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Tempo, exílio e sentimentos: A nostalgia e as gramáticas ..., Notas de estudo de Lógica

O trabalho aqui apresentado tem como objeto As brasas, romance de autoria do escritor austro-húngaro Sándor Márai (1900 – 1989).

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

PorDoSol
PorDoSol 🇧🇷

4.5

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Tempo, exílio e sentimentos:
A nostalgia e as gramáticas emocionais do reencontro no romance As Brasas (1941)
Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e
12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.
Eduardo Moura Pereira Oliveira (Ppcis/Uerj)
Introdução
O trabalho aqui apresentado tem como objeto As brasas, romance de autoria do
escritor austro-húngaro Sándor Márai (1900 1989). As brasas, publicada em 1942, é sua
obra mais vendida e adaptada. Nela, Márai narra o reencontro entre dois amigos de infância
após quarenta e um anos de separação, já em idade crepuscular. A história se passa ao longo
de vinte e quatro horas, do momento em que o general Henrik é comunicado sobre a visita
inesperada do amigo até o fim da noite, quando o denso diálogo entre os personagens chega
ao fim. Enquanto aguarda a chegada, Henrik olha para trás em sua vida e busca as razões para
o desaparecimento inexplicável daquele que fora seu melhor amigo. Na trama, o amor e a
amizade são atravessados por um segredo perturbador envolvendo a quebra da confiança, da
perspectiva do protagonista. A traição de sua mulher com o seu melhor amigo, assombrada
por indícios de um ensaio para mata-lo, aparece como estopim para a ruptura do laço afetivo
capaz de fazer da própria casa um lugar longínquo, remoto, isolado. Um lugar não mais
reconhecido, mesmo por quem sempre lá viveu, exceto através das memórias.
Na obra, há um passado que não se findou relacionado a um horizonte para o qual se
caminha. A partir dessas inquietações, proponho um estudo voltado para a articulação entre
tempo e sentimentos no contexto de relações onde prevalece o desabrigo decorrente da quebra
de confiança.
A categoria analítica nodal é o exílio, compreendido sob uma dupla perspectiva: como
fato biográfico, do ponto de vista do afastamento geográfico, e como experiência existencial,
do ponto de vista de uma vivência subjetiva e emocional, baseado no trabalho de Susan
Suleiman (2009). Ao imergir no universo das relações afetivas despedaçadas, Márai reformula
os dramas com base naquilo que o exilado temporalmente guarda consigo, as oscilações entre
a nostalgia e a esperança. Em As Brasas, a ambivalência de sentimentos em relação ao que se
viveu é atravessada pela quebra da confiança e pelo tempo, cuja força é capaz de fazer os
vínculos escoarem e de confinar pessoas no passado. Temos, portanto, laços cujas pontas se
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Tempo, exílio e sentimentos: A nostalgia e as gramáticas emocionais do reencontro no romance As Brasas (1941) Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF. Eduardo Moura Pereira Oliveira (Ppcis/Uerj)

Introdução

O trabalho aqui apresentado tem como objeto As brasas, romance de autoria do escritor austro-húngaro Sándor Márai (1900 – 1989). As brasas , publicada em 1942, é sua obra mais vendida e adaptada. Nela, Márai narra o reencontro entre dois amigos de infância após quarenta e um anos de separação, já em idade crepuscular. A história se passa ao longo de vinte e quatro horas, do momento em que o general Henrik é comunicado sobre a visita inesperada do amigo até o fim da noite, quando o denso diálogo entre os personagens chega ao fim. Enquanto aguarda a chegada, Henrik olha para trás em sua vida e busca as razões para o desaparecimento inexplicável daquele que fora seu melhor amigo. Na trama, o amor e a amizade são atravessados por um segredo perturbador envolvendo a quebra da confiança, da perspectiva do protagonista. A traição de sua mulher com o seu melhor amigo, assombrada por indícios de um ensaio para mata-lo, aparece como estopim para a ruptura do laço afetivo capaz de fazer da própria casa um lugar longínquo, remoto, isolado. Um lugar não mais reconhecido, mesmo por quem sempre lá viveu, exceto através das memórias.

Na obra, há um passado que não se findou relacionado a um horizonte para o qual se caminha. A partir dessas inquietações, proponho um estudo voltado para a articulação entre tempo e sentimentos no contexto de relações onde prevalece o desabrigo decorrente da quebra de confiança.

A categoria analítica nodal é o exílio , compreendido sob uma dupla perspectiva: como fato biográfico, do ponto de vista do afastamento geográfico, e como experiência existencial, do ponto de vista de uma vivência subjetiva e emocional, baseado no trabalho de Susan Suleiman (2009). Ao imergir no universo das relações afetivas despedaçadas, Márai reformula os dramas com base naquilo que o exilado temporalmente guarda consigo, as oscilações entre a nostalgia e a esperança. Em As Brasas , a ambivalência de sentimentos em relação ao que se viveu é atravessada pela quebra da confiança e pelo tempo, cuja força é capaz de fazer os vínculos escoarem e de confinar pessoas no passado. Temos, portanto, laços cujas pontas se

perderam no tempo, de modo a produzir vínculos irrevogavelmente afastados pela passagem do tempo.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira metade, Henrik rememora o que foi a sua vida até o momento da partida de seu melhor amigo Konrad, depois de descobrir a traição envolvendo a sua mulher, Krisztina. Já a segunda parte é marcada pela longa conversa entre os amigos, após quatro décadas afastados um do outro. Espera e reencontro compõem a obra na qual a trama se estende, um microcosmo temporal onde o passado sobrevém ao presente. Nesse sentido, entendo o trabalho aqui realizado como um exercício investigativo de exploração bibliográfica a respeito das gramáticas emocionais do exílio , em particular o modo pelo qual os sentimentos do passado se articulam aos sentimentos do futuro.

A análise interpretativa de As Brasas , portanto, privilegia o registro de um exílio marcado pelo crivo do tempo; por consequência, aponta para o nexo entre sentimentos nostálgicos e esperançosos. Tais aspectos aparecem na obra sob a forma de uma lírica sensível à inevitabilidade do destino diante do tempo que escoa ao longo da vida; e sensível também ao tom insular que atravessa a condição isolada do protagonista, o que o leva a se voltar às memórias como esforço terminal de tranquilidade íntima no que se refere aos conflitos com o amigo.

Análise da obra

Na obra, todas as ações se reportam ao passado, de modo que para os personagens não há nada mais a ser feito, um movimento análogo à condição das pessoas e à situação política na Europa de 1940. A guerra e a idade muito avançada do protagonista fornecem um tom de irreversibilidade do estado das coisas. A energia característica daquelas ações humanas capazes de mudar o curso da vida está reduzida ao que restou do passado e só pode ser reativada através da memória. É a partir dessas linhas que Márai conta a história de uma amizade rompida pela traição e que será “tirada a limpo” depois de quarenta e um anos. O protagonista esteve isolado dentro do castelo longínquo onde viveu toda a sua vida. Espera apenas encontrar aquele que foi seu melhor amigo e compreender o que aconteceu no passado. Portanto, o ponto da obra a ser analisado como amostra de uma relação específica entre tempo e sentimentos é o da tensão entre o passado e as hipóteses que contrariam o passado. Aos 75 anos, vivendo isolado entre as montanhas em meio a uma guerra que se alastra pelo continente, o protagonista Henrik contrasta o “foi” ao “tivesse sido”. Remanescente do Império Austro-húngaro, observa pela segunda vez a Europa abandonar a

Sociologia e literatura: pressupostos teóricos

Ao analisar a obra literária e sua capacidade de expressar a vida, uma dificuldade metodológica se impõe no sentido de verificar as possibilidades de conexão entre certo estado de espírito contido no interior de uma singularidade e as teorias, marcadas pela pretensão de objetividade e universalidade. Refere-se ao problema das condições de possibilidade de uma ciência da arte, que implica em por vezes fazer a conjugação entre o universal e o particular. Nesse ponto, cabe uma reflexão sobre a expressão lírica dos sentimentos, contida em As Brasas , e sua conexão com realidades sociais e históricas, largamente discutidas pelas ciências sociais. Importa perguntar se seriam as teorias sociais moldes a partir dos quais a obra pode ser analisada, o que consiste em pressupor a anterioridade do conhecimento sistematizado, único capaz de fornecer a lente objetiva que permite a visualização do drama íntimo clamado pelo poeta. Desse modo, a pergunta que serve de enquadre é: estaria o particular, expressão subjetiva de um sentimento, hierarquicamente subordinado aos postulados objetivos, às teses consolidadas, calcadas em procedimentos sistemáticos de verificação da vida social? Diante dessa pergunta aparece o problema da lírica, presente na novela de Márai, e sua conexão com o mundo. O debate aqui proposto busca compreender como a obra do poeta lírico se articula com as teorias e identificar qual a forma de registro adequada a esse tipo de análise. Tal debate, que visa percorrer os fios de ligação entre o poeta e o mundo, encontra em aspectos da tradição da teoria crítica a proposta do ensaio como terreno fértil para a interpretação de obras estéticas dessa natureza. Assim, seria a partir dessa crítica que a lírica, enquanto expressão do mundo social, pode ser pensada. Lírica é uma composição constituída pela expressão ética ou dramática de um sentimento. Um terreno de expressão que muitas vezes não reconhece o poder de socialização. O lírico requer imersão na particularidade individual. Parte da estética moderna se desdobra a partir dessa orientação: basta pensarmos na afirmação de uma entidade espiritual distanciada, por parte do idealismo alemão, ou na primazia das reações subjetivas em contraposição ao social, por parte do expressionismo. Aqui aparece a o problema da primazia do discurso científico sobre a voz da subjetividade. A tarefa de fazer da expressão lírica do sentimento um objeto de interpretação sociológica é assombrada pela subordinação de composições literárias a questões sociológicas já levantadas pelas teorias. Consiste em identificar os conteúdos políticos, culturais e sociais da obra e tomá-los como atestado de comprovação das teses das ciências sociais. As obras de

arte seriam, desse modo, como ilustrações da teoria, que funcionaria como lente através da qual o objeto pode ser pensado. Pressupõe uma exterioridade anterior, um feixe de causações capazes de interpretar a obra, direção que se opõe ao zelo dos artistas e literatos, sempre cautelosos em extrair significados de suas obras. Pensar a relação entre a lírica e a sociedade do ponto de vista sociológico acaba expondo de maneira aguçada os desencontros entre uma linguagem poética e os moldes explicativos. Theodor Adorno apontou tal desconforto em palestra de 1957, Sobre a lírica e a sociedade , onde problematiza a tarefa de interpretar conteúdos líricos por parte das ciências sociais. “Afinal, trata-se de manusear o que há de mais delicado, de mais frágil aproximando- o justamente daquela engrenagem, de cujo contato ideal da lírica, pelo menos no sentido tradicional, sempre pretendeu se resguardar” (ADORNO, 2012, p. 65). Para Adorno, o cuidado com o lirismo reside no fato de se tratar de uma abordagem que permite pensar a relação indivíduo e sociedade de maneira particularmente sutil. O lírico opera sob uma lógica que se nega a endossar a matéria objetiva, socialmente consolidada. As disposições emocionais expostas na linguagem do eu lírico aparecem em sua plenitude como a negação da realidade objetiva. “Seu distanciamento da mera existência torna-se a medida do que há nesta de falso e de ruim” (idem, p.69). Para Adorno, o espírito lírico “enuncia o sonho de um mundo em que essa situação seria diferente”. Trata-se de uma reação à coisificação do mundo e uma tentativa de ultrapassá-lo. Para Adorno, importa elevar a noção de lírica para além dos seus limites até encontrar os “sedimentos da relação histórica do sujeito com a objetividade” (idem, p.72). Assim, propõe o procedimento imanente, que busca reconhecer o teor social de uma lírica que nega a sociedade e, no entanto, não deixa de ser social, na medida em que guarda os sedimentos de uma realidade histórica negada. Segundo Adorno “a referência ao social não deve levar para fora a obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela” (idem, p.66): Esse pensamento, porém, a interpretação social da lírica, como aliás de todas as obras de arte, não pode portanto ter em mira, sem mediação, a assim chamada posição social ou a inserção social dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de estabelecer, em vez disso, como o todo de uma sociedade, tomada em si mesma como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte; mostrar em que a obra de arte lhe obedece e em que a ultrapassa (ADORNO, 2012, p.67) Para o autor, o eu expresso pela lírica é o da fratura com a objetividade, aquele que perde a sua identificação com a natureza e procura restabelecê-la pelo mergulho no próprio eu (idem, p.70). O que está a marcar é a possibilidade de o texto lírico fazer indicações para uma coletividade. Isso, no entanto, não significa apenas apontar os elementos sociais condicionantes da obra, mas essencialmente identificar a negação de uma lógica de

O ensaio é forma estética, consiste em uma estrutura textual de caráter crítico e teórico sobre uma obra, observando suas conexões com uma realidade histórica e social. Em Sobre a forma e a essência do Ensaio , de 1911, Georg Lukács trata este gênero narrativo como o registro pertencente ao plano do intelecto, diferente da poesia, que opera através do sensível. Linguagens que tratam de vivências, no entanto, o poeta não está preso a qualquer tipo de verdade, ou o que leva em consideração é tão somente a sua verdade interior. Por sua vez, do crítico ensaísta se espera a expressão de algum grau de verdade frente ao seu objeto. Lukács lembra que o ensaio é sempre sobre algo já existente; sua tarefa não é criar, mas reordenar. “A poesia retira seus motivos da vida (e da arte); para o ensaio, a arte (e a vida) servem de modelo” (LUKÁCS, 2015, p. 43). Corresponde a um exercício dialético no qual não há ponto de partida: “o ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada (ADORNO, 2012, p. 35). O que Adorno e Lukács argumentam é a impossibilidade de edificar teorias a respeito de obras de arte, identificando a forma ensaística como terreno privilegiado à leitura das obras de arte. “Quanto mais a experiência espiritual busca se consolidar como teoria, agindo como se tivesse em mãos a pedra filosofal, tanto mais ela corre o risco do desastre” (ADORNO, 2012, p. 37). Há, tanto em Adorno quanto em Lukács, um esforço de preservação da natureza subjetiva contida nas obras que guardam a expressão de sentimentos íntimos em conflito com o mundo externo. Como dirá Lukács, o ensaio é como um tribunal cuja essência não está na sentença, mas no processo em julgamento (LUKÁCS, 2015, p. 52). Nesse sentido, o ensaio estaria mais próximo da criação, no sentido de reordenação, de revitalização. O ensaio aciona o mundo inteiro através de uma singularidade.

Implicações contidas na articulação entre sociologia e literatura

As tensões entre o científico e o artístico-ficcional implicam ainda destacar os aspectos políticos envolvendo a hierarquização dos discursos, especificamente, o procedimento que consiste em tomar a teoria como molde a partir do qual a obra de arte deve ser interpretada. Nesse ponto, considero a tese de Luiz Costa Lima sobre a relação de poder que atravessa a conceber a oposição entre o discurso da verdade e o discurso da ficção. O discurso da verdade deteria a prerrogativa de fornecer a orientação às sociedades modernas, enquanto as obras ficcionais seriam relegadas ao campo do passatempo frívolo, vistas como mero falseamento da realidade, uma espécie de compensação de mundo. Costa Lima denuncia o controle histórico do imaginário pela domesticação do discurso ficcional, devidamente separado e alocado em oposição ao discurso da verdade.

A prática ocidental da verdade só tem sido capaz de tolerar o ficcional enquanto o dobra e o domestica, isto é, quando nele pode reconhecer a encenação alegórica de uma parcela sua. Só enquanto ilustração pode deixar de ser visto como concorrente da verdade e ser convertido em mera fábula, em divertimento permitido, senão mesmo em instrumento didático eficaz. E, não sendo possível essa dose de alegoria, poderemos especular que nunca a ficção estará protegida contra o exclusivismo da verdade (COSTA LIMA,1988, p.308). Nesse sentido, a fundação da disciplina sociológica procura se consolidar elegendo a literatura como seu outro, isto é, para obter reconhecimento dentro das ciências, a sociologia passa por um processo de “purificação” cuja orientação é a de se manter diametralmente oposta ao discurso literário (LEPENIES, 1996, p.17). Essa é a tese de Wolf Lepenies, em As Três Culturas. Como terceira cultura, a sociologia ocupa uma posição precária, ou seja, entre orientações cientificistas e hermenêuticas, entre a fria razão e a cultura dos sentimentos. Tal ponto é fundamental para a pesquisa, pois corresponde a um dos objetivos: investigar em que grau é possível compreender o saber sociológico como modalidade narrativa. A hipótese está calcada na tese de Paul Ricoeur, especificamente em Tempo e Narrativa , apresentada aqui como fundamento metodológico para a análise de As Brasas.

A recepção como procedimento analítico

Paul Ricoeur parte de Aristóteles para elaborar um conceito de mimesis triádica no qual o sujeito se refigura pela interseção do mundo da obra com o mundo do leitor. A mimesis I seria um mundo pré-figurado , aquilo que o sujeito leva consigo, isto é, suas estruturas inteligíveis, sua capacidade de articular símbolos e suas noções temporais. A mimesis II seria a configuração do texto ficcional, o mundo da obra, a intriga que integra, segundo Ricoeur. Já a mimesis III é o Ser da obra, refigurado pelo ato de leitura. Diz Ricoeur: “seguimos o destino de um tempo prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado” (2012I, p.95). O ato de leitura, portanto, é o próprio devir, pois parte do sujeito, passa pela obra e culmina no Ser da obra. Através da mimesis triádica Ricoeur aproxima um mundo ético (inscrito na ordem do real) de um mundo poético (imaginado). Ricoeur vai considerar as referências cruzadas entre história e literatura, entre as narrativas inscritas na ordem da racionalidade científica e as obras de ficção. (...) esses empréstimos que a história faz da literatura não poderiam ser confinados ao plano da composição, ou seja, ao momento da configuração. O empréstimo concerne também à função representativa da imaginação histórica: aprendemos a ver como trágico, como cômico etc. determinado encadeamento de eventos. O que constitui precisamente a perenidade de certas grandes obras históricas, cuja confiabilidade propriamente científica foi, no entanto minada pelo progresso documentário, é a exata adequação de sua arte poética e retórica à sua maneira de ver o passado. A mesma obra pode, portanto, ser um grande livro de história e um admirável romance (RICOEUR, 2012 III, p. 318).

entre o que está em vias de acontecer (1940) e o que aconteceu (1899), interstício no qual o protagonista aparece perturbado subjetivamente por hipóteses que exprimem dúvidas e desejos. Essa dupla temporalidade vivida pelos personagens Henrik e Konrad pode ser compreendida através de algumas considerações sobre o tempo e a existência.

Henrik não esqueceu a traição e passou 41 anos à espera de uma resposta capaz de aproxima-lo de algo como a libertação e, consequentemente, a reabilitação da própria vida. Konrad e Krisztina, seus dois principais vínculos afetivos, partiram; a pátria à qual servia vibrantemente deixou de existir. Duplamente exilado, o personagem indica ser um cultor da memória. Recorre ao passado procurando o evento que fez a vida deixar de ser o que era para se perder no tempo. Henrik não apreendeu objetivamente o passado, ativa suas memórias enquanto caminha sobre pontes inconclusas, em conflito com o que a vida se tornou. Para Henrik o tempo é uma prisão, uma vez que não lhe permite sair de sua condição, iluminado por um futuro ou abrigado pelo passado. Ao exilar-se no passado, seu dilema se desdobra da seguinte forma: permanecer isolado de seu tempo ou, como alguém poderia dizer, “superar”, o que significaria se aprisionar na jaula do presente, o mundo dos fins desordenados e onde as pessoas não se responsabilizam pelo que foi. O passado aberto e inconcluso é o mais seguro terreno sobre o qual pode caminhar sem recair em um resignado fatalismo. Nesse sentido, é possível afirmar que Henrik está temporalmente exilado, na medida em que vive de fato no presente para reviver o passado intersubjetivamente. Quais as linhas dessa retrospecção?

O protagonista está imerso em suas memórias, especificamente concentrado no recorte de sua vida que vai até os 34 anos, em 1899. O corte é realizado por uma fratura nas relações afetivas, um episódio moralmente rejeitável e repreensível do ponto de vista de Henrik. Concentra-se tal episódio nesse atentado psicológico que lança o indivíduo na solidão, quando sente que suas preocupações deixam de ser algo de interesse dos que ama. Portanto, seu desamparo é o ponto de partida para uma memória que, dadas as linhas gerais sobre a experiência de vida de Henrik, permanece incompreensível. Por desamparo, entende-se aquela condição na qual o sujeito foi privado de ajuda ou atenção de natureza material ou afetiva. Uma vez desamparado, torna-se exposto, vulnerável ou, na hipótese de não sofrer ameaça direta, vê-se sozinho. O princípio hobbesiano daquela vida que, uma vez vulnerável, reúne todas as forças em nome da própria sobrevivência aqui se faz presente na forma da memória enquanto abrigo. Na ausência do outro, a memória figura como outro-eu; estabelece a convivência pelo trato íntimo entre o outro-eu e o eu , entre o que fui e o que sou. Identidades que, através da relação, vão sendo construídas e destruídas reciprocamente, ganhando e

perdendo espaço no tempo. Diante desse raciocínio, cumpre questionar em que ponto da história o fui prevalece sobre o sou , isto é, quando a ação do tempo foi capaz de provocar perdas determinantes para que o outro-eu se apresente hoje como aquele que sente mais intensamente o sabor do gosto pela vida que o eu? Nesses períodos é que memória recebe intensas e recorrentes visitas.

O exercício da memória não é apenas memorialístico. É inventivo. É a invenção que levamos a efeito com os elementos fornecidos pela própria memória. Mais do que a fotocópia ou a pura representação, vem a ser a manifestação do passado iluminada pelos refletores do futuro (PORTELLA, 2003, p.7). O crítico literário Eduardo Portella compreende o tempo dentro de uma chave que abarca o passado, o presente e o futuro. Tais dimensões estão dispostas dentro de uma simultaneidade, a “ressuscitar coisas mortas” do passado e “lançar luz” sobre o futuro. Para o general Henrik, o reencontro com o que foi não corresponde a uma flexão retrospectiva , mas também prospectiva. Como mencionado no capítulo anterior, a ingenuidade é a suspensão da hipótese do fracasso, um sentimento sempre reconhecido tardiamente. Do tempo em que está posicionado de fato, 1940, considera não simplesmente a hipótese, mas a consumação do próprio fracasso no que tange aos vínculos de amor e amizade. Nesse sentido, é possível afirmar: o Henrik que não considerava a possibilidade de perda no passado passou a incorporar o fracasso no presente como síntese de sua vida. Não há novidades ao dizer que existem motivações para um indivíduo isolado, aos setenta e cinco anos, longe das pessoas que amou, exilar-se no passado como recanto seguro onde o outro-eu se depara com uma vida repleta de possibilidades. Não obstante, cabe compreender qual o salto da retrospecção à prospecção. Saber o que pelo tempo foi varrido irreversivelmente, embora não o suficiente para deixar o passado aniquilar por completo o campo de possibilidades do presente.

Em As brasas , Henrik deseja descobrir detalhes do passado não para compreender o saldo do que foi a sua vida, nem para rearranjar a distribuição de poderes entre ele e Konrad, ainda que esses sentidos orbitem sobre a obra. Entretanto, antes de uma busca pelo conhecimento ou um desejo de retaliação, o que poria o sentido da obra num registro de vingança, o que o protagonista busca é a descoberta da capacidade de depositar confiança no vínculo, enquanto valor perdido.

Nesse jogo dos negócios humanos, não existe redescoberta, uma vez que a traição ressignifica a confiança na medida em que a lança no registro da ingenuidade. Possui um sentido de remover aquilo que cobre o que intersubjetivamente se constatou para si no passado e que se perdeu no tempo. A imagem mais clara desse modo de sentir talvez habite

provocação chama atenção para o problema da subjetividade do pesquisador diante do objeto, um aspecto de importância central, na medida em que contribui para os debates metodológicos a respeito do que se produz nas ciências sociais. No entanto, para as pretensões deste trabalho, importa o destaque para a nostalgia em um sentido amplo, enquanto atitude predisposta a voltar no passado e comparar, identificando ganhos e perdas. A partir do século XIX, a nostalgia perde conotações clínicas na medida em que adquire um sentido metafórico, de “história como declínio”. A aceleração do tempo fornecia o sentido de distância do passado, enquanto emergia o fenômeno da construção social de memória em escala fabril. A produção discursiva da memória e sua instrumentalização jurídica, social e política traz a linguagem para a primeira pessoa, onde as histórias de vida, as biografias e as entrevistas pessoais ganham espaço em defesa da dimensão subjetiva, uma transformação que, segundo Beatriz Sarlo, esteve inscrita em um plano ideológico maior, a “virada linguística” (SARLO, 2007, p. 18)^3.

A tese de Fred Davis, yearning for yesterday , segundo a qual as reações nostálgicas traduzem um esforço de continuidade da identidade no mundo em constantes transformações, ajusta a discussão para o fator identidade. A nostalgia seria uma espécie de resistência da própria identidade diante de um cenário marcado pelo fluxo de um tempo que ao se movimentar traz descontinuidades, medos e incertezas (2016, p.5).

A conjugação nostalgia e esperança como remanso de um sentimento

Como já foi mencionado, a importância da nostalgia está relacionada diretamente com a velocidade da mudança no mundo moderno. Se a nostalgia é um sentimento cuja função é suprir determinada ausência, tratamos então de uma projeção que, ao reviver virtualmente o que não existe mais, torna mais suportável as consequências de uma ação que resultou em danos íntimos irreversíveis, tais como a perda da confiança. Ao revisitar as suas memórias, Henrik recaptura a essência de um tempo em que algo se perdeu, a saber, a capacidade de confiar seus sentimentos a alguém. Reedita os momentos em que confiou no amigo e substitui a crença de que as suas expectativas serão realizadas pela lembrança de um tempo em que acreditou que as suas expectativas seriam realizadas. A diferença é que Henrik, após o primeiro gesto de Konrad, composto pela traição e pela fuga, vai para o reencontro, 41 anos depois, com a sua capacidade de confiar suspensa. Significa dizer que não existe mais a confiança, apenas a nostalgia da confiança. (^3) SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 18.

Hannah Arendt pensou em faculdades humanas convertidas em gestos capazes de lidar com o que não pode ser desfeito. Voltando-se para uma reflexão sobre as ações humanas dentro de um registro do tempo, reconhece a fragilidade como a principal característica dos negócios humanos, uma vez que a incerteza está subjacente à ação. O potencial de dar início a processos sem retorno faz da ação o centro de transformação e alargamento das capacidades humanas. Seu potencial criador, no entanto, não permite ao homem ter o controle dos processos que desencadeia por meio da ação. Considerando a ação e sua impossibilidade lógica de retroceder no tempo, Arendt aponta para o perdão como o remédio atenuante diante do caráter irreversível da ação. O perdão permite a recuperação, uma vez que alguma coisa é cessada e a capacidade de ação é reiniciada. Arendt entende a faculdade do perdão como aquilo que permite a continuidade da vida, a liberação diante dos erros que os homens cometem. Mas para Henrik não há a possibilidade de recomeço da ação ou de ato capaz de liberar a continuidade da vida. Em primeiro lugar, porque Henrik só encontra o silêncio à sua volta. O silêncio de Nini, que se abstém de compartilhar suas impressões, de Kirsztina, que está morta, e de Konrad, que se nega a responder. Está exilado em um tempo-espaço específico: o passado em seu castelo. Sobre o problema do perdão como remédio para a irreversibilidade da ação, Arendt vai afirmar: “o código moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseia-se em experiências que ninguém jamais pode ter consigo mesmo e que, ao contrário, se baseiam inteiramente na presença de outros” (Arendt, 2015, p.294). Cabe, então, nos perguntarmos a respeito das experiências que o indivíduo tem consigo mesmo, nas quais, mesmo na presença dos outros, não há nada que o faça sair de sua condição de solidão. O que acontece quando o indivíduo se vê declinar no tempo junto de suas dúvidas inaudíveis? Nesse caso, a questão de Henrik não diz respeito a perdoar ou a se vingar, mas a aplacar o sofrimento moral com a revitalização imaginária de um passado em que confiou seus sentimentos a um amigo. A nostalgia da confiança não implica voltar a confiar, mas revitalizar sentimentos vinculados ao momento em que se confiou. Trata-se de um sentimento inconcluso, aberto precisamente na fenda causada pela traição. Um sentimento que considera a vida sem deixar de levar em conta o gesto. Diante da ausência da capacidade de acreditar no cumprimento das expectativas, revitalizam-se no passado os sentimentos associados ao tempo em que se acreditou. Assim, cabe perguntar se a nostalgia da crença no cumprimento das expectativas não funcionaria como uma bandagem para a quebra da confiança causada por outrem, como são os casos das

espécie de sentimento substituto. Ela entretém uma dupla relação com a ausência: do objeto e dos afetos a ele associados. Henrik tem consciência de que entra em uma luta já perdida. A nostalgia que é fruto de uma transformação provocada por uma traição se divide em duas etapas. A primeira é a espera, onde o sujeito se encontra mergulhado na tensão entre a revitalização da confiança e o reconhecimento da perda. Por tal razão, vive o dilema entre a confiança e a resignação. Já em uma segunda etapa, podemos considerar o reencontro como a possibilidade de se deixar levar pelo fluxo narrativo de sua vida, compartilhada com o amigo. Trata-se de uma revitalização do passado pela via da narrativa retrospectiva voltada para o cultivo das hipóteses que contrariam o passado e mantêm o sentir em brasa. Além disso, tal modalidade narrativa inclina-se em reestabelecer algum grau de comunhão através de experiências compartilhadas, o que estabelece uma articulação entre a nostalgia e a esperança.

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