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A Origem da Vida e dos Seres: Poesia e História do Começo da Terra, Slides de Máquinas

Neste texto, encontramos uma poesia que descreve a origem da vida e dos seres na terra, contando a história de como a vida começou, os primeiros seres e a formação dos continentes e rios. O texto aborda também a importância da sabedoria ancestral e da comunidade na vida.

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Garrincha
Garrincha 🇧🇷

4.1

(47)

225 documentos

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três poemas longos
sobre a vida e nós
Carlos
Rodrigues
Brandão
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três poemas longos

sobre a vida e nós

Carlos

Rodrigues

Brandão

Breve apresentação a um pequeno livro de poemas longos Reuni aqui em um pequeno livreto para ser partilhado três longos poemas, ao estilo das antigas “epopeias” e de algumas cantatas bem mais recentes. Assim, tenho uma fonte de inspiração em Homero, e uma outra em Holderlin e em Pablo Neruda. Os “poemas-cantatas” que transcrevo aqui, seguidos de algumas imagens de cenas dos sertões do Norte de Minas, eu os escrevi para ler em momentos de encerramento de algum colóquio, simpósio ou equivalente. Foi uma ousadia proferir uma “conferência de encerramento” não com um texto acadêmico-e-militante, seguindo a norma corriqueira entre nós, mas com a leitura sonora de um longo escrito bem mais de assumida poesia do que de boa ciência. Devo dizer que a recepção de minha “ousadia-poética” foi bem mais calorosa do que eu mesmo imaginava. Quem esperava um escrito crítico e um receituário típico dos “finais de ventos”, ouviu poesia acompanhada algumas vezes de vento e viola. E as pessoas diante de mim pareciam ao mesmo tempo surpreendidas e felizes. Os três poemas longos das páginas seguintes foram escritos para encontros de comunidades populares, ou encontros em que a questão ambiental cruzava com a popular. Daí o teor de todos eles. Tal como os li algum dia – mas agora sem a sonoplastia que acompanhou alguns deles durante a minha leitura – uma vez mais eu os “solto ao vento”, na esperança de que eles cheguem às mãos, aos olhos, às mentes e aos sentimentos de quem os queira partilhar comigo e viajar entre eles Pedras, plantas, peixes, pássaros e pessoas - cantata para voz, vento e viola entremeada com passagens de João Guimarães Rosa e outros viventes dos sertões, cerrados e gerais, foi escrita para ser lida e tocada durante encerramento do Xº Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia, celebrado em Montes Claros, nos sertões do Norte de Minas Gerais, entre 22 e 26 de novembro de 2014. Outono, Quadra da Lua Nova. Nós, aqui, como antes, agora - cantata dos seres e dos povos originários foi escrita para ser lida no encerramento Vº Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, celebrando em Montes Claros, em outubro de 2015.

tudo eram os ruídos das águas e dos fogos. A fornalha dos vulcões, os tremores das pedras ancestrais, o bramir dos mares de outros tempos, o voar dos ventos sobre as areias e o tempo. Os tambores ainda sem mãos das chuvas sem fim e a alquimia de murmúrios que nos primeiros brejos entrelaçava cadeias de carbono e fecundava no ventre da terra a semente mínima das primeiras vidas. Aquele foi o tempo em que muito antes dos sons dos seres a Terra por toda a parte soava sem cessar os ruídos sonoros de um mundo musical antes da Vida. Aquilo nem era só mata, era até floretas. Montamos direito, no Olho d’Água-das-Ostras, andamos e demos com a primeira vereda – dividindo as chapadas - o faclo do vento agarrado nos buritis, franzido no gradeal de suas folhas altas; e, sassafrasal – como a alfazema, um cheiro que refresca; e as aguadas que molham sempre. GSV : 218.

2. Qual a fala do buriti? Qual a do pé de ipê Vieram então os seres que das águas e dos minerais da terra absorvem tudo o que precisam para serem seres da Vida. Há outros seres, aquele que dos ser dos vegetais se nutrem. E há seres que ingerem os minerais da terra as plantas e os outros seres da Vida. Silenciosa, antes da Vida dos bichos e da nossa, e durante eras as plantas da Terra verdejavam o planeta cujo céu aos poucos foi azul. E em silêncio há milênios como agora, as árvores e as ervas aprenderam a serem entre mudas falas o mais sábio ser da Vida. Segredos vegetais! Quanto haveres de aprender quando ao invés de apenas falarmos entre nós sobre as plantas soubermos nos calar para ouvir a voz sem palavras das flores e dos frutos? Viemos pelo Urucuia. Rio meu de amor é o Urucuia. O chapadão onde tanto boi berra. Daí os gerais, com o capim verdeado... Ar que dá açoite de movimento, o tempo-das-águas, de chegada, trovoada, trovoando. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão... O flafo do vento agarrado nos buritis, franzido no gradeal de suas folhas altas... O senhor escute o buritizal... Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão...

Ao que aquelas crôas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai guardando para trás... Tonteei as alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas... O manuelzinho-da-croa. GSV: 58/233/235/236/

3. os sons das águas e dentro das águas Que vozes os elementos da matéria soavam dentro das águas no tempo antes de os mares e rios abrigarem a biologia da vida? Fácil ouvir de longe o trovejar das altas cascatas e a bateria de águas sobre pedras das cachoeiras. Mas dentro das águas calmas dos remansos do que veio a ser o Rio Opará, que mínimas vozes antes das bactérias e dos pais dos primeiros peixes soariam que sons? Quais músicas cantariam ainda sem sílabas e sentidos? Silenciosas são as tartarugas, os tracajás, os jacarés e os peixes. Mas teriam sido os seus ruídos sem música e sem palavras as primeiras falas de uma vida após as plantas e antes dos sáurios e dos pássaros. Enquanto isso, o mico espiralava tronco abaixo e pulava para o vinhático, e do vinhático para o sete-casacas, e do sete-casacas para o jequitibá; desceu na corda quinada do cipó-cruz, subiu pelo rastilho de flores solares do unha-de- gato, galgou as alturas de um angelim, sumiu-se nas grimpas e dali vaiou. **_Sagarana, 1984: 78.

  1. Pássaros e outros seres antes da palavra_** Com que códigos e gramáticas que a ciência dos xamãs e dos doutores sonha decifrar as primeiras bactérias terão criado na Terra primitiva a primeira literatura? Como, anteriores ao signo, ao símbolo e à palavra os seres originais da Vida se falavam, e de uma geração à outra transferiam seus sábios saberes? Antes do silencioso som da preguiça gigante e dos tatus de grande porte como a primeira ciência da vida terá criado os seus nomes? E como, depressa então, como se a sonoridade da Vida disparasse a sua flecha, já o planeta antes do homem ecoava nos dias e entre as noites a infinita diversa sinfonia da bicharada do cerrado e da floresta? Que primitivos e já próximos dizeres de uivos e de berros, de ladridos e miados, de urros , de cicios e, mais do que tudo da infindável serenata dos pássaros

Janaúba, Jequitaí, Juquitiba, Jaíba, Guacuí, Pacuí, Ibiaí, Pirapora, Paracatu, Urucuia. Quantos nomes de bichos de ontem e de agora soaram em suas falas? Pequeno poema com nomes de bichos em falas de índio quiriru, surucuá pacu-pira, candiru pacu-piranga, piaba pirapitinga, iambu piri-piri, curimatá mutum-pinimba, iaçami sary-ema, aracuãá. pacu-tinga,caxixi piranha-paxuna, mutum uacari-guaçu e cãcã paravehú, bocrayubá irara, urubu-tinga saíra, urutu, coati maracanã, tracajá coti-yuba, maracajá. aperiá e mocura sussuarana e apaca lobo guará, capivara suçuarana, acauã uru-mutum, sabiá inambu-torum mutum-pinimba matrinchã e surubim o quati e a irara caxiú, macaco-ussu a maritaca e a arara jaguar e jaguatirica tamanduá e tatu. A borboleta viria para o brejo, que era uma vegetação embebida calma, com lameal com lírios e rosas-d’água, adadas, e aqui ou mais um poço, azuliço, entre os tacurus e maiores moitas, e o atoalhado de outros poços, encoscorados de verde osgo. O brejão, até um oásis, impedindo a entrada do homem. GSV:107/108 da edição de 1969.

7. Os vindos de longe – servos de pele escura Fugidos de minas, das casas-grandes e de fazendas, outra vez convertidos de escravos em homens e mulheres livres,

retornados aos seus nomes de guerreiros de África aprendizes de sábios sacerdotes de deuses de pele escura como a deles, homens e mulheres negras abriram trilhas nas florestas e entre os ermos dos sertões e na beira dos rios e das floretas construíram os seus quilombos e povoaram de outros nomes os seres da Vida com quem repartiam a vida e o destino. E houve um tempo em que tanto a onça quanto deus eram pronunciados entre diversas gramáticas e línguas de índios de negros e de brancos pobres e depois empobrecidos, cercados e encurralados. O milho crescia em roças, sabiá-deus ria, gameleira pingou frutinhas, o pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju no chão. GSV:216.

8. Gentes dos rios e da terra De acordo com o lugar onde plantavam as suas moradas e semeavam entre setembro e janeiro os grãos da vida os povos da terra e das águas criaram os nomes dos viventes dos sertões: beradeiros, barranqueiros, vazanteiros, ilheiros, veredeiros, chapadeiros, geralistas, geraizeiros, sertanejos, camponeses, lavradores, pescadores. E os unia a mesma sina de serem por toda a parte os semeadores da vida: a dos filhos, a das roças de milho a das pequenas comunidades tradicionais que em pouca coisa tornava diferentes os xacriabás os quilombolas e os camponeses, irmãos de sina que com diferentes gramáticas de saberes tiravam de raízes e frutos da natureza e dos grãos da roça o sustento da Vida e entre diferentes linguagens a tudo davam nomes. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha roxa, e a nhiica e a escova, as amarelinhas. GSV : **_22.

  1. A chegada do estranho – seres de peles brancas_**

“Pergunta aos doutores, se não te basta o vento” . _ Verso de Pablo Neruda E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor-roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!_ GSV: 218.

11. O silêncio dos senhores do deserto E mal as últimas cinzas dos fogos que acendiam se apagavam como lágrimas de pó sobre o chão seco, os senhores do Sul semeavam a soja e o eucalipto nos desertos que criavam. E no lugar onde as comunidades populares partilhavam os frutos da terra a que deram mil nomes sábios e sonoros, eles expulsaram gentes, e entre cercas povoaram de gado o vazio. E pelas estradas do sertão ou entre a cerca e a beira do rio camponeses sem a terra vagavam em meio a desertos verdes de ilusória vida. Eles, os camponeses que por gerações a fio, entre avós e netos foram os semeadores de roças de milho, mamão e melancia, de arroz, amendoim, feijão, fava, mandioca, inhame e algodão. E sobre e sob a terra onde ancestrais de índios, negros e camponeses brancos com as mãos em concha colocavam as sementes da vida do povo os senhores atiravam os pós de malditos nomes e os líquidos de seus venenos plantadores da morte, senhores do ganho injusto, semeadores do deserto. Do chão do sertão vão sendo os pobres da terra expulsos a poder de enganos e entre silêncios de pássaros e o rugir de máquinas a vida que era viva, começava a morrer a sua própria morte. Você olha esse mundo abaixo, ó. Que está destroçado aí, na beira dessas veredas. Onde tem água tem bateria cozinhando carvão. Aquela confusão toda. Você olha esse azul aí fora... e pra todo lado aqui o tanto de eucalipto que tem! Cobra pode ter alguma dentro da reserva. Mas dentro do eucalipto nem cobra não fica. Nem cobra! Marimbondo, você pode andar o dia todo do eucalipto. Você não encontra. Depoimento de Manuelzão a mim em julho de 1989, no Andrequicé. Está em O mundo-sertão , no livro Beira Vida-Beira Rio – vida, comunidade e cultura no Rio São Francisco, Editora o Lutador, Belo Horizonte, 2013. Na página 99 12. Repovoar estes sertões de vidas e de nomes sonoros

Povos indígenas, comunidades quilombolas, famílias camponesas: entre a cerca, o rio e a estrada, uma gente encurralada perde os seus territórios, terras de seus ancestrais, veredas um dia verdes, e as fontes das águas da Vida. Terminada esta noite amanhã retornaremos às nossas casas. Protegidas propriedades nossas nos esperam e a elas cumpre voltar com a esperança de ali reencontramos tudo o que é nosso, tal como deixamos. A que moradas de quais lugares voltaram e voltarão outros, eles, os que entre a pele escura, a mão calosa, a voz de quem sabe e sofre, e o coração doído de esperar, não sabem se e até quando terão ainda uma casa, uma roça de milho, uma comunidade, uma terra, um território? E sabemos que quando perdem para os homens do poder e do mercado aquilo de que a vida do povo se nutre a cada dia: a terra e a água, o que após a perda da, casa, da lavoura e da comunidade se perde, são é também os saberes dos segredos da vida. E bem sabemos que eles vieram aqui para nos dizer que para além do que escrevemos na cidade, eles esperam de nós, que ao conhecermos um pouco mais dos seus saberes sejamos, bem mais do que estudiosos do que eles sabem e de como vivem. Que aprendamos a ser a presença ativa junto às suas lutas e esperanças, para que um dia o que hoje estudamos sobre os seus saberes vivos sobre a Vida não venha se tornar algum dia a ciência de uma antiga história do que pessoas, povos e comunidades souberam saber alguma vez. A sabedoria ancestral do lidar com a Terra e a Vida. Os saberes que os seus filhos, exilados da terra dos avós, longe da terra começaram um dia a esquecer. Que este escrito termine com palavras que não são minhas, e que havendo vindo aqui eu li e ouvi de camponeses do Norte de Minas Gerais Comissão Nacional de Ligas de Camponeses Pobres Carta Aberta aos participantes da 748ª Reunião da “Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo” Lida durante a referida reunião na Câmara Municipal de Montes Claros, no dia 20 de novembro de 2014. Dois dias antes da abertura de nosso Simpósio.

cantata dos seres e dos povos originários Primeiro foi o fogo Primeiro foi o fogo. Por incontáveis dias de chamas e luzes sem noites em uma jovem Terra incandescente que era então o sol de si mesma as labaredas de uma fogueira única que toda ela se acendia devolviam ao Sol de onde a Terra veio o seu fogo, as suas luzes. Tudo foi então o incêndio original que a tudo modelava em sua fúria de calores, onde no entanto a própria vida germinava. E sobre a Terra acesa entre lavas existia ainda o corisco do chocar dos cometas de longas caudas e dos meteoros vertiginosos, sonoros viajantes do espaço. Carruagens de pedra acesa, de metais e chamas. E a primeira Terra incendiada recebia a cada instante a visita das fúrias de um primitivo e fecundo caos dos cosmos. E do fogo de uma matéria ainda sem forma e sem nomes o terceiro planeta depois do Sol moldava a sua primitiva figura. Primeiro foi o fogo e tudo incandescia aqui. E caminhamos hoje sobre suaves estradas de terra vermelha esquecidos de que muito antes elas foram rios de lavas. E de muito tempo atrás até hoje, cada fogueira de madeiras secas que mãos de mulheres e de homens acendem no meio da noite recriam sob as estrelas do céu ou entre as paredes de uma casa uma mínima memória do que foi tudo nos primeiros tempos. Primeiro foi o fogo! E tudo o que habitou depois a Terra veio dele. E vieram as grandes águas E vieram então as grandes águas. Quando? Como? Quando e como, durante outros muitos milhões de anos sobre a pele ainda quente de uma Terra que aos poucos esfriava outros corpos celestes carregados agora de águas trouxeram do espaço a líquida matéria das sementes da vida? Pois de onde primeiro veio a fúria do fogo, veio depois a alma da água. E tudo o que depois foi e agora é: a água dos mares, a dos grandes rios e a água clara dos riachos e dos lagos, a das nuvens no alto e a das chuvas e mais a água dos incontáveis veios por onde flui a vida entre os fios dos rios interiores das plantas e dos bichos do mundo e também as teias das veias de nós mesmos, os seres humanos tudo o que há na vida foi moldado pelo fogo e semeado na água.

Pois o que o fogo primitivo modelou as águas primordiais animaram de vida. Do espaço infinito com as águas vieram as sementes de quem somos. E tudo o que é vida chegou aqui na Terra veio com a poeira das estrelas. E toda a Terra inundou-se de águas e da espera da vida. E tempestades milhares de vezes mais longas do que quarenta dias e noites, varreram com raios e águas a pele jovem de um planeta que mal ainda aprendia a desenhar o perfil de seu corpo, de seu rosto. Os rios dos sertões, do cerrado Quando enfim as águas que tudo cobriam deixaram sobre a Terra aparecer a terra e os continentes um dia juntos e depois separados por entre mares aplainaram por toda parte o seu chão e mais adiante elevaram montes e montanhas, veio então o tempo em que as águas interiores

  • as que não eram de sal, tracejaram com mãos de geografia no solo do planeta os primeiros rios. Em que era de que tempo perdido na história e na memória terão surgido entre todos do continente que nos abriga estes estranhos rios que ao revés dos outros, correm para o Norte: O Araguaia, o Tocantins, o Xingu, o Tapajós e todos os que sobem do coração do cerrado aos verdes da Amazônia e se derramam no grande rio Amazonas, navegante de uma planura de florestas verdes, sem fim onde todas as água vindas do Sul e do Norte o rio recebe e leva ao mar? E mais os outros todos, os rios que vindos das terras férteis do Sul sobem gerais, cerrados, sertões, e entre terras secas se entregam ao mar: o Mucuri, o Jequitinhonha, o São Francisco, rios mineiros. Rios das terras amorosas do cerrado, o “Pai das Águas”. O generoso sertão-do-cerrado que, diverso da Amazônia, antes de devolver ao mar as águas que são dele, derrama as suas infinitas ramas líquidas águas sobre outras terras. Entre as águas, sobre a terra, a vida Onde imaginaram que tudo era um deserto o território de meio ano sem chuvas e sob um sol de brasas, ali, onde árvores poucas, baixas, retorcidas e de grossas cascas à espera dos fogos de agosto, ali, onde uma terra sedenta depressa absorve

o andar ereto sobre as duas patas de trás, os pés ligeiros, as mãos livres e hábeis carregando coisas, inventando artes, um olhar de bicho que enxerga entre as cores tudo de um outro jeito e a fala como nunca ouvida antes. As palavras, poucas mas diversas dos ruídos dos macacos e do uivar das onças-feras. E eles domavam o fogo e dele não fugiam como os bichos anteriores, criavam suas chamas, sopravam as suas brasas sem temor e ao redor do fogo se assentavam como deuses, sendo homens. E colocavam sobre ele as carnes dos animais que caçavam a poder de estranhos objetos que perfuravam o corpo da caça. E entre eles – as crianças, as mulheres, os homens e os velhos - o que caçavam e colhiam, repartiam. E com isto inventaram a partilha E alguns cantavam ao som dos primeiros tambores sob o luar da lua e como nenhum outro ser vivo antes no cerrado, no sertão, uns aos outros pintavam o rosto de cores de tintas da terra, e entre eles e elas se davam nomes, como aos rios e às serras. Aqueles foram os primeiros homens. E com eles, pela primeira vez o sol, a lua, algumas estrelas e os rios e os lugares da vida, e os pássaros e os peixes ganharam os sonoros nomes que antes não havia. O que hoje chamamos “comunidade”, entre aldeias de terra e palhas pela primeira vez terá existido pelas beiras dos rios, ou ao redor das veredas povoadas de buritis e de araras. Bandos de seres primeiro errantes entre gerais e chapadas, e depois construtores de lugares onde um avô morria incontáveis luas depois de ver crescerem no mesmo chão os seus netos. Ali, onde anos mais tarde os netos iam dormir em covas na terra, ao lado dos avós. Estes foram os primeiros humanos, nossos seres ancestrais de cujos nomes e feitos remotos sequer sabemos a não ser através da frágil história gravada em pedras polidas, em restos de madeiras, em alguns ossos e nos mitos da tribo. Depois, os povos como nomes que lembramos Quem deu a estas montanhas, às veredas, lagoas e rios, quem deu aos vegetais e aos bichos destas terras os nomes que depois colocamos em nossos povoados e cidades? Quem reabriu, depois dos povos primeiros, as trilhas que depois foram as estradas por onde passaram nossas crianças, os nossos carros-de-bois, nossas tropas de burros, nossos passos? Quem navegou muito antes de nós sobre a pele verde do São Francisco em frágeis canoas de madeiras brancas ainda sem velas e motores? Quem deu aos lugares de agora os seus nomes primitivos:

Arassuaí, Bocaina, Caçarema, Itamirim, Ibiracatu, Guacuí, Jaíba, Janaúba, Jequitaí, Pirapora, Pacuí, Paracatú, Pindaíbas? Eles vieram, os povos indígenas. Herdeiros dos que chegaram do Norte, tribos de mulheres e de homens depois desaparecidos, ou os que em pequenas aldeias entre cercas e farrapos ainda resistem. Os que tiravam com as mãos o mel das abelhas nativas como eles, e da palmeira Buriti extraíam a palma, a fruta, a madeira, a vida. Bororo, Caiapó, Carajá, Xavante, Nhambiquara, Xerente, Xacriabá e os já extintos, e os ainda povoadores primitivos do chão do cerrado, os que domaram o rio e nas suas águas pescavam os peixes que comiam, e a que deram os nomes que até hoje repetimos. Senhores dos tempos e das origens. E antes de nós, os que amanharam essas terras vermelhas e semearam as plantas de raízes, de frutos e de espigas que foram depois as nossas colheitas e os nossos alimentos. Em suas línguas hoje esquecidas terão no meio da noite pronunciado o nome de seus deuses e outros seres do mistério e do sagrado. E deles terão sido nestas terras as primeiras preces e os primeiros cantos. Sobre o chão de palhas as suas mulheres pariam a prole de uma vida múltipla, que os mais velhos sonhavam ser eterna. Pois como imaginar que mais tarde chegariam outros homens, seres de pele clara, roupas escuras e armados dos trovões que antes, apenas dos céus caiam nas manhãs de tempestades? Dos índios nossas moças herdaram a cor dos olhos, a dos cabelos e a da pele. E sem saber suas línguas antigas, somos os seus herdeiros, como a terceira ou a quinta geração do milho e da mandioca, antes de sermos a herança dos que chegaram depois. Os outros, nós Outros homens um dia descobriram estas terras altas dos sertões. E como as ondas de um mar distante, começaram a chegar. Seres de uma outra língua, uma outra fé, outros costumes. E eram mais claras as peles do corpo e a cor de alguns olhos. Os pobres da terra vieram a pé, descalços sob o sol sem tréguas ou sobre no lombo de mulas, burros e cavalos magros. E eles guardaram a lembrança de quando ergueram os seus primeiros povoados na memória dos velhos que as narraram aos netos antes de partirem. Os cemitérios de beira-rio acolheram os seus corpos escurecidos do sol por anos curvados sobre a terra das barrancas, veredas e chapadas. Aprenderam com o índios a queimar em agosto pequenas porções do campo e sobre as cinzas e sob a terra semeavam os grãos de feijão e milho de que entre janeiro e março colhiam a messe e a vida.

eles derrubaram as árvores que guardam as águas da chuva e entre raízes profundas as fazem descer ao coração da terra. E mal as últimas cinzas dos fogos que acendiam, se apagavam como lágrimas de pó sobre o chão seco, eles semeavam nos desertos que criavam a soja e o eucalipto, e vagando solitários senhores entre desertos verdes de ilusória vida, eles de longe viam as nossas pequenas roças de milho e melancias, de feijão, mandioca, mamão, amendoim e algodão e da estrada nos bradavam: “o tempo de vocês já não é mais!” E sobre e sob a terra onde nossos ancestrais com as mãos em concha colocavam as sementes da vida de que se nutriam as suas vidas, eles atiravam os pós e os líquidos de venenos sinistros onde a imagem de uma caveira sobre dois ossos figurava o mal que havia dentro. Semeadores da morte, do ganho injusto, do lucro e do deserto, eles passavam sem parar ao lado de nossas aldeias de palhas e nos gritavam: “o que resta de vocês também logo vai ter fim!” E a vida que era viva, começou a morrer a sua própria morte. Não somos o passado, somos a Vida, agora! Não somos o passado, o ontem, o atraso, os que não souberam ser “progresso” e nunca aprenderam as leis da ganância e do mercado do mundo dos negócios. Somos seres da vida e da partilha, somos os que com as mãos cavam a terra e entre os braços e não com máquinas carregam sob o céu as espigas e os grãos. Somos a memória de um tempo antes do “negócio” que devorou o “agro”, e se arvora de “agronegócio” e nos encerra entre a cerca de seu gado e o rio de nossas vidas. Não somos comunidades tradicionais porque paramos num tempo antes do deserto em que eles, senhores da pressa, transformaram o sertão. Somos quem somos porque vivemos o tempo solidário do trabalho amoroso com a terra, da troca e da partilha. Somos os que estavam quando eles chegaram com armas, artimanhas, venenos, cercas e fogos. Habitantes de aldeias de índios, de quilombos de negros de comunidades de brancos e de mestiços pobres, de acampamentos de lona preta entre a cerca e a estrada, de assentamentos de nossas lutas pela reforma agrária, somos aqueles que desde os povoados de palhas em que vivemos ainda resistimos e resistiremos, porque vivemos no que criamos

e sobrevivemos cercado pelo que ao redor de nossas casas os senhores da terra cercam, secam e destroem. Somos aqueles que ao contrário deles, os senhores, sonhamos e dizemos que aqui no sertão, no cerrado, nos gerais, não devem ser as máquinas, a solidão dos desertos, as famílias dos povos expulsos vagando pelas estradas de terra o que existe e o que deve existir em “novos tempos”. Algo existe aqui? Perguntamos. E antes deles temos a resposta: EXISTE É O HOMEM HUMANO – TRAVESSIA. Grande sertão: veredas, 460