Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

A Importância da Língua de Sinais na Família de Crianças Surdas, Notas de estudo de Metodologia

Este documento discute a importância da língua de sinais na desenvolvimento social, cognitivo e linguístico de crianças surdas. Ele enfatiza a necessidade de contato precoce com a língua de sinais e o papel crucial que a família desempenha nesse processo. O texto também aborda as dificuldades comunicativas que surgem quando as famílias são compostas por membros ouvintes e a importância da inclusão social da criança surda.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tiago22
Tiago22 🇧🇷

4.8

(53)

221 documentos

1 / 18

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
349
Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011.
Resumo
Esse artigo aborda a dinâmica familiar que envolve as diferenças no fluxo interativo
entre filhos surdos e pais ouvintes e os aspectos educacionais presentes nesse
contexto. Ressalta também as dimensões da subjetividade dos responsáveis ou
representantes familiares. A metodologia empregada foi de caráter qualitativo, com
a participação de dezoito familiares, que discutiram temas como: comunicação e
linguagem, Libras e implante coclear. As categorias encontradas foram: Resistência/
Negação da surdez; Culpa/Responsabilidade pela surdez e Presença/Ausência da
Língua de sinais na família. Pode-se concluir que programas de enfoque psicoedu-
cacional, envolvendo experiências familiares, devem ser considerados prioritários
na condução das políticas públicas, pois promovem a ressignificação de vivências,
resultando no melhor desenvolvimento da criança.
Palavras-chave: Surdez. Família. Psicologia e educação.
Surdez e família: facetas das relações parentais
no cotidiano comunicativo bilíngue
Celeste Azulay Kelman
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Daniele Nunes Henrique Silva
Ana Cecília Ferreira de Amorim
Rosa Maria Godinho Monteiro
Daisy Cristina Azevedo
Universidade de Brasília
miolo_linhas_33.qxd:Layout 1 12/7/11 2:24 PM Page 349
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12

Pré-visualização parcial do texto

Baixe A Importância da Língua de Sinais na Família de Crianças Surdas e outras Notas de estudo em PDF para Metodologia, somente na Docsity!

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 349

Resumo

Esse artigo aborda a dinâmica familiar que envolve as diferenças no fluxo interativo entre filhos surdos e pais ouvintes e os aspectos educacionais presentes nesse contexto. Ressalta também as dimensões da subjetividade dos responsáveis ou representantes familiares. A metodologia empregada foi de caráter qualitativo, com a participação de dezoito familiares, que discutiram temas como: comunicação e linguagem, Libras e implante coclear. As categorias encontradas foram: Resistência/ Negação da surdez; Culpa/Responsabilidade pela surdez e Presença/Ausência da Língua de sinais na família. Pode-se concluir que programas de enfoque psicoedu- cacional, envolvendo experiências familiares, devem ser considerados prioritários na condução das políticas públicas, pois promovem a ressignificação de vivências, resultando no melhor desenvolvimento da criança.

Palavras-chave: Surdez. Família. Psicologia e educação.

Surdez e família: facetas das relações parentais

no cotidiano comunicativo bilíngue

Celeste Azulay Kelman Universidade Federal do Rio de Janeiro Daniele Nunes Henrique Silva Ana Cecília Ferreira de Amorim Rosa Maria Godinho Monteiro Daisy Cristina Azevedo Universidade de Brasília

Deafness and family: aspects of parental relationships

in daily bilingual communication

This article focuses on the familial dynamics of interactions between deaf children and hearing parents, as affected by the difference between them, and the educational aspects in this context. Emphasis is also placed on the subjectivities of the guardians or representatives of the families. A qualitative methodology was used, with the participation of eighteen family members, who discussed subjects such as: communication and language, sign language, and cochlear implants. The categories found were: resistance/ denial of deafness; guilt/responsibility for deafness, and presence/absence of sign language in the family. It can be concluded that programs with a psycho-educational focus, involving familial experiences, should be considered priorities in the conduction of public policies, for they promote the re-signification of experiences, resulting in better development of the child. Keywords: : Deafness. Family. Psychology and education.

Sordera y familia: Aspectos de las relaciones parentales

en una esfera bilíngüe

Este artículo presenta una dinámica familiar que trata de las diferencias en el flujo interactivo entre hijos sordos y padres oyentes y los aspectos educacionales presentes en este contexto. Se resalta también las dimensiones de la subjetividad de los responsables o representantes de la familia. La metodología aplicada fue de carácter cualitativo con la participación de dieciocho familiares, que han discutido temas como comunicación y lenguaje, lengua brasileña de señas y el implante coclear. Las categorías de esta investigación fueron: Resistencia/Negación de la sordera; Culpa/ Responsabilidad por la sordera y Presencia/Ausencia de la lengua de señas en la familia. Se puede concluir que programas psicoeducativos que tienen enfoque en las experiencias con las familias deben conducir las políticas públicas y tienen que ser una prioridad pues promueven nuevos significados de las experiencias haciendo con que los niños logren mejor desarrollo.

Palabras clave: Sordera. Familia. Psicología y educación.

350 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

construída com a convivência. Seus pares significam, nomeiam, recortam o mundo e, nesse processo, ela vai se individualizando. De acordo com as contribuições da perspectiva histórico-cultural, é por meio da internalização de complexos processos de conversão do social para o individual, medi- ados semioticamente, que se organiza e se estrutura o funcionamento psicológico. Ou seja, a partir das interações sociais e das práticas (trocas) coletivas, os sujeitos se tornam singulares e se desenvolvem. A audição, por exemplo, é primordialmente o sentido por meio do qual a língua oral é aprendida e compartilhada, tornando-se suporte central para as interações sociais na sociedade oralizada. Nesse processo, a fala é detectada, reconhecida, interpretada e entendida, mantendo a significação sobre as atividades que estão ocorrendo no ambiente e os objetos nele contidos, trazendo sentido ao entorno cultural (Ines, 2005). Ouvir, portanto, constitui uma fonte fundamental de experiências sociais, de aceitação, para o sentimento de segurança pessoal de quem é ouvinte. Por isso, a não-aquisição do conteúdo oralizado faz com que o surdo tenha dificuldades para recortar os signi- ficados dispostos no mundo, já que ele não acessa amplamente o seu interlocutor, o que traz prejuízos ao seu desenvolvimento cognitivo e psicoafetivo. A língua de sinais é o elemento simbólico central que permite ao surdo desenvolver todas as suas capacidades cognoscitivas (Almeida, 2009). Ela está para a criança surda assim como a língua oral está para a criança ouvinte: mediadora de processos de significação. Os processos de internalização nos sujeitos surdos ocorrem, em princípio, de forma similar aos das pessoas ouvintes, por meio da apropriação de significações vivenciadas nas dinâmicas culturais, levando a um desenvolvimento integrado. No entanto, para que esses processos ocorram é necessário que o surdo tenha a possibilidade de estabelecer relações com seus pares o mais precocemente possível, na medida em que estes compartilham do mesmo canal linguístico. Sobre isso, Góes (2000, p. 48) argumenta: “torna-se fundamental o contraponto dado pela comunidade de surdos que permite a criança significar-se como surdo e como sujeito que enuncia numa língua efetiva a qual tem características próprias e configura-se como fonte de identidade”. A interação com os adultos e colegas mais velhos, que utilizam a língua de sinais, desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual do surdo, da mesma forma como a utilização da língua oral para os ouvintes. Vários pesquisadores apontam a relevância da língua de sinais como fator decisivo na inclusão social (Lacerda; Silva, 2006). Daí vem a necessidade do contato precoce da criança com a língua de sinais, seja na presença de um adulto surdo, ou de um adulto sinalizante fluente, especialmente quando pais e mães são ouvintes. Observa-se que a aquisição tardia da língua de sinais pode acarretar prejuízos ao desenvolvimento no que tange à constituição subjetiva, bem como trazer dificuldades

352 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

em solucionar problemas e retração nas práticas socializadoras: Falar o quê? Com quem? No entanto, a criança surda, ao longo da ontogênese, interage em diferentes esferas comunicativas. Sem dúvida, a experiência com ouvintes e o contato com a comunidade surda convergem para uma vivência linguística de configuração identitária bastante peculiar, principalmente quando se assume centralmente a relação ente língua de sinais, cultura e funcionamento psicológico superior. Nesse sentido, o modo como a criança se insere nessas dinâmicas discursivas é fundamental para se entender aspectos de sua identidade. Conhecer como as famílias (primeiro núcleo social) integram e vivenciam a língua de sinais nas suas práticas coti- dianas é importante para constituição do surdo, principalmente quando se considera que a família é, na maioria dos casos, composta por membros ouvintes.

Família e Surdez

A família constitui a esfera em que ocorrem os primeiros contatos e trocas sociais de uma criança. Assim sendo, o núcleo familiar é o local no qual emergem os vínculos comunicacionais primários, constituídos de significados e sentidos absorvidos por meio da internalização das trocas dialógicas, possibilitando o desenvolvimento do pensamento. Segundo Hinde (1987 apud Dessen; Silva, 2004), o desenvolvimento do indivíduo depende crucialmente das relações que ele estabelece com os outros, cujas influências são internalizadas, afetando seu comportamento manifesto. Os valores, as normas e outros aspectos da estrutura sociocultural tornam-se, então, parte dos indivíduos. No entanto, para que esses vínculos sejam estabelecidos de modo eficaz, tanto no que concerne aos significados quanto ao desenvolvimento psicoafetivo e cognitivo, é necessário que pais e filhos (com)partilhem do mesmo canal de comunicação. Mesmo que estudos indiquem que as relações entre genitores ouvintes e crianças surdas apresentam uma alta probabilidade de diminuição nas interações, devido às dificuldades de comunicação, é importante que os pais continuem mantendo o contato visual com seus filhos, para que seja estabelecido o sentimento de segurança na criança (Brito; Dessen, 1999). Sabe-se que na comunicação expressões faciais e corporais também são utilizadas como forma de viabilizar a compreensão daquilo que se pretende dizer (Ines, 2005). Estudos estatísticos demonstram que cerca de 0,1% das crianças nascem com perda auditiva severa ou profunda, e 95% dessas crianças são filhas de pais ouvintes (Almeida, 2009). O diagnóstico de surdez leva a maioria das famílias, num primeiro momento, ao sentimento de luto pela morte simbólica de seu filho idealizado. A partir daí, a forma

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 353

O presente estudo adota uma análise qualitativa das interações humanas, utilizando o seu caráter compreensivo e interpretativo. Segundo González Rey (2002), a construção de conhecimento ocorre a partir do diálogo, buscando compreender uma realidade que é plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica. Pesquisas dessa ordem partem do pressuposto de que os dados da realidade são construídos a partir da interação do pesquisador com os participantes da pesquisa. Desse modo, o conhecimento é visto como produção e não (somente) apropriação de uma realidade (González Rey, 2005). Nesse sentido, foi necessário fazer uma imersão no contexto em que ocorreu essa pesquisa, o que permitiu perceber as crenças, atitudes, percepções, valores e senti- mentos que configuram o modo de agir dos familiares pesquisados. Com a convivência, o contato periódico, o compartilhar das angústias, desejos e motivações desses familiares foram desvelados. Para Kelman (2006, p. 41), as pesquisas realizadas na perspectiva qualitativa têm a “peculiaridade da dialética, da não permanência e não universalização, justamente porque levam em consideração o fator histórico e a sua temporalidade”. Por entender-se que a verdade é temporária e circunscrita às circunstâncias da pesquisa, esse estudo não tem a pretensão de possibilitar uma generalização, e sim de permitir novas articulações com outros campos, outros olhares, novas produções teóricas, realimentando o processo investigativo.

Caracterizando o espaço da pesquisa

Esse estudo foi desenvolvido no ano de 2009 no Centro de Apoio ao Surdo (CAS) localizado em Brasília. O CAS é o resultado de uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e o Ministério da Educação. Neste convênio, os professores pertencem aos quadros da SEEd/DF. O CAS tem como missão fornecer cursos de formação continuada para professores e professoras da rede, além de funcionar como centro de apoio pedagógico não apenas a alunos surdos, mas também a alunos com Dificuldades no Processamento Auditivo Central (DPAC) ou que tenham alguma outra deficiência associada à surdez. Todos os alunos estudam em escolas inclusivas da rede regular de ensino e recebem apoio pedagógico do CAS no turno contrário. Uma das características do CAS é de oferecer cursos de língua de sinais para os professores da rede e também para pais e mães de alunos que permanecem nas suas dependências enquanto seus filhos têm o reforço pedagógico e demais atividades oferecidas, como aulas de lógica, xadrez e informática. Com o propósito de dar continuidade a um projeto previamente desenvolvido pela Univer- sidade de Brasília (Kelman; Faria, 2007), reiniciou-se a pesquisa no atendimento aos responsáveis que levam seus filhos ou parentes ao CAS duas vezes por semana.

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 355

O projeto iniciou dentro de uma perspectiva interdisciplinar entre a Faculdade de Educação e o Instituto de Psicologia, da Universidade de Brasília. Nessa linha, o enfoque investigativo levou em consideração os aspectos envolvidos na dinâmica familiar em interface com os problemas educacionais experimentados pelos alunos surdos, investi- gando dimensões da subjetividade de seus responsáveis ou representantes familiares. Assim, participaram dessa pesquisa duas professoras dos cursos (Psicologia e Pedagogia/UnB), duas psicólogas voluntárias (com tempo de formação superior a três anos) e quatro estudantes de graduação em Pedagogia (duas das quais já estavam previamente envolvidas com um projeto que abordava aspectos educacionais de alunos surdos, desenvolvido pela primeira autora desse artigo). Os participantes envolvidos na pesquisa foram divididos em dois grupos, em função do horário que levavam seus filhos para as atividades de reforço pedagógico e outras oferecidas pelo CAS. Foram um total de 18 participantes (total do grupo da manhã e do grupo da tarde) e que não necessariamente eram os responsáveis diretos pelo aluno surdo, mas a pessoa que levava e aguardava o aluno enquanto este realizava suas atividades acadêmicas. O quadro a seguir identifica os sujeitos participantes com nomes fictícios, sua relação de parentesco com o aluno surdo e as características que o aluno apresenta.

Quadro 1 – Sujeitos da pesquisa

356 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

Nome fictício Grau de parentesco Características do aluno Marina Mãe Surdez Profunda e Deficiência Intelectual Luana Mãe Surdez Profunda e Paralisia Cerebral Glenda Avó DPAC – Distúrbio do Processamento Auditivo Central Sílvia Mãe Surdez Profunda e Atraso Motor Vanda Mãe Surdez Profunda e Paralisia Cerebral Daiane Irmã Surdez Profunda e Paralisia Cerebral

Marcela Mãe Surdez Profunda, Paralisia Cerebral, DeficiênciaIntelectual, Lado direito comprometido

Wanda Mãe Surdez Profunda unilateral João Tio Surdez bilateral Maria Mãe Surdez bilateral Edna Mãe Surdez Moderada Lourdes Mãe Surdez bilateral Júlia Mãe Surdez bilateral

Temas Objetivos Participantes Apresentação do Projeto

  • Apresentar as pesquisadoras e o projeto
  • Colher a autorização de áudio e informações
  • Conhecer o grupo

GRUPO A: 4 GRUPO B: 8

O que é surdez? - Diferenciar surdez e DPAC

  • Explicar: a anatomia do ouvido, tipos e graus da surdez
  • Discutir sobre o diagnóstico tardio

GRUPO A: 7 GRUPO B: 5

Comunicação e Linguagem

  • Demonstrar os desafios da comunicação com o surdo
  • Demonstrar como o surdo compreende o mundo pela linguagem
  • Demonstrar as diferenças das línguas: LO (língua oral auditiva) e LS (gestual visual)
  • Demonstrar a importância da LS: relação pensamento e linguagem; não é universal, nem artificial (não é um artifício, é condição)

GRUPO A: 5 GRUPO B: 7

Libras - Fornecer informações básicas sobre a língua de sinais: a língua natural do surdo; os fonemas (configuração de mão, ponto de articulação, movimento, expressões não-manuais e orientação das mãos)

  • Informações sobre a importância da língua de sinais no desenvolvimento do surdo
  • Definição de bilinguismo e a sua importância
  • Explicar o que é e quais os objetivos do decreto de acessibilidade
  • Informar e esclarecer sobre a cirurgia de implante coclear, colocando suas reais impli- cações, na tentativa de evitar fantasias de cura

GRUPO A: 6 GRUPO B: 8

Surdo adulto como convidado

  • Promover a oportunidade de debaterem assuntos sobre a educação atual e o futuro de seus filhos/parentes surdos tais como as dificuldades encontradas no processo de educação, vestibular, mercado de trabalho, namoro, casamento.

GRUPO A: 6 GRUPO B: (não compareceu esse encontro)

Finalização dos Encontros de 2009

  • Mobilizar os participantes a refletir sobre os encontros

GRUPO A: 6 GRUPO B: (não compareceu esse encontro)

Quadro 2 – Temáticas abordadas

358 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

Com base nos dados analisados identificamos três posições dos mães/pais/ responsáveis em relação aos seus filhos surdos, em especial nos aspectos referentes às experiências comunicativas: a) Resistência/negação da surdez por seus familiares; b) Culpa/responsabilidade pela surdez, c) Presença/ausência da língua de sinais na família.

a) Resistência/negação da surdez por seus familiares Conforme destacado por Ribeiro (2007), a resistência representa um mecanismo de defesa. É um processo humano que ocorre quando o indivíduo se encontra sob algum tipo de ameaça. Fadiman e Frager (1986) apontam que o mecanismo de defesa é uma possível forma de se defender contra ansiedade, deformando ou negando a própria situação. Em síntese, de acordo com esses autores, o sujeito se defende da realidade atrasando seu reconhecimento ou captando-o de maneira distorcida. A negação é a tentativa de não aceitar um fato perturbador da realidade. Em muitos momentos da investigação, observamos que os integrantes do grupo apresentavam atitudes de resistências/impedimentos às discussões que estavam sendo desenvolvidas sobre a importância da língua de sinais. Lourdes (mãe de um adolescente surdo profundo), por exemplo, raramente participava das discussões do grupo, ale- gando não ter tempo para aprender Libras em função das exigências cotidianas da vida doméstica. Ela comenta:

Só que é aquela coisa, eu não tenho muito tempo pra estudar em casa, como eu sou sozinha, sou mãe e pai dos meus filhos, fica um pouco difícil até pra mim aprender alguma coisa. Porque eu tenho vontade de estudar um pouco em casa, mas é aquela coisa, eu não tenho tempo. Aí fica difícil! (Depoimento transcrito, 25/10/09)

Durante os encontros, seu posicionamento era de pouca interação quando o assunto era a surdez; muitas vezes dispersava as outras mães com assuntos alheios. No último encontro, uma das pesquisadoras recomendou o filme ‘O Milagre de Anne Sullivan’ para ser visto pelas mães. Marcia, com dúvida sobre como escrever corretamente o nome do filme, pede auxílio ortográfico à pesquisadora. Lourdes pergunta:

O que é isso aí? – referindo-se a escrita da pesquisadora. Marcia explica:

  • É o nome do filme. Lourdes ri ironicamente, empurrando o caderno:
  • Para que isso aí?!

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 359

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 361

c) Presença/ausência da Língua de sinais na família Goldfeld (1997) ressalta que, no decorrer do desenvolvimento infantil, a criança passa por diversas mudanças, e a língua é um dos principais instrumentos que permeiam esse processo. Para a criança surda, portanto, esse processo de desenvolvimento pode ficar fragmentado, pois ela não poderá aprender a língua oral de forma espontânea, como a criança ouvinte. Nesse sentido, a aquisição da língua de sinais vai permitir à criança surda, mediante suas relações sociais, o acesso aos conceitos de sua comuni- dade, os quais passará a utilizar como seus, formando assim uma maneira de pensar, agir e ver o mundo característico da cultura de sua comunidade. Ainda há um grande preconceito com a língua de sinais pelo fato dela não ser oral. Existem crenças equivocadas de que é apenas mímicas ou gestos. Essa concepção é hegemônica e aparece nas falas dos pais/responsáveis. Em um dos relatos, Júlia descreve a língua de sinais com certo descaso, afirmando sempre concordar quando a filha per- guntava algo em Libras, sem se preocupar com o que ela estava querendo dizer. Certa vez, a criança perguntou se poderia bater em um colega. Júlia (sem se interessar em saber o que sua filha dizia) concordou. No dia seguinte, recebeu o bilhete da professora pontuando a atitude agressiva da menina no colégio. Então, Júlia se deu conta de que precisava estudar mais a língua de sinais para entender sua filha:

Uma vez quando a minha menina estudava lá no colégio, ela chegou e brigou com um menino na escola, aí o menino cuspiu na cabeça dela, ela chegou em casa e me falou que quando chegasse lá ia bater nele, eu não sabia o que era, ela falou … eu falei vai.. vai..! [fazendo gestos com as mãos mandando ir]. Quando foi no outro dia... ela foi pra escola. Aí, pegou o menino e deu nele e rasgou a camisa dele. Aí, ela chegou. Aí a professora mandou um bilhete pra mim e disse que ela disse que eu tinha mandado ela bater no menino e rasgar a camisa (risos). Aí a mãe dele falou que queria uma camisa nova [...] porque a mãe tinha mandado ela brigar com o menino e bater nele e rasgar a camisa. Agora, tem que falar com a mãe (Depoimento transcrito em 21/10/2009).

Um outro caso a ser exemplificado nesta categoria é o de Silvia, mãe de um adoles- cente surdo que estuda na terceira série do ensino fundamental. Ela alega estudar Libras e diz que pretende tornar-se intérprete de Libras. Em encontro posterior, em que foram abordadas algumas considerações sobre aparelho de amplificacão sonora e implante coclear, Silvia diz que seu filho chegou a frequentar a instituição CEAL (Centro Educacional de Audição e Linguagem Ludovico Pavoni – DF), mas mesmo assim não se sentiu mobilizada a buscar informações sobre implante, pois poderia não dar certo e ser mais uma decepção em sua vida (já que o diagnóstico de seu filho foi decep- cionante – diário de campo, 04/11/2009). A frustração na comunicação com o seu filho

colaborou para que Silvia tivesse escolhido a língua de sinais como canal central para interagir com o seu filho. Ela, de fato, não sabia a importância de Libras para a educação e desenvolvimento de seu filho, mas apostou nas respostas diárias que ele apresentava em sua comunicação com ela nessa língua. Segundo Luria (1986), os processos de desenvolvimento do pensamento e da lingua- gem incluem o conjunto de interações entre a criança e o ambiente, podendo ser afetados, positiva ou negativamente, pela qualidade dessas interações. Isso sugere que a postura que a família toma em relação à Língua de sinais influencia diretamente o desenvolvimento da criança surda.

Considerações finais

A pesquisa revelou que nenhuma família deseja ou espera conceber uma criança diferente. Ainda impera a visão de que um cidadão bem sucedido é aquele que não apresenta deficiência alguma_._ Em geral, a chegada do bebê que apresenta uma defi- ciência torna-se um evento traumático e desestruturador, que interrompe o equilíbrio familiar, uma vez que antes do nascimento a criança é idealizada e sonhada. A família faz projetos para o seu futuro de acordo com os próprios conteúdos emocionais e desejos, o que é desestruturado com a presença de uma deficiência. Diante desse fato, pais e mães apresentam a necessidade de uma reestruturação pessoal e familiar, na qual possam trabalhar as emoções e os sentimentos em relação a esse filho ou filha. No acompanhamento investigativo do presente estudo, percebeu- se que a figura materna é responsabilizada pelo cuidado desse filho surdo, no que diz respeito à aprendizagem da língua de sinais, na educação e no bem-estar geral da criança. Pode-se observar que o tema da surdez, como espaço de problematização da relação mãe-filho, é perturbador para algumas mães. Há uma resistência em aprofundar o conhecimento sobre o tema, o que pode indicar a dificuldade das mães em lidarem com o sofrimento de ter um filho em condições culturais e linguísticas adversas. Evitar o assunto, alterar rotas discursivas sobre o filho surdo é um forma de se defender da dor cotidiana de tê-lo, bem como de todas as dificuldades operacionais, econômicas e sociais que implicam a presença de uma criança com desenvolvimento atípico. A forma de dar acolhimento e sentido à dor está na culpa. Ela é o mote principal para explicar (para si – mãe) a situação da surdez do filho. A culpa é uma construção narrativa (in)tranquila, em que a mãe se explica (produz um sentido) sobre uma situação inesperada e indesejável. O relato de Julia (semelhante a outros relatos) é

362 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

364 KELMAN et al. Surdez e família: facetas das relações parentais no cotidiano…

GOLDFELD, Márcia. Criança Surda: linguagem e cognição numa perspectiva socio-interacionista. São Paulo: Plexus, 1997. GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa em Psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Thomson, 2002. ______. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Thomson, 2005. INES. Instituto Nacional de Educação de Surdos. Série Audiologia. Edição Revisada. Rio de Janeiro: INES, 2005. KELMAN, Celeste Azulay. “Aqui tudo é importante!” Interações de alunos surdos com professores e colegas em espaço escolar inclusivo. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. KELMAN, Celeste Azulay; FARIA, Cassiana Borges. Mães de surdos e suas percepções. In: MANZINI, Eduardo José (Org.) Inclusão do aluno com deficiência na escola: os desafios continuam. Marília: ABPEE/FAPESP, 2007. p. 187-200. KELMAN, Celeste Azulay; BRANCO, Angela Uchôa (Meta)communication strategies in inclusive classes for deaf students. American Annals of the Deaf, Washington, Gallaudet University, v. 154, n. 4, p. 373-381. 2009. LACERDA, Cristina Broglia Feitosa; SILVA, Daniele Nunes Henriques. Educação, surdez e inclusão social. Cedes, Campinas, Unicamp. v. 26, n. 69, maio-ago. 2006. LURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e linguagem : as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. RIBEIRO, Jorge Ponciano. A Resistência Olha a Resistência. Psicologia: Teoria e Pesquisa. v. 23 n. especial, p. 73-78, 2007. SILVA, Daniele Nunes Henriques. Como brincam as crianças surdas. 2. ed. São Paulo: Plexus, 2007. TAVEIRA, Rose Mary. P rivação auditiva precoce em crianças portadoras da Síndrome de Down e suas implicações para o desenvolvimento da linguagem. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Brasília, 1995. VIGOSTKI, Lev Semenovich. Fundamentos de Defectologia. La Habana: Pueblo y Educación, 1989.

Recebida 2ª versão em junho de 2011 Aprovada 2ª versão em agosto de 2011

Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 33, p. 349-365, maio/ago. 2011. 365

Celeste Azulay Kelman, doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicação recente: Dilemas sobre o implante coclear: implicações linguísticas e pedagógicas ( Espaço , v. 33, p. 33-41, 2010). E-mail: cel.azul@superig.com.br.

Daniele Nunes Henriques Silva, professora do Departamento de Psicologia Escolar e Desenvol- vimento do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, pesquisadora do grupo de pesquisa Pensamento e Linguagem (GPPL/UNICAMP). E-mail: daninunes74@gmail.com

Ana Cecília Ferreira de Amorim , psicóloga pelo Centro Universitário de Brasília e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento e Saúde no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. E-mail: aceciliafa@gmail.com.

Daisy Cristina Azevedo , psicóloga pela Universidade de Marília. E-mail: daisycristinaa@gmail.com.

Rosa Maria Godinho Monteiro , graduada em Pedagogia pela Universidade de Brasília. E-mail: rosaflormonteiro@gmail.com.