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TRADUÇÃO E NOTAS DE GILMAR FERREIRA MENDES 1 A Força Normativa da Constituição KONRAD HESSE Em 16 de abril de 1862, Ferdinand Lassalle proferiu, numa associação liberal-progressista de Berlim, sua conferência sobre a essência da Constituição (Uber das Verfassungswesen)'. Segundo sua tese fundamental, questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas. É que a Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes: o poder militar, representado pelas Forças Armadas, o poder social, representado pelos latifundiários, o poder econômico, representado pela grande indústria e pelo grande capital, e, finalmente, ainda que não se equipare ao significado dos demais, o poder intelectual, representado pela consciência e pela cultura gerais. As relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de poder; Esses fatores reais do poder formam a Constituição real do país. Esse documento chamado Constituição - a Constituição jurídica - não passa, nas palavras de Lassaile, de um pedaço de papel (em Stúck Papier). Sua capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se inevitável o conflito, cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita, esse pedaço de papel que terá de sucumbir diante dos fatores reais de poder dominantes no país. Questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas. Assim, ensinam-nos não apenas os políticos, mas também os juristas. “Tal como ressaltado pela grande doutrina, ainda não apreciada devidamente em todos os seus aspectos — afirma Georg Jellinek quarenta anos mais tarde —, o desenvolvimento das Constituições demonstra que regras jurídicas não se mostram aptas a controlar, efetivamente, a divisão de poderes políticos. As forças políticas movem-se consoante suas próprias leis, que atuam independentemente das formas jurídicas? Evidentemente, esse pensamento não pertence ao passado. Ele se manifesta, de forma expressa ou implícita, também no presente. É verdade que hoje ele surge apenas de forma mais simplificada e imprecisa, não se atribuindo relevância maior à consciência e à cultura gerais, também contempladas por Lassalle como fatores reais de poder. A concepção sustentada inicialmente por Lassalle parece ainda mais fascinante se se considera a sua aparente simplicidade e evidência, a sua base calcada na realidade — o que torna imperioso o abandono de qualquer ilusão — bem como a sua aparente confirmação pela experiência histórica. E que a história constitucional parece, efetivamente, ensinar que, tanto na práxis política cotidiana quanto nas questões fundamentais do Estado, o poder da força afigura-se sempre superior à força das normas jurídicas, que a normatividade submete-se à realidade fática. Pode-se recordar, a propósito, tanto o conflito relativo ao orçamento da Prússia (Budgetkonflikt), referido por Lassalle, como a mudança do papel político do Parlamento, subjacente à resignada afirmação de Georg Jellinek, ou ainda o exemplo da debacle da Constituição de Weimar, que, em virtude de sua evidência, revela-se insuscetível de qualquer contestação. Considerada em suas consequências, a concepção da força determinante das relações fáticas significa o seguinte: a condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético extremo. E que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito: a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamentte de índole técnica, sucumbe cotidianamente em face da Constituição real. A idéia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição. Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constinicional é ciência normativa; Diferencia-se, assim, da Sociologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência * .Gesammelte Reden und Schriften, org. e introdução de Eduard Bernstein 11(1919), p. 258. 2 Verfassungsânderung und Verfassungswandlung (1906), p. 72.