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~ CAPÍTULO 21
MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS
APLICADA À PRÁTICA DO MÉDICO DE
FAMILIA
Airton Tetelbom Stein
Aspectos-chave
... Medicina baseada em evidências (MBE) é uma abordagem médi- ca que integra a melhor ev idência atual, a experiência clínica e os valores das pessoas para otimizar os desfechos cl ínicos e a qua lida- de de vida. Com a MBE, identifica-se que a intuição, a experiência cl ínica não sistemática e a expl icação fisiopatológ ica são bases in- suficientes para a tomada de decisão. A MBE enfoca a hierarquia da melhor evidência baseada em pesquisa dispon íve l. Em sí ntese, base ia-se na melhor evidência de pesquisa, baseado em pesquisa clínica relevante, que é útil pa ra servir como fundamento para a tomada de decisão cl ínica. ... Ao estabe lece r uma relação entre pesquisa, experiência clínica e va lores da pessoa na MBE, percebe-se que a MBE identifica que a ev idência a partir da pesquisa não é o único fator determinan- te da tomada de decisão cl ínica. A ev idência de pesquisa deve ser combi nada com a experiência clín ica para identificar as cond i ções de saúde de cada paci ente e o diagnósti co. O entendimento dos valores das pessoas (preocupações, preferências e expectativas) du-
Caso clínico
rante uma consulta é essencia l para que a tomada de decisão possa se r efetiva. ... Ev idência em MBE cons iste em qualquer observação a partir de pes- quisa sob re a re lação entre o evento e o desfecho clínico, que cons- titui uma potencial evidência. No entanto as evidências não devem se r cons ide radas de igual importância pa ra a tomada de decisão. ... Hie rarquia de evi dência utilizada em MBE sign ifica a força de ev i- dência proporcionada po r uma observação não sistemática de um médico, a qua l não deve se r cons iderada da mesma manei ra que a ev i dência proporcionada por um ensaio clínico randomizado e sistematizado. ... O modo como a hie rarquia das evi dências co loca no ranking es-
tudos controlados randomizados versus estudos observaciona is e
estudos mú ltiplos versus individuais é que a hierarqu ia demonstra
que, em geral, a força da evidência aumenta com estudos controla- dos random izados e com estudos múltiplos, comparados, respecti- vamente, aos observaciona is e aos individua is.
Jonas, 55 anos, branco, é casado e balconista de uma loja de departamentos. Na lista de problemas, apresenta doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC); participa do grupo de cessação de tabagismo, estando sem fumar há 5 anos. Durante a consulta, diz que se sente triste com o seu dia a dia e não tem vontade de fazer as atividades que mais lhe dão prazer. Nega fadiga importante. Refere insônia e diminuição do apeti- te. Ao ser questionado em relação às questões a seguir, negou apresentar essa sintomatologia: concentração e atenção reduzidas, autoestima e autoconfiança reduzidas, ideias de culpa e inutilidade, visões desoladas e pessimistas do futuro, ideias ou atos autolesivos ou de suicídio. Diz que está preocupado com o problema da tristeza e apresenta dificuldade no seu trabalho e na relação com a companheira.
Jonas foi atendido pelo residente de primeiro ano Marcelo e, após a consulta, o preceptor, identifica quais perguntas serão revisadas antes da reconsu lta dessa pessoa:
1 Qual a frequência de comorbidade de um problema clínico (DPOC) com a ocorrência de depressão?
A DPOC é uma causa de morbidade e mortalidade crônicas e define-se como um grupo de doenças que se caracteriza por obstrução de vias aéreas e que inclui a bronquite crônica e o enfisema. Os sintomas de DPOC são tosse crônica, produção de escarro e falta de ar, levando à diminuição da qualidade de vida.
As pessoas com uma condição clínica de longo prazo são geralmente mais suscetíveis a terem depressão maior do que aqueles sem essas con-
dições. A associação entre condições clínicas e depressão maior não está restrita àquelas condições ligadas à depressão por meio de mecanis- mos fisiológicos. Pessoas jovens com longo período de condições clínicas têm uma prevalência elevada de depressão maior. Uma limitação da interpretação dessas informações deve-se ao fato de a informação, na maior parte das vezes, ter sido obtida a partir de estudos transversais, o que impossibilita definir a causalidade. Um estudo mostrou que pessoas com DPOC apresentam uma prevalência de depressão maior de
11, 7%, com o intervalo de confiança de 95% entre 8,8 e 14,6. As pessoas com DPOC têm 2, 7 vezes mais probabilidade de terem depressão
maior (razão de chances= 2,7; IC 95%: 2,0-3,6). 1
2 Quais os critérios diagnósticos de depressão?
A prevalência de depressão maior varia de 4,8 a 8,6% na atenção primária à saúde (APS).^2 No Brasil, um estudo multicêntrico mostrou pre- valência de 5,8% em um ano e 12,6% ao longo da vida.^3 Outro estudo mostrou grande variação entre as regiões, com prevalência entre 3% em São Paulo e Brasflia e 10% em Porto Alegre.^4
O risco de depressão aumenta 1,5 a 3,5 vezes quando a pessoa apresenta uma doença clínica crônica, síndrome dolorosa crônica, mudanças ou estresses recentes, autoestima baixa, sintomas não explicáveis.
3 Vale a pena realizar o rastreamento para depressão em todas as pessoas em nível ambulatorial?
As pessoas com depressão ocupam mais tempo dos seus médicos durante a consulta, assim como utilizam mais os serviços de saúde.^5 Exis-
te a disponibilidade de instrumentos validados de rastreamento, e o tratamento é efetivo com antidepressivos e tratamentos psicológicos, que melhoram os sintomas e a qualidade de vida. O rastreamento para identificar sintomas depressivos em todas as pessoas atendidas em APS tem um pequeno impacto na detecção, no manejo e nos desfechos da depressão, de acordo com um estudo realizado pela Cochrane Collaboration.^6 Em síntese, recomenda-se submeter à triagem pessoas que pertençam a grupos sabidamente de risco para depressão, como, por exemplo, aquelas que têm história familiar e pessoal de depressão, estressar psicossocial presente, usam exageradamente os serviços de saúde, têm doenças crônicas (doença cardiovascular, diabetes e doença neurológica), estão no puerpério, têm sintomas físicos sem explicação, dor crônica, fadiga, insônia, ansiedade e fazem abuso de substancias. 7
Os critérios diagnósticos de episódio depressivo, segundo a CID-1 O(OMS), são apresentados como sintomas fundamentais (humor deprimido,
perda de interesse e fatigabilidade) e acessórios (concentração e atenção reduzidas, autoestima e autoconfiança reduzidas, ideias de culpa e inutilidade, visões desoladas e pessimistas do futuro, ideias ou atos autolesivos ou suicídio, sono perturbado e apetite diminuído). Considera- -se um episódio leve quando a pessoa apresenta dois sintomas fundamentais e dois acessórios. Considera-se um episódio moderado, quando a pessoa apresenta dois sintomas fundamentais e três a quatro acessórios. E considera-se um episódio grave quando a pessoa apresenta três sintomas fundamentais e mais do que quatro sintomas acessórios.ª
Muitas doenças, como diabetes e doenças coronarianas, podem apresentar sintomas comuns à depressão. Nesse caso, recomenda-se que o médico otimize o tratamento da doença clínica, reavalie a condição da pessoa e trate a depressão maior como doença independente, caso ainda estiver presente. Antidepressivos parecem ser efetivos e seguros em pessoas com doenças clrnicas.^9 O uso de alguns medicamentos, como benzodiazepínicos, betabloqueadores, narcóticos e esteroides, pode desencadear sintomas depressivos.
Uma avaliação de depressão rápida e validada pode ser composta de duas questões: 10
1 Durante o último mês, você se sentiu incomodado por estar "para baixo", deprimido ou sem esperança?
2 Durante o último mês, você se sentiu incomodado por ter pouco interesse ou prazer em fazer as coisas?
O critério diagnóstico é apresentado pela resposta "sim" para as duas questões; a sensibilidade é de 96 a 97%, e a especificidade, de 57 a 67%.
Outras doenças clínicas que estão fortemente associadas à depressão são: enxaqueca (razão de chances [RC]: 2,6), esclerose múltipla (RC: 2,3), problemas de coluna (RC: 2,3), câncer (RC: 2,3), epilepsia (RC: 2,0), asma (RC: 1,9), acidente vascular cerebral - AVC (RC: 1,7), doença tireoidiana (RC: 1,4), diabetes (RC: 1,4) e doença cardíaca (RC: 1,4). 1
Jonas apresenta 2,7 vezes mais chances de apresentar depressão maior por ter o diagnóstico de DPOC. De acordo com o quadro clínico, ele apresenta um episódio leve de depressão maior, considerando que tem dois sintomas fundamentais e dois acessórios.
Teste seu conhecimento
1 Em relação a testes sensíve is, são feitas as seguintes afir mações:
- São a escolha quando a penalidade po r deixar de diagnosticar uma doença é grande. li) São particu larmente necessários quando os resultados falso- -pos itivos podem prejudicar o paciente física, emoc ional e fi- nance i ramente. Ili) São ma is úteis quando o resultado do teste realizado for ne- gativo.
Quais são as corretas?
a) Apenas 1.
b) Apenas li. c) Apenas Il i. d) Apenas 1 e Il i.
e) 1 , li e Il i.
Tabela 21. EXEMPLOS DE POEM E DOE
POEM Intermediário DOE
Dim inu ição do co- Dim i nu ição (^) da Redução de Dim i nu ição do lesterol mortalidade por eventos cardia- (^) colesterol todas as causas cos
Redução de placas Dim i nu ição da Redução da fre-^ Melhora^ do^ flu- ateroscleróticas mortalidade por quência de epi- (^) xo sanguíneo todas as causas sódios de angina^ cardíaco^ na^ an- giografia
Consumo de dieta Melhora^ da ex-^ Melhora^ da^ au-^ Di mi nu ição do com baixa gordura pectativa de vida (^) toestima colesterol sérico
Terapia de reposi- Me lhora da ex- Redução do ris- Aumento de ção hormonal pectat iva e da co de fraturas densidade óssea qual i dade de vida
No Quadro 21.2, apresentam-se as três etapas para carac-
terizar uma abordagem baseada em evidências.
Os gestores, as pessoas, os pesquisadores e os profis-
sionais de saúde são inundados com uma quantidade muito
grande de informação. As revisões disponibilizadas na Co-
chrane Collaboration respondem a esses desafios, identi-
ficando, analisando e sintetizando a evidência baseada em
pesquisas com quali1~de metodológica e apresentando-a de
uma forma acessível.
Uma revisão sistemática é um tipo de delineamento que
coleta todas as evidências a partir de pesquisas originais, as
quais são incluídas de acordo com um critério de elegibilidade
e são selecionadas com o mínimo de viés, possibilitando assim
achados mais confiáveis e a recomendação de decisões. 13
A importância da probabilidade pré-teste em APS
A estimativa de probabilidade de uma condição é indispensá-
vel na descrição da plausibilidade de existir uma determinada
doença em uma dada pessoa. A definição pelo médico da pro-
babilidade de uma doença antes da solicitação de um exame
diagnóstico (probabilidade pré-teste) auxiliará a fazer uma
estimativa final da doença (probabilidade pós-teste) (ver Qua-
dro 21.3). Os estudos de acurácia de teste diagnóstico possibi-
litam informar sobre a probabilidade pré-teste, que também é
chamada de prevalência.
Quadro 21. COMO REALIZAR UMA ABORDAGEM BASEADA EM
EVID~NCIAS
- Va li dade - Posso considerar a informação como verdadeira?
- Importância - A informação verdadeira leva a um impacto clinico?
- Aplicabilidade - A informação pode ser aplicada?
- Tipo de estudo preferencial - Rev isão sistemática
Quadro 21. DEFINIÇÃO DE PROBABILIDADE PR~·TESTE E PóS-TESTE
- Probabilidade pré-teste - a probabilidade de uma condição estar pre- sente antes de os resultados de um teste diagnóstico serem conhecidos
- Probabi li dade pós-teste -a probabilidade de uma condição estar pre- sente depois de os resultados de um teste serem conhecidos
O teste, para ser efetivo em detectar ou excluir uma
doença específica, é influenciado pela probabilidade pré-
-teste de uma doença. Um teste geralmente não é útil caso a
probabilidade pré-teste seja muito baixa ou muito alta. Isso
se deve a duas razões: raramente será útil para modificar o
manejo do doente e o risco de haver falso-positivo (quan-
do tiver uma baixa frequência de doença) e falso-negativo
(quando tiver uma alta frequência de doença). Em outras
palavras, existe uma "área de indicação" para o teste entre
esses extremos de probabilidade pré-teste. Por exemplo, tes-
tes com uma especificidade moderada não são úteis para o
rastreamento em uma população assintomática (com baixa
probabilidade pré-teste), porque tem um alto risco de resul-
tados falso-positivos.
A probabilidade de que uma doença exista antes de o teste
ser realizado é chamada de probabilidade pré-teste e é igual à
prevalência da doença em uma população.
A justificativa mais importante para a solicitação de um
exame complementar é a de redefinir a probabilidade de uma
doença, ou seja, a decisão de realizar um teste pressupõe que
os resultados irão modificar de forma relevante a probabilida-
de de a doença estar presente ou ausente.^14
Ao definir o limiar diagnóstico, é possível identificar
quando a probabilidade pré-teste é útil (probabilidade inter-
mediária - entre 25 a 75%) e quando é pouco útil (probabili-
dade pré-teste baixa - menor que 25% - ou alta - maior que
75%) (Figura 21.1).
Etapas da MBE
O médico deve avaliar as características da pessoa que está
sendo atendida, assim como o contexto clínico, para determi-
nar a pertinência de um assunto, que pode incluir o diagnós-
tico diferencial, as decisões de tratamento ou o prognóstico.
O médico deve definir a dúvida, a partir dessa primeira ava-
liação, e propor uma pergunta que lhe possibilitará, ao final,
tomar uma decisão embasada em evidências.
Primeira etapa - formular uma questão que possa ser respondida
O primeiro passo é esclarecer os assuntos-chave do quadro
clínico daquela pessoa e desenvolver uma questão clínica es-
pecífica (diagnóstico, tratamento, prognóstico ou etiologia).
É essencial que se tenha uma abordagem bem elaborada de
pergunta, para se conseguir encontrar uma resposta que possa
orientar as ações.
Uma abordagem útil para formatar uma questão clínica
envolve uma questão com vários elementos-chave - devem-se
incluir quatro componentes para cada questão, que são carac-
terizados como PICO. Recentemente, foi disponibilizado o
site http://go.usa.gov/xFO, que se constitui em uma aplicação
para celular, smartphones e computadores tipo tablet nos quais
Limiar de teste
Limiar de tratamento
75o/o 100%
.... Figura 21.
Zonas de decisão no espectro de proba- bilidades.
Ba ixa probab ili dade, nenhum teste ad ici ona l
Probabilidade entre o limiar do teste tratamento
Alta probab ilid ade, nenhum teste adicional
i===>
Sem tratamento Ma is testes são necessár ios
os médicos podem buscar uma literatura médica atual a partir do Medline.
- P - Pessoa ou população ou problema de saúde: esse com- ponente existe para delimitar a população, por exemplo, por idade, sexo, comorbidades, local de atendimento (atenção primária);
- I - Intervenção ou indicador: a terapêutica ou a medida diagnóstica que se deseja estudar;
- C - Comparação: outra medida que já se tenha como uso comum ou padrão de comparação;
- O - Outcome (desfecho): o objetivo ou resultado que se espera com a implementação da medida.
Por exemplo (enfoque terapêutico):
- P - Adultos com otite média;
- I - Tratamento com amoxicilina;
- C - Comparada ao placebo;
- O - Resulta em melhora mais rápida da dor e de outros sintomas associados.
Segunda etapa - buscar a melhor evidência científica Tendo uma questão clínica bem definida, o próximo passo é en- contrar a evidência na literatura. Muitos recursos estão disponí- veis· assim se deve aprender as vantagens e desvantagens de cada estratégia,^ '^ ' para determinar quando aplicar. O primeiro.^. pass? para a busca de evidências deve ser identificar os DECS - Descri- tores da Saúde (em inglês, MESh-Medical Subject Heading)*. A estratégia de busca com um filtro mais efetivo na base de dados do Medline deve ser realizada utilizando-se o MESh. Na Tabela 21.2 são listados endereços eletrônicos úteis, nos quais se pode encontr~r literatura, bem co~? ferr~m:nt~s,
como calculadoras eletrônicas e cursos presenciais e à distancia.
O Medline apresenta mais de 16 milhões de referências a partir de 1950. No momento, conta com 5.200 revistas em 37 línguas indexadas. Outra base de dados muito relevante para se ter uma maior abrangência das revistas publicadas é o EM- BASE, que está disponível com assinatura paga. O EMBASE contém mais de 12 milhões de registros a partir de 1974. Nesse momento apresenta 4.800 revistas, que são indexadas no EM- BASE em'^30 línguas.^13 Existem recursos que apresentam resumos estruturados de artigos científicos, os quais contemplam tanto aspectos de
- Podem ser encontrados no site www.bireme.br, disponível em inglês.
Tratamento
qualidade metodológica, quanto de ~mpacto dos result~d.os. As revistas ACP Journal Club e Ev1dence-Based Med1c1ne também apresentam comentários de especialistas sobre os ar- tigos avaliados.. A Biblioteca Cochrane é uma das melhores e mais com- pletas fontes de evidência disponíveis, pois, além das revisões da própria colaboração Cochrane, oferece o banco de dados DARE de revisões sistemáticas**. Nela também está disponível a lista com o resumo de todos os ensaios clínicos randomiza-
d d
os 1spon1ve1s..^ ,^.^13
Na Tabela 21.3, são apresentados exemplos de fontes de revistas disponíveis em texto integral (conteúdo completo).
Terceira etapa - avaliar criticamente a evidência A MBE enfatiza a avaliação crítica. Existem vários recursos para auxiliar o processo de avaliação .c~ítica. Na Tabela 2~.4, são apresentados os instrumentos utlhzados para cada tipo de estudo.
Quarta etapa - aplicar a evidência Cada tomada de decisão no manejo da pessoa requer um jul- gamento.. No entanto é necessário considerar como aphcar os re-
sultados da literatura^ '^ ao paciente. Deve-se pensar se os cri-.
térios de inclusão das pessoas, assim como as intervenções, são compatíveis com o local de atendimento. Além disso, é necessário bastante cautela em relação a intervenções novas, especialmente as farmacológicas. Muitas vezes são fruto de estudos desenvolvidos em cenários diferentes dos de APS. Assim, quando utilizados para a população em ge- ral, potenciais danos não percebidos anteriormente podem manifestar-se. Portanto, o processo decisório atual, que leva em conta os princípios básicos da MBE, deve enfocar três aspectos: estu- dos com validade científica, experiência clínica individual e preferências da pessoa.
Enfoque diagnóstico na atenção primária
Marlene, 26 anos, vem à consulta com queixas de disúria e polaci-
úria há dois dias. Relata que pe rceb eu sangue ao secar-se. Dr. Este- vão ficou na dúvida a respeito da confiabilidade dos dados da his- tó ri a, para definir o diagnóst ic o de cistite, ou se ser iam necessários
** O acesso é gratuito pelo site da Bireme (www.bireme.br).
desempenho quando é utilizado para avaliar pessoas com
uma doença mais grave do que pessoas com uma doença me-
nos avançada. 20
Também fica claro que testes diagnósticos não são neces-
sários quando a doença é clinicamente evidente, assim como
naquelas situações em que ela é muito pouco provável.^21 • 22
Quando um médico solicita um exame como auxílio ao
diagnóstico, ele quer saber o quanto esse exame pode auxiliar
na tomada de decisão, quer esse teste seja uma pergunta par-
ticular na anamnese, uma manobra específica no exame físico
ou um exame complementar de laboratório ou imagem. Para
avaliar a qualidade de um teste diagnóstico, é necessário saber
sobre validade e precisão.
Um teste diagnóstico deve ser capaz de discriminar os
doentes dos não doentes, ajudando a confirmar ou refutar o
diagnóstico. Quando o teste é positivo em indivíduos doentes,
chama-se o teste de verdadeiro-positivo e, quando é negativo
em indivíduos sem a doença, chama-se o teste de verdadeiro-
-negativo. Contudo, a maioria dos testes está sujeita a erro, de
modo que o seu resultado pode ser normal em um indivíduo
doente (falso-negativo) e anormal em um indivíduo hígido
(falso-positivo). Na Tabela 21.5, essas informações são apre-
sentadas em um formato 2 x 2.
A partir da Tabela 21.5, pode-se definir as características
de desempenho de um teste:
Sensi bi 1 idade
É a proporção de indivíduos que têm teste positivo entre todos
os doentes, ou seja, é a capacidade do teste de identificar os
indivíduos doentes em uma população. Assim, a sensibilidade
é dada pela proporção:
(indivíduos com a doença e com teste positivo)/ (total de
doentes) = a/ (a + e)
Um teste sens ível raramente deixa de diagnostica r a doença, sen- do o teste de escolha quando o risco ocas ionado por se de ixar de
diagnostica r a doença é alto. Torna-se mais útil quando seu resu lta-
do é negativo, po is fortalece a ide ia de que o ind ivíduo realmente não tem essa doença. No caso de Ma rl ene, a sens ibi li dade dos seus
sintomas em re lação à presença de cistite diz quantas pessoas que
têm a cistite vão ter o sintoma, o que não é um dado clínico muito relevante para esse caso.
Especificidade
É a proporção de indivíduos com teste negativo entre os não
doentes, ou seja, é a capacidade do teste de não classificar
Tabela 21.
RELAÇÃO ENTRE OS RESULTADOS DE UM TESTE DIAGNÓSTICO E A OCORR~NCIA DA DOENÇA
Doentes Não doentes
Teste positivo Verdadeiro-positivos Falso-pos it ivos A B
Teste negativo Falso-negat ivos Verdadeiro - negativos e D
equivocadamente indivíduos sadios como doentes. Assim, a
especificidade é dada pela proporção:
(indivíduos sem a doença e com teste negativo) /
(total de não doentes) =d/ (b +d)
Um teste com alta especif ici dade raramente classificará de forma errônea as pessoas como portadoras da doença quando elas não o são. No caso de Marlene, co nh ecer a espec ificidade desses sin- tomas para a presença de cistite nos diz a proporção de pessoas sem cistite que não apresentam disúria, polaci úria e urgência miccional.
Valor preditivo positivo ,
E a probabilidade de o indivíduo ter a doença se o teste for
positivo, ou seja, entre indivíduos com teste positivo, quantos
realmente têm a doença. Desse modo, esse parâmetro pode
ser calculado pela proporção:
(indivíduos doentes com teste positivo)/ (total com teste
positivo)= a/ (a+ b)
Esse dado é o mais relevante pa ra a pessoa, cons ide rando que in- fo rm a qual a probabi li dade de ela ap resentar o diagnóstico quando o resu ltado do teste foi positivo. No caso que está sendo ava li ado, o va lor pred itivo diz a probab ili dade de, diante de certos sintomas, haver uma cistite.
Valor preditivo negativo ,
E a probabilidade de o indivíduo não ter a doença quando o
seu teste é negativo, ou seja, entre indivíduos com teste nega-
tivo, quantos realmente não têm a doença. Desse modo, esse
parâmetro pode ser obtido pela equação:
(indivíduos sem a doença e com teste negativo)/ (total com
teste negativo) = d/ (e+ d)
No caso clín ico em questão, por exemp lo, é importante saber se a
ausência de febre é um dado confiável para exclu ir a presença de pielonefrite; para tanto, é preciso saber o va lor preditivo negativo desse dado.
Os va lores pred itivos (e, portanto, as probabilidades pós-teste) va ri am bastante com a preva lência da doença (probabilidade pré- -teste). Logo, quase sempre se rá út il dete rmi na r um subgrupo de pessoas com menor chance de te r a doença, se se deseja aumentar o va lor preditivo negativo do teste, ou com maior chance, quando se deseja melhorar o valor preditivo positivo. Isso tem um enorme im pacto na prática clínica.
Razão de probabilidades (Jikelihood ratio)
A expressão dos resultados apenas pela sensibilidade e espe-
cificidade fornece uma ideia muito restrita (teste positivo ou
negativo). Dessa forma, foi desenvolvida uma medida denomi-
nada razão de probabilidades, também chamada de razão de
verossimilhança, derivada do termo likelihood ratio. A razão
de verossimilhança para um teste positivo (RVP) expressa o
quanto é mais provável o indivíduo ter a doença quando o tes-
te é positivo. Dessa forma, a razão de probabilidades fornece
uma informação mais ampla do que a abordagem dicotômica
obtida com a sensibilidade e especificidade. Isso é particular-
mente útil quando se avaliam testes diagnósticos que repre-
sentam variáveis contínuas.
A razão de probabilidades para um teste positivo pode
ser calculada da seguinte forma:
(Probabilidade de um teste positivo em indivíduos
com a doença)
(Probabilidade de um teste positivo em indivíduos
sem a doença)
A partir da tabela 2 x 2, tem-se:
a a+c
b
b+d
Seguindo o mesmo raciocínio, pode-se calcular a ra-
zão de verossimilhança para um teste negativo (RVN), a
qual informa quantas vezes é mais provável o indivíduo ter
a doença se o teste for negativo. Assim, tem-se:
(Probabilidade de um teste negativo em indivíduos
com a doença)
(Probabilidade de um teste negativo em indivíduos
sem a doença)
A partir da tabela 2 x 2, tem-se:
e a+c
d
b+d
Integrando as informações
Tendo-se disponíveis a prevalência (probabilidade pré-teste) e
a razão de probabilidades, pode-se estimar facilmente a pro-
babilidade pós-teste da doença, utilizando-se um nomograma
(Figura 21.2). Esse nomograma é uma ferramenta que pode
ser utilizada cotidianamente.
Para utilizar um nomograma, traça-se uma reta que parte
da probabilidade pré-teste e cruza a razão de probabilidades.
Estendendo essa reta até a próxima coluna, tem-se a probabi-
lidade pós-teste.
Devem-se identificar dois tipos de investigação diagnósti-
ca - estratégia em série e em paralelo. A investigação com tes-
tes em série (solicitação de um novo teste, ao receber o resul-
tado de um teste anteriormente solicitado) tem como virtude
aumentar a especificidade da estratégia, enquanto a estratégia
em paralelo (solicitação de vários testes simultaneamente,
como ocorre em um serviço de emergência) caracteriza-se por
aumentar a sensibilidade. No Quadro 21.4, são apresentadas
orientações gerais sobre testes diagnósticos.
10
20
30
50 60 70
80
90
500 200 100 50 20 10
,
, , , ,
90
80
70 60 50
o/o 20
10
99------------, Probabilidade Razão de Probabilidade pré- teste probabilidades pós- teste
. Figura 21. Nomograma para esti mat iva da probabilida - de pós-teste.
Quadro21A ORIENTAÇÕES GERAIS SOBRE TESTES DIAGNÓSTICOS
- O maior motivo para se solicitarem exames complementares é redefi- nir a probab il idade de doença.
- Os testes também podem ser ut ilizados para se estimar me l hor o prognóstico de uma doença já diagnosticada.
- Os valores preditivos negativo e positivo dependem da probabilidade pré-teste da doença para dada pessoa; por esse motivo, é importante conhecer a prevalência da doença em questão.
- Um teste deve ser so li citado quando o resultado determina d iferente conduta.
- Testes em série priv il eg iam a especificidade, enquanto testes em pa- ra lelo aumentam a sensibilidade em detr imento da especificidade.
- Quando o teste é altamente sensível, considera-se que o resultado negativo pode ser afastado do diagnóstico diferencial (SnNout).
- Quando o teste é altamente especifico, considera- se que o resultado positivo pode def inir o d iagnóstico (SpP i n).
Como o médico pode manter-se atualizado
A Epidemiologia Clínica introduz métodos para estabelecer
diagnósticos, estimar prognósticos, reconhecer fatores de ris-
co e decidir sobre a eficácia, a efetividade e a eficiência de
intervenções terapêuticas e preventivas.
Existem dois tipos de acesso à informação: just in case (no
caso de) e just in time (na hora certa).
- Just in case (no caso de) - a partir da vasta quantidade de
informação que passa pela mesa ou chega diariamente à
caixa de correio das pessoas (push ou "empurrada").
- Just in time (na hora certa) - de maneira direcionada, pro-
curando informações em resposta a uma questão específi-
ca (pull ou "puxada").
Os primeiros passos para coletar informações devem ser:
identificar os fatores em estudo, os desfechos clínicos, o foco
do estudo e o tipo de delineamento (Tabela 21.7).
Para cada tipo de pergunta, deve-se escolher um tipo de
estudo, de acordo com a Tabela 21.8.
Em síntese, uma tarefa fundamental de todos os profissio-
nais de saúde é identificar dúvidas ao atender um paciente e
identificar as perguntas relevantes utilizando o formato PICO
(P - paciente ou população; 1 - intervenção ou indicador; C -
comparação; O - outcome - objetivo ou desfecho), fazer uma
busca da literatura e desenvolver habilidades para avaliar criti-
camente os artigos relevantes para responder à pergunta iden-
tificada no início do processo.
Tabela 21. FATOR EM ESTUDO E DESFECHO CÚNICO EM ALGUNS ENFOQUES DE PESQUISA CUNICOEPIDEMIOLÓGICA
Enfoque Fator de risco Desfecho
Etiológico Fator de risco para o desenvol- Doença vimento da doença
Diagnóstico Teste diagnóstico Doença ou padrão-ouro
Prognóstico (^) Doença ou fator prognóstico Evolução da doença
Intervenção Tratamento ou ação preventiva (^) Evolução da doença ou prevenção
Tabela 21. TIPO DE DELINEAMENTO PARA CADA ENFOQUE CÚNICO
Enfoque Tipo de delineamento
Etiologia Coorte ou caso-controle
Diagnóstico Estudo de acurácia
Tratamento/enfoque preventivo Ensa^ io^ clínico^ randomizado
Prognóstico (^) Coorte
O presente capítulo apresentou a importância da epide-
miologia e da MBE para o médico, instrumentalizando-o
com uma metodologia científica em APS. Também apresen-
tou estratégias para realizar uma avaliação crítica e a apli-
cabilidade de uma informação, com o objetivo de realizar a
tomada de decisão.
REFERÊNCIAS
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LEITURA RECOMENDADA
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