altera pars, ou em momento posterior da ação possessória, fundada em posse nova, efetivamente difere de outros provimentos liminares: a) na antecipação da tutela exige-se prova inequívoca e convencimento da verossimilhança da alegação, aliada ao fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou ainda que fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu; b) nas demandas cautelares é necessário demonstrar o fumus boni juris e periculum in mora. Mas, estes requisitos não são exigidos para a concessão da liminar possessória.
A suficiência da prova para a concessão de liminar possessória não se confunde com o probabilidade da existência do direito afirmado pelo requerente , uma vez que não guarda natureza cautelar. A cognição se perfaz sobre as evidências que indiquem maior chance de estar havendo ou ter havido violação possessória datada de menos de um ano e dia. Mas, não se trata de prova cabal, completa, e impassível de discussão; é suficiente a prova capaz de trazer ao julgador a firme convicção das alegações formuladas.^27
Assim, a liminar deferida na ação possessória, deve ser fundamentada, enfrentando o magistrado, pontualmente, a prova da posse; a turbação ou esbulho praticado; a data da turbação ou do esbulho; a continuação da posse, embora turbada ou a perda da posse na ação de reintegração. Não há qualquer necessidade de avaliar e utilizar os requisitos da verossimilhança das alegações, fumus boni júris e periculum in mora.^28
(^26) Curso de Processo Civil, V. 3. Porto Alegre: Segio Antonio Fabris, 1993, p. 21. (^27) SANTOS, op. cit., 2483. (^28) MONTENEGRO FILHO. Misael. Ações Possessórias. São Paulo: Atlas, p. 171.
Outra situação interessante, diz respeito ao silêncio normativo do Código Civil, no tocante ao aspecto temporal da posse. Com o advento do atual Código, tem-se discutido sobre a não mais existência da distinção entre posse nova e posse velha, diante da imprevisão normativa da legislação civil. Entretanto, vale ressaltar que o prazo de ano e dia tem previsão expressa no Código de Processo Civil.
Neste caso, o silêncio normativo do Código Civil não tem o condão de revogar a lei processual, pois se trata de regra essencialmente processual.
3.1- Momentos procedimentais oportunos para a apreciação do pedido liminar
A especialidade do procedimento das demandas, ora em análise, torna possível conferir-se a proteção possessória já no seu surgimento, ou no decorrer do processo. Dessa feita, o autor não precisa aguardar o julgamento final para obter a manutenção ou a reintegração de posse.^29
O art. 928 do CPC dispõe expressamente a possibilidade do juiz deferir a medida liminar de reintegração ou manutenção, quando solicitada na inicial, sem ouvir o réu. A primeira fase do procedimento é destinada ao autor, a fim de que ele possa provar unilateralmente os fatos articulados na inicial.^30
Destarte, desde que o autor consiga provar os requisitos para a concessão da medida, o juiz deferirá o pedido, garantindo a posse e postergando o contraditório. Não se
(^29) Procedimento em perfeita sintonia com os princípios constitucionais do acesso a justiça e celeridade. Não se pode olvidar, entretanto, a existência de dois pressupostos, que geralmente são opostos: o da segurança jurídica, que exige um lapso temporal razoável para a maturação dos decisus , e o da efetividade, reclamando que o momento da decisão final não se procrastine mais do que o necessário. Mas, é por meio do equilíbrio destes dois regramentos (segurança/celeridade), que emergirão as melhores condições para a adequada realização da prestação jurisdicional. Cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 66. 30 Vale lembrar que se o réu da possessória for um ente público, a liminar somente pode ser concedida após a oitiva do ente público, conforme art. 928, parágrafo único do CPC.
Em sede jurisprudencial, debate-se se o magistrado tem o poder de revogar de ofício a liminar anteriormente deferida. Para determinada corrente, a liminar só poderia ser modificada em sede recursal. Chega-se também a afirmar que resta impossível o deferimento da liminar em momento futuro, caso tenha sido negada pelo magistrado, após a audiência de justificação.^35
Não me parece este o entendimento mais correto. Cabe ao magistrado determinar a audiência de justificação, como forma de colher elementos que lhe permitam enfrentar o pedido liminar. Mas, por ser superficial e unilateral, a audiência forma apenas cognição sumária, sendo necessário a colheita de provas e a prática de atos, especialmente em audiência de instrução e julgamento. Por isso, não há qualquer razão lógica para se entender impossível o deferimento da liminar, em momento posterior, caso ela tenha sido indeferida anteriormente.^36
3.2 – Embates sociais e a defesa possessória
Tal como na ficção Shakespeariana, os conflitos interpessoais envolvendo questões relacionadas à posse são recorrentes. O Judiciário, a cada dia, tem recebido mais e mais demandas fundamentadas em disputas de terras, de imóveis e tantos outros bens. Disputas que, muitas vezes superam o âmbito patrimonial, para desaguar no exame de direitos fundamentais.
Tais disputas possessórias, não são situações novas na História. Algumas pessoas lutam para conseguir a posse de um simples pedaço de terra, outras para reintegrar ou manter-se em seu pequeno ou grande patrimônio. Há muitos ainda que lutam para
(^35) Processual civil. Ação Possessória. Impossibilidade de concessão de liminar após audiência de justificação prévia quando previamente denegada. Agravo provido. Impossibilidade de se conceder medida possessória ao argumento de fato novo, quando esta resultar indeferida em audiência de justificação prévia. Não pode o juiz discricionariamente conceder a liminar perseguida se denegada no momento processual oportuno. À unanimidade de votos deu-se provimento ao agravo. (AI 71020-7, TJPE- 4a^ Câmara Cível, rel. Des. Jones Figueredo, DOE 10.09.2003). 36 Este pensamento funda-se em corrente minoritária. Neste sentido, MONTENEGRO. Op. cit., p.171.
inexistência destes conflitos, pois, quando desencadeados, a solução pode não ser ideal ou a mais pacífica.
Vejamos, pois, algumas situações advindas da realidade, que estão a necessitar ponderações.
A velha questão das invasões de terra e assentamentos produz grande diversidade de entendimentos. Há quem sustente a pertinência da pressão invasiva e a real necessidade das famílias, pobres e marginalizadas. Outros, asseguram que a movimento poderia ser mais pacífico e menos político. E, ainda, aqueles que asseguram a necessidade de total proteção da propriedade, por ser de suma importância à livre iniciativa, fundamento constitucional, e para as relações econômicas. 37
É situação usual, a concessão de diversas liminares de despejo contra assentamentos. O magistrado profere a decisão, a polícia já está presente para retirar as famílias, que lá já se faziam assentadas (muitas vezes, não só acampadas), pois cultivavam o mandiocal, gado, plantações, buscando viver com a mínima dignidade.
Tendo como cerne à referida problemática, a jurisprudência já se posicionou de formas diversas, a saber:
EMENTA: AGRAVO. REINTEGRACAO DE POSSE. LIMINAR. INAVSAO COLETIVA. NAO E DE SER PROVIDO RECURSO INTERPOSTO POR INVASORES QUE NAO NEGAM A OCUPACAO DA AREA, CONDICIONANDO SUA DESOCUPACAO A PREVIA NEGOCIACAO COM O INCRA, A CONFIRMAR O NITIDO CARTER POLITICO DO ESBULHO, QUE NAO VISA DISCUSSAO ALGUMA SOBRE POSSE OU DIREITO A POSSE. LIMINAR QUE SE MANTEM. AGRAVO IMPROVIDO. VOTO VENCIDO. (08 FLS) (Agravo de Instrumento Nº 70001054097, Décima Oitava
(^37) Neste sentido, é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal: "O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos, notadamente porque a Constituição da República - ao amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5., XXII) - proclama que ninguém será privado de seus bens, sem o devido processo legal (art. 5., LIV)." ADI-MC 2213 / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Rel. Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 04/04/2002. DJ 23-04-2004.
risco - Alegação de função social da propriedade - Desacolhimento - Segurança necessária ao sistema rodoviário - Recurso improvido. (Apelação n. 293.812-5/8-00 - 1ª Câmara de Direito Público - Relator: Renato Nalini - 25.12.05 - M.V. - Voto n. 10.025, voto vencido do Des. Oscarlino Moeller, nº 14.028) USUCAPIÃO - Posse vintenária do autor e seus antecessores impugnada pelo proprietário - Inconvincente a posse vintenária com ânimo de dono anterior á propositura da lide, a ação de usucapião só poderia ser improcedente - Irregularidade formal da sucessão possessória, descontinuidade dessa posse e ausência de sua mansidão, impediram a caracterização da prescrição aquisitiva - Recurso não provido. (Apelação Cível n. 89.972-4 - São Paulo - 3ª Câmara de Direito Privado - Relator: Alfredo Migliore - 28.01.00 - V.U.)
Colhe-se da realidade diversas situações que merecem reflexões profundas do Judiciário, para o deferimento, ou não, de uma medida liminar. Em muitos casos, há uma colisão frenética de princípios constitucionais. Numa via, apontam direitos fundamentais à moradia e dignidade, clamando por políticas públicas, em outra, a propriedade e a posse como direitos patrimoniais basilares de uma sociedade capitalista.
A jurisprudência discrepa nas respostas para os conflitos. Há casos em que se privilegia direitos sociais e a função social, em outros, o patrimônio se afirma pujante.
Mas, em casos envolvendo tantas pessoas marginalizadas, será que a simples análise dos requisitos dispostos no art. 927 do CPC mostra-se suficiente?
Convém assinalar, entretanto, que não me filio às linhas doutrinárias que tentam transformar o Judiciário em órgão revisor de todas as decisões políticas, encarregando-o de traçar políticas públicas, que envolvam a escolha de prioridades a serem atendidas pela receita disponível em detrimento de outras. O Judiciário não é a salvação para se resolver as questões sociais debeladas pelo ineficiente gerenciamento das políticas públicas.
Não se pode alimentar a ilusão de que o Judiciário seja a grande solução para as mazelas sociais de um país. Mostra-se evidente que as possibilidades de atuação do direito sobre a realidade social, no sentido de transformá-la de forma positiva, embora existam e
devam ser exploradas, nunca terão a mesma intensidade das realizadas no plano governamental e político.
Mas, não deixo de perceber que não se deve minimizar os conflitos possessórios a uma simples análise de preenchimento de requisitos processuais. O processo não é apenas análise de pressupostos e requisitos, mas veículo para a correta aplicação do direito material.^38
Por muito tempo, o Direito e o Estado estiveram a serviço daqueles que detêm o poder estatal, funcionando como ferramenta de opressão e de manutenção das estruturas sociais, protegendo apenas a propriedade, independentemente do que ela significa no contexto social.^39
Com acerto, asseveram Dyrceu Cintra Júnior e Urbano Ruiz que: “As ocupações de terra e edifícios públicos, os acampamentos de protesto, a economia informal e a incontrolável violência urbana, por exemplo, revelam relações desprezadas pelas instituições jurídicas e políticas. Capazes de pôr em xeque a pretensa neutralidade da lei, a aparente lógica do ordenamento jurídico e o monismo estatal na produção e distribuição do direito.”^40
(^38) Em sede de liminar possessória, convém destacar o absurdo legal previsto no art. 925 do Código Civil: “Se o réu provar, em qualquer tempo, que o autor provisoriamente mantido ou reintegrado na posse carece de idoneidade financeira para, no caso de decair da ação, responder por perdas e danos, o juiz assinar-lhe-á o prazo de 5 (cinco) dias para requerer caução sob pena de ser depositada a coisa litigiosa.” Trata-se de regra totalmente inconstitucional, uma vez que fere o princípio da igualdade. Como é que um pobre vai prestar a caução? Neste caso, a lei efetivamente prevê a impossibilidade da proteção possessória para o pobre. 39 Já diziam os gregos Trasímaco, Calícles e Clítias: “as leis são fruto do poder arbitrário dos detentores do poder, que as editam em função de seus interesses”. Cf. AGUIAR, Roberto A. R.. O que é Justiça? Uma abordagem dialética. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1999, p. 31). Rousseau, por sua vez, afirmava que “as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm”. De forma mais simples, mas com a mesma pertinência, o poeta cearense Patativa do Assaré, que, certamente não leu Rousseau, nem muito menos Shakespeare, já cantava que “só o rico tem direito a tudo, não há justiça para quem é pobre” (“Cante lá, que eu canto cá”). Cf. O Direito como instrumento de luta. Disponível em: http://georgemlima.blogspot.com/. Acesso em: 23/08.2007. 40 A institucionalização do conflito – princípio constitucional da função social da propriedade – posse- princípio constitucional da dignidade humana. In Questões Agrárias. Julgados comentados e pareces. Strozaque, Juvelino José. (Org.). São Paulo: Método, 2002. p. 85.
infraconstitucional, poderes de intervenção na propriedade privada que tem inobservado sua função social, para retificar o curso social de sua disposição.^42
Em razão disso, é possível que a violação da função social possa ensejar óbice à concessão de tutela possessória.
Ainda que viável para muitos, não se pode esquecer dos direitos fundamentais afirmados pela Constituição, quais sejam, educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, bem como a assistência aos desamparados.^43
A posse é uma extensão dos bens da personalidade. A moradia, por sua vez, é um dos bens que integram o existir e o convívio das pessoas. O papel da função social em relação à moradia é o de conceder um espaço de vida e liberdade para todo ser humano.^44
Sendo assim, não se pode mensurar a posse por critérios essencialmente econômicos. Enquanto que o direito à moradia filia-se entre os direitos sociais, a garantia à propriedade é um direito individual que deverá ceder quando o seu titular não promover a sua função social, a ponto de retirar a sua legitimidade e permitir que famílias promovam-na mediante moradia.^45
Sobreleva apontar a orientação do professor Vladimir França no tocante a função social da propriedade. Aplica-se, também, tal orientação para a posse, uma vez que ela tem condão real ou obrigacional com nítida linhagem no bem-estar social exigido pela Constituição. Vejamos:
(^42) FRANÇA, Vladimir da Rocha. Instituição da Propriedade e sua Função Social. In: Revista da Escola Superior de Magistratura do Estado de Pernambuco. Vol. 2. Nº 6. Recife: ESMAPE, outubro/dezembro de 1997(b). p. 481/482. 43 É comum ler a Constituição sem conseguir perceber qualquer sintonia com o mundo real, pela acentuada dissonância entre a beleza das palavras escritas e a lamentável realidade brasileira. Porém, para que a Constituição ganhe vida e faça parte do dia a dia dos cidadãos, é preciso que exista um espontâneo “patriotismo constitucional”, de modo que a população tenha estima e respeito pelos valores consagrados constitucionalmente, independentemente de qualquer ideologia partidária. Acreditar nesta possibilidade não é mera utopia. Cf. GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 96. 44 45 FARIAS; ROSENVALD, op. cit. p.51. Idem.
"defendemos a existência da propriedade privada pois acreditamos na livre iniciativa. Mas o direito de propriedade não pode servir como um instrumento de marginalização da esmagadora maioria do povo brasileiro. A atual sistemática da propriedade, embora a função social esteja prevista expressamente na Carta Magna como elemento fundamental da propriedade e da ordem econômica, induz necessariamente a instabilidade institucional e social brasileira, ameaçando não só a subsistência dos trabalhadores excluídos da sociedade, mas também, da própria propriedade privada. Não é preciso suprimi-la, pois ainda constitui o melhor instrumento para a produção de riqueza: faz-se indispensável à sociedade brasileira reconhecer a função social da propriedade como um princípio essencial à própria existência da propriedade, bem como da Ordem Econômica, em outras palavras, concretizar o bem-estar social exigido pela Constituição Federal para preservar sua própria estabilidade.”
Diante disso, não há dúvida que não são todas as situações que o social sopeia o individual. Se assim fosse, os prejuízos ao setor privado seriam acentuados e surpreendentes, desestimulando inclusive investimentos na economia brasileira e ferindo o Estado Democrático de Direito.
Note-se que reconhecer a licitude da função social da posse não é comprometer a ordem jurídica ou econômica, mas sim assegurá-las. A análise de liminares possessórias deve ter por base os requisitos do art. 927 do CPC, lembrando-se, outrossim, da função social da posse.
Até porque o capital financeiro permite que o Estado atue e intervenha cada vez mais na propriedade imobiliária. Contudo, em relação às propriedades que mais produzem riqueza, o princípio da função social mostra-se ainda tímido. Este modelo de enriquecimento e acumulação de capital é tão negativo quanto uma propriedade rural que não produz ou uma propriedade urbana que não serve de abrigo. Isto porque verdadeiras fortunas circulam no mercado financeiro com o único intuito de especular, sem que os governos adotem medidas restritivas no sentido de coibir tal prática.^46
(^46) CARVALHO, Eusébio. In Leituras Complementares de Direito Civil: o direito civil-constitucional em concreto. Farias, Cristiano Chaves de. (Org.). Salvador: Juspodium, 2007, p. 274/292.