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Teoria e Metodologia da História: antigas e novas ..., Resumos de Metodologia

Teoria e Metodologia da História: antigas e novas interdisciplinaridades. José D'Assunção Barros multidisciplinaridade. Elas incorporam radicais latinos que ...

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Abelardo15
Abelardo15 🇧🇷

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Teoria e Metodologia da História: antigas e novas iterdisciplinaridades José D’Assunção Barros
Teoria e Metodologia da História:
antigas e novas interdisciplinaridades
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José D‘Assunção Barros
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A tendência à Interdisciplinaridade tem sido possivelmente a característica mais
importante e saliente da História na sua gradual consolidação como saber científico, desde
que os historiadores passaram a encaminhar conscientemente a proposta de integrar a sua
prática ao circuito de saberes acadêmicos, a partir do século XIX. De alguma maneira,
podemos dizer que a História constitui o mais interdisciplinar dos saberes. Tal se por um
duplo movimento. Em uma primeira mão, porque, de modo incontornável, todas as disciplinas
são históricas, isto é, constituíram-se e constituem-se a partir de uma história, de um processo
que pode e deve ser compreendido pelos seus praticantes. Em uma segunda mão, porque a
História sempre extraiu muito da sua linguagem, dos seus métodos e abordagens, dos seus
temas de estudo, de cada uma das outras disciplinas que com ela estabelecem algum tipo de
interação. O nosso objetivo, nesta palestra, será refletir sobre esta relação da História com a
Interdisciplinaridade, entendendo esta última como uma das instâncias fundamentais que a
constituem.
Os conceitos fundamentais para compreender as relações entre disciplinas.
Antes de iniciarmos nossa reflexão sobre a Interdisciplinaridade, será importante
lembrar alguns outros conceitos que também se sintonizam com as propostas
interdisciplinares. Para melhor clarificar as diferenças que podem ser pensadas entre três
palavras que guardam alguma sintonia interdisciplinaridade, transdisciplinaridade,
multidisciplinaridade (ou a sua coirmã, a pluridisciplinaridade) devemos atentar para os
prefixos que, em cada caso, entram na sua composição. Podemos aproximar, sem maiores
problemas e sem perdas significativas, as noções de pluridisciplinaridade e
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Palestra realizada na Universidade Nacional de Brasília (UNB), em 18 de novembro de 2013, para o I Simpósio
de Metodologia da História e para o IX Encontro Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de História
Oral: a polissemia das cidades.
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Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduação e Pós-
Graduação em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense.
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Teoria e Metodologia da História: antigas e novas iterdisciplinaridades José D’Assunção Barros

Teoria e Metodologia da História:

antigas e novas interdisciplinaridades^1

José D‘Assunção Barros^2

A tendência à Interdisciplinaridade tem sido possivelmente a característica mais importante e saliente da História na sua gradual consolidação como saber científico, desde que os historiadores passaram a encaminhar conscientemente a proposta de integrar a sua prática ao circuito de saberes acadêmicos, a partir do século XIX. De alguma maneira, podemos dizer que a História constitui o mais interdisciplinar dos saberes. Tal se dá por um duplo movimento. Em uma primeira mão, porque, de modo incontornável, todas as disciplinas são históricas, isto é, constituíram-se e constituem-se a partir de uma história, de um processo que pode e deve ser compreendido pelos seus praticantes. Em uma segunda mão, porque a História sempre extraiu muito da sua linguagem, dos seus métodos e abordagens, dos seus temas de estudo, de cada uma das outras disciplinas que com ela estabelecem algum tipo de interação. O nosso objetivo, nesta palestra, será refletir sobre esta relação da História com a Interdisciplinaridade, entendendo esta última como uma das instâncias fundamentais que a constituem.

Os conceitos fundamentais para compreender as relações entre disciplinas.

Antes de iniciarmos nossa reflexão sobre a Interdisciplinaridade, será importante lembrar alguns outros conceitos que também se sintonizam com as propostas interdisciplinares. Para melhor clarificar as diferenças que podem ser pensadas entre três palavras que guardam alguma sintonia – interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade (ou a sua coirmã, a pluridisciplinaridade) – devemos atentar para os prefixos que, em cada caso, entram na sua composição. Podemos aproximar, sem maiores problemas e sem perdas significativas, as noções de pluridisciplinaridade e (^1) Palestra realizada na Universidade Nacional de Brasília (UNB), em 18 de novembro de 2013, para o I Simpósio de Metodologia da História e para o IX Encontro Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de História Oral: a polissemia das cidades. 2 Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduação e Pós- Graduação em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense.

multidisciplinaridade. Elas incorporam radicais latinos que se referem a ―muito‖ ( multi ) ou ―vários‖ ( pluri ).

A multidisciplinaridade, a entender por aqui, corresponde ao reconhecimento de uma diversidade de disciplinas, ao empenho em oferecer boas condições para a sua convivência ou cooperação. Por outro lado, a ideia de disciplinaridade está ligada ao reconhecimento de fronteiras, à percepção das múltiplas realidades que coexistem em um campo maior e ajudam a constituí-lo de maneira mais plena. Já o prefixo ―trans‖ é primordialmente de origem grega, embora depois tenha passado ao latim, e deve ser associado a ideias como ―através de‖, ―ultrapassagem de posições‖, ―mudança‖^1. Podemos encontrar o movimento que pode ser associado ao prefixo ―trans‖ em palavras como ―transbordar‖ (ultrapassar as bordas, ou ir além das bordas). Na palavra ―trânsito‖ podemos surpreender com bastante clareza essa mesma ideia de ―movimento‖^2. Já na palavra ―transformar‖ podemos apreender a ideia de mudança, uma vez que aqui se tem em vista a ideia de mudança de forma ou de aspecto. A alternativa entre o ―multi‖ ou o ―trans‖, em vista da rápida discussão etimológica acima registrada, permite pensarmos nas expressões que agregam estes prefixos em dois caminhos distintos, que podem ou não ser complementares. O prefixo ―multi‖ (ou o ―pluri‖), implica no reconhecimento de fronteiras. O ―trans‖, entrementes, implica em um projeto de ―transbordamento de fronteiras‖, ou na ideia de que é preciso ir além do simples ―reconhecimento de fronteiras‖ (ou do mero respeito pelas realidades diversas que coexistem em um mesmo espaço), de modo a examinar também como as diversas realidades se interpenetram, transformam-se mutuamente através de uma coexistência interativa, deixam-se afetar uma pela outra.

MULTI

TRANS

INTER

Mediação; Reciprocidade

Muitos; Vários

Através de; Transbordamento

Três Prefixos para pensar a relação entre Disciplinas ou Campos de Saber

que um diálogo se estabeleça. Eles podem se freqüentar mutuamente, alimentar-se da cultura e do cardápio produzido na cultura vizinha, aprender com o outro, estabelecer relações comerciais, diplomáticas, ou de quaisquer tipos. As fronteiras, literalmente, constituem espaços de diálogo. Originalmente, a aplicação da noção de fronteiras à livre formação de territórios, no sentido político, estava mais associada à ideia de ―começo‖ do Estado (ou de começo da nação) do que de ―fim‖ do Estado ou do território político demarcado, o que já remete ao conceito de ―limite‖. Desta maneira, há uma distinção muito singular entre as duas perspectivas. As fronteiras assinalam zonas de expansão, linhas de diálogo, faixas de sociabilidade e intercâmbio, pontos de transbordamento, dimensões de mobilidade. Os limites indicam ―fins‖, áreas que não devem ser ultrapassadas, processos de territorialização que já se encerraram, espacialidades que se inscrevem em um projeto de serem conservadas sem alteração. Dois países livres, que conservem boas relações – ou mesmo quando estão em guerra – têm o seu território habitualmente entrecortado por fronteiras, no sentido pleno da palavra. Na guerra, ou como decorrência da guerra, as fronteiras podem se mover. De todo modo, as fronteiras começam a deixar de ser fronteiras e a se transformar em limites quando surgem normas muito claras de interdição coibindo o diálogo. As duas Alemanhas do período da guerra fria, ao menos no que concerne aos aspectos políticos e às coibições de ir e vir livremente entre os dois países, apresentavam mais do que fronteiras entre si. O Muro de Berlim constituía, de fato, um limite, e não uma fronteira. A Multidisciplinaridade, ao reconhecer fronteiras, não deixa de reconhecer os diálogos, a convivência entre os diversos campos de saber, a possibilidade de trabalharem em projetos em comum – o que aliás também pode ser feito entre dois países com fronteiras bem demarcadas entre si. Um Instituto Multidisciplinar, por exemplo, funda-se nessa ideia de reconhecimento da pluralidade de campos de saber e no princípio de que a sua proximidade em um mesmo espaço (físico ou institucional) é particularmente produtiva. Por outro lado, existe um certo momento ou espaço de experiências no qual o Multidisciplinar começa a ser complementado com o Transdisciplinar (pois podemos ter multidisciplinaridade com transdisciplinaridade, ou não). Isso ocorre quando, além de reconhecer as fronteiras, e de convivermos amistosa e produtivamente com elas, deixamos que os campos de saber se afetem mutuamente. Ou, o que também é outra visão da questão, podemos dizer que a transdisciplinaridade entre em cena quando percebemos como os diversos campos de saber se afetam uns aos outros, quer queiram, quer não.

A passagem ou complementação do Multidisciplinar com o Transdisciplinar ocorre quando vamos além da troca de informações entre dois campos de saber, ou quando asseguramos uma feição realmente interativa entre os diversos tipos de especialistas que integram um projeto pluridisciplinar. O projeto Transdisciplinar não envolve apenas uma divisão de tarefas, ou a confluência dos esforços e talentos diversos para o alcance de determinada meta ou produção de certo produto final. A perspectiva transdisciplinar supõe que, no decorrer desse trabalho conjunto, um campo irá ajudar a transformar o outro. A possibilidade de ser afetado por outros campos de saber também está presente na Interdisciplinaridade – ou ao menos em alguns dos sentidos que são atribuídos a esta expressão. Podemos pensar a Interdisciplinaridade, por outro lado, como um movimento que ocorre a partir de uma disciplina específica, e que dela transborda. A Interdisciplinaridade, de acordo com esse viés, seria um movimento que parte do interior de uma disciplina, muito habitualmente como uma reação ao fato de que as ―fronteiras‖ entre ela e outros campos estão começando a ser tratadas como ―limites‖ por uma parcela significativa dos praticantes do campo em questão. Vista desta maneira, a Interdisciplinaridade e a Transdisciplinaridade guardam certa sintonia. Propomos distingui-las entre si a partir da ênfase em que se estabelece a saudável prática do transbordamento ou de estabelecimento de interações com outros campos de saber. A Transdisciplinaridade surge geralmente como um projeto estabelecido simultaneamente entre diversos campos de saber (ou entre grupos diversos constituídos por cada campo de saber). A Interdisciplinaridade pode ser entendida a partir do anseio (ou mesmo da necessidade) de uma disciplina em se renovar a partir da interação com outros campos. Pode ocorrer também a convergência de dois movimentos interdisciplinares. Cada campo inicia um movimento em direção ao outro pelos seus próprios motivos, e ambos acabam se encontrando naturalmente, estabelecendo mútuas cooperações e possibilidades de se enriquecerem reciprocamente. Posso dar o exemplo de diversos movimentos entre historiadores e geógrafos surgidos nas últimas décadas. Os historiadores têm se dado conta cada vez de que a História não pode ser apenas entendida como ―ciência dos homens no tempo‖, pois ela é também uma ―ciência dos homens no espaço (ou em um lugar)‖, como a Geografia. Esta, cada vez mais se apercebe que todo espaço é construído temporalmente, historicamente. Deste modo, História e Geografia, através das percepções interdisciplinares que emergiram em cada um desses campos, têm fortalecido ainda mais a sua fraternidade epistemológica nas últimas décadas. Neste ensaio, assumiremos a opção pela compreensão do conceito de ―interdisciplinaridade‖ como uma orientação que parte do interior de uma disciplina que deseja (precisa) renovar-se a partir de outras.

O que é uma Disciplina

Comecemos por pensar em algumas questões fundamentais. O que constitui um campo de saber como disciplina? Que história, ou que histórias, levam um determinado conjunto de práticas, representações e modos de fazer – certo universo de perspectivas sobre a realidade e de procedimentos para apreendê-la e trabalhar sobre ela, enfim – a se delimitar e a se definir gradualmente, até que esse conjunto adquira finalmente uma identidade suficientemente forte para que, a partir dele, passem a se nomear profissionalmente os praticantes da nova disciplina? Que elementos mínimos, enfim, são necessários para que se constitua efetivamente um campo disciplinar, e para que este se mantenha frente a outros saberes?^6 Estas questões, e outras mais, podem e devem ser colocadas para cada um dos campos de saber que merecem nos dias de hoje um assento universitário, e mesmo para outros que ainda não adentraram o espaço acadêmico, mas cuja identidade acha-se suficientemente fortalecida para ofertar aos seus praticantes o nome de uma disciplina e o sentimento de pertença a um sistema de objetos e práticas em comum. Física, Biologia, Astronomia, Economia, História, Geografia, Antropologia, Musicologia ... poderíamos estender, quase à exaustão, o número de exemplos a serem dados para campos disciplinares. Nosso objetivo nesta palestra será refletir mais sistematicamente sobre as categorias essenciais que devem ser empregadas para todos e cada um dos diversos campos disciplinares. Trata-se, neste momento, de definir os aspectos essenciais que contribuem para definir um campo disciplinar, qualquer que seja ele. O que desenvolveremos neste capítulo, portanto, é aplicável à reflexão de qualquer disciplina ou campo de saber, e não apenas à História, mais especificamente. Por outro lado, também é oportuno considerar que sempre emerge alguma ―história‖ quando começamos a nos indagar sobre o que significa falar de um certo conjunto de práticas, concepções e objetos de estudo como um campo específico de conhecimento, ou como uma ―disciplina‖ (no sentido científico). Todo ‗campo disciplinar‘, seja qual ele for, é em última instância histórico, no sentido de que vai surgindo ou começa a ser percebido como um novo campo disciplinar em algum momento, e que depois disso não cessa de se atualizar, de se transformar, de se redefinir, de ser percebido de novas maneiras, de se afirmar com novas intensidades, de se reinserir no âmbito dos diversos campos de produção de conhecimento ou de práticas específicas. Um campo disciplinar é histórico mesmo no que se refere às suas regras, que podem ser redefinidas a partir de seus embates internos, em alguns casos. ―O campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo‖ (BOURDIEU, 2003, p.29)^7.

Vejamos agora que instâncias são partilhadas por todos e por cada um dos diversos campos de saber (disciplinas). Estaremos em busca, nesta síntese, daquilo que todo campo disciplinar necessariamente precisa desenvolver para se constituir. O ‗Quadro 1‘ orientará a nossa reflexão relativamente a esses diversos aspectos que envolvem ou estão envolvidos na constituição, afirmação e transformações de um ‗campo disciplinar‘ de saberes e práticas. Começaremos por aquilo que é de certo modo um evidente lugar comum: toda disciplina é constituída, antes de tudo, por certo ‗campo de interesses temáticos‘ ( 1 ), o que inclui desde um interesse mais amplo que define este campo como um todo, até um conjunto mais privilegiado de objetos de estudo e de temáticas a serem percorridas pelos seus praticantes (ou de desafios a serem enfrentados, para o caso dos campos disciplinares que, tal como a Medicina, envolvem uma prática, mais ainda do que uma reflexão teórica e uma pesquisa). Pode ocorrer que certas ciências ou disciplinas partilhem inclusive um determinado interesse em comum (por exemplo, o interesse das chamadas ‗ciências humanas‘ pelo estudo daquilo que é humano), mas é também fato que a certo nível de profundidade surge sempre, para que se possa falar em uma disciplina com identidade própria, algum tipo de singularidade , o que nos levará ao próximo item. Assim, a História, que tem em comum com a Antropologia, Sociologia ou Psicologia o estudo do Homem – e que, portanto, partilha com estas ciências alguns de seus objetos de estudo – a certa altura deverá ser definida como a ciência que coloca no centro de seu campo de interesses ―o estudo do homem no tempo ‖. Os objetos da história – isto é, o seu ―campo de interesses‖ – em que pese que pareçam coincidir em um primeiro momento com os objetos possíveis das demais ciências sociais e humanas, serão sempre objetos ―historicizados‖, ―temporalizados‖, marcados por uma atenção à mudança em alguns de seus níveis. Pode se dar também que o centro de interesses de uma disciplina esteja situado em uma confluência, em uma conexão de saberes, e este é certamente o caso da Astrofísica, da Medicina Penal, da Filosofia da Ciência, ou de qualquer outra disciplina que, por vezes em seu próprio nome, não deixa dúvidas com relação ao caráter híbrido de sua esfera mais direta de interesses. A esta questão voltaremos oportunamente, e desde já cumpre observar que o conjunto de interesses temáticos de uma Disciplina, particularmente no que se refere aos seus desdobramentos e possibilidades de objetos de estudos, também está sujeito a transformações no decorrer de sua própria história. Seguindo além, uma conseqüência imediata do que se disse aponta para o fato de que cada Disciplina possui a sua Singularidade ( 9 ), aqui entendida como o conjunto dos seus parâmetros definidores, ou como aquilo que a torna realmente única, específica, e que

da Igreja‘. Essa tendência ao desdobramento interno e à crescente especialização – que se apresenta como uma característica de praticamente todos os ‗campos disciplinares‘ no período contemporâneo – tem sido um aspecto inerente à história do conhecimento na civilização ocidental, sobretudo a partir da modernidade, o que não impede que os efeitos mais criticáveis do hiperespecialismo sejam constantemente compensados pelos movimentos interdisciplinares e transdisciplinares, voltados para uma ‗religação dos saberes‘ em um mundo no qual os campos de produção de conhecimento vivem a constante ameaça do isolamento. Para além do que até aqui foi discutido, três aspectos fundamentais a serem considerados quando se fala na constituição de um ‗campo disciplinar‘ relacionam-se ao fato de que nenhuma disciplina adquire sentido sem que desenvolvam ou ponham em movimento certas teorias, metodologias e práticas discursivas ( 2 a 4 ). Mesmo que tome emprestados conceitos e aportes teóricos originários de outros campos de saber, que incorpore métodos e práticas já desenvolvidas por outras disciplinas, ou que se utilize de vocabulário já existente para dar forma ao seu discurso, não existe disciplina que não combine de alguma maneira Teoria , Método e Discurso. Bem entendido, um campo disciplinar não se desenvolve no sentido de possuir apenas uma única orientação teórica ou metodológica, mas sim de apresentar um certo repertório teórico-metodológico que é preciso considerar, e que se torna conhecido pelos seus praticantes, gerando adesões e críticas várias. Da mesma maneira, o desenvolvimento de um campo disciplinar acaba gerando uma linguagem comum através da qual poderão se comunicar os seus expoentes, teóricos, praticantes e leitores. Há mesmo campos disciplinares que acabam gerando certo repertório de jargões, facilmente reconhecível como dialeto específico de determinado campo de saber, mesmo externamente. Qualquer campo disciplinar, enfim, à medida que vai se constituindo, vai também se inscrevendo em certa modalidade de Discurso, por vezes com dialetos internos. É por isso que não é possível a ninguém se transformar em legítimo praticante de determinado campo disciplinar, se o iniciante no novo campo de estudos não se avizinha de todo um vocabulário que já existe previamente naquela Disciplina, e através do qual os seus pares se intercomunicam^9. Quanto à questão da Interdisciplinaridade ( 0 ), por se tratar do próprio objeto desta palestra, esta não os requer maiores comentários neste momento, embora tenhamos aqui a sétima instância importante que concorre para o delineamento de qualquer campo de estudos. Por ora, chamamos atenção para o fato de que, ao se colocarem em contato interdisciplinar ou transdisciplinar, dois campos de saber podem enriquecer sensivelmente um ao outro nos seus

próprios modos de ver as coisas e a si mesmos. A teoria, a metodologia e as práticas discursivas que constituem qualquer campo de saber são diretamente afetadas pelos diálogos interdisciplinares que o campo estabelece com outros. Conforme já mencionamos, particularmente a História, no decorrer do século XX e além, foi beneficiada por uma longa história de contribuições inspiradas em outros âmbitos de saber. A Geografia, Antropologia, Psicologia, Lingüística, entre outras ciências humanas, estiveram fornecendo frequentemente conceitos e metodologias aos historiadores, e certos desenvolvimentos em âmbitos intradisciplinares da História como a História Cultural ou a História das Mentalidades não teriam sido possíveis, certamente, sem os respectivos diálogos interdisciplinares com a Antropologia e com a Psicologia. Também no âmbito das ciências naturais não foi raro que o contato interdisciplinar contribuísse para modificar a própria maneira de ver as coisas neste ou naquele campo científico. Diálogos entre a Física e a Astronomia, ou entre a Química e a Física, nos oferecem alguns exemplos muito concretos de renovação^10.

Por fim, não é possível pensar uma Disciplina sem admitir o seu lado de fora – uma zona de interditos ( 6 ), ou aquilo que se coloca como proibido aos seus praticantes. O exterior um de campo de saber é tão importante para uma disciplina como aquilo que ela inclui, como as teorias e métodos que ela franqueia aos seus praticantes, como o discurso que ela torna possível, como as escolhas interdisciplinares estimuladas ou permitidas^11. Ademais, o que se interdita em uma disciplina, como tudo mais, também é histórico, sujeito a transformações, e as temáticas e ações possíveis que um dia estiveram dentro de certo campo disciplinar podem ser processualmente deslocadas para fora, como também algo do que estava fora pode vir para dentro, para um espaço de inclusão legitimado pela rede de praticantes da disciplina^12. Tecnicamente poderíamos interromper aí a enumeração dos principais aspectos a serem considerados para compreender a constituição de um campo disciplinar qualquer, se não faltasse o essencial, na verdade aquilo que perpassa todos os demais aspectos. Existe de fato uma densa e complexa Rede Hum ana ( 7 ), constituída por todos aqueles que já praticaram ou praticam a disciplina considerada e pelas suas realizações – obras, vivências, práticas realizadas – e também isto é certamente tão inseparável da constituição de um campo disciplinar, que poderíamos propor a hipótese de que a entrada de cada novo elemento humano em certo campo disciplinar já o modifica em alguma medida, da mesma maneira que cada obra produzida sobre um campo de saber ou no interior deste mesmo campo de saber já o modifica em menor ou maior grau, às vezes indelevelmente, às vezes tão enfaticamente a ponto de se tornar visível o surgimento de novas direções no interior deste campo disciplinar.

empreendida por cada historiador co-participante da rede termina por enunciar ―uma operação que se situa em um conjunto de práticas‖. Dito de outra forma, está desde já inarredavelmente inscrito nesta complexa rede – formada pelos historiadores e por suas realizações historiográficas – cada texto histórico, ―quer dizer, uma nova interpretação, o exercício de métodos novos, a elaboração de outras pertinências, um deslocamento de definição e do uso do documento, um modo de organização característico, etc‖ (CERTEAU, 1982: 72). Não há contribuição, por singela que seja, que não repercuta de alguma maneira na rede historiográfica, ainda que indelevelmente. Podemos não nos dar conta de cada contribuição atomizada, mas certamente a influência de cada um e de todos em um campo de saber pode ser entrevista nas lentas ou súbitas mudanças de temáticas, de preferências teóricas, de escolhas metodológicas. Um campo de saber, enfim, não se faz apenas das suas obras magistrais, mas também das contribuições que se estabelecem na média, das tendências que se afirmam ou se revertem em vista das ações da massa de pesquisadores que constituem o campo disciplinar e dos leitores que completam o processo de circulação do saber^15. Reconhecer a ‗Rede Humana‘ específica que constitui cada campo disciplinar produzido pelo homem também leva à compreensão de um derradeiro aspecto, quase um desdobramento da crescente consciência que a rede humana vai desenvolvendo sobre si mesma e sobre o campo que constitui, à medida que avança na sua história. A certa altura de seu amadurecimento como campo disciplinar, começam a ser produzidos, cada vez mais freqüentemente no seio do próprio campo de saber em constituição, os ―olhares sobre si‖. Começam a surgir, elaboradas pelos próprios praticantes da Disciplina, as ‗histórias do campo‘, aqui entendidas no sentido de narrativas e análises elaboradas pelos praticantes do campo disciplinar acerca da própria rede de homens e saberes em que estão inseridos. Compreender-se historicamente é o resultado mais visível deste ―olhar sobre si‖ ( 8 )^16. Temos então dez dimensões importantes nesta caminhada para tentar compreender uma Disciplina, qualquer que ela seja: o seu Campo de Interesses ( 1 ), os seus aportes teóricos ( 2 ), o seu padrão discursivo ( 3 ), as suas metodologias ( 4 ), os seus campos Intradisciplinares ( 5 ), os seus Interditos ( 6 ), bem como a extensa ‗rede humana‘ ( 7 ) que, através de suas realizações, empresta uma forma e dá concretização ao campo disciplinar, sem contar o ‗olhar sobre si‘ ( 8 ) que esta mesma rede estabelece a certa altura de seu próprio amadurecimento, e, enfim, a própria Singularidade da disciplina em questão ( 9 ). A isso tudo se agregam os diálogos e confrontos estabelecidos através da Interdisciplinaridade ( 0 ). Se a interdisciplinaridade não se situa propriamente no interior de cada disciplina, mas sim ―entre‖

as várias disciplinas, não há como negar que se trata de uma instância que, de alguma maneira, ajuda a redefinir cada campo de conhecimento considerado. Para encerrar esta sessão mais uma vez com a questão da história – isto é, com a questão de que cada campo disciplinar tem a sua própria História e que, de preferência, esta história (ou esta leitura de sua história) deve ser escrita pelos seus próprios praticantes de modo a renovar constantemente os seus ‗olhares sobre si mesmos‘ – torna-se importante compreender adicionalmente que cada uma das dez dimensões atrás citadas, além de interligada às demais, está mergulhada ela mesma, por inteiro, na própria história. Os padrões interdisciplinares se alteram, os desdobramentos intradisciplinares se multiplicam ou se restringem, as teorias se redefinem, as metodologias se recriam, o padrão discursivo se renova, os interditos são rediscutidos, e mesmo algo da Singularidade que permite definir uma ‗matriz disciplinar‘ no interior da rede de saberes pode sofrer variações mais ou menos significativas à medida que surgem novos paradigmas e contribuições teórico-metodológicas. Para além de tudo isto, cada campo de saber está constantemente produzindo novos ‗olhares sobre si mesmo‘ de acordo com as transformações que se dão dentro e fora do campo – do contexto histórico-social às transformações teóricas e tecnológicas. Tudo é histórico, enfim, e essa máxima é também válida para todo o conjunto de elementos daquilo que vem a constituir um determinado campo disciplinar.

Pontes interdisciplinares

Uma vez compreendido o que é uma Disciplina, podemos começar a nos acercar mais profundamente do conceito de Interdisciplinaridade. Vimos na última sessão que, entre as diversas instâncias que constituem uma disciplina, a Interdisciplinaridade é uma dimensão incontornável. Já desde o momento em que surge ou se faz visível, qualquer campo de saber não pode senão se situar em uma rede de disciplinas com as quais irá se confrontar, contrastar e interagir. Ao mesmo tempo, vimos também que toda disciplina envolve certas instâncias que são comuns a todos os campos de saber: Teoria, Metodologia, as especificidades de um discurso, uma rede de praticantes do campo de saber em questão, as singularidades que a definem, certo campo de interesses que podem se confrontar ou se interpenetrar com o de outras disciplinas, e assim por diante. Ao mesmo tempo, uma Disciplina – à medida que se torna mais complexa – cedo começa a conformar espaços internos ao seu próprio campo de práticas e de estudos. Surgem então as diversas sub-especialidades ou âmbitos internos, ou o que podemos também chamar de ―campos intradisciplinares‖.

complexo, ainda que também o linguajar simples da vida comum esteja incluído na sua palheta de recursos discursivos. A linguagem da História, de fato, traz singularidades adicionais, não encontráveis em nenhum outro saber. Para já tocar em uma das questões que nos interessam – a da Escrita da História – devemos lembrar que os historiadores desenvolvem o seu discurso a partir de uma linguagem que combina a fala comum e o artifício literário, a isso acrescentando o uso de conceitos mais bem elaborados, não raras vezes importados de outros campos de saber. Dito de outra forma, o discurso historiográfico deve entremear com habilidade três registros de comunicação: o da linguagem comum, o da elaboração artística, e o da sistematização científica. Além disto, a História lida não apenas com a fala de sua própria época, mas também com as falas das diversas outras épocas, estas com as quais os historiadores devem trabalhar em função de suas fontes e objetos de estudo. Daí resulta que o discurso final dos historiadores deverá ser, a um só tempo, cientificamente interdisciplinar , artisticamente literário e experimentalmente multivocal. Mais adiante, voltaremos aos desdobramentos da ideia de que a História, além de ser um saber científico, produz como objeto final um texto literário, e mesmo artístico. Este aspecto, o qual obriga a que os historiadores percorram freqüentemente a ponte interdisciplinar que se relaciona ao Discurso, situa a História em franco diálogo com diversas formas de expressão, entre as quais a Literatura e o Cinema. Por outro lado, o fato de a História também introduz no seu discurso uma linguagem científica, obriga os historiadores a percorrerem, na direção dos outros campos de saber, a ponte interdisciplinar que se relaciona à Teoria. Isto porque os historiadores valem-se de uma linguagem conceitual, sem que necessariamente precisem inventar cada conceito do qual irão se utilizar. Com muita freqüência, os historiadores já encontram elaborados nas demais ciências diversos dos conceitos dos quais precisam se utilizar. Pode se dar o caso de que o historiador precise criar um conceito específico para nomear ou esboçar a compreensão de alguma realidade histórica muito específica, mas não são nada raras as inúmeras oportunidades que se apresentam aos historiadores para lançarem mão de conceitos que são muito comuns no vocabulário antropológico, geográfico, sociológico, político, jurídico, psicológico, econômico, literário, e mesmo em campos de saber ligados às ciências naturais e às chamadas ciências duras. Desde a sua formação inicial, por isso mesmo, os historiadores estão muito habituados a operar interdisciplinarmente através do discurso.

As mais antigas interdisciplinares: através da teoria, dos métodos e das temáticas de estudo.

As mais antigas interdisciplinares às quais se entregaram os historiadores, desde que iniciaram a sua expansão no universo de saberes científicos, foram aquelas que se relacionam às pontes interdisciplinares que podemos referir à Teoria, ao Método, e às escolhas temáticas. Quero dar o exemplo inicial da Geografia, uma disciplina à qual os historiadores dedicam talvez a mais antiga fraternidade epistemológica. Os entrelaçamentos interdisciplinares entre geógrafos e historiadores dão-se sobretudo a partir de um duplo movimento. De um lado, os historiadores – que essencialmente costumam pensar o seu campo de saber como uma ―ciência dos homens no tempo‖ – cada vez mais adquirem uma consciência da espacialidade. A História, então, passa a ser definida como uma ―ciência dos homens no tempo e no espaço‖. De outro lado, por um movimento inverso mas que conflui na direção dos historiadores, os geógrafos adquirem cada vez mais a consciência de que o espaço é construído no tempo. As últimas décadas têm assistido a um revigoramento importante desse duplo movimento de historiadores e geógrafos que respectivamente têm intensificado as suas consciências da espacialidade e da temporalidade. Por isso, cada vez são mais freqüentes os congressos unindo simultaneamente historiadores e geógrafos. Conceitos como o de ―território‖ – fundamental para compreender a apropriação política do espaço – ou como as noções de ―paisagem‖, ―região‖, têm estabelecido diálogos importantes entre historiadores e geógrafos através desta ponte interdisciplinar que é a Teoria. Os historiadores aprimoraram as suas maneiras de enxergar as sociedades históricas por eles investigadas na medida em que puderam utilizar, de modo mais sistemático, certos conceitos originariamente da Geografia. A noção de ―fronteira‖ – ela mesma importante para compreender as próprias relações entre as várias disciplinas – também pode ser mencionada. Por outro lado, a metodologia também se apresenta como uma instância na qual historiadores podem aprender com geógrafos. Basta lembrar o uso importante que os historiadores precisam fazer da Cartografia – seja como método para traduzir visualmente a espacialidade apreendida em relatos escritos ou na coleta de informações diversificadas presentes nos vários tipos de fontes, seja na utilização de mapas antigos como fontes históricas produzidas pelas sociedades examinadas como formas muito singulares de examinar o espaço e de dele se apropriar territorialmente e imaginariamente. As relações com a Antropologia, por outro lado, sempre foram tensas e produtivas. Se em diversas ocasiões os antropólogos expressaram desconfianças ou inquietações em relação às obsessões dos historiadores pelo tempo, eles também nos inspiraram diálogos vários

de pesquisa, têm ainda exigências estéticas a cumprir. Além de pesquisadores hábeis, e de formuladores de problemas historiográficos, os historiadores, enfim, precisam escrever^19. Para iniciar a abordagem deste aspecto, partirei da percepção de um sintoma importante. Nas últimas décadas, temos assistido a um fenômeno editorial que tem perturbado de alguma maneira os meios historiográficos. Obras de História têm sido elaboradas por escritores que não são historiadores de formação, e muitas delas têm alcançado sucesso editorial impressionante em termos de vendagem de livros. Não tem sido rara, por exemplo, a afirmação editorial da figura do jornalista que se faz historiador, e que conquista um amplo público para suas realizações na área de história. Enquanto isso, as obras de história elaboradas por historiadores profissionais, com todo o rigor científico, por vezes despertam pouca ou menor atenção do grande público. No Brasil essa tendência tem se mostrado particularmente saliente. Qual é a raiz deste problema? Como pode este desafio ser enfrentado pelos historiadores? Um primeiro aspecto a ser considerado é que todo texto precisa ser pensado em relação aos leitores que dele poderão se beneficiar. Se a História, no âmbito da pesquisa, é elaborada por especialistas, no âmbito da produção de texto ela deve se voltar para públicos diversificados. O historiador não escreve apenas para a Academia. E, mesmo quando faz isso, também pode buscar trazer ao seu leitor acadêmico uma leitura prazerosa, criativa, inovadora. Há duas questões aí envolvidas. A escrita da História pode ser mais agradável, e também pode ser mais criativa. Acredito que essas duas questões nos coloquem diretamente no cerne de novas interdisciplinaridades, as quais se referem ao que nomeei como ‗quarta ponte interdisciplinar‘. Os modos de lidar com o discurso histórico, com a elaboração do texto, com as exigências estéticas que se fazem ao historiador, levam-nos a pensar a interdisciplinaridade com a Literatura, com o Cinema, ou mesmo com a Música. O último século assistiu a experiências importantes no âmbito da criação literária, particularmente no que se refere à escrita imaginativa. Os autores de romances, por exemplo, têm experimentado as mais inovadoras formas de entretecerem suas narrativas. O Tempo, por exemplo, é tratado pelos escritores de ficção de maneira criativa, permitindo idas-e-vindas, abrindo-se para a exploração do tempo psicológico, para o entretecer de ritmos temporais diversos. Na História, Fernando Braudel deu-nos, há muitas décadas (1949), o exemplo de um uso mais criativo do tempo na narrativa histórica, ao articular durações diversas sujeitas a diferentes ritmos temporais. De modo geral, contudo, é possível dizer que a escrita dos historiadores tem apresentado soluções relativamente modestas para o tratamento do tempo

narrativo: de modo geral, trata-se de um tempo tratado linear e progressivamente, com um encaminhamento facilmente previsível. O mesmo se pode dizer com relação à exploração dos múltiplos pontos de vista e de enunciação de uma narrativa. Enquanto os romancistas têm explorado com imensa criatividade as potencialidades polifônicas de um texto – e poderíamos aproveitar essa passagem para lembrar José Saramago, falecido recentemente – a narrativa limitada pelo ponto de vista narrativo único ainda reina soberana, assim como os formatos tradicionais das teses e dissertações frequentemente parecem desautorizar a invenção literária como um atributo que precisaria ser cultivado pelos historiadores. Existem, é claro, inúmeras experiências recentes, e são elas que prenunciam os diálogos interdisciplinares que começam a ser estabelecidos entre a História e a Literatura. Os micro-historiadores, por exemplo, têm colocado a questão da escrita final do texto como uma questão crucial, a qual pode afetar inclusive o que pode ser passado ao leitor acerca da pesquisa realizada pelo historiador. A escolha de um ou outro caminho narrativo, ou a opção por certa forma dada ao texto, também tem as suas implicações, inclusive para a própria dimensão da pesquisa histórica – um aspecto que não tem escapado aos historiadores recentes. A Micro-História, para seguirmos com este exemplo, tem se esmerado em avivar as implicações da forma literária em relação às instâncias da pesquisa historiográfica. Esforços como os dos micro-historiadores, e também de historiadores ligados a outras correntes historiográficas, têm chamado a atenção para o fato de que Pesquisa e Escrita não são instâncias que se desenvolvem necessariamente em separado^20. De todo modo, hoje como ontem, a massa de historiadores profissionais produziu grandes escritores, no sentido de produção do artefato literário da história. Os séculos XIX e XX foram pródigos em grandes historiadores com exímia capacidade literária, e, hoje em dia, ainda é assim. No nível mais mediano constituído pela grande massa dos historiadores, contudo, penso que ainda se discute pouco a questão da escrita, do fazer literário implicado pela História. Quero sustentar a convicção de que os historiadores em formação precisam aprender técnicas literárias. O historiador precisa também se formar como Escritor. Isso me parece imprescindível. Pergunto se tem sido dado espaço importante, no currículo das graduações em História, à elaboração do texto. Se os historiadores profissionais não puderem se transformar em exímios escritores, estarão sempre ameaçados de perderem seu lugar, junto ao público leitor, para profissionais de outras áreas que têm publicado trabalhos de História. Em uma palavra, é preciso que o historiador habitue-se a enxergar a sua prática não apenas como uma Ciência, mas também como uma Arte.