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Guias e Dicas
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TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo, Transcrições de Urbanismo

Sumário 1. Introdução 7 2. Medo na criança em crescimento 19 3. A criança como natureza em formação 41 4. Sociedades "sem medo" 57 5. Medo da natureza: grandes caçadores e fazendeiros pioneiros 73 6. Calamidades naturais e fome 91 7. Medo no mundo medieval 117 8. Medo de doença 139 9. Medo de natureza humana: bruxas 167 10. Medo de natureza humana: fantasmas 179 11. Violência e medo no campo 207 12. Medo na cidade 231 13. Humilhação pública e execução 279 14. Exílio e reclusão 297 15. O círculo aberto 3 21 16. Medos: passados e presentes 333 índice remissivo 347

Tipologia: Transcrições

2025

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TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP,
2005. [1979]
Sumário
1. Introdução 7
2. Medo na criança em crescimento 19
3. A criança como natureza em formação 41
4. Sociedades "sem medo" 57
5. Medo da natureza: grandes caçadores e fazendeiros pioneiros 73
6. Calamidades naturais e fome 91
7. Medo no mundo medieval 117
8. Medo de doença 139
9. Medo de natureza humana: bruxas 167
10. Medo de natureza humana: fantasmas 179
11. Violência e medo no campo 207
12. Medo na cidade 231
13. Humilhação pública e execução 279
14. Exílio e reclusão 297
15. O círculo aberto 3 21
16. Medos: passados e presentes 333 índice remissivo 347
***
1. Introdução
[7] Paisagens do medo? Se pararmos para refletir quais são elas, certamente
inúmeras imagens acudirão ê nossa mente: medo do escuro e a sensação de abandono
quando criança; ansiedade em lugares desconhecidos ou em reuniões sociais; pavor dos
mortos e do sobrenatural; medo das doenças, guerras e catástrofes naturais; desconforto
ao ver hospitais e prisões; medo de assaltantes em ruas desertas e em certos bairros;
ansiedade diante da possibilidade de rompimento da ordem mundial.
Os medos são experimentados por indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos;
alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador, outros
não. Certos tipos de medo perseguem as crianças, outros aparecem apenas na adolescência
e na maturidade. Alguns medos oprimem povos "primitivos" que vivem em ambientes
hostis, outros aparecem nas complexas sociedades tecnológicas que dispõem de amplos
poderes sobre a natureza. [8]
Em todos os estudos sobre o indivíduo e sobre a sociedade humana, o medo é um
tema esteja implícito, como nas histórias de coragem e sucesso, ou explícito, como nos
trabalhos sobre fobias e conflitos humanos. Porém, ninguém (que se saiba) tem procurado
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TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP,

  1. [1979]

Sumário

  1. Introdução 7
  2. Medo na criança em crescimento 19
  3. A criança como natureza em formação 41
  4. Sociedades "sem medo" 57
  5. Medo da natureza: grandes caçadores e fazendeiros pioneiros 73
  6. Calamidades naturais e fome 91
  7. Medo no mundo medieval 117
  8. Medo de doença 139
  9. Medo de natureza humana: bruxas 167
  10. Medo de natureza humana: fantasmas 179
  11. Violência e medo no campo 207
  12. Medo na cidade 231
  13. Humilhação pública e execução 279
  14. Exílio e reclusão 297
  15. O círculo aberto 3 21
  16. Medos: passados e presentes 333 índice remissivo 347

  1. Introdução

[7] Paisagens do medo? Se pararmos para refletir quais são elas, certamente inúmeras imagens acudirão ê nossa mente: medo do escuro e a sensação de abandono quando criança; ansiedade em lugares desconhecidos ou em reuniões sociais; pavor dos mortos e do sobrenatural; medo das doenças, guerras e catástrofes naturais; desconforto ao ver hospitais e prisões; medo de assaltantes em ruas desertas e em certos bairros; ansiedade diante da possibilidade de rompimento da ordem mundial. Os medos são experimentados por indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos; alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador, outros não. Certos tipos de medo perseguem as crianças, outros aparecem apenas na adolescência e na maturidade. Alguns medos oprimem povos "primitivos" que vivem em ambientes hostis, outros aparecem nas complexas sociedades tecnológicas que dispõem de amplos poderes sobre a natureza. [8] Em todos os estudos sobre o indivíduo e sobre a sociedade humana, o medo é um tema – esteja implícito, como nas histórias de coragem e sucesso, ou explícito, como nos trabalhos sobre fobias e conflitos humanos. Porém, ninguém (que se saiba) tem procurado

abordar o tema "Paisagens do medo" como um tópico digno de ser sistematicamente explorado por si mesmo e pelos esclarecimentos que possa trazer sobre as questões de interesse permanente: que significa ser gente? Como é viver neste mundo? Aqui, tentaremos explorar essas questões, procurando em particular traçar laços e ressonâncias entre as diferentes paisagens do medo. Sem dúvida, não são apenas os seres humanos que sentem medo. Todos os animais superiores conhecem-no como uma emoção que indica perigo e é necessária para a sobrevivência. A tendência é suprimir esse fato de nossa consciência, talvez por necessitarmos preservar a "natureza" como uma área de inocência na qual possamos nos refugiar quando estivermos descontentes com as pessoas. Para nós, flores e seixos numa praia são imagens de tranquilidade. Certos animais, como uma gata amamentando seus filhotes ou uma vaca pastando em um campo, são quadros de placidez maternal. A placidez no mundo não humano é, entretanto, ilusória. Um animal pode sentir-se seguro em seu abrigo, no centro de seu território; mas, devido ao poder extraordinário de seus sentidos (olfato, audição, visão), tem consciência de um espaço muito maior que representa tanto tentações como ameaças. Poucas imagens do medo são tão vividas como as de um coelho que acaba de sair de sua toca e enfrenta o campo aberto: suas orelhas ficam em pé e seu corpo treme enquanto observa. Para salvar sua vida está pronto para correr ao menor sinal de perigo. A frequência e a intensidade do medo variam muito entre as espécies. Comparado com o aflito coelho, o leão, ao inspecionar seu território na imensidão da savana, parece não sentir medo de nada. Certamente, os animais que são presas de outros têm [9] mais razão de se sentir nervosos e alertas do que aqueles que caçam. Os herbívoros têm muitos inimigos poderosos, dos quais devem fugir para sobreviver. A evolução tem dotado os herbívoros de visão lateral, colocando-os em vantagem por terem uma visão panorâmica. O coelho, indefeso e eternamente vigilante, na verdade pode ter uma superposição binocular na região posterior da cabeça, assim como na região frontal: "ninguém pode enganar um coelho".^1 Os leões, como outros predadores, têm olhos frontais. Seu trabalho é caçar e matar; eles não temem ser atacados pelas costas. Porém, todos os animais precisam, periodicamente, relaxar a guarda. Quem dorme sossegado? Nós gostaríamos de dizer "aqueles que têm a consciência limpa", mas a melhor resposta é "aqueles que podem se dar ao luxo de não sentir medo". Assim, predadores como os felinos dormem sossegados, ao passo que as espécies favoritas dos predadores, como os coelhos, quase não podem cochilar. Um refúgio seguro também é importante. Os morcegos, nas cavernas abrigadas, dormem melhor do que os carneiros em campo aberto.^2 Os indivíduos dentro de uma mesma espécie podem muito bem sentir medos diferentes. Entre os homens – uma espécie altamente polimorfa – alguns são naturalmente tímidos, enquanto outros são naturalmente ousados. Identificamos variações

(^1) GIBSON, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. Boston: Houghton Mifflin Co., 1966. p.174. (^2) ALLISON, T, CICCHETTI, D. V. Sleep in Mammals: Ecological and Constitutional Correlates. Science, v.194,

n.4266, p.732, 12 nov. 1976.

experimentar o macabro e o misterioso? A consciência do mal sobrenatural, exclusividade da espécie humana, permite que uma pessoa veja e viva em mundos fantasmagóricos com bruxas, fantasmas e monstros; essas figuras representam um tipo de medo desconhecido pelos outros animais. O medo da traição de um parente ou amigo é muito diferente do medo de um inimigo que não pertence ao círculo familiar. A imaginação aumenta imensuravelmente os tipos e a intensidade de medo no mundo dos homens. Assim, nossas mentes férteis são uma abençoada mistura. Conhecer é arriscar-se a sentir mais medo. Quanto menos se sabe, menos se teme. O cardeal Newman diz em seu popular hino "conduza-nos, Bondosa Luz", pedindo para não ver "as cenas distantes". "Um passo é suficiente para mim", ele escreveu. Se tivermos menos imaginação nos sentiremos mais seguros. O filósofo estoico Epiteto disse a um companheiro de viagem: "você tem medo desta tempestade como se tivesse de engolir [12] todo o oceano; mas, meu caro senhor, somente seria preciso um litro de água para afogá-lo". O terror metafísico, próprio do ser humano, não pode ser mitigado em nenhuma parte deste mundo. Somente Deus pode aliviá-lo. "Rocha Eterna, sustentai-me; deixai-me em Vós me refugiar". E uma prece desesperada.^5 O medo existe na mente, mas, exceto nos casos patológicos, tem origem em circunstâncias externas que são realmente ameaçadoras. "Paisagem", como o termo tem sido usado desde o século XVII, é uma construção da mente, assim como uma entidade física mensurável. "Paisagens do medo" diz respeito tanto aos estados psicológicos como ao meio ambiente real. O que são paisagens do medo? São as quase infinitas manifestações das forças do caos, naturais e humanas. Sendo as forças que produzem caos onipresentes, as tentativas humanas para controlá-las são também onipresentes. De certa forma, toda construção humana – mental ou material – é um componente na paisagem do medo, porque existe para controlar o caos. Consequentemente os contos de fadas infantis, bem como as lendas dos adultos, os mitos cosmológicos e certamente os sistemas filosóficos são refúgios construídos pela mente nos quais os homens podem descansar, pelo menos temporariamente, do assédio de experiências novas e da dúvida. Além disso, as paisagens materiais de casas, campos de cultivo e cidades controlam o caos. Cada moradia é uma fortaleza construída para defender seus ocupantes humanos dos elementos; é uma lembrança constante da vulnerabilidade humana. Todo campo de cultivo é arrebatado da natureza, que procurará destruí-lo se não houver um incessante esforço humano. De modo geral, todas as fronteiras construídas pelo homem na superfície terrestre - cerca viva no jardim, muralha na cidade, ou proteção do radar - são uma tentativa de manter controladas as forças hostis. [13] As fronteiras estão em todos os lugares porque as ameaças estão em toda parte: o cachorro do vizinho, as crianças com sapatos enlameados, estranhos, loucos, exércitos estrangeiros, doenças, lobos, vento, chuva. Certamente, a paisagem de uma fazenda e campos cultivados não provocam diretamente medo. Ao contrário, são um quadro de paz. A fazenda, dizemos, é um refúgio,

(^5) RUSSELL, B. Power: A New Social Analysis. London: George Allen & Unwin, 1963. p.14.

mas o refúgio implica ameaça: uma ideia leva ê outra. Pense agora nas forças hostis. Algumas delas, como a doença e a seca, não podem ser percebidas diretamente a olho nu. A paisagem de doença é uma paisagem das consequências terríveis da doença: membros deformados, cadáveres, hospitais e cemitérios cheios e os incansáveis esforços das autoridades para combater uma epidemia; no passado, esses esforços incluíam cordões sanitários armados, encarceramento obrigatório dos suspeitos de estar doentes e fogueiras mantidas acesas dia e noite nas ruas. A seca é a ausência de chuva, também um fenômeno invisível, exceto indiretamente pela devastação que produz: safra murcha, animais mortos e moribundos, pessoas mortas, desnutridas e em estado de pânico. Por outro lado, outras forças hostis assumem uma forma nitidamente visível e tangível: por exemplo, uma tempestade de neve, uma inundação destruidora ou um incêndio e uma multidão enfurecida. Para os europeus de épocas anteriores e para os povos com outras tradições, as montanhas e as florestas eram paisagens do medo. Ao contrário das nevascas e inundações, que podem ser imaginadas como perseguidoras de suas vítimas, as montanhas e florestas agridem apenas aqueles que transgridem seus domínios. Porém, uma montanha também pode parecer um poder ativo: devido ê sua presença dominante e nefasta, era capaz de induzir medo nos habitantes dos vales subjacentes. Existem muitos tipos diferentes de paisagens do medo. Entretanto, as diferenças entre elas tendem a desaparecer na experiência de uma vítima, porque uma ameaça medonha, independente de sua forma, normalmente produz duas sensações [14] poderosas. Uma é o medo de um colapso iminente de seu mundo e a aproximação da morte

  • a rendição final da integridade ao caos. A outra é uma sensação de que a desgraça é personificada, a sensação de que a força hostil, qualquer que seja sua manifestação específica, possui vontade. Antes que as modernas ideias científicas fossem conhecidas, as pessoas, ao que parece, em quase todas as partes, viam as forças da natureza como seres animados, como deidades e demônios, bons e maus espíritos. Ainda hoje, quando uma tempestade de neve frustra nossos planos de longa data, custa-nos considerá-la como um simples evento meteorológico (com uma probabilidade de ocorrência que os estatísticos podem especificar) e não como, ainda que de maneira fugaz, um evento propositalmente perverso. Esse costume profundamente enraizado de antropomorfizar a natureza se origina em nosso antigo e profundo envolvimento com os seres humanos. O primeiro e aconchegante meio ambiente que toda criança explora é o corpo de sua mãe biológica ou adotiva. Os primeiros objetos estáveis, na consciência nascente de uma criança, são as outras pessoas e, sem os objetos, não pode surgir o sentido de mundo humano. Assim, desde as primeiras experiências, reconhecemos nossa total dependência de alimentação e de um conceito de realidade em outros seres humanos. As pessoas são nossa maior fonte de segurança, mas também a causa mais comum de nosso medo. Elas podem ser indiferentes às nossas necessidades, trair nossa confiança ou procurar diligentemente nos fazer mal. São fantasmas, bruxas, assassinos, ladrões, assaltantes, estranhos e agourentos, que assombram nossas paisagens, transformando o campo, as ruas das cidades, o pátio de

maior ameaça, aquela que se destaca em uma cidade, são as outras pessoas. A malignidade permanece como um atributo humano, não mais atribuído ê natureza. Certos bairros são evitados por serem povoados por criminosos e bandos de adolescentes. Essas turbas se movem e destroem com a impessoalidade do fogo; elas são "insensatas", apesar de integradas por indivíduos com mentes e juízos – cada um com intenção de produzir o caos. Embora os seres humanos criem ordem e sociedade ao agir cooperativamente, o simples fato de juntar-se em um mesmo lugar produz uma situação que pode resultar em violência. Para os governantes e governos, a multidão é potencialmente perigosa; como as forças da natureza, ela precisa ser controlada. No passado, as autoridades procuravam subjugar a multidão, encorajando deliberadamente uma atmosfera de medo, utilizando a máquina da lei e da justiça. Os pelourinhos e cadafalsos eram colocados em lugares públicos; as execuções eram dramatizadas e se estabelecia uma paisagem de punição bem visível. [17] Da maneira que estamos focalizando o medo, inevitavelmente damos a impressão de que os seres humanos habitam a Terra de forma precária e estão quase sempre amedrontados. Esta é, por certo, uma distorção. A sonolência habitual e o ter de enfrentar a vida do dia a dia, em lugar de se assustar e desesperar, são próprios do ser humano. Mesmo quando uma sociedade parece cercada por medos supersticiosos, não podemos deduzir que as pessoas, individualmente, vivam a maior parte do tempo amedrontadas. As superstições são as regras pelas quais um grupo humano tenta criar a ilusão da previsão em um meio ambiente incerto. As regras são efetivas no controle da ansiedade; e as inúmeras regras deixam de pesar na consciência uma vez transformadas em hábito. Mesmo quando a situação real é horrível e ameaçadora, as pessoas com o tempo se adaptam e a ignoram. Além disso, há um traço perverso na natureza humana que aprecia a crueldade e o grotesco se não lhe oferecem um perigo imediato. O povo afluía às execuções públicas e fazia piquenique à sombra do patíbulo. A vida durante os séculos XIV a XVI oferecia uma profusão de espetáculos de sofrimento e dor. No entanto, como se esses espetáculos medonhos não fossem suficientes, o teatro popular francês da época gostava de incluir torturas e execuções, que podiam ser mais demoradas no palco do que na vida real.^6 É um erro pensar que os seres humanos sempre procuram estabilidade e ordem. Qualquer um que tenha experiência sabe que a ordem é transitória. Completamente separada dos acidentes cotidianos e do peso das forças externas, sobre as quais uma pessoa tem pouco controle, a própria vida é crescimento e deterioração: é mudança, senão não é vida. Porque a mudança ocorre e é inevitável nos tornarmos ansiosos. A ansiedade nos leva a procurar segurança, ou, ao contrário, aventura, – ou seja, nos [18] tornamos curiosos. O estudo do medo, por conseguinte, não está limitado ao estudo do retraimento e entrincheiramento; pelo menos implicitamente, ele também procura compreender o crescimento, a coragem e a aventura.

(^6) COHEN, G. Histoire de Ia mise en scÅne dans le théâtre religieux français du Moyen σge. Paris: Honoré Champion, 1906. p.148-52.

2. Medo na criança em crescimento

[19] A criança vive em um mundo mágico de inocência e alegria, um jardim protegido do qual os adultos foram expulsos e pelo que se lamentam sempre. Vladimir Nabokov parece acreditar em tal mundo. Ele confessa uma excessiva predileção por suas primeiras lembranças, mas manifesta que tem "motivos para estar grato por elas. Elas mostraram-lhe o caminho para um autêntico éden, com sensações visuais e táteis".^7 Sem dúvida há pessoas afortunadas, cuja infância, como a de Nabokov, foi vivida dentro de bolhas de luz e calor. Para a maior parte da humanidade é pouco provável que isso tenha acontecido. A alegria pura das crianças é uma profissão de fé da era romântica, e nós, que somos seus herdeiros, mostramos uma tendência natural de reprimir o sofrimento e lembrar a alegria quando remexemos no depósito da memória. Olhe casualmente a criança no berço, [20] e "o sono da inocência" vem à mente. Porém, uma observação mais cuidadosa revela pequenos movimentos do rosto e das mãos sugerindo sonhos perturbadores. Terrores noturnos causam aflição nas crianças entre um e dois anos de idade. A criança acorda tremendo e completamente molhada de suor. Qual é a causa do terror? O que ela viu? O interesse pela infância como uma etapa ímpar e singularmente importante no crescimento humano é uma preocupação característica da cultura ocidental, com raízes que não vão além do século XVII. Muito comum no ocidente e em outras partes do mundo tem sido a visão de que a criança é um adulto pequeno e imperfeito. Por exemplo, a cerimônia de iniciação à puberdade, como é praticada por muitos povos, expressa a crença em um segundo nascimento: marca o tempo em que o adolescente renuncia ao seu passado imaturo e assume a dignidade completa de um adulto. Independentemente de quanta afeição os pais sintam por seus filhos, a infância é percebida como um estado um tanto desajeitado e felizmente passageiro. Por que, então, lhe dedicar atenção? Tendo em vista que essa atitude é comum entre os povos não influenciados pelos valores ocidentais, não surpreende que seu estudo tenha sido negligenciado. O que sabemos dos medos infantis procedem em muito da observação de crianças europeias. Seus medos, especialmente no primeiro ano de vida, podem muito bem ser compartilhados pelas crianças de outras tradições culturais. Se for o caso, isso será tratado mais adiante. Ao contrário de muitos primatas, a criança pequena não pode se agarrar em sua mãe. A mãe humana tem que manter um contato estreito com seu filho. Porém, esta incapacidade biológica de agarrar-se sugere que a criança pequena está adaptada para tolerar períodos curtos de separação.^8 Nos primeiros [21] meses de vida pode ficar só por um curto espaço de tempo sem mostrar sinais de alarme ou ansiedade. Se alguém pode dizer que já desfrutou alguma vez na vida, sem saber, de alegria e colagem, isso aconteceu no início de sua vida. Naturalmente, acontecimentos incomuns sempre podem produzir medo. Assim como muitos outros animais, a criança mostra aflição quando defronta com ruído inesperado, falta de apoio, sacudidas, objetos que se expandem ou avançam rapidamente e

(^7) NABOKOV, V. Speak Memory: An Autobiography Revisited. New York: G. R Putnam's Sons, 1966. p.24. (^8) BOWLBY, J. Attachment and Loss, Attachment. New York: Basic Books, 1969. v.1, p.199.

altas. Em algumas esse medo parece ser espontâneo e não aprendido (natural). Essa aflição pode ser causada, é [23] verdade, pelo movimento das ondas e pelo barulho que elas fazem ao quebrar. Ainda assim, outras crianças de apenas dois ou três anos parecem não sentir nenhum medo do mar ou de entrar na água. Não existe nenhuma evidência concreta de que grandes massas de água causem tal preocupação.^12 Muitos medos específicos são, é claro, aprendidos e diferem de cultura para cultura. Se nos concentrarmos na inclinação natural, que outras características gerais do ambiente natural são mais prováveis de ativar o senso de perigo de uma criança? Podemos citar com segurança apenas os animais e a escuridão. Vamos considerar os animais. Durante os primeiros 18 meses de vida, poucas crianças têm medo de animais, mas, daí em diante, o medo deles se torna cada vez mais aparente até os cinco anos de idade. O que existe no animal que dispara o temor? resposta não é simples. Movimentos bruscos são uma causa; crianças pequenas olham o sapo com suspeita porque ele pode pular inesperadamente.^13 Animais grandes e peludos, em razão de seus tamanhos e formas estranhas, produzem sinais de alarde. Um pequeno incidente, como tropeçar na coleira de um cachorro, pode mudar a atitude de uma criança em relação à espécie canina da cautela para o medo agudo. As crianças aprendem rapidamente a ter medo de animais por meio de sua capacidade de dedução. Elas são levadas ao zoológico, onde parecem se divertir. Percebem, no entanto, que os animais no zoológico estão enjaulados: a dedução é que animais são perigosos. Por que, então, os cachorros na vizinhança estão correndo soltos? O medo de certos tipos de animais é difícil de entender racionalmente. Um caso marcante é a aversão generalizada das pessoas por cobras. Esta aversão é inata ou aprendida? Talvez se possa encontrar uma resposta estudando nossos parentes mais [24] próximos, os grandes macacos. Já em 1835, testes feitos no zoológico de Londres revelaram que um chimpanzé jovem ficou apavorado quando percebeu de relance uma cobra. Em 1868, J. van Lawick-Goodall observou que os chimpanzés selvagens manifestavam medo tanto de uma cobra movimentando-se rapidamente quanto de um píton agonizante.^14 Outros etólogos têm observado uma tendência acentuada em macacos e monos do Velho Mundo de se alarmarem com os répteis. Esse comportamento é aprendido e duradouro, mesmo sem que haja experiências repetidas. Contudo, há exceções: sabe-se que alguns chimpanzés criados em cativeiro não demonstram esse medo. Pode ser, como Ramona e Desmond Morris afirmam, que "o sentimento geral e inespecífico de medo tem que ser despertado nos curtos primeiros meses de vida do macaco, para que medos definidos, específicos se desenvolvam de um modo normal".^15 Crianças menores de dois anos de idade podem olhar cobras sem sentir medo, mesmo quando se arrastam, cruzando o solo em sua direção. Elas se tornam apreensivas à

(^12) JERSILD, A. T, HOLMES, F. B. Children's Fears. New York: Bureau of Publications, Teachers College, Columbia University, 1935. p.87. 13

14 JONES, H. E., JONES, M. C. Fear.^ Childhood Education , v.5, p.137-38, 1928. LAWICK-GOODALL, J. The Behaviour of Free-Living Chimpanzees in the Gombe Stream Reserve. In:___. Animal Behaviour Monographs. London: Bailliere, Tindall & Cassell, 1968. v.1, p.173, 175-6. (^15) MORRIS, R., MORRIS, D. Men and Snakes. New York: McGraw-Hill Book Co., 1965. p. 211.

medida que vão crescendo. O medo das cobras se manifesta intensamente aos quatro anos de idade e aumenta aos seis. Depois disso observa-se um pequeno declínio, mas permanece forte durante toda a idade adulta. Em um levantamento feito pela televisão, pediram a 11.960 crianças inglesas (de quatro a 14 anos) para fazer uma lista dos animais de que menos gostavam: as cobras ocuparam facilmente o primeiro lugar, seguidas por aranhas e, depois, animais grandes, realmente perigosos, como o leão e o tigre.^16 Ao passo que feras peludas, de sangue quente, ainda que ferozes, facilmente passam a ser admiradas e atraentes nas lendas e [25] histórias de crianças, répteis e anfíbios resistem à glamorização. As pessoas os evitam, não tanto porque podem ser venenosos, mas que têm aspecto repulsivo e maldoso – realmente não parecem membros do reino animal. O preconceito contra as criaturas sem pelo, de sangue frio, que se locomovem sobre a terra, é profundo. Até Lineu escreveu muito desfavoravelmente sobre o que chamou de anfíbios, um termo que inclui um maior número de animais dos que atualmente são classificados como tais.

Estes animais detestáveis e repugnantes caracterizam-se por ter um coração com um só ventrículo e uma só aurícula, pulmões incertos e pênis duplo. A maioria dos anfíbios é detestável, devido ao seu corpo frio, cor pálida, esqueleto cartilaginoso, pele imunda, aspecto feroz, olhos calculadores, cheiro ofensivo, voz gutural, moradia esquálida e veneno terrível, por isso seu Criador não exerceu seus poderes para fazer muitos deles.^17

O medo do escuro é mundial. Não é sério durante o primeiro ano de vida, mas mesmo assim, com dez meses de idade, é mais provável que a criança deixe a mãe para entrar e explorar uma área bem iluminada do que uma pouco iluminada. À medida que a criança cresce, também cresce o medo da escuridão. A escuridão produz uma sensação de isolamento e de desorientação. Com a falta de detalhes visuais nítidos e a habilidade de movimentar-se diminuída, a mente está livre para fazer aparecer por mágica imagens, inclusive de assaltantes e monstros, com o mais leve indício perceptível. Quando os adultos procuram lembrar de seus primeiros medos, esquecem os da infância, mas lembram do temor à escuridão. 18 Não obstante, muito frequentemente os pais, que conservam lembranças como essas, [26] castigam as crianças, trancando-as em quartos escuros, que são lugares assombrados e significam abandono total. O medo da escuridão pode ficar adormecido e ser acordado acidentalmente por fatos que não são particularmente assustadores por si mesmos. Isso sugere uma predisposição a respeito do medo da escuridão. Considere a seguinte história de como uma criança aprendeu a sentir medo:

Um parente ficou responsável por uma criança de cinco anos de idade em uma tarde em que os pais estavam fora. Com a melhor das intenções, este parente, na

(^16) Ibidem, p.201-6. (^17) Em SMITH, M. A. The British Amphibians and Reptiles. London: William Collins Sons & Co., 1951. p.7-8. (^18) JERSILD, A. X, HOLMES, F. B. Children’s Fears, op. cit., p.118, 124.

no mundo, mas a partir de sua própria experiência a criança sabe que pode ser humilhada e [28] surrada pelos garotos maiores do quarteirão. Um levantamento nacional entre crianças americanas, com idades entre sete e 11 anos, revela que um quarto de uma amostra de 2.258 jovens tem medo de brincar na rua e dois terços teme que alguém possa entrar à força na sua casa e causar-lhes algum dano. Quanto à escola, dois terços das crianças revelam preocupação com as provas e um número igual sente vergonha de errar. Um resultado inesperado do estudo é que mais da metade das crianças admite ter medo de desordem na sala de aula: elas desaprovam a turbulência de seus colegas^22. Se a escola fosse autoritária, mas ordenada, não seria tão amedrontadora; no entanto, uma escola pública pode combinar tirania com a constante ameaça de caos. O mundo das crianças pequenas é um frágil constructo de fatos e fantasia. Antes de completar sete ou oito anos de idade, frequentemente elas não distinguem os sonhos (incluindo as fantasias) dos eventos externos. Para a criança, um pesadelo tanto pode ocorrer na cabeça da pessoa como fora, no quarto. Um menino de oito anos foi capaz de explicar como viu a situação com a ajuda de um croqui, que voluntariamente desenhou para o psicólogo Jean Piaget. O menino disse: "Eu sonhei que o diabo queria me cozinhar". No croqui o menino mostra a si mesmo na cama à esquerda; no centro, o diabo, e à sua direita está de novo o menino, em pé de pijama diante do diabo que está pronto para cozinhá-lo. O fato de o menino ser mostrado de pijama sugere que o diabo o tirou da cama. Ao ser perguntado, o menino explicou: "Quando eu estava na cama, realmente estava lá, e então, quando estava sonhando, eu estava com o diabo e realmente também estava lá".^23 Tendo em vista que para as crianças os pesadelos são acontecimentos reais no mundo, devemos incluí-los entre as [29] paisagens do medo. Os pesadelos são angústias comuns. Seu conteúdo muda com a idade, tornando-se mais específico e diferenciado à medida que o infante cresce. Crianças ao redor de seis anos de idade descrevem como causadores de medo os ruídos ameaçadores, animais ou máquinas. Animais que mordem e monstros simples predominam nos sonhos de crianças entre dois e cinco anos; quando aparecem figuras humanas não são sexualmente diferenciadas. Nos sonhos de crianças mais velhas, os monstros assumem caráter específico. 24 Entre os animais temidos estão: caranguejos, aranhas e cobras. Seres horríveis – mais ou menos humanos – incluem fantasmas, bruxas, vampiros, lobisomens e velhos disformes. É claro que as imagens que aparecem nos sonhos de crianças maiores sofrem grande influência do folclore e crenças dos adultos, que evocam propositalmente monstros com o intuito de ganhar controle sobre as crianças. Os pesadelos das crianças podem ter uma grande variedade de detalhes. Frequentemente as lutas nos pesadelos refletem uma experiência vivida no mesmo dia ou no anterior. Certos temas, entretanto, se repetem e podem aparecer de tempos em tempos nos sonhos dos adultos. Estes incluem sufocação, ser perseguido e devorado, andar ao léu

(^22) Publicado em Los Angeles Times , 2 mar. 1977, e Time , 14 mar. 1977. (^23) PIAGET, J. The Child's Conception of the World. Totowa, N.J.: Littlefield, Adams & Co., 1969. p.91-112. (^24) MACK, J. E. Nightmares and Human Conflict. Boston: Little, Brown & Co., 1970. p.60.

meio perdido em um quarto vazio ou no mato, descobrir uma coisa horrível atrás da porta, assaltantes e monstros fora da casa ameaçando entrar e abandono. A sufocação é um tema que se repete nos pesadelos da infância. Um cobertor pode ter sido inadvertidamente jogado sobre o rosto da criança, ou pode ser que ficou numa posição em que seu nariz e boca ficaram enterrados em um travesseiro macio. A asfixia sofrida durante a infância pode ter influência, mais tarde, no medo excessivo das mudanças no meio ambiente, e à [30] claustrofobia na idade adulta.^25 Uma criança mais velha, durante o pesadelo, pode transferir a sensação de sufoco para o terror de ser enterrada viva. A sensação de estar preso a um lugar, à medida que se aproxima o perigo, é bastante comum nos pesadelos das crianças. Poderia isso ser causado pela lembrança de imobilidade e desamparo? Na presença de figuras paternais as crianças estão e se sentem seguras. Sozinhas, sentem-se vulneráveis. O mundo parece um lugar perigoso, repleto de ruídos e movimentos. No entanto, os abalos recebidos quando acordadas não produzem automaticamente pesadelos durante o sono. Os pesadelos têm origens complexas. A ameaça física comumente necessita ser completada por uma de tipo moral: a vítima deve sentir que não somente seu corpo, mas que seu universo moral está em perigo de colapso. Por exemplo, uma criança é perseguida por um touro em um campo, mas não acontece nada. A experiência pode produzir uma noite mal dormida, cujos efeitos passarão rapidamente. Mas a babá se aproveita do incidente para obter maior autoridade em seu papel. Ela adverte, "Se você for desobediente, o touro vai pegar você!". Assim, um simples medo físico é reforçado por uma reprovação.^26 No pesadelo a ameaça do touro é aumentada porque atinge uma sensação de culpa pela criança assim como de sua vulnerabilidade física. Às vezes os pais e adultos desconhecidos parecem ameaçadores à criança. Por outro lado, a própria criança pode ser uma criatura irada e voraz. Quando bebê, ela suga o leite ("sangue de vida") da mãe e pode morder o mamilo na sua ira. Na idade de dois a cinco anos ela abriga impulsos criminosos para com qualquer um – inclusive os pais – que contrarie sua diversão e vontade. [31] Esses impulsos poderosos e perigosos são reprimidos. Nos sonhos a criança retifica sua fúria na direção oposta à da figura de quem ela depende e a dirige contra si mesma. A fúria, quer percebida em outra pessoa quer sentida nela mesma, é personificada como um monstro, sendo o seu aspecto provavelmente dependente de escaramuças perturbadoras ocorridas durante o dia terror comum nos pesadelos da criança nova é ser devorada ou aniquilada por esses monstros.^27 As crianças põem de lado os medos infantis à medida que amadurecem, mas ganham outros novos cujo domínio requer o poder do jogo imaginativo e de arte. A morte é um medo novo. As crianças estão mais conscientes dela do que muitos adultos podem

(^25) UCKO, L. E. A Comparative Study of Asphyxiated and Non-asphyxiated Boys from Birth to Five Years. Delopmental Medicine and Child Neurology, v.7, p.643-57, 1965. 26

27 HADFIELD, J. A.^ Dreams and Nightmares. Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1954. p.184. KIMMINS, C. W. Children’s Dreams. London: George Allen & Unwin, 1937. p.22; MACK, J. E. Nightmares and Human Conflict , op. cit., p.67.

acusa os filhos gêmeos do outro irmão de terem pacto com o diabo. O pai teme o demônio e, apesar da dor que isso representa para ele, leva as crianças para dentro da floresta, e com o coração triste as deixa lá. As crianças temem se perder. Até uma criança de sete anos pode querer pegar a mão de um adulto em um ambiente desconhecido e ressente-se quando ela é retirada. A floresta ocupa um lugar proeminente nos contos de fada. Quase nunca é um lugar para passeio ou brincadeiras. Para a criança significa perigo, assustadora pela sua estranheza – é um contraste antagônico com o aconchegante mundo da pequena casa. A floresta também amedronta pela sua imensidão, seu cheiro e o tamanho de suas enormes árvores que estão além da escala de experiência da criança. É o habitat de feras perigosas. É o lugar do abandono – um não mundo escuro e caótico onde a pessoa se sente absolutamente perdida. A criança sadia é curiosa. Ela tem confiança para explorar, mas a curiosidade também é induzida pela ansiedade. O que se desconhece é uma ameaça potencial. A criança quer conhecer, porque conhecimento é poder, mas também teme que aquilo que descobrir possa esmagá-la. Os pais encorajam os filhos a explorar, mas dentro de certos limites. Alguns dos limites são explicados à criança e fazem sentido; outros não são explicados e parecem arbitrários. Em um sonho, a criança aproxima-se com medo de uma porta fechada. O que será que vai encontrar quando a abrir – tesouro ou monstro? A porta proibida é um de destaque em alguns contos de fadas. Em "O estranho pássaro", por exemplo, um mágico rapta uma criança, tratando-a bem. Um dia ele diz: "Devo fazer uma viagem, e você ficará sozinha por pouco tempo; aqui estão as chaves da casa, pode ir aonde quiser e olhar todas as coisas, menos um quarto..." Naturalmente, a criança não pode resistir à tentação. A curiosidade [34] não a deixa descansar. Ela abre a porta e o que vê? "Uma grande bacia manchada de sangue no meio do quarto e dentro dela, seres humanos mortos e cortados em pedaços, e ao lado uma tora de madeira e um fulgurante machado apoiado nela."^31 Coisas terríveis acontecem nos contos de fadas, mas, ao contrário das histórias sobre fantasmas e lendas folclóricas, eles excitam em vez de apavorar uma criança sadia de cinco anos ou mais. Por quê? Uma razão é o ambiente afável no qual comumente são contadas as histórias. Outra é a falta de detalhes nas descrições: os horrores são especialmente ingênuos e abstratos, e quando ocorrem mortes não há alusão ao mau cheiro da decomposição.^32 Os malvados sofrem mortes cruéis sob os mais engenhosos dispositivos, mas para a criança o horrível fim dessas poderosas personagens parece apenas uma vingança justa. Os estudiosos dos contos de fadas acreditam que o gênero ajuda as crianças de duas maneiras importantes.^33 Descreve francamente as experiências nocivas que as crianças sabem ser uma parte profunda de suas vidas, mas que os adultos raramente reconhecem.

(^31) The Complete Grimm's Fairy Tales. New York: Pantheon Books, 1972. p.217. (^32) LUTHI, M. Once Upon a Time: On the Nature of Fairy Tales. Bloomington: Indiana University Press, Midland Books, 1976. p.45. 33 Ibidem, p.59-70; BETTELHEIM, B. Uses of Enchantment , op. cit., p.44-5, 50-3.

Mostra aos jovens que a dor é necessária para crescer, que a pessoa deve atravessar limiares difíceis para melhorar sua condição de ser humano. Para se tornar adulta, a criança deve abandonar a segurança da casa e dos pais pelo desconcertante e ameaçador mundo lá de fora. A tentação de regressar à casa deve ser resistida. Em histórias tais como "João e Maria" e "The Little Earth-Cow" as crianças são capazes de voltar para casa porque marcaram com pedrinhas seus caminhos pela floresta, porém este sucesso é apenas temporário e não conduz a uma felicidade duradoura. O castelo ou o reino está [35] mais adiante e, mesmo que o caminho que leva para lá possa ser através de uma floresta escura, nunca falta ajuda; porque além dos lobos, gigantes e bruxas, a floresta abriga animais amistosos, caçadores, anões e fadas. Quais são os medos infantis nas culturas não ocidentais? Eles divergem significativamente daqueles que acabamos de comentar? Respostas confiáveis serão dadas somente quando conhecermos em detalhe as experiências juvenis no mundo não ocidental. Não as conhecemos. Sem dúvida, o treinamento e a educação recebidos durante a infância exercem um grande impacto na percepção da criança. Isto é válido tanto na sociedade tecnológica moderna como além dela. Todavia, se ainda pudéssemos generalizar e falar da criança ocidental (omitindo as diferenças culturais entre as classes sociais e nacionalidades), também poderíamos falar da criança tendo em vista que a biologia transcende a cultura em certas fases-chave do crescimento juvenil. No mundo todo as crianças enfrentam três tipos de estímulos que são potencialmente perigosos: pessoas estranhas, altura e objetos em movimento (ou animados).^34 Quer tenham nascido e crescido na Suíça quer no deserto do Calaári, elas começam a se mostrar tímidas na presença de estranhos por volta dos oito meses de idade; e com cerca de 13 meses hesitam em cruzar uma fenda visível e se perturbam facilmente com movimentos espasmódicos repentinos, como os que podem fazer animais potencialmente perigosos. A maneira como essas emoções se manifestam certamente varia, de acordo com o tipo de treinamento e educação recebidas durante a infância e de habitat para habitat. As crianças boxímanes mostram medo de pessoas desconhecidas mais ou menos com a mesma idade que seus pares ocidentais; mas a reação é notadamente mais extrema: elas gritam, correm apressadamente para a mãe, mesmo quando ela está a poucos metros de [36] distância, e procuram consolo mamando. Mais uma vez, assim como as crianças ocidentais, os bebês boxímanes começam a explorar seu meio ambiente tão logo possam se movimentar, mas, de acordo com os padrões europeus, eles são mais hesitantes e muito mais apegados à mãe. Esses traços comportamentais das crianças pequenas do deserto do Calaári sugerem que elas vivem em um mundo mais ameaçador do que seus semelhantes ocidentais.^35 Que outros medos ocorrem em outras culturas? Nós, seguramente, podemos supor

(^34) SCARR, S., SALAPATEK, P. Patterns of Fear Development , op. cit., p.85. (^35) KONNER, M. J. Aspects of the Developmental Ethology of a Foraging People. In: BLURTON-JONES, N. G. (Ed.)

Ethological Studies of Child Behaviour. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. p.297-98.

peixes. O seu apetite pela fantasia não era cultivado, apesar de existir. Por exemplo, olhavam minuciosamente e com avidez um exemplar velho da revista Natural History, de Mead, que para elas estava cheio de maravilhas.^38 Nas grandes e complexas sociedades, as causas comuns de medo das crianças são o castigo dos adultos por fracasso em algumas tarefas e a humilhação por seus colegas. Nas sociedades menores, tais temores estão reduzidos ao mínimo ou são inexistentes. Porém, precisamos distinguir entre povos cujo meio de subsistência baseia-se na criação de gado (pastores africanos, por exemplo) e coletores primitivos. Nas sociedades que possuem animais de grande porte, mas sem cercas, as crianças são ensinadas a cuidar do rebanho. Elas têm liberdade para exercer suas tarefas, mas também responsabilidade. Se um menino pastor deixa que seus animais se desgarrem para a horta do vizinho, é quase certo que será punido severamente. Ao contrário, entre os caçadores e coletores não há função econômica para os meninos. Os meninos caçam pelo prazer de caçar e não são castigados se não caçarem nada.^39 Outras duas formas de tensão também estão ausentes. Uma é a luta esportiva: num pequeno grupo de coletores não há crianças suficientes para organizar times com idades similares. A segunda é a concorrência nos estudos: um menino não precisa ser comparado a seus colegas [39] porque aprende unicamente com o pai ou tio.^40 Nas grandes sociedades sem língua escrita, especialmente aquelas imbuídas de caráter guerreiro, os meninos enfrentam severa concorrência nas provas de virilidade. Entre muitas tribos de índios norte-americanos, um adolescente que não é atlético nem agressivo pode se livrar do papel masculino se transformando em berdache - assumindo as roupas e o papel social de uma mulher.^41 Muitas crianças temem a escola, um lugar de desafio onde as suas próprias debilidades são expostas a estranhos sem comiseração. Esse tipo de medo foi comum nas escolas no início da China moderna. Mas uma mudança surpreendente ocorreu na atitude e atmosfera educacional no governo da República Popular. Ocidentais que visitaram a China em anos recentes têm repetidamente mostrado surpresa com a docilidade e amabilidade das crianças do jardim de infância e da escola primária. Pareciam à vontade, gostando do lugar, e aceitavam os visitantes estrangeiros com despreocupação. Como aconteceu tal transformação? Um passo importante foi a eliminação da necessidade de se sobressair na sala de aula às custas dos outros. As crianças ganharam confiança e serenidade quando não mais sentiram o chicote da concorrência. Na recente filosofia educacional as palavras-chave têm sido "cooperação" e "sucesso": as duas ideias são inseparáveis, porque sucesso é a

(^38) MEAD, M. Growing Up in New Guinea. New York: Blue Ribbon Books, 1930. p.7-8, 121, 126. (^39) WHITING, B. Discussion [Differences in Child Rearing Between Foragers and Nonforagers]. In: LEE, R. B.,

DEVORE, I. (Ed.) Man the Hunter. Chicago: Aldine Publishing Co., 1965. p.337; ver também BARRY, H. CHILD, I., BACON, M. K. The Relation of Child Training to Subsistence Economy, American Anthropologist, v.61, p.51-63,

(^40) Um exemplo de técnica individual de treinamento em EASTMAN, C. A. (Hakadah). lndian Boyhood. New York: Dover Publications, 1971. p.43-4. 41 DEVEREUX, G. Institutionalized Homosexuality of the Mohave Indians. Human Biology, v.9, p.498-527, 1937; JACOBS, S. E. Berdache: A Brief Review of the Literature. Colorado Anthropologist, v.l, p.25-40, 1968.

superação de dificuldades com o apoio – moral, se não material – dos colegas; e o objetivo do sucesso não é nunca a glória pessoal, mas a felicidade das pessoas.^42 Histórias moralistas insistem sobre este ponto. Comparada com as tradicionais lendas populares chinesas, [40] a literatura infantil na República Popular visa a mostrar heróis e vilões bidimensionais que carecem, certamente, de poder para solucionar quaisquer ambiguidades do bem e do mal que as crianças possam defrontar em suas vidas pessoais.^43 Talvez estas sombras e dúvidas devessem simplesmente ser suprimidas. Depois de tudo, as crianças chinesas parecem saudáveis e inteligentes. Não obstante, gostaríamos de saber: Que tipo de sonhos e pesadelos elas têm? Qual é a qualidade de uma vida de fantasia que não tem vestígios do sobrenatural? Do começo ao fim da discussão sobre os medos da criança, temos evitado discorrer detalhadamente sobre o papel da cultura. Até agora nossa atenção esteve dirigida para os medos que as crianças adquirem e descartam durante o processo normal de amadurecimento e entrada na sociedade adulta. Agora vamos examinar que medo das crianças pode estar ligado diretamente ao comportamento dos adultos – a métodos de criação e disciplina aprovados pelo costume.

(^42) KESSEN, W. (Ed.) Childhood in China. New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1976. p.69-70, 106. (^43) Ibidem, p.83-84; McCLELLAND, D. C. Motivational Patterns in Southeast Ásia with Special Reference to the Chinese Case. Journal of Social Issues, v.19, p.6-19, 1963.