Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Teoria do Medalhão, Notas de aula de Economia

Teoria do Medalhão. Machado de Assis. — Estás com sono? — Não, senhor. — Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Birinha90
Birinha90 🇧🇷

4.6

(363)

224 documentos

1 / 6

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Teoria do Medalhão
Machado de Assis
1881
Estás com sono?
Não, senhor.
Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
Onze.
Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, che-
gaste aos teus vinte e um anos. vinte e um anos, no dia 5de agosto de 1854,
vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namo-
ros. . .
Papai. . .
Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha
aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um
anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura,
na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. infi-
nitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira
sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram
tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu
desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima
da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são pou-
cos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam
as esperanças de outra. Isto é a vida; não planger, nem imprecar, mas aceitar as
coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
Sim, senhor.
Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice,
assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que
os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É
isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão
foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e
acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que
deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens
naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas
1
pf3
pf4
pf5

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Teoria do Medalhão e outras Notas de aula em PDF para Economia, somente na Docsity!

Teoria do Medalhão

Machado de Assis

>EE>

— Estás com sono? — Não, senhor. — Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? — Onze. — Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, che- gaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia B de agosto de >EBA, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namo- ros...

— Papai... — Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infi- nitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são pou- cos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

— Sim, senhor. — Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá? — Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas

modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...

— É verdade, por que quarenta e cinco anos? — Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.

— Entendo. — Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cui- dado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida. — Mas quem lhe diz que eu... — Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia men- tal, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas ex- pender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sin- toma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as so- freemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto. — Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível. — Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente. — Como assim, se também é um exercício corporal?

A

palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais de- pressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.

— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo pecu- liar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te de foro pró- prio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, — que, segundo um poeta clássico,

Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos;

e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico. — Upa! que a profissão é difícil! — E ainda não chegamos ao cabo. — Vamos a ele. — Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro me- dalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja no- tícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares mereci- mentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéti- cas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um

B

nome caro às afeições gerais. Percebeste? — Percebi. — Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da famí- lia, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em se- melhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “ala- vanca do progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obsé- quio com um discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jor- nais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente. — Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil. — Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê- me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos de- sadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.

— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?

— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade. — Nem política? — Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultra- montano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábu-