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três estágios da teoria sobre direito, estado e conflitos sociais, Notas de aula de Introdução ao Estudo do Direito

Alysson Leandro Mascaro: ... Dentro da distinção estabelecida por Alysson Mascaro ... Mais adiante, em sua obra Introdução ao Estudo do Direito:.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

VictorCosta
VictorCosta 🇧🇷

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Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
53NÚMERO 06
MIGUEL REALE, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E
ALYSSON LEANDRO MASCARO: TRÊS ESTÁGIOS
DA TEORIA SOBRE DIREITO, ESTADO E CONFLITOS
SOCIAIS
Camilo Onoda Caldas
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa dos direitos
humanos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo/SP e do Programa de Mestrado da
Escola Paulista de Direito (EPD).
SEÇÕES DO ARTIGO
1. Introdução
Notações
RESUMO
O presente artigo descreve três estágios distintos da teoria sobre Direito, Estado e conflito no Brasil considerando três pensadores do departamento de
Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo: Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Alysson Leandro Mascaro. O objetivo é apresentar
o contexto histórico no qual cada um está inserido a fim de indicar como a teoria a respeito do Estado e do Direito desenvolvida por eles encontra-se em
cenários de conflitualidade social distintos, resultando em abordagens teóricas que revelam preocupações e horizontes diferenciados.
PALAVRAS-CHAVE
Conflito; Teoria Geral do Direito e do Estado; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson Mascaro..
ABSTRACT
This article describes three distinct stages of law, state and conflict theory in Brazil considering three thinkers from the department of philosophy and
general theory of law of the University of Sao Paulo: Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. and Alysson Leandro Mascaro. The objective is to present
the historical context in which each one is inserted showing how the theory about the State and Law developed by them is found in different social conflict
scenarios, resulting in theoretical approaches that reveal distinct concerns and horizons.
KEYWORDS
Conflict; General Theory of Law and State; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson Mascaro.
2.Miguel Reale: Culturalismo
Jurídico, Teoria Tridimensional
do Direito e o Papel do Estado
na Formação da Identidade
Nacional.
3. Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
Modelo Linguístico-Pragmático,
Decidibilidade e o Estado de
Bem-Estar Social.
Referências Bibliográficas
4. Alysson Leandro Mascaro:
Materialismo Histórico,
Derivação e os Impactos das
Crises Capitalistas no Estado.
5. Conclusão
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MIGUEL REALE, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E

ALYSSON LEANDRO MASCARO: TRÊS ESTÁGIOS

DA TEORIA SOBRE DIREITO, ESTADO E CONFLITOS

SOCIAIS

Camilo Onoda Caldas

Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa dos direitos humanos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo/SP e do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). SEÇÕES DO ARTIGO

  1. Introdução

Notações

RESUMO

O presente artigo descreve três estágios distintos da teoria sobre Direito, Estado e conflito no Brasil considerando três pensadores do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo: Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Alysson Leandro Mascaro. O objetivo é apresentar o contexto histórico no qual cada um está inserido a fim de indicar como a teoria a respeito do Estado e do Direito desenvolvida por eles encontra-se em cenários de conflitualidade social distintos, resultando em abordagens teóricas que revelam preocupações e horizontes diferenciados.

PALAVRAS-CHAVE Conflito; Teoria Geral do Direito e do Estado; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson Mascaro..

ABSTRACT

This article describes three distinct stages of law, state and conflict theory in Brazil considering three thinkers from the department of philosophy and general theory of law of the University of Sao Paulo: Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. and Alysson Leandro Mascaro. The objective is to present the historical context in which each one is inserted showing how the theory about the State and Law developed by them is found in different social conflict scenarios, resulting in theoretical approaches that reveal distinct concerns and horizons.

KEYWORDS Conflict; General Theory of Law and State; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson Mascaro.

2.Miguel Reale: Culturalismo Jurídico, Teoria Tridimensional do Direito e o Papel do Estado na Formação da Identidade Nacional.

  1. Tercio Sampaio Ferraz Jr.: Modelo Linguístico-Pragmático, Decidibilidade e o Estado de Bem-Estar Social.

Referências Bibliográficas

  1. Alysson Leandro Mascaro: M a t e r i a l i s m o H i s t ó r i c o , Derivação e os Impactos das Crises Capitalistas no Estado.
  2. Conclusão

N

os diferentes estágios do desenvolvimento da economia brasileira no século XX e XXI, podemos observar transformações no campo da conflitualidade que se refletem não apenas em diferentes formas de organização do Estado e do Direito, mas também em teorias jurídico-políticas distintas, pois as reflexões teóricas não se desvinculam do contexto histórico no qual estão inseridas.

Se considerarmos o capitalismo no Brasil ao longo do século XX e início do XXI, podemos destacar três momentos distintos em seu desenvolvimento (sem negar outros recortes possíveis, evidentemente). O primeiro é consequência da introdução da mão de obra assalariada no final do século XIX, com destaque para as plantações de café no Oeste Paulista, e do movimento de imigração do início do século XX. O segundo abrange o processo de industrialização e de integração do mercado nacional promovido por Getúlio Vargas e vai até o final da ditadura militar, período no qual o Estado se destacava por suas atuações nesses âmbitos. O terceiro

inclui a crise estrutural do capitalismo a partir da década de 1980, com a ascensão do neoliberalismo, financeirização da economia, desindustrialização do Brasil e domínio do modelo de acumulação denominado de “pós-fordista” em nível global.

Em cada um destes contextos, parte dos conflitos existentes se modifica substancialmente e isso impacta o campo da teoria do Direito e do Estado (vide WOLKMER, 2014). A era Vargas é momento no qual se evidencia o conflito entre os interesses regionais e os nacionais, entre as oligarquias rurais do eixo Minas-São Paulo e a burguesia urbano-industrial. As concepções de Estado e, consequentemente de Direito, forjadas neste momento histórico, conforme veremos, consistem justamente numa forma de resposta a esse problema. Do mesmo modo, a formação de um (inacabado) Estado de Bem- Estar Social no século XX e as sucessivas crises do capitalismo no século XXI constituirão cenários que permeiam as teorias jurídicas e políticas destes períodos.

Reconhecemos, evidentemente, que cada momento da história e cada autor poderia ensejar um artigo individualizado com maior profundidade, contudo, optar por uma exposição individualizada mais exaustiva enfraqueceria um de nossos propósitos neste artigo: privilegiar a descrição do movimento das ideias, o que é feito a partir da apresentação dos aspectos centrais de três diferentes autores e seus respectivos contextos históricos (como forma de compensação para a opção aqui adotada, indicaremos em cada capítulo um conjunto de referências que permitirão ao leitor se aprofundar em cada autor e em cada momento histórico em particular).

Para descrever diferentes estágios da teoria do Direito e do Estado no Brasil, adotaremos um recorte específico que inclui três pensadores, e igualmente docentes, oriundos do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São

  1. Introdução

p. 281). O ponto que queremos destacar é que essa relação, do ponto de vista político e teórico, com o movimento integralista, transparece nos escritos do filósofo brasileiro, desde sua obra Estado Moderno (1934), passando por Filosofia do Direito (1953), Teoria Tridimensional do Direito (1968) até seu clássico Lições Preliminares do Direito (1973), ainda que de maneira modificada ao longo do tempo.

Os ideais do integralismo incluíam a valorização do nacionalismo e do fortalecimento do Estado, tal doutrina colocava-se como alternativa ao liberalismo e, principalmente, ao socialismo/comunismo marxista (o fato do fascismo italiano comungar de tais características é um dos motivos que conduz à associação desses dois movimentos). Assim, apesar de aderir plenamente às premissas gerais de organização da economia capitalista, o integralismo não compactuava com a ideia de intervenção mínima do Estado no domínio econômico (ideal liberal) e propunha englobar, sem dissolver, as diferenças de classes e indivíduos no interior de um Estado Integral (BERTONHA, 2013, p. 276).

Conforme dissemos, o nacionalismo é um elemento chave do integralismo. A partir da década de 1920 no Brasil há uma série de movimentos relevantes com objetivo de constituir a identidade nacional brasileira (no campo das artes, A Semana de Arte Moderna de 1922 tornou-se o maior ícone nesse sentido). O integralismo no Brasil, portanto, é um dos movimentos políticos que se desenvolve com essa finalidade. Havia, naquele momento histórico, um acirramento de conflitos sociais e políticos e o integralismo concebia que a atuação do Estado deveria ocorre dentro de uma ambivalência: de um lado, forjando o sentimento de nacionalidade enquanto força moral e espiritual; de outro lado, encarnando os valores contingentes

e específicos herdados de um determinado momento histórico (ABUD, 1998).

A república velha (1889-1930) foi período de reorganização dos espaços de poder político e econômico existentes no período do Brasil Império (1822-1889). O interregno entre 1930 e 1950, por sua vez, foi justamente o período no qual se operou a transição para se estabelecer um verdadeiro Estado nacional, sem, contudo, provocar uma ruptura radical com a hegemonia paulistana-mineira. O Estado Novo de Getúlio Vargas se colocou como condutor desse processo, feito para que “o sentimento de identidade nacional permitisse a omissão da divisão social, a direção das massas pelas elites e a valorização da ‘democracia racial’, que teria homogeneizado num povo branco a população brasileira” (ABUD, 1998). Assim, não por acaso, dada suas convergências, as diferenças entre varguistas e integralistas puderam ser acomodadas entre si no decurso do tempo (BERTONHA, 2013, p. 279).

Influenciado pelo contexto acima descrito, Miguel Reale vai forjando sua Teoria Tridimensional do Direito e formulando suas concepções de Estado. Para ele, Estado e Direito estão vinculados a uma realidade fática e um conjunto de valores que se manifestam historicamente. Assim, Reale rejeita a existência de um direito natural (ideia presente em muitos pensadores liberais) e pode defender que o Direito e o Estado se alinham com determinada experiência histórica e, consequentemente, com valores específicos presentes na cultura particular de uma nação. Wolkmer explica o desenvolvimento histórico este tipo de teoria no Brasil: Concomitante com a crise socioeconômica que sacudiu a estrutura capitalista da Velha República liberal-positivista e com as contradições sociais decorrentes da emergência dos novos atores no âmbito da dominação política

burguesa oligá rquica, sobressaíram novas teses como o culturalismo, a conciliação, o nacionalismo de esquerda e o desenvolvimentismo. Essas tendências ideológicas materializadas em fins dos anos 30 (Revolução de 30, Estado Novo, integralismo, nacionalismo conservador etc.) e ao longo dos anos 40-50 (Segunda Grande Guerra, democratização social do Brasil, populismo e desenvolvimentismo) deixaram sulcos també m na linearidade do pensamento político- jurídico institucionalizado. Entende-se, assim, a crise que atravessou o positivismo jurídico liberal (em suas vertentes evolucionistas, naturalistas, sociológicas e cientificistas) diante das críticas vigorosas e das renovadoras propostas epistemológicas arguidas pelo ecletismo conciliador e pela retórica culturalista introduzidas na esfera da teoria jurídica. O Culturalismo Jusfilosófico, que teve grande impulso no Brasil após a Segunda Grande Guerra, inspirando-se em Kant e considerando-se herdeiro de Tobias Barreto, busca reorientar as diversas tradições filosóficas nacionais rumo a uma interlocução centrada nos valores, na pluralidade e no mundo da cultura. Sob a condução de Miguel Reale e integrado por muitos pensadores, dentre os quais Luiz Washington Vita, Renato Cirell Czerna, Djacir Menezes, Paulo Mercadante, Nelson Saldanha e Antonio Paim, a corrente culturalista fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), que se projetou como “instituição devotada a promover o diálogo entre as diversas correntes de filosofia existentes no país”. [...] Provavelmente, a crítica mais incisiva e mais séria à realidade de exaurimento e de derrocada do naturalismo jurídico-sociológico, enquanto estatuto epistemológico hegemônico, foi a tese de teor culturalista desenvolvida em Fundamentos do Direito, apresentada por Miguel Reale, em 1940, no concurso para a cátedra de Filosofia do Direito [...]. (WOLKMER, 2014, p. 357-358).

Reale, ao conceituar o que é o Estado, o define como “[...] a organização da Nação em uma unidade de poder, a fim de que a aplicação das sanções se verifique segundo uma proporção objetiva e transpessoal. Para tal fim o Estado detém o monopólio da coação no que se refere à distribuição da justiça” (REALE, 2002a, p. 76). E também afirma que as normas jurídicas devem “visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade” (REALE, 2002a, p. 115). Com base em tais ideias, Reale afirma que o Estado utiliza seu poder para garantir que as normas jurídicas sejam respeitadas (impondo sanções aos eventuais transgressores) e, ao mesmo tempo, encarna a realidade fático-axiológica existente. Noutras palavras, Reale afirma que as normas jurídicas, garantidas e constituídas por um poder coator, possuem correspondência com valores da sociedade, portanto, a cultura – enquanto produto histórico particular de uma nação – se expressa tanto no Estado quanto no Direito enquanto fato, valor e norma (tridimensionalidade).

O culturalismo de Miguel Reale, portanto, expressa a ideia de um Estado e de um Direito que correspondem à realidade fático- axiológica de uma nação e, ao mesmo tempo, se apresenta como uma teoria de legitimação à submissão do ordenamento jurídico e da autoridade estatal. Não queremos problematizar aqui como Reale acredita que essa correspondência entre valores sociais e normas jurídicas deve ocorrer. Queremos apenas destacar outro ponto: a teoria de Reale expressa o momento de constituição da identidade nacional mediada pelo Estado responsável por positivar as normas jurídicas.

Assim, a teoria culturalista de Miguel Reale encontra seu sentido em um momento histórico no qual se pretende legitimar a autoridade do Estado e do Direito por meio da ideia de que os valores nacionais, historicamente constituídos, ganham corpo e concretude por intermédio desta ordem jurídica-estatal

de “direito”, no qual ele destaca que tal análise pode feita a partir das diversas vertentes linguísticas existentes.

Em qual contexto histórico no qual Tercio Sampaio encontra- se inserido nas décadas 1960-1970? Do ponto de vista político, existe no período uma forte repressão política contra as correntes marxistas, seja na América Latina, seja na Europa (na República Federal da Alemanha, por exemplo, o Partido Comunista da Alemanha (KPD) foi banido em 1956). Concomitantemente, neste período, será observado o apogeu do Estado de Bem-Estar social na Europa (inclusive como resposta aos movimentos marxistas), preocupado em organizar a economia capitalista a partir de maior intervenção no campo econômico e do incremento dos direitos sociais (vide WOLKMER, 2014). No Brasil, o movimento de construção desse modelo culminará na Constituição Federal de 1988, cujo caráter social superou em muito todas as constituições anteriormente criadas no país. Assim, um dos debates centrais neste período é o papel do Estado no processo de reprodução do modo de produção capitalista, um fenômeno que não escapa da análise de Tercio Sampaio Ferraz Jr.:

O Estado serve ao desenvolvimento do capitalismo e à acumulação contínua e eficiente da riqueza. Essa nova forma de soberania exige do Estado uma capacidade gestora dos bens comuns, em consequência, a ideia de cálculo, de arte econômica (economia política). Como nos mostra Foucault (1982:188), o crescimento populacional exigiu uma espé cie de quantificação racionalizada da produção e do consumo social (estatística). As populações passam a ser, simultaneamente, o sujeito das necessidades, das aspiraç ões, e o objeto nas mãos do governo. Assim, a soberania, antes uma relação externa entre o senhor e o súdito, toma agora a forma de um exercício interno de comando e de organização. Ela burocratiza-se. Multiplicam-

se as agências estatais. O direito de soberania transforma-se també m num direito de sistematização centralizada das normas de exercício do poder de gestão. (FERRAZ JR., 2018, p. 142).

A concepção de Estado de Bem-Estar social aponta para uma atividade estatal muito mais ampla do que aquelas desenhadas pelos autores liberais. O Estado não é mero defensor da legalidade e das liberdades individuais (pressupostos necessários para reprodução do capitalismo). O Estado assume outras funções no campo social e econômico, atuando em diversos domínios e, ao mesmo tempo, tornando-se elemento indispensável para o desenvolvimento e a expansão do capitalismo em nível global (CALDAS, 2018, p. 82 et seq). O Estado assume uma feição de gestor econômico-social e não meramente de repressor de condutas contrárias à lei. Tercio Sampaio destaca que isso impacta a própria função legiferante do Estado – exigindo dele uma maior produção de normas jurídicas – trazendo consequências para a teoria das fontes do Direito. Conforme explica Gilberto Bercovici: Com o advento do Estado Social, governar passou a não ser mais a gerência de fatos conjunturais, mas também, e sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimento de políticas a médio e longo prazo. Com o Estado social, o government by policies vai alé m do mero government by law do liberalismo. A execução de políticas públicas, tarefa primordial do Estado social, com a consequente exigência de racionalização técnica para a consecução dessas mesmas políticas, acaba por se revelar muitas vezes incompatível com as instituições clássicas do Estado Liberal. Com as novas tarefas do Estado, o livre desenvolvimento da personalidade éfundado nas próprias prestações estatais. Ou seja, confia-se àinstância estatal totalizante o poder de

decidir, em nome de todos, o que éo bem de cada um, por meio dos direitos sociais [...] O Estado Social fundamenta e consolida a unidade política materialmente, tornando–se o locus da luta de classes. Sua função, geralmente, éde mediador, tentando buscar a integração social com base em um mínimo de valores comuns. Não há , portanto, o desaparecimento da luta de classes, mas a criação de meios que garantam que ela não irá, necessariamente, se degenerar em um confronto aberto. A ampliação dos direitos políticos e o conteúdo material dos direitos sociais tornou o pós Segunda Guerra Mundial o período em que a emancipação e a reivindicação da democracia econô mica e social chegaram ao seu momento mais elevado. No centro do sistema econ ômico mundial, o direito econômico substituiu, de certo modo, o direito privado e a lógica da codificação como instrumento jurídico garantidor da estabilidade do sistema. (BERCOVICI, 2013, p. 136-137).

Assim, o Estado de Bem-Estar Social aumenta a atuação das três funções do Estado: legislar, julgar e exercer a administração pública. Há o aumento da quantidade de textos normativos (as demandas sociais são positivadas na forma de leis e outras espécies normativas), consequentemente, o Poder Executivo precisa adquirir uma nova postura diante dessa normatividade (dando às leis maior ou menor eficácia a depender do contexto), bem como o Poder Judiciário passa a ser demandado para dar eficácia às normas positivadas, sanando eventual inércia do legislador (e.g. não regulamentando determinada norma já existente) e do Executivo (e.g. não implementando política pública determinada pela lei), bem como circunscrevendo quais são os limites e o alcance das normas jurídicas positivadas (e.g. decidindo em relação às políticas públicas, direitos sociais e

poder de intervenção do Estado na economia etc). Portanto, nesse contexto, diante das possiblidade abertas pela presença e pela ausência do texto normativo, a decidibilidade é apresentada por Tercio Sampaio como um conceito essencial para se compreender o Direito: O direito continua resultando de uma sé rie de fatores causais muito mais importantes que a decisão, como valores socialmente prevalentes, interesses de fato dominantes, injunçõ es econô micas, políticas etc. Ele não nasce da pena do legislador. Contudo, a decisão do legislador, que não o produz, tem a função importante de escolher uma possibilidade de regulamentação do comportamento em detrimento de outras que, apesar disso, não desaparecem do horizonte de experiência jurídica, mas ficam aí, presentes e à disposição, toda vez que uma mudança se faça oportuna. Ora, essa situação modifica o status científico da Ciência do Direito, que deixa de se preocupar com a determinação daquilo que materialmente sempre foi direito com o fito de descrever aquilo que, então, pode ser direito (relação causal), para ocupar-se com a oportunidade de certas decisões, tendo em vista aquilo que deve ser direito (relação de imputação). Nesse sentido, seu problema não épropriamente uma questão de verdade, mas de decidibilidade. [...] os enunciados da ciência jurídica têm sua validade dependente de sua relevância prá tica. Embora não seja possível deduzir deles as regras de decisõ es, ésempre possível encará -los como instrumentos mais ou menos utilizá veis para a obtenção de uma decisão. Assim, por exemplo, Má rio Masagão, em seu Curso de Direito Administrativo (1977:108), após examinar, entre outras, uma teoria sobre a função executiva do Estado, refuta-a, afirmando que sua fórmula, segundo a qual essa função é desempenhada quando o Estado “cria situações de direito

mercantis, a estrutura jurídica lhe é um dado necessário e imediatamente correlato. Tal estrutura jurídica – técnica, normativa, fria e impessoal, apoiada em categorias como o sujeito de direito, o direito subjetivo e o dever –, que vem a ser o fenômeno jurídico tal como o conhecemos modernamente, nasceu apenas com o capitalismo, como sua forma correlata necessária. (MASCARO, 2015, p. 06).

O fim da União Soviética e dos países que gravitavam em seu redor, levando a um refluxo global do marxismo, é uma contingência histórica que não impacta o surgimento da teoria mascariana do Direito. Pachukanis, aliás, sequer teve sua teoria absorvida pela doutrina jurídica soviética oficial (pelo contrário, suas ideias se contrapunham ao pensamento soviético-stalinista e esse confronto lhe custou a vida - CALDAS, 2017). O elemento histórico central no qual a teoria de Alysson Mascaro é outro: a crise do capitalismo no século XXI, que tem por consequência outras subcrises e movimentos reativos: crise do fordismo e ascensão do pós-fordismo; crise do Estado de Bem-Estar Social e ascensão do neoliberalismo; crise dos regimes democráticos e ascensão do pensamento neoconservador.

A crise estrutural do capitalismo após a década de 1980 iniciou um novo regime de acumulação denominado de pós-fordista, no qual as tradicionais formas de organização do trabalho e da economia existentes no fordismo passaram a se modificar (sobre o tema, vide: HIRSCH, 2010, p. 33 et seq; BAUMAN, 2016; CLARKE, 1991). As consequências no campo jurídico-político, inclusive, são visíveis e atuais: diminuição de direitos trabalhistas e previdenciários, precarização do trabalho, cortes de orçamento na área social, privatização de empresas estatais, permanente limitação dos gastos públicos, etc.

Esse cenário se combina (e ajuda a provocar) à crise política. Os Estados encontram-se cada vez mais impotentes em relação

aos ditames das grandes corporações e do mercado financeiro. Os indivíduos vivenciam ambiente de crescente competitividade econômica que traz como consequência o aumento da opressão no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, o trabalhador encontra- se cada vez menos provido das garantias jurídicas tradicionais e vivencia um permanente sentimento de desesperança para com o futuro (as perspectivas de empregabilidade estável e aposentadoria se mostram cada vez menos promissoras). Enquanto cidadão, tal indivíduo vivencia dois sentimentos igualmente negativos: (i) perde a convicção de que o voto e as eleições (e consequentemente os representantes políticos) podem conduzir o Estado a adotar políticas que mudem significativamente as condições econômicas e os horizontes desalentadores; (ii) culpa a suposta presença excessiva do Estado na economia como responsável pelos problemas existentes, mas não encontra ao redor do mundo, experiências socialmente exitosas nas iniciativas neoliberais, pelo contrário, se depara com o oposto (CALDAS, 2018, p. 27-28).

Nesse contexto, a teoria do Direito de Mascaro tem sua trajetória permeada por duas grandes questões do século XXI: (i) explicar como Estado e Direito estão estruturalmente vinculados à reprodução do capitalismo e, portanto, são incapazes de superar as contradições e consequências deletérias inerentes a este modo de produção; (ii) demonstrar que o capitalismo é crise (sua ocorrência não é acidental, é inevitável e agravada no curso do tempo) e que o Estado e o Direito se reformulam como elementos de resposta à essa dinâmica, criando mecanismos distintos para lidar com os fenômenos emergentes (HIRSCH, 2010, p. 45 et seq). Tais ideias, presentes nas obras de Mascaro, são apresentadas de forma mais bem acabada em Estado e Forma Política, no qual o autor argumenta: Se os regimes de acumulação seguem uma tendência ao seu constrangimento econômico, os modos de regulação se

assentam sobre uma multiplicidade de interesses, forças e relações sociais. As crises no capitalismo podem se revelar tanto na dinâmica econô mica – crise de acumulação – quanto na consecução institucional da sociedade – crise de regulação. Pelo acoplamento imperfeito entre economia e politica, as crises parciais procedem a abalos que são reabsorvidos posteriormente, ensejando novos níveis de articulação sociais. Por sua vez, crises estruturais são aquelas que comprometem a própria reprodução econô mica geral do capitalismo. Elas não só envolvem descontinuidades no regime de acumulação e insuficiências nos modos de regulação, mas tamb ém contradiç ões profundas entre acumulação e regulação, de tal sorte que não haja dinâmica econômica que carreie transformações politicas, institucionais e sociais tampouco peso estatal e social suficiente para alterar o modelo econô mico. (MASCARO, 2013, p. 126).

Assim, a teoria mascariana do Direito se insere no contexto da crise de legitimidade do Estado, provocada pela descrença nas instituições estatais, fenômeno que se manifesta no nível político (questiona-se a possibilidade da vontade popular ser respeitada) e no econômico (questiona-se a capacidade do Estado enfrentar as crises sistêmicas do modo de produção capitalista). Nesse contexto, inclusive, é que surge a resposta neoconservadora ao fenômeno da crise de legitimidade do Estado e da impotência de suas instituições: apreço pelo autoritarismo, proliferação do discurso de ódio, defesa da relativização dos direitos humanos, diminuição da intervenção do Estado na economia etc. Mascaro, se opondo ao pensamento neoconservador, procura mostrar que o “fracasso” do Estado – em termos político-econômicos

  • não são produto de uma falência ética ou da incompetência administrativa dos governantes, mas resultante, sobretudo, de crises que são próprias do capitalismo, fenômeno que se

encontra em curso no século XXI. Portanto, trata de centrar sua investigação nos limites estruturais do poder do Estado e do Direito em relação aos pressupostos e consequências do modo de produção capitalista agora em sua fase pós-fordista. Conforme explica Letícia Galan Garducci, ao analisar a teoria de Mascaro em Estado e Forma Política: Ao final de sua análise, o filósofo [Mascaro] empreende uma leitura das Escolas da Regulação para explicar as diversas fases que se apresentam no desenrolar do capitalismo e a transformação da própria ação estatal. Uma vez que se trata de um sistema inerentemente portador de crises, devido a suas contradições (queda tendencial da taxa de lucro, conflito de classes, etc), a cada ruptura emergem novos modelos de desenvolvimento, formados por regimes de acumulação e modos de regulação diferentes que se amoldam entre si, constituindo uma relação harmô nica até que sobrevenha uma nova crise. Exemplo disto éa sucessão do fordismo para o pós-fordismo, em que se assistiu a transição de um regime baseado na produção taylorista e Estado interventor da economia e promotor de bem-estar social para um regime centrado no capital financeiro internacionalizado e Estado neoliberal. (GARDUCCI, 2013, p. 180).

Considerando as crises sucessivas no modo de produção capitalista, em especial as existentes no pós-fordismo, Mascaro explica como o Estado reage a tal fenômeno socioeconômico. Neste ponto, ele apresenta um dos conceitos fundamentais da teoria mascariana: a conformação, uma espécie de derivação de segundo grau da forma política e da forma jurídica: Não éerrado encontrar um vinculo próximo entre forma politica e forma jurídica, porque, de fato, no processo histórico contemporâneo, o direito étalhado por normas estatais e o próprio Estado éforjado por institutos jurídicos.

Referências Bibliográficas

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