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Trabalho vivo, subjetividade e cooperação, Notas de aula de Direito

O segundo, Sidi Mohammed Barkat,2 mostra em que medida “a questão da vida e da morte não pode mais [hoje] ser colocada fora de um questionamento sobre a própria.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Roberto_880 🇧🇷

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Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 17, n. spe. 1, p. 43-54, 2014 – DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17ispe1p43-54
Trabalho vivo, subjetividade e cooperação:
aspectos filosóficos e institucionais*
Éric Hamraoui1
Conservatoire Nacional des Arts et Métiers (Paris, França)
Partindo da análise dos conceitos marxianos de trabalho vivo e de cooperação, pensados em conexão com a questão
da subjetividade, tentamos definir as formas de atentado à vida, no cerne da atividade de trabalho, o que varia
segundo as configurações histórico-econômicas. Esta pesquisa nos leva a diferenciar as etapas de um processo que vai
da exploração da vida à organização de seu esgotamento, no universo contemporâneo do trabalho, passando por sua
contenção no sistema taylorista de produção. A genealogia aqui estabelecida se baseia em duas abordagens
conceitualmente diferentes da fenomenologia da vida, a de Michel Henry (1922-2002), e a análise antropológica e
institucional desenvolvida por Sidi Mohammed Barkat. A primeira enfatiza a ideia de “ruína da vida” para
caracterizar a época atual. A segunda vê aí um projeto de denegação da vida ligado intimamente à simulação da
vitalidade dos indivíduos, a fim de melhorar a performance do sistema econômico.
Palavras-chave: Vida, Trabalho, Subjetividade, Práxis, Cooperação, Exploração, Avaliação, Vitalidade, Artifícios
institucionais.
Travail vivant, subjectivité et coopération: aspects philosophiques et institutionnels
Partant de l’analyse des concepts marxiens de travail vivant et de coopération, pensés en lien avec la question de la
subjectivité, nous tentons de définir les formes d’atteinte de la vie au cœur de l’activité de travail, selon les
configurations historico-économiques. Cette recherche nous conduit à différencier les étapes d’un processus allant
de l’exploitation de la vie à l’organisation de son épuisement dans l’univers contemporain du travail, en passant par
sa contention dans le système tayloriste de production. La généalogie ici établie s’appuie sur les approches
conceptuellement différenciées de la phénoménologie de la vie de Michel Henry (1922-2002) et de l’analyse
anthropologique et institutionnelle développée par Sidi Mohammed Barkat. La première met en avant l’idée de
“ruine de la vie” (Henry) pour caractériser l’époque actuelle. La seconde y voit à l’œuvre une entreprise de déni de
la vie (Barkat) intimement liée à la stimulation de la vitalité des individus afin d’augmenter la performance du
système économique.
Mots-clés: Vie, Travail vivant, Subjectivité, Praxios, Coopération, Exploitation, Évaluation, Vitalité, Artifices
institutionnels.
Living labor, subjectivity and cooperation: institutional and philosophical aspects
Based on the analysis of the Marxian concepts of living labor and cooperation, designed in connection with the issue
of subjectivity, we attempt to define the forms’ of injuring life at the heart of the work activity, according to
historical and economic configurations. This research lead us to differentiate the stages of a process from the
exploitation of life to the organization of its depletion in the contemporary world of work, through his contention in
the Taylorist production system. The genealogy here established is based on approaches conceptually distinguished
from phenomenology of the life of Michel Henry (1922-2002) and institutional and anthropological analysis
developed by Sidi Mohammed Barkat. The first emphasizes the idea of “ruin of life” to characterize the present time.
The second see in at work an enterprise of denial of life, closely linked with the stimulation of the vitality of
individuals to enhance the performance of the economic system.
Keywords: Life, Work life, Subjectivity, Praxis, Cooperation, Evaluation, Vitality, Institutional artifices.
Há naturezas […] raras que preferem perecer a trabalhar sem alegria; pessoas difíceis, que não
se contentam com pouco e a quem um ganho abundante não satisfaz se elas não veem o ganho
dos ganhos no próprio trabalho.
Nietzsche, A gaia ciência, aforismo 42.
* Publicado originalmente em: Nouvelle Revue de Psychosociologie, 15 (1), 59-76, 2013. DOI: 10.3917/nrp.015.0059. Publicado em
português na obra coletiva intitulada O sujeito no trabalho: entre a saúde e a patologia, d a Editora Juruá, à qual agradecemos a
gentileza de permitir sua reprodução.
1 Mestre conferencista em filosofia no Centro de Pesquisa sobre o Trabalho e o Desenvolvimento do CNAM.
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Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 17, n. spe. 1, p. 43-54, 2014 – DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17ispe1p43-

Trabalho vivo, subjetividade e cooperação:

aspectos filosóficos e institucionais*

Éric Hamraoui^1 Conservatoire Nacional des Arts et Métiers (Paris, França) Partindo da análise dos conceitos marxianos de trabalho vivo e de cooperação, pensados em conexão com a questão da subjetividade, tentamos definir as formas de atentado à vida, no cerne da atividade de trabalho, o que varia segundo as configurações histórico-econômicas. Esta pesquisa nos leva a diferenciar as etapas de um processo que vai da exploração da vida à organização de seu esgotamento, no universo contemporâneo do trabalho, passando por sua contenção no sistema taylorista de produção. A genealogia aqui estabelecida se baseia em duas abordagens conceitualmente diferentes da fenomenologia da vida, a de Michel Henry (1922-2002), e a análise antropológica e institucional desenvolvida por Sidi Mohammed Barkat. A primeira enfatiza a ideia de “ruína da vida” para caracterizar a época atual. A segunda vê aí um projeto de denegação da vida ligado intimamente à simulação da vitalidade dos indivíduos, a fim de melhorar a performance do sistema econômico. Palavras-chave: Vida, Trabalho, Subjetividade, Práxis, Cooperação, Exploração, Avaliação, Vitalidade, Artifícios institucionais. Travail vivant, subjectivité et coopération: aspects philosophiques et institutionnels Partant de l’analyse des concepts marxiens de travail vivant et de coopération, pensés en lien avec la question de la subjectivité, nous tentons de définir les formes d’atteinte de la vie au cœur de l’activité de travail, selon les configurations historico-économiques. Cette recherche nous conduit à différencier les étapes d’un processus allant de l’exploitation de la vie à l’organisation de son épuisement dans l’univers contemporain du travail, en passant par sa contention dans le système tayloriste de production. La généalogie ici établie s’appuie sur les approches conceptuellement différenciées de la phénoménologie de la vie de Michel Henry (1922-2002) et de l’analyse anthropologique et institutionnelle développée par Sidi Mohammed Barkat. La première met en avant l’idée de “ruine de la vie” (Henry) pour caractériser l’époque actuelle. La seconde y voit à l’œuvre une entreprise de déni de la vie (Barkat) intimement liée à la stimulation de la vitalité des individus afin d’augmenter la performance du système économique. Mots-clés: Vie, Travail vivant, Subjectivité, Praxios, Coopération, Exploitation, Évaluation, Vitalité, Artifices institutionnels. Living labor, subjectivity and cooperation: institutional and philosophical aspects Based on the analysis of the Marxian concepts of living labor and cooperation, designed in connection with the issue of subjectivity, we attempt to define the forms’ of injuring life at the heart of the work activity, according to historical and economic configurations. This research lead us to differentiate the stages of a process from the exploitation of life to the organization of its depletion in the contemporary world of work, through his contention in the Taylorist production system. The genealogy here established is based on approaches conceptually distinguished from phenomenology of the life of Michel Henry (1922-2002) and institutional and anthropological analysis developed by Sidi Mohammed Barkat. The first emphasizes the idea of “ruin of life” to characterize the present time. The second see in at work an enterprise of denial of life, closely linked with the stimulation of the vitality of individuals to enhance the performance of the economic system. Keywords: Life, Work life, Subjectivity, Praxis, Cooperation, Evaluation, Vitality, Institutional artifices. Há naturezas […] raras que preferem perecer a trabalhar sem alegria; pessoas difíceis, que não se contentam com pouco e a quem um ganho abundante não satisfaz se elas não veem o ganho dos ganhos no próprio trabalho. Nietzsche, A gaia ciência , aforismo 42.

  • Publicado originalmente em: Nouvelle Revue de Psychosociologie , 15 (1), 59-76, 2013. DOI: 10.3917/nrp.015.0059. Publicado em português na obra coletiva intitulada O sujeito no trabalho: entre a saúde e a patologia , da Editora Juruá, à qual agradecemos a gentileza de permitir sua reprodução. 1 Mestre conferencista em filosofia no Centro de Pesquisa sobre o Trabalho e o Desenvolvimento do CNAM. Traduções /Translations

Trabalho vivo, subjetividade e cooperação: aspectos filosóficos e institucionais

Introdução

sentido dos conceitos de “trabalho vivo”, “subjetividade” e “cooperação” e a maneira como eles se harmonizam e constituem um sistema não podem ser compreendidos sem referência ao pensamento de Marx (1818-1883). A análise mostra-nos que o trabalho vivo, na condição de lugar de realização de práxis e de atualização da subjetividade do homem, constitui o núcleo entre os eventos da atividade humana. Sem sua intervenção, a matéria e os instrumentos de produção permaneceriam sem vida. Ele é o determinante antropológico capaz de fazer ressurgir neles, em permanência, a vida.

O

Nesse sentido, o trabalho vivo se opõe ao trabalho abstrato e ao trabalho alienado, signos de um empobrecimento da vida que favorece a cooperação, fundamento do sistema de produção capitalista como instrumento da reunião unitária de uma mão de obra originalmente dispersa. As modalidades desse empobrecimento da vida variam em função do nosso horizonte: seja o horizonte despótico da produção capitalista, descrito por Marx, seja o da autoridade ligada à submissão da empresa à razão instituída pelo direito, ou mesmo o da definição de uma relação inédita entre o indivíduo e o poder. Nessas três configurações, a vida é atingida no coração da atividade de trabalho. A única coisa que muda, de uma época a outra, é a natureza desse impacto. Dois pensadores contemporâneos, em cuja obra me basearei, pensaram sobre essa questão, com pontos de vista diferentes, nas diferentes sequências históricas de sua manifestação. O primeiro, Michel Henry (1922-2002), autor de uma interpretação fenomenológica do pensamento econômico de Marx, denuncia a barbárie contemporânea, “doença da vida” (Henry, 1987), a energia não empregada do que nos leva ao crescimento de nosso ser. O segundo, Sidi Mohammed Barkat,^2 mostra em que medida “a questão da vida e da morte não pode mais [hoje] ser colocada fora de um questionamento sobre a própria organização do trabalho” (Barkat, 2010c, p. 169).

O trabalho vivo é o lugar de realização da práxis e da atualização da

subjetividade humana

Na análise econômica de Marx, a vida deixa de ser concebida como totalidade, alma do mundo, essência fluida que atravessa todos os seres vivos, ao mesmo tempo ultrapassando-os infinitamente, como era entendida por pensadores e poetas da época das Luzes (Herder, Goethe, Schelling, Hölderlin, Novalis e o jovem Hegel). Ela passa a ser aquela do indivíduo entendido como totalidade cuja força individual de trabalho determina o conteúdo e a qualidade (Henry, 1976, 1990). Ela é “trabalho vivo”. Em que sentido, precisamente? O trabalho vivo é a “alma” da atividade humana Em sua Contribuição à crítica da economia política (1859), Marx define o trabalho como “atividade útil para a apropriação das matérias naturais sob uma ou outra forma”. Nesse sentido, ele é definível ao mesmo tempo como “condição natural da existência do homem” e “condição das trocas orgânicas entre o homem e a natureza”. Esse processo de apropriação dos objetos exteriores para a satisfação das necessidades do homem – ou seja, da produção dos valores de uso que contribuem para a manutenção e o crescimento da vida – em que consiste o 2 Autor cuja obra repousa no tratamento da tríplice questão do trabalho, de suas migrações e da colonização (cf. Barkat, 2005). Tal questão é entendida como laboratório de experimentação institucional da implementação, pelo Estado de direito, de uma nova figura da morte que já não passa pela destruição dos corpos, mas pela perda daquilo que neles é a vida.

Trabalho vivo, subjetividade e cooperação: aspectos filosóficos e institucionais O trabalho vivo é subjetividade A práxis – cujas duas modalidades elementares são o trabalho e a necessidade – é também o nome da vida compreendida como força produtiva. Sua natureza é, segundo Marx, imediatamente subjetiva. Ele também acusa o materialismo de Feuerbach de pensar a realidade exclusivamente “sob a forma de objeto ou de intuição, mas não enquanto atividade humana concreta, não enquanto prática, de maneira subjetiva ” (Marx, [1845-1846] 1982). Todavia, em sua obra econômica, Marx emprega conceitos que destacam, mais nitidamente que o conceito de práxis, o caráter distintivo do indivíduo vivo, que é a própria vida considerada em suas dimensões subjetiva, ativa e individual.^5 São os conceitos de “corpo vivo”, de indivíduo “vivo” ou “real”, de “força de trabalho”, de “força subjetiva de trabalho”, de “trabalho subjetivo”, de “subjetividade inorgânica”, enfim, de “trabalhador”, após 1847. Quanto a esse último aspecto, Marx mostra que a vida é o que informa de maneira imanente o conteúdo da individualidade. Originalmente uma capacidade de experimentar a si mesmo, a vida já é, de fato, sempre a ipseidade de um indivíduo, a subjetividade original e a “subjetividade monádica”.^6 Segundo Michel Henry (1976, I, p. 264), essa subjetividade indivisa, “monádica”, que Marx concebe como “totalidade [que carrega em si], como virtualidades, uma multiplicidade de atividades e de intencionalidades possíveis”, pode ser definida como “unidade subjetiva” das virtualidades ou “forças subjetivas” (“pessoais”, no caso de Marx), que “são seu apanágio, que definem seu ser original e são por ela queridas,^7 pois são suas necessidades”. Entretanto, a realidade da divisão do trabalho, entendida como atualização exclusiva de uma potencialidade da vida, acarreta “a não realização de todas as outras virtualidades da vida monádica, o que faz que elas permaneçam puras virtualidades”: A vida, na medida em que segue seu curso espontâneo, toma a forma de uma manifestação progressiva de todos os seus poderes, mesmo que essa manifestação assuma necessariamente a forma de uma sucessão. Na divisão do trabalho, ao contrário, a atualização de uma potencialidade não exclui somente no instante, mas de maneira decisiva e definitiva, a realização das outras forças da vida, longe de despertá-las ou de suscitá-las.(Henry, 1976, I, pp. 264-265). A lógica temporal de sucessão das diferentes fases do desenvolvimento da vida, com as potencialidades correspondentes de afirmação desta, encontra-se contestada, na divisão do trabalho, pela afirmação de uma potencialidade única desta divisão.

O trabalho alienado, signo do empobrecimento da vida

A lógica de empobrecimento da vida, aqui em ação, tem suas raízes no contrato que associa aquilo que diz respeito à força vital e social de trabalho e o capital. O assalariado só desenvolve, de fato, a primeira “no momento em que seu trabalho pertence ao capital”, a tal ponto que “ela parece ser uma força da qual o capital é dotado por natureza, uma força produtiva que lhe é imanente” (Marx [1967] 1969, p. 247). 5 Esse caráter individual da vida explica que o indivíduo vivo seja a forma exclusiva da atualização da mesma. Essa atualização obedece a uma lei de reiteração indefinida, que inscreve a multiplicidade no coração da individualidade (“O indivíduo só tem verdade na medida em que ele é muitos indivíduos”, como diz Marx em sua Crítica da filosofia do Estado de Hegel , 1841-1842). 6 De monás, monádos, “unidade”, o que subsiste na integridade de sua natureza (Platão, Filebo, 15b). 7 Esse querer, diz Michel Henry (1976, II, p. 30) “quer” o que essa vida quer. Ele difere, portanto, da vontade autolegiferadora que decide por si mesma o que ela quer – a “vontade geral independente em si” – e a vontade metafísica, fonte absoluta das determinações que ela coloca.

Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 17, n. spe. 1, p. 43-54, 2014 – DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17ispe1p43- O princípio da avaliação quantitativa da qualidade A abstração crescente do processo de produção não conduz unicamente ao aumento da distância que o separa da realidade do trabalho vivo. Ela afeta diretamente a natureza da relação entre os dois termos, no sentido de uma interversão , que Marx qualifica como “reversão estranha da relação entre o trabalho morto e o trabalho vivo [destaques meus], entre o valor e a força criadora de valor” (Marx [1857-1858] 1967, II, pp. 377-78). Essa reversão da relação entre trabalho morto e trabalho vivo tem origem no que Marx chama, no primeiro Manuscrito de 1844 , de “contradição do trabalho alienado”. Essa contradição deve-se precisamente ao fato de que, ao mesmo tempo que concebe o trabalho como subjetividade, como “a alma propriamente dita da produção”, a economia política não atribui nada ao trabalho e tudo à propriedade e, consequentemente, ao salário: “[…] pois o salário, no qual o produto, o objeto do trabalho, remunera o próprio trabalho, é apenas uma consequência necessária da alienação do trabalho, e no salário o trabalho não aparece tampouco como o fim em si, mas como [estando] a serviço do salário” (Marx, [1844] 1999, p. 120). Marx ([1857-58] 1967) conclui daí que “o trabalho vivo não é pago pela qualidade que possui”, isto é, pela “propriedade natural da força de trabalho do operário” que ele constitui, mas “pela quantidade de trabalho nele contida”. Assim, destaca Michel Henry (1976), concretamente determinado pela duração necessária à execução de uma tarefa, o trabalho pode ser submetido a uma medida objetiva que possibilita sua expressão sob a forma de um valor de troca. Mas isso não é ignorar propositadamente o fato de que esta nunca poderia subsistir por si mesma, “constantemente obrigada, no momento mesmo em que ela define no capitalismo a nova finalidade econômica, de converter-se em seu contrário, de retornar à sua fonte, a vida”? (Henry, 1987, p. 157) A evicção da práxis No cerne da economia capitalista, diz Marx ([1857-58] 1967, p. 377), o trabalho vivo “nunca cresce absolutamente sem diminuir relativamente à grandeza do capital empregado e à massa das mercadorias produzidas”. Consequentemente, ele é ameaçado em seu próprio princípio pelo que Marx chama fenômeno de hipertrofia do “trabalho materializado”,^8 “abstrato” ou “morto”. No sistema capitalista, o desenvolvimento só é vantajoso para um dos elementos da atividade da sociedade: o trabalho materializado, que passa a ser o corpo cada vez mais gigantesco do outro elemento, o trabalho subjetivo e vivo. “De fato […], as condições objetivas do trabalho tornam-se cada vez mais autônomas em oposição ao trabalho vivo, à medida que sua extensão se amplia e que a riqueza social aumenta por pedaços cada vez maiores, que fazem face ao operário como força estrangeira e predominante (Marx [1857-58] 1967, II, pp. 377-378). A autonomização do trabalho morto e sua predominância sobre o trabalho vivo conduz à evicção da práxis subjetiva pelo processo objetivo causalmente organizado e determinado, cientificamente construído, da revolução técnica, negando qualquer papel ao envolvimento do corpo do trabalhador^9 na transformação do mundo. Assim, a “gigantesca força material” que constitui o “corpo objetivo da atividade” é exercida em oposição à “força de trabalho imediata” do operário. Essa oposição pode ser pensada como produto da cooperação , que é, segundo Marx, ao mesmo tempo um meio de aumento conjunto das forças produtivas individuais e de uma nova força que funciona exclusivamente como força coletiva. 8 Ou conjunto dos meios mecânicos produzidos pelo trabalho. 9 Envolvimento ao qual Michel Henry (1976, 1987) denomina “corpopropriação”.

Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 17, n. spe. 1, p. 43-54, 2014 – DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17ispe1p43- trabalhos aparece-lhes idealmente como o plano do capitalista e a unidade de seu corpo coletivo aparece-lhes praticamente como sua autoridade, a força de uma vontade estranha que submete seus atos a sua meta (pp. 245-246). A partir daí, Marx conclui que existe uma “dupla face” do sistema de produção capitalista, na medida em que o objeto que se dirige é, ao mesmo tempo, processo de produção cooperativo e processo de extração da mais-valia. Explica-se assim, segundo Marx, não somente a tendência despótica da direção capitalista do trabalho, mas também o desenvolvimento das formas particulares desse despotismo, à medida que a cooperação se desenvolve. A cooperação está a serviço de uma extração máxima da mais-valia Ao mesmo tempo que tem por objeto a direção do processo de produção cooperativo, a produção capitalista tem por “missão poderosa […] a necessidade de beneficiar o capital [e], diz Marx, sua meta determinante [é] a maior extração possível de mais-valia, ou, o que vem a ser a mesma coisa, a maior exploração possível da força de trabalho”. Daí vem, segundo Marx, o “despotismo” da direção capitalista da produção, comparável ao do comando de um exército: No campo da produção, as ordens do capital passam a ser tão indispensáveis quanto as do general no campo de batalha. […] o capitalista começa por dispensar-se do trabalho manual. Depois, quando seu capital cresce, e com ele a força coletiva que ele explora, ele se demite de sua função de fiscalização imediata e assídua dos operários e transfere-a a uma espécie particular de assalariado. A partir do momento em que ele se encontra à frente de um exército industrial, ele precisa dos oficiais superiores (diretores, gerentes) e dos oficiais inferiores (supervisores, inspetores, contramestres), os quais, durante o processo de trabalho, comandam em nome do capital (Marx, [1867] 1969, 245-246). A função de direção e de supervisão dos operários pelo capitalista, e depois por seus delegados, deriva, então, da própria natureza do processo de trabalho cooperativo, no qual a função de comando, longe de valer por si mesma, nada mais é que “o atributo do capital”.^12 O mesmo vale para a força de trabalho produtivo “que os assalariados executam funcionando como trabalhador coletivo”: Como pessoas independentes, os operários são indivíduos isolados que entram em relação com o próprio capital, mas não entre si. Sua cooperação só começa no processo de trabalho; mas ali eles já deixaram de pertencer-se. A partir do momento em que eles ali ingressam, são incorporados ao capital. Enquanto cooperam, enquanto constituem os membros de um organismo ativo, eles nada mais são do que um modo particular de existência do capital. A força produtiva que os assalariados aplicam funcionando como trabalhador coletivo é, consequentemente, força produtiva do capital ( Marx, [1867] 1969, p. 247). Entretanto, a lógica da maior extração de mais-valia que caracteriza o sistema de produção capitalista – à qual uma massa cada vez maior de operários explorados encontra-se submetida – suscita uma resistência. E, ao mesmo tempo, aumenta a pressão necessária para vencer tal resistência. Segundo Marx, isso explica o inevitável antagonismo entre “o explorador e a matéria^13 que ele explora”, que é a ancoragem da luta de classes. A vida explorada Segundo Michel Henry (1990), o duplo ensinamento que se pode tirar da leitura de Marx é, por um lado, a compreensão do confisco sobre a vida como traço característico do 12 “O capitalista não é de modo algum capitalista porque ele é diretor industrial; ao contrário, ele passa a ser chefe de indústria porque ele é capitalista” (Marx [1867] 1969, p. 247). 13 A força viva de trabalho.

Trabalho vivo, subjetividade e cooperação: aspectos filosóficos e institucionais capitalismo, e, por outro, a natureza revolucionária singular e única na história desse fenômeno de captação da vida: O capitalismo não se enganou: ele pôs o dedo sobre o que lhe importa, sobre a única força que existe no mundo e que é a força da vida, a força viva de trabalho. Nela estabelecer suas bases, pô-la em ação, colocá-la na condição de dar tudo o que ela pode dar, de realizar tudo o que ela pode realizar, “explorá-la” até o limite, esse foi seu comportamento instintivo e também sua decisão consciente. E por executar esse projeto que, apoiando-se na essência oculta da realidade, na força viva que produz todas as coisas e, antes mesmo de conferir-lhe sua “forma”, detém o poder que faz que ela seja, por essa razão última, ao mesmo tempo metafísica e ontológica, o capitalismo suscita uma revolução, a maior que a humanidade já conheceu ao longo de sua história ou, melhor dizendo, a única (Henry, 1990, p. 133). A ideia desenvolvida por Marx, de um vampirismo do capital aspirando a força da vida para dela nutrir-se, sugando com uma avidez sem limites o sangue do trabalho vivo, “arrancando à vida as matérias-primas e os instrumentos aos quais ela aderia com todo o seu ser” (Henry, 1990, p. 137), aqui não é uma simples metáfora. Ela exprime, de fato, a realidade da orientação do sistema de produção capitalista no sentido da exploração absoluta da vida. A revolução capitalista, segundo Michel Henry (1990), está longe de ser uma simples revolução econômica: Uma revolução econômica nunca é parcial, ela deixa subsistir certa fundação que permanece intacta, a saber, a própria realidade econômica. O capitalismo foi uma revolução total [destaques nossos] justamente porque ele não quis mudar nada nessa esfera da economia, mas, compreendendo que ela repousa sobre uma fundação mais profunda, ele se voltou deliberadamente para esta, dirigindo-se a ela como essa única força que produz tudo e sobre a qual, exaltando-a e levando-a a seu ápice, estabeleceria seu reinado (p. 134). Assim, pode-se propor a questão da determinação do tipo de revolução capaz de permitir a construção de uma saída para a vida que se oponha ao fenômeno total da revolução capitalista, cujo fundamento é a exploração da própria vida (Hamraoui, 2012). Toda força adversa não corre o risco, caso não provenha da vida e das necessidades de cuidar dela, de ser vista imediatamente como movimento “contrarrevolucionário”, inclusive no sentido mais paradoxal do termo? Encontra-se uma dificuldade semelhante no nível da produção da crítica. Assim, para citar um exemplo emprestado da atualidade, o referente vital da noção de “recursos humanos”^14 dificulta a crítica desta, a despeito de suas ambiguidades. De fato, ao mesmo tempo que significa a redução do trabalhador a um instrumento de produção,^15 indicador da confusão da atividade de trabalho com a implementação de uma energia concebida como simples recurso (Barkat, 2010b), o conceito de “recursos humanos” faz eco, simultaneamente, à ideia de um “reerguimento” de um indivíduo e de “ressurreição” de uma energia moribunda, à qual a palavra “recurso”^16 reenvia etimologicamente. Daí provém uma proximidade de sentido com o conceito de trabalho vivo, definido por Marx ([1857-58], 1967) como agente de uma “ressurreição” dos meios de produção que ele transforma em fatores de seu próprio movimento, por meio do contato que estabelece com eles. O recurso humano hoje solicitado pela administração nada mais é, então, que o trabalho vivo, disponibilizado, enquanto força de 14 Surgida em 1980 (Rey, 2005), essa noção designa uma função ligada, no seio da empresa, às funções de manutenção, de informação e de finanças, que auxiliam de perto as funções operacionais (venda, produção, logística, compras, pesquisa e desenvolvimento). Daí o caráter estratégico dessa função que contribui para aumentar, por suas tomadas de posição, suas ações e suas decisões, a competitividade global da organização e a flexibilidade do trabalho (Bouchez, 2003). 15 Isso, como podem levar a supor os efeitos deletérios da administração moderna, assim como a concomitância da atribuição ao termo “recurso” da significação de meios materiais (homens, reservas de energia etc.) de que dispõe ou pode dispor uma estrutura coletiva (Rey, 2005), ao final do século XVIII, e da afirmação, na mesma época, do primado da razão instrumental (Chenet, 1997). 16 A palavra “recurso” origina-se do antigo verbo ressurtir (980-século XIII), “ressuscitar”, ela mesma originária do verbo latino resurgere (de re- e surgere : surtir, surgir) (Rey, 2005), que sugere a ideia de acontecimento.

Trabalho vivo, subjetividade e cooperação: aspectos filosóficos e institucionais Assim, o dispositivo tayloriano manifesta-se sob uma aparência de “equilíbrio equitativo” (Barkat, 2010b, p. 5) entre tempo de trabalho – “apresentado sob as aparências banais de uma atividade que não é privada de vida, e sim vazia de vida^17 , e, de um modo geral, privada também de todo acontecimento” (Barkat, 2010b)^18 – e tempo de vida fora do trabalho, “prometido” pela organização em troca do sacrifício ofertado a ela, de uma parte do tempo vivo do indivíduo. No marco dessa “teologia da promessa” (p. 6), “a vida é concebida, antes de mais nada, como o futuro do trabalho, sem o trabalho”, pois aí estaria ressuscitado aquilo que foi morto no cerne no trabalho, ou seja, aquilo que excede a tarefa (p. 11). A utopia marxiana de construção de um lugar onde o operário possa desenvolver “uma livre atividade física e intelectual” e “se sentir ele mesmo” (Marx, [1844] 1999, p. 112) parece ali parcialmente realizada. Porém, essa realização possível da vida fora do trabalho – em virtude de um procedimento que consiste em “ economizar a parte ativa,criativa, excessiva e imanente do trabalho” (Barkat, 2010b, p. 6) – tem certo parentesco “com uma espécie de privilégio ao qual somente podem ter acesso os membros da comunidade que se abandonam à regra” (Barkat, 2010b), consentindo na possibilidade de ser assimilados ao papel de puro e simples executante da produção que aceita o princípio da separação voluntária do corpo e do pensamento. Daí a pressão exercida pelo sujeito sobre o pensamento, o que constitui, segundo Barkat, o agente principal da divisão científica do trabalho. A organização do esgotamento da vida O princípio da nova organização do trabalho, implementado há pouco mais de trinta anos, quando o Estado pouco a pouco abandonava suas funções de regulação da assimetria entre o empregador e o empregado, repousa, segundo Barkat, no princípio de uma restituição do uso de seu corpo ao trabalhador, mas sem o restabelecimento da continuidade da pessoa e do corpo: Essa restituição, na verdade, não o é. Ela é mais similar a uma transferência de prisioneiros. Primeiramente arrancado da pessoa – na antiga relação de trabalho –, o corpo lhe é devolvido como objeto disponível a uma fruição total, mas de modo algum em seu próprio proveito. De fato, ser proprietário de seu corpo não significa criar uma continuidade entre seu corpo e sua pessoa (Barkat, 2010d, p. 6). Assim, a restituição da soberania do trabalhador sobre seu corpo permanece fictícia. Na verdade, ele continua separado de seu corpo, sobre o qual exerce um poder despótico. O corpo, diz Barkat (2010d), tornou-se o objeto exposto a uma exploração indefinida, não a zona de atividade que pode acolher a atualização da vida. Nenhum de seus elementos consegue escapar à pessoa transformada em instância de poder. Ele é disponibilizado em qualquer lugar e a todo momento. Ele continua sendo meu, mas não segundo a modalidade da propriedade – mas sim da exterioridade. Essa redefinição da relação do indivíduo com o poder (Barkat, 2006, 2010c) operada pela nova organização do trabalho, principalmente por meio da implementação do sistema de avaliação individualizada do desempenho, transforma profundamente os dados da relação do indivíduo consigo mesmo: “[…] a avaliação não é”, segundo Barkat, “um acidente da história do trabalho [mas] o sintoma de uma maneira de fazer, de um recorte do sensível ligado à promoção exclusiva da produção, a qual, enquanto sistema, vai de encontro à vida que se manifesta no trabalho” (Barkat, 2008, p. 3). 17 Ou, mais exatamente, esvaziada da vida que ela sempre contém (Barkat & Hamraoui, 2008, 2010). 18 De onde vem a produção das condições do silêncio em torno do que acontece no próprio trabalho (Barkat, 2010b, p. 5). O taylorismo, diz, nesse sentido, Yves Schwartz (2000, p. 14), pode ser definido como “tentativa totalmente assumida de anular o trabalho como experiência”.

Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 17, n. spe. 1, p. 43-54, 2014 – DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17ispe1p43- Na medida em que ela cria uma divisão no interior do trabalhador, a avaliação transforma-o em empregador – autônomo – de si mesmo. Apesar das aparências, o velho conflito entre o explorador e a força viva de trabalho não desapareceu. O conflito entre o capital – agora sob a forma de capital financeiro – e o trabalho foi transferido no indivíduo (Barkat, 2010, 2010a, 2010c, 2010d). Hoje, esse movimento parece dificilmente reversível, em razão da desqualificação “do pensamento em torno da impulsão profunda do capital, que o empurra para além daquilo que a razão pode consentir em matéria de exploração do trabalho” (Barkat, 2010c, p. 164). Isso se dá pela implementação de artifícios institucionais destinados a esconder a realidade do atentado ao princípio do cuidado dos corpos, assim como a função do Estado, a quem compete garantir esse mesmo princípio: Reforça-se a ideia ilusória de que a igualdade do empregador e do trabalhador é natural, quando, na verdade, ela só pode ser uma conquista ratificada pelo direito. […] A identificação do trabalhador com a empresa abre o caminho à sua assimilação ao empregador, de modo que o poder sobre o trabalho, antigamente exercido por este último, é doravante delegado ao trabalhador, numa perspectiva que nega todo limite instituído. O trabalhador é colocado na situação de assumir inteiramente a figura de um empregador liberado das restrições da lei. Ele não agirá como se fosse o empregador, e sim como empregador de si mesmo, liberado de qualquer convenção formalizada pelo direito (Barkat, 2010c, p. 164). O desequilíbrio e a desproporção que definem a natureza das relações entre o empregador e o empregado não podem mais, na intimidade do “si mesmo”, ser corrigidos pela arbitragem do direito. Ainda que tornado imperceptível, nem por isso o conflito social é menos real, menos impiedoso (Barkat, 2011) e extenuante para a vida: Nossa época, mais do que qualquer outra, é certamente aquela em que o esgotamento da vida no trabalho é organizado com a meticulosidade de um ourives. A habilidade passou a ser a primeira das qualidades do organizador inflexível dessa fragilização das forças. Trata-se, para ele, de arranjar as coisas mascarando-as, de montar uma representação que torna improvável aos olhos do observador a implicação de um outro que não seja o próprio trabalhador, em sua desolação (Barkat, 2010, p. 164). Essa desolação do trabalhador é interpretada pelos organizadores da produção como signo da falta de uma vitalidade que deveria exprimir-se por um envolvimento total com o processo de produção. Mas esse envolvimento não é uma fuga para a frente (Barkat & Hamraoui, 2007)? Será que a animação dos corpos e o emprego de energia que isso suscita são ainda a vida (Barkat, 2008)? Esse duplo questionamento sugere a ideia de que a vida hoje não é mais somente negada, em razão de sua exploração^19 ou da interdição de suas manifestações mais intempestivas (sonhos, criação de ferramentas, invenção de gestos profissionais etc.), no executante da produção, nos sistemas taylorista e fordista. Ela é negada de acordo com o esquema no qual é solicitada, até não poder mais (Barkat, 2010c)! No novo contexto cooperativo da empresa e das imposições da financeirização da economia, a vida é impedida de experimentar-se, ela é esgotamento do trabalho vivo (que é a manifestação da força produtiva da vida), dando lugar à “ficção [de um] sujeito que participa do recalcamento daquilo que, no corpo, torna-se capaz de criação ou de invenção” (Barkat, 2008, p. 10). 19 “Degradando à condição de meio a própria atividade, a livre atividade, o trabalho alienado faz da vida genérica do homem [ligada ao desenvolvimento de sua atividade livre e consciente] o meio de sua existência física” (Marx, [1844] 1999, p. 116).