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Análise da Poética de Olavo Bilac: Objetividade Construtiva e Beleza Retórica, Exercícios de Poesia

Este documento analisa a poética de olavo bilac, um poeta brasileiro influente no final do século xix e início do século xx. Através do princípio da objetividade construtiva, bilac enfatiza a importância do esforço de composição e do domínio técnico do saber especializado na criação poética. A beleza é vista como um efeito retórico produzido por elocução eficiente. O texto também aborda a influência do neoclassicismo francês e da estatuária grega na poesia brasileira.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Ronaldinho890
Ronaldinho890 🇧🇷

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REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 98-111, junho/agosto 2002
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TRADIÇÕES DE LEITURA
ascensão e a queda de Olavo
Bilac possuem uma história.
Em 1888, aos 23 anos, quan-
do ainda era estudante de Me-
dicina no Rio de Janeiro, ob-
teve enorme sucesso com a pu-
blicação do volume Poesias.
Desencadeador de crescente onda de entu-
siasmo, foi empolgando críticos, jornalis-
tas, poetas, romancistas e pessoas suposta-
mente menos especializadas, até ser consi-
derado, em 1913, o maior poeta brasileiro
vivo, com o voto explícito de grandes artis-
tas e intelectuais do período (1). Hoje, pode-
se dizer que a poesia bilaquiana oscila en-
tre o apreço de leitores que ainda não incor-
poraram a renovação modernista e a recusa
de intelectuais que ainda não se libertaram
do padrão modernista. O presente ensaio
pretende contribuir para uma terceira hipó-
tese de leitura.
Partirá da idéia de que o texto poético
não se constitui como entidade isolada, mas
como parte das convicções sociais de sua
época ou como enunciado necessariamen-
te vinculado ao momento de enunciação.
Sem perder sua identidade de construção
poética, o poema será considerado em suas
relações intrínsecas com outras formas de
comunicação social, por se julgar que a
formulação do discurso artístico partilha
dinamicamente das convicções coletivas de
seu tempo. Assim, além de artefato verbal,
o poema será concebido como evento cul-
tural, que resulta da articulação de vozes
do presente e do passado, podendo também
Artifício,
persuasão
e
sociedade
em
Olavo Bilac
a
IVAN TEIXEIRA
Um trecho deste ensaio foi publica-
do pela
Folha de S
.
Paulo
, com o
título de “Um Passo em Falso do
Artifício” (Mais!, 5 de maio de
2002, pp. 18-9).
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TRADIÇÕES DE LEITURA

ascensão e a queda de Olavo Bilac possuem uma história. Em 1888, aos 23 anos, quan- do ainda era estudante de Me- dicina no Rio de Janeiro, ob- teve enorme sucesso com a pu- blicação do volume Poesias. Desencadeador de crescente onda de entu- siasmo, foi empolgando críticos, jornalis- tas, poetas, romancistas e pessoas suposta- mente menos especializadas, até ser consi- derado, em 1913, o maior poeta brasileiro vivo, com o voto explícito de grandes artis- tas e intelectuais do período (1). Hoje, pode- se dizer que a poesia bilaquiana oscila en- tre o apreço de leitores que ainda não incor- poraram a renovação modernista e a recusa de intelectuais que ainda não se libertaram do padrão modernista. O presente ensaio pretende contribuir para uma terceira hipó- tese de leitura. Partirá da idéia de que o texto poético não se constitui como entidade isolada, mas como parte das convicções sociais de sua época ou como enunciado necessariamen- te vinculado ao momento de enunciação. Sem perder sua identidade de construção poética, o poema será considerado em suas relações intrínsecas com outras formas de comunicação social, por se julgar que a formulação do discurso artístico partilha dinamicamente das convicções coletivas de seu tempo. Assim, além de artefato verbal, o poema será concebido como evento cul- tural, que resulta da articulação de vozes do presente e do passado, podendo também

Artifício,

persuasão

e

sociedade

em

Olavo Bilac

a

IVAN TEIXEIRA

Um trecho deste ensaio foi publica- do pelaFolha de S.Paulo, com o título de “Um Passo em Falso do Artifício” (Mais!, 5 de maio de 2002, pp. 18-9).

bem-humoradas contra os parnasianos. Hoje, não é difícil perceber que a glória póstuma do maior ícone da poesia brasileira de seu tempo dificultava a afirmação dos jovens poetas do Modernismo. Conscientes da no- vidade dos valores que introduziam, não lhes restava alternativa senão a justificativa di- dática dos manifestos – com história e fun- damentação teórica –, que, aliás, extrapolou a formalidade do texto escrito e manifestou- se também em conversas, posturas e gestos coletivos. Por contingências históricas, os jovens venceram. Pelo menos quanto às soluções

se tornar objeto de apropriações no futuro. Por essa perspectiva, as duas hipóteses anteriores (a leitura passadista e a moder- nista) apresentam-se como manifestações desiguais e insuficientes da mesma família conceitual, exatamente porque desconsi- deram os vínculos entre enunciado poético e enunciação do poema. A primeira, su- pondo-o como manifestação privilegiada do belo absoluto, ignora a poesia como resultante de operações lógicas do juízo. A segunda, pautando-se pela herança de 22, valoriza o poema pelo grau de ruptura lin- güística ou de problematização social que apresenta, tomando como critério os valo- res do momento de leitura, e não o da pro- dução do texto. Como se sabe, ao terminar o século XIX, Olavo Bilac – ao lado de Machado de Assis

  • representava o que havia de melhor nas letras brasileiras. Pela perspectiva de seu tempo, teria participado decisivamente do processo de atualização da arte local, enri- quecendo-a com fórmulas e pensamentos literários da Europa, adequadamente ajus- tados à realidade brasileira. Um dos crité- rios para valorização do artista na época, como um pouco ainda hoje, é o nível de seu relacionamento com as novidades euro- péias, critério talvez hipertrofiado durante o movimento de 1922. Enfim, a qualidade de Bilac praticamente não foi contestada em vida. Até José Veríssimo, o mais auste- ro defensor do que então se considerava boa literatura, elegeu alguns de seus sone- tos como o ponto máximo a que tinha che- gado a possibilidade de beleza nessa espé- cie de poesia no Brasil (1977, pp. 9-15). Apesar disso – ou exatamente por isso –, o padrão de bom gosto criado pela geração de Bilac foi vivamente combatido pelos mo- dernistas de 22. No “Prefácio Interessantís- simo”, manifesto de Paulicéia Desvairada , Mário de Andrade cita alguns versos de sua autoria contra outros de Bilac. Apresenta os versos bilaquianos como “melodia” ultra- passada; os próprios, ele os apresenta como “harmonia” revolucionária, insinuando tra- tar-se da única opção aceitável para o mo- mento. Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, dentre outros, produziram sátiras

IVAN TEIXEIRA é professor de Cultura e Literatura Brasileira no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP. Atualmente, desenvolve pesquisa como professor convidado no Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Texas, em Austin (EUA). É autor de, entre outros, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica (Edusp).

1 No célebre concurso para “Príncipe dos Poetas Brasilei- ros”, promovido pela revista ca- riocaFon-Fon, votaram em Bilac pessoas como Manuel Bandeira, Lima Barreto, João do Rio, Gilberto Amado e José Oiticica, entre outros. Cf.Fon- Fon, número 16, ano VII, 19 de abril de 1913. Logo após a morte de João Cabral de Melo Neto, em 1999, aFolha de S.Paulo, de certa maneira, reviveu esse tipo de eleição, promovendo velada disputa em busca de um suposto “novo príncipe” da poesia brasileira.

Olavo Bilac,

em caricatura

de Loredano

enfim, de um poeta de aguda consciência retórica, o que lhe permitiu programar efei- tos, em vez de expressar sentimentos – des- de que parecesse o contrário, como se obser- va no soneto “A Um Poeta”, de Tarde , edi- tado em 1919, logo após a morte do poeta:

“Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua, Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade”.

O soneto funda-se no conceito parado- xal da arte como artifício que deve parecer espontâneo. Essa é a dinâmica inerente ao princípio retórico de que a beleza, sendo o objeto da arte, não passa de efeito produzi- do por elocução eficiente. No primeiro terceto, o poeta desnuda o princípio, afir- mando que a função do artista consiste em provocar efeitos agradáveis, isto é, em pro- duzir a sensação de beleza, que só se reali- za quando o artifício é percebido como natural. Logo, o esforço técnico da enuncia- ção não pode deixar marcas no enunciado. Em outros termos, a elocução eficiente (“Arte pura”) seria aquela que arrebata o leitor do plano técnico para o domínio da natureza, em que beleza e verdade se rela- cionam em harmoniosa hierarquia. Repa- re-se, todavia, que a verdade bilaquiana não se confunde com as essências platônicas e que o conceito de natureza expresso no soneto não passa de argumento retórico para legitimar suas asserções conceituais. En- tendida como efeito de efeito, a sua é, an- tes, uma verdade de classe, produzida por discursos que, sendo culturais, apresentam-

se como naturais. Afinal – pergunta o en- saio –, não será essa a estrutura de todas as verdades? Assim, o poema pressupõe duas espécies de arte: uma que consegue ocultar os artifícios ( andaimes ), tornando-se ini- miga deles; e outra que, sem conseguir ocultá-los, torna-se escrava deles, pois, em vez de produzir impressão de naturalidade, revela o esforço despendido no trabalho. A tópica desenvolvida no soneto costu- ma ser interpretada como síntese do ideal da arte pela arte, assumido como típico do Parnasianismo. O ensaio prefere entendê- la como retomada do pressuposto clássico (2) de que, em poesia, o domínio da técnica deve sobrepor-se ao mito do saber espontâ- neo, posto em moda pelo Romantismo e radicalmente combatido por Olavo Bilac e por seus companheiros de geração. Pela perspectiva neoclássica do Parnasianismo, sem beleza não há verdade, assim como sem forma não há poema. Ao afirmar, em “Profissão de Fé”, manifesto que abre o volume Poesias , que o poeta deve servir à Forma e ao Estilo , Olavo Bilac já propu- nha a beleza como finalidade da poesia. Tanto neste soneto quanto naquele mani- festo, a beleza ideal revela-se em dimensão plástica, corporificada em objetos tangíveis (escultura, jóia, porcelana, edifício), a des- peito de sua natureza verbal. Resultante da apropriação escravista, católica e burguesa de aspectos aparentes da Grécia Antiga, o ideal de beleza parnasiano não deixa, por- tanto, de mimetizar o padrão de elegância da elite pensante do Rio de Janeiro, de onde se alastra por todo o Brasil letrado. Assim, o conceito de beleza parnasiano não é tão “abstrato” quanto parece, pois se classifica como resultado de técnica dis- cursiva, e não como essência, objetivando- se com o propósito específico de atender a um horizonte de expectativas socialmente bem definido. A poética cultural responsá- vel por esse padrão de beleza é, em sua feição mais característica, a mesma que, por exemplo, não conseguia enxergar per- versão inerente, por exemplo, na exclusão social dos negros recém-saídos da escravi- dão. Nesse sentido, seria antes uma poética sofística do que platônica, já que prefere o

2 O vocábuloclássico é usado aqui em sua acepção oitocen- tista, podendo envolver tanto apropriações de aspectos da cultura greco-romana quanto das artes quinhentistas, seiscen- tistas e setecentistas. Em senti- do amplo, liga-se, portanto, à busca do equilíbrio, da clare- za, da simplicidade e da per- feição lingüística. Por esse cri- tério, o Parnasianismo talvez pudesse ser considerado, no Brasil, a última reapropriação coesa e programática do que se elegeu comoclássico, es- pecialmente, na arte antiga e na quinhentista. Da mesma forma, o século XIX caracteri- za comoneoclássicas algumas manifestações da arte setecen- tista. A propósito, não convém esquecer que tanto Camões quanto Bocage contam-se en- tre os modelos declarados de Bilac.

contingente ao essencial, a convicção à verdade, embora ostente o contrário. As- sim, sem se separar de uma noção funcio- nal de verdade (as verdades, enfim, não serão sempre funcionais?), a idéia de bele- za confunde-se com o domínio de um saber técnico, que é exaltado no poema como fator distintivo da vida em sociedade. Tal elogio da técnica – a técnica de obter o belo e, portanto, de propagar o bem e a verdade – acabou por reunir em torno de si a maior parte dos artistas, dos intelectuais e dos leitores da sociedade brasileira da época. Em sentido restrito, o elogio da técnica manifesta-se tanto na idéia de domínio da retórica em geral quanto no domínio da lín- gua portuguesa em particular. Desse modo, o ideal de perfeição artística abandona, na ação cultural da poesia, a esfera do belo absoluto para privilegiar os valores relati- vos da vida social: domina os meios e terás os fins – eis um dos sentidos possíveis do soneto. Esse era, de fato, um dos compo- nentes do discurso progressista e civilizador da cultura carioca da belle époque , que se configura com tanta eloqüência nas revis- tas ilustradas do período (profusão de co- res e vinhetas!), das quais Olavo Bilac era contínuo colaborador: Cosmos , Careta , Fon-Fon , entre outras.

EROTISMO ARQUEOLÓGICO (3)

Na poética da cultura parnasiana, a eu- foria técnica das grandes revistas convive com a nostalgia da arte greco-romana, cujo desenvolvimento no Brasil imperial forne- ce matrizes para a poesia do final do século XIX. Como se sabe, em 1816, d. João VI instalou no Rio de Janeiro a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, que persiste ainda hoje no Museu Nacional de Belas Artes. Sob influência do chamado neoclas- sicismo francês, essa primeira fase do estu- do sistemático das artes plásticas no Brasil privilegiou a imitação da estatuária grega, para cujo ensino foram modeladas em ges- so cópias perfeitas das principais escultu- ras da tradição antiga. Para se graduar pela

Academia, o aluno tinha de demonstrar habilidade suficiente em imitar tais mode- los. Essa tradição persistiu durante todo o século XIX, projetando-se até os primeiros anos do século XX. O Museu Nacional de Belas Artes mantém em exposição algu- mas dessas peças, a partir das quais se pode ter idéia do conceito de arte da época, por cuja manutenção se esforçou Manuel de Araújo Porto-Alegre, um dos mais operantes diretores da instituição no sécu- lo XIX. Bilac deve ter tido contato com o ambiente da então Academia de Belas- Artes. É provável que tenha extraído daí sugestões para seu repertório de arte anti- ga, que se manifesta particularmente nos poemas eróticos de Sarças de Fogo e de Alma Inquieta , dominados por formas e po- sições da escultura grega. Alguns dos poemas mais emblemáticos do erotismo bilaquiano são “O Julgamento de Frinéia”, “A Tentação de Xenócrates”, “Tercetos”, “Satânia”, e “Alvorada do Amor”. Os dois primeiros desenham-se como pura imaginação arqueológica, no sentido de restaurarem uma suposta licen- ciosidade da Grécia antiga. Os três últimos encarnam o ideal pós-romântico de eman- cipação burguesa dos desejos, em que se figuram aspectos a um tempo decadentes e joviais do discurso boêmio-amoroso do Rio de Janeiro do tempo. Em ambos os casos, Bilac soube adaptar sugestões de Baudelaire, que ele leu e traduziu. Como é sabido, a partir dos anos 70 do século XIX, Baudelaire foi muito traduzi- do pelos poetas anti-românticos no Brasil. Uma das conseqüências da presença das Flores do Mal no Rio foi a hipertrofia do sexualismo mórbido, que atinge proporções antropofágicas, em função do acúmulo de metáforas que encareciam os aspectos car- nais da posse sexual (Machado de Assis [1910], p. 116; Antonio Candido, 1987, pp. 25-33). Os principais representantes dessa poesia de ênfase nos aspectos naturais do sexo foram Carvalho Júnior, Fontoura Xavier e Teófilo Dias, todos empenhados em eliminar a musa romântica, identificada com mulheres angelicais e abstratas. Ao mesmo tempo, esses poetas pretendiam

3 Esta unidade foi extraída do pre- fácio à edição dasPoesias, de Bilac, que preparei para a Editora Martins Fontes, em

  1. Em favor da unidade da reinterpretação do poeta pro- posta pelo presente ensaio, peço licença para reproduzir aqui, com alterações, trechos publicados naquele volume.

porque admite a inclusão de elementos não- verbais como integrantes da máquina per- suasiva do discurso. Assim, se o gesto tea- tral da exposição do corpo de Frinéia fun- cionou, no Areópago, como argumento em favor de sua absolvição, procura, no poe- ma, convencer os leitores a admitir em seu código de conduta a hipótese de uma trans- gressão ideal, que, em termos de elegância mundana, pode, ao propiciar uma certa in- terferência da Grécia no cotidiano carioca, promover um “toque de classe”, muito ambicionado pelas elites da época.

ARTE + NATUREZA + ESTUDO

Apesar de esquecida atualmente, outra fonte básica do pensamento poético de Olavo Bilac é o Tratado de Metrificação , em cujas páginas também se confirma o princípio da objetividade construtiva, do qual decorre o conceito de beleza como efei- to retórico, que implica o elogio ao domí- nio técnico do saber especializado como prática social desejável. Há, nesse livro, a defesa de uma das principais convicções da teoria e prática bilaquianas, que é o alar- gamento dos horizontes da poesia median- te o estudo do vernáculo e a leitura dos clás- sicos. Composto em parceria com Guima- rães Passos em 1910, o pequeno manual, longe de ser unicamente uma exposição de técnicas do verso, restaura alguns dos ele- mentos essenciais das poéticas tradicionais, adaptando o gênero preceptístico às neces- sidades didáticas do tempo. Nele, lê-se o seguinte trecho (1918, p. 79):

“Deve o poeta estudar com afinco a sua língua, conhecer-lhe as origens, a filiação, ler o maior número de clássicos autoriza- dos, para depois se arriscar à arte difícil do verso, de todas as artes a mais difícil. Só depois de tudo esmiuçado, recolhido, re- gistrado e analisado, pode escrever. Sem grande cópia de vocábulos sempre será falha a enunciação do pensamento. A língua em primeiro lugar, – depois a arte, que trará o deleite e a vitória”.

Como se vê, o texto desenvolve a mes- ma tópica do poeta entregue ao paciente trabalho de escrever, com uma importante diferença: no soneto, é caracterizado por um misto de devoção religiosa e obstina- ção profana; aqui, caracteriza-se unicamen- te pelo espírito cívico do conhecimento sistemático. Genericamente, portanto, a passagem contém uma recomendação ao estudo e à disciplina, que se particulariza na necessidade de um saber específico (a língua portuguesa), que servirá de base a outro saber mais específico ainda (a poe- sia). Fundado em noção corrente desde Aristóteles e Quintiliano (1790, vol. II, pp. 7-8), o texto supõe, ainda, dois usos da lín- gua: o uso correto e apenas suficiente às necessidades básicas da comunicação; e o uso artístico, que, além de comunicar o pensamento, procura impressionar o leitor, causando-lhe admiração e espanto, por meio da aplicação conveniente dos tropos e figuras. Em termos mais específicos, o emprego poético da língua (“a mais difícil das artes”) seria aquele que logra produzir no leitor a paixão ou afeto idealizado pelo poeta, processo em que a natureza se mis- tura com a cultura por meio da imitação artística, no sentido aristotélico. Se a tese proposta for aceitável, a esta altura já se terá demonstrado a origem neoclássica da doutrina bilaquiana, aqui entendida como correlato do que acima se chamou de objetividade construtiva, cate- goria com a qual o ensaio busca, também, caracterizar a reação parnasiana ao modo romântico de encarar o fenômeno poético. Mas há outro texto talvez ainda mais ade- quado à demonstração dessa idéia – gene- ricamente admitida, mas pouco documen- tada. Trata-se de um elogio a Alberto de Oliveira, proferido em 1917 e publicado postumamente em Últimas Conferências e Discursos. Nele, depois de proclamar o amigo como chefe da “escola poética” a que pertencia, o poeta reconstitui a batalha conceitual de sua geração contra os últimos românticos, que, prejudicados pela imagi- nação e pela desordem formal, teriam quase levado ao esquecimento o que considera as “virtudes máximas” da tradição greco-ro-

mana: simplicidade, correção, sobriedade, clareza e justeza (1924, pp. 21-7). Ainda nesse texto, recusa a hipótese crítica de que os integrantes do Parnasse Contemporain tivessem proposto a teoria da poesia impas- sível – sem pensamento ou paixão – e que se esgotasse no culto da forma pela forma, afir- mando que os mestres franceses:

“Quiseram apenas lembrar que, em ma- téria de arte, não se compreende um ar- tista sem arte; que, sem palavras preci- sas, não há idéias vivas; que, sem locu- ção perfeita, não há perfeita comunica- ção de sentimento; e que não pode haver simplicidade artística sem trabalho, e mestria sem estudo”.

Resultado da

eleição do

Príncipe dos

Poetas

Brasileiros,

Fon-Fon , 19 de

abril de 1913

de poetas brasileiros que, no exercício do gênero lírico, concebem os poemas como parte de um todo orgânico, cujo conjunto excede a simples coletânea feita mais ou menos ao sabor do acaso ou da inspiração. Mantendo a tradição do chamado período clássico, compunha livros de poemas, e não poemas que resultassem em livros. No século XX, João Cabral de Melo Neto soube se apropriar da objetividade construtiva observada no projeto parna- siano (que também se encontra em Mallarmé, integrante, como se sabe, do grupo do Parnasse Contemporain), sem se confundir com ela, mas dela extraindo efei- tos surpreendentes para o repertório con- temporâneo. A idéia do poema como arte- fato tangível (edifício, escultura, pintura, peça de ferreiro), que em Bilac assume conotação anti-romântica e neoclássica, manifesta-se, também, em Cabral pelo pro- jeto da construção em série, caracterizada pela condensação sistemática e desenvol- vida de variações em torno do mesmo as- sunto. Trata-se das conhecidas composi- ções que abordam aspectos diferentes de uma só tópica, como se observa nos livros Quaderna e Serial , inteiramente domina- dos pela investigação de facetas imprevis- tas de coisas bem conhecidas, como uma cabra, um ovo, um cemitério, um canavial, etc. Assim como o estudo das semelhanças

  • aqui apenas indicadas como matéria de possível reflexão –, a análise das diferen- ças desses pormenores do projeto de am- bos os poetas exige capítulo à parte, embo- ra tanto as diferenças quanto as semelhan- ças se encontrem em estado latente na tese de que cada sociedade inventa a poesia de que precisa. Escrevendo basicamente para escravocratas liberais ou para jovens repu- blicanos, Bilac concebia a elegância a par- tir do ideal de uma possível formação euro- péia para o Brasil, por meio da França e de seus correlatos greco-romanos. João Cabral, que escreveu depois de O Cortiço e de Os Sertões , ao atribuir à técnica uma espécie de materialização do bom gosto revolucionário, fundou sua poesia na bus- ca de um estilo adequado à mimetização da miséria brasileira, em consonância com

uma cultura de tipo universitário, cuja no- ção de grande literatura incluía ou o protes- to social ou a renovação dos modos de di- zer ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Logo, não se propõe aqui a recuperação de Bilac a partir do ponto de vista pós-moder- no. Nem se pretende traçar uma possível re- lação teleológica entre a poética parnasiana e os autores do século XX, como se aquela fosse estágio precursor destes. Assim, o ensaio não toma a poesia de Bilac como antecipação necessária de Cabral ou, digamos, do Drummond de Claro Enigma. Acredita, an- tes, que estes poetas tenham se apropriado de processos, de tópicas e princípios, que, presentes em Bilac e em seu tempo, podem ser entendidos como elementos estruturais

Bilac em foto

da edição

italiana de

O Caçador de

Esmeraldas,

dispersos no uso histórico das regras da poe- sia. Nesse sentido, é possível conceber tam- bém que Bilac tenha, de fato, funcionado como uma das sugestões para que tais poe- tas restaurassem a paciência arquitetônica do verso clássico em substituição à presu- mida soltura da frase coloquial modernista.

DESCRIÇÃO ANIMIZADA

Do ponto de vista da microestrutura, desde que se admita a hipótese da poesia como trabalho de arte em busca do efeito previsto, pode-se dizer que a objetividade construtiva manifesta-se em quase tudo quanto Bilac escreveu. Nesse sentido, mes- mo aqueles poemas em que um eu apaixo- nado se desata em falas emocionais (“Bei- jo Eterno”, “A Alvorada do Amor”) seriam regulados pela consciência objetiva do sa- ber retórico, que a tudo preside como um maestro no furor estudado da regência. A questão que se coloca, então, é: qual a pos- sibilidade de se aferir, hoje, a eficácia da elocução particular de cada texto no passa- do, tendo em vista os padrões da poética cultural segundo os quais foi escrito? A resposta a essa questão implica, necessaria- mente, o esforço de conhecimento do re- pertório não só do autor, mas também do leitor originariamente previsto para o tex- to, acrescido da experiência do leitor empírico do momento efetivo da leitura, o qual não deveria, em princípio, desrespei- tar a autoridade estrutural da mensagem nem desconhecer suas intrínsecas relações com o código de referências a partir do qual se organizou. Por essa perspectiva, sempre haverá a hipótese de se inaugurar o poema cada vez que uma pessoa diferente (e de qualquer época) o lê, como se, ao construir seu sentido, procurasse reconstruir também o teatro de vozes históricas de sua enun- ciação, sempre possíveis de se perpetuarem na singularidade verbal do discurso. Assim, o leitor de hoje não buscaria apenas a iden- tidade de seu tempo com o passado e nem procuraria entender o passado como prenún- cio inevitável do presente. Abandonando o

mito da identidade, instauraria a busca da diferença, da divergência ou do contrário como nervo motivador da leitura, movimento que pressupõe uma máscara não apenas para o autor, mas também para o leitor, que – entendendo a leitura como puro gesto de convenções imaginadas – veria nela a cris- talização de todas as fantasias críticas que a experiência com os livros faz nascer. Retornando ao princípio da objetivida- de bilaquiana, ela tanto pode se manifestar em textos de construção da intimidade do indivíduo quanto em textos de figuração da realidade exterior. Nesta segunda espécie de poemas, além dos que imitam traços da arquitetura e da escultura, encontram-se os que se poderiam chamar mais propria- mente de pictóricos, porque compõem, por meio da descrição, uma paisagem, uma cena, um objeto ou uma situação. É o que se observa, por exemplo, em “Rio Abai- xo”, de Sarças de Fogo :

“Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga… Quase noite. Ao sabor do curso lento Da água, que as margens em redor alaga, Seguimos. Curva os bambuais o vento.

Vivo há pouco, de púrpura, sangrento, Desmaia agora o ocaso. A noite apaga A derradeira luz do firmamento… Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.

Um silêncio tristíssimo por tudo Se espalha. Mas a lua lentamente Surge na fímbria do horizonte mudo:

E o seu reflexo pálido, embebido Como um gládio de prata na corrente, Rasga o seio do rio adormecido”.

Ainda em vida de Bilac, esse tipo de descrição sem ênfase – muito freqüente em Panóplias , principalmente – foi considera- do por seus opositores como decorrência do que se denominou impassibilidade parnasiana , categoria crítica com que se pro- curava desqualificar a nova poesia, por se afastar do estilo exaltado dos românticos. O poeta reagiu contra essa restrição, com o argumento de que a beleza por si só já con-

aliás repudiada – viu-se anteriormente – pela doutrina do próprio Bilac: primeiro, o texto faz ressaltar a sensação oscilante das águas, comparadas com o tremor dos mús- culos ou dos nervos humanos; depois, re- gistra o efeito do sol sobre os olhos da per- sonagem e sobre o ponto geográfico de que fala; em seguida, assinala a intensidade moderada do vento, que alaga as margens, movimenta a vegetação e impulsiona o barco. Observe-se que é omitido qualquer vocábulo que pudesse explicitar a existên- cia da embarcação, omissão que, talvez, se explique como expediente para camuflar a presença do artista no centro do próprio cromo, que, não obstante, vai tomando for- ma e ser à proporção que enuncia os com- ponentes verbais e visuais da obra, que encena o ato da própria composição. De repente, no início do final, surge o registro do som, também pelo avesso da percepção vivenciada, pois se confunde com a reação psicológica produzida pelo ambiente no momento mesmo da enunciação, manifes- tando-se pela ausência gradual de ruído: “um silêncio tristíssimo por tudo/ se espa- lha”. No final, o surgimento da lua, sem al- terar a mudez da sinfonia – pois se trata de sinfonia visual –, reinstaura o alívio da luz e arremata o poema com a alegoria da espada lunar rasgando o reino das águas, com abso-

luta indiferença pela presença do homem, apesar dos efeitos que produz sobre ele. Ao tratar das descrições ou pinturas – apropriadas ao gênero demonstrativo do discurso, entendido como aquela espécie de texto que propõe o deleite pela exposi- ção das virtudes ou dos defeitos das maté- rias selecionadas –, a retórica antiga reco- menda o emprego da enarguéia (também chamada hipotipose ou evidência ), que consiste em corporificar o mais vivamente possível a idéia proposta, de modo a produ- zir no leitor o efeito de que a tem diante dos olhos (Quintiliano, 1790, vol. II, pp. 103- 27). Essencial ao entendimento do soneto em questão, o procedimento da enarguéia já fora aplicado por Bilac, em sua “Profis- são de Fé”, particularmente na passagem – nem sempre lida com simpatia pela crítica do século XX –, em que, resenhando a pro- posta de instituir o objeto pelo poder instaurador da palavra, afirma:

“Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem, A idéia veste: Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Azul-celeste”.

A partir desse lugar, especialmente da segunda estrofe, poder-se-ia supor que Bilac desdenha a identidade entre a pala- vra e a “substância das coisas”, limitando- se a “vestir magnificamente” as idéias (Bosi, 1970, p. 254). Trata-se de leitura possível, mas contrária à doutrina do poe- ta, aqui definida experimentalmente como uma teoria sofística do poema, por se pen- sar que instaura o próprio logos ao se impor como linguagem. Por essa perspectiva, o sentido das coisas – e também das pala- vras – decorreria de seu valor de uso, e não de uma suposta significação imanente, de- pendendo, antes, de convenções históri- cas do agir e do dizer. Conviria lembrar também que, como poeta de formação neoclássica, Bilac emprega vestir na

1

Escola de Belas

Artes, no Rio,

cujo academismo

Bilac respirou

na juventude

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acepção de atribuir condições de conheci- mento da idéia ou da imagem (senso- rialidade, visibilidade), assim como Ma- nuel Botelho de Oliveira já utilizara vesti- do no sentido estrito de aparência (7). Enfim, o que Olavo Bilac quer dizer é que não existe idéia sem corpo, pois entende o

conceito como decorrência de relações entre palavras, processo em que a enarguéia participa como agente da inteligência po- ética. Esse é o lugar de onde se deve ler “Rio Abaixo”, que aplica o antigo proce- dimento como correlato do princípio da objetividade construtiva.

7 Esse entendimento está pressu- posto na análise que fiz de um soneto do poeta seiscentista em: “O Engenhoso Fidalgo Manuel Botelho de Oliveira”, inRevista USP, n o^ 50, São Paulo, CCS- USP, jun.-jul.-ago./2001, pp. 183-4.