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Este artigo utiliza conceitos de niklas luhmann, como sistema e meio e improbabilidade de comunicação, para analisar relatos de professores portugueses sobre suas práticas e percepções educativas. A complexidade das comunicações é reduzida ao se basear na identidade relativa dos agentes que observam o fenômeno educativo e o sistema que envolve suas ações e discursos. O artigo propõe uma abordagem metodológica do fenômeno educativo, considerando-o como um fenômeno social associado à noção de sociedade.
Tipologia: Notas de aula
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Nós conhecemos a realidade porque somos excluídos dela – como do paraíso. N.Luhmann Resumo O artigo recorre aos conceitos de diferença entre sistema e meio e o de improbabilidade de comunicação, em Niklas Luhmann, propondo-se a uma leitura interpretativa de alguns relatos de professores portugueses acerca das suas práticas e percepções educativas. Nesta perspectiva, tem por objetivo principal tornar mais acessível a análise sistêmica dos fenômenos e práticas correntes em educação. Compreendendo o indivíduo/aluno, a escola, os media e o grupo de pares como sistemas e contextos uns dos outros, o artigo demonstra como a complexidade destas comunicações é reduzida, ao se tomar por base a identidade relativa dos agentes que observam o fenômeno educativo e o sistema que envolve suas ações e discursos. Sem chegar a conclusões definitivas, o artigo propõe a observação constante dos fluxos comunicativos como forma de o pesquisador e o agente educativo gerarem representações menos simplistas/idealistas do ato de educar e dos seus sentidos relativos. Palavras-chave: sociedade, comunicação; metodologia; práticas educacionais; Niklas Luhmann. Abstract Recalling the concepts of difference between system and environment and improbability of the communication in Niklas Luhmann this article proposes an interpretative lecture about educational practices and perceptions of Portuguese teachers. Its main purpose is to ease and improve the education analysis and its practices. Understanding student/individual, school, media and group of pairs as systems and contexts, about one another, the article demonstrates as the complexity of these communications is reduced from the relative identity of the agents who observe the educative events and the system that involves its actions and speeches. Without reaching the definitive conclusions, the article proposes the constant observation of the communication flows as a form of the researcher and of the educative agent to generate less idealistic and simplistic representations of the act to educate and its meaning. Keywords: society, communication; methodology; education practices; Niklas Luhmann.
Introdução No âmbito mais amplo das Ciências Sociais e Humanas e da Comunicação, este trabalho tenta projetar, com base em alguns casos relatados por professores portugueses, e em alguns princípios teóricos pertencentes à teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, os primeiros passos de uma abordagem metodológica do fenômeno educativo, tomado como fenômeno social e associado à noção de sociedade tal qual Luhmann a concebe. Desta forma, o trabalho esclarece alguns princípios e conceitos fundamentais, em Luhmann, limitando-se a aplicá-los sobre quatro relatos exemplares, referentes a quatro instituições educativas portuguesas. O objetivo deste procedimento é o de testar aplicações futuras , adequadamente instrumentalizadas, sobre amostras mais alargadas que possam elucidar melhor a natureza e o estado do fenômeno educativo na sociedade contemporânea. Na perspectiva de Luhmann (1997a), para se descrever o fenômeno educativo e preservar a sua complexidade, devemos buscar sentido na observação conjunta de vários sistemas sociais, nomeadamente o sistema educativo (o que nos interessa em particular, neste texto), o sistema científico, o sistema de pares ou amizade e o sistema dos media , todos a operarem como ambiente externo a cada um dos outros e a partilharem fluxos de comunicações entre si. Como verificaremos, a comunicação como fator compreensivo é reorientada sempre para fluxos lógicos de comunicações em movimento, de forma mais ou menos automática, no interior dos sistemas, neste caso, o sistema educativo ao mesmo tempo que na sociedade em geral. Para Luhmann (idem), uma forma de compreender o fenômeno educativo é tomá-lo como fator observável, considerando
de ter preponderância ativa nessa teoria basicamente anti- humanista, mas que permite representar a sociedade enquanto teoria da sociedade e não como uma teoria das relações sociais. Resumidamente, a sociedade não tem o caráter de um sujeito, e a denominação atores perde o sentido determinante que possuía na tradição ontológica ocidental (Mélich, 1996, p. 9-26). Apesar de não nos propormos a comparar a teoria luhmaniana, no que toca ao sistema educacional, com a teoria sociológica de Pierre Bourdieu, em alguns momentos, valemo-nos da comparação de alguns conceitos nos dois autores para melhor definir a perspectiva de Luhmann diante do fenômeno educativo.
Em Luhmann, os homens, e os seus desejos, não ocupam a centralidade da sociedade, mas sim, o seu entorno, o que justifica dizer que a ação social é resultado sistêmico de comunicações ou ligações, e não propriamente produto dos homens. As grandes dúvidas epistemológicas das quais parte Luhmann, (1997a), no sentido de buscar uma teoria da sociedade, se fundamentam nos bloqueios epistêmicos do pensamento herdados do pensamento clássico e das Luzes. Desse modo, lança um olhar crítico e desconfiado às seguintes suposições: o conhecimento é racional em si próprio; a aprendizagem melhora o estado do sistema que sempre aprende a se adaptar ao meio envolvente; comunicação e reflexão contribuem para a compreensão; a racionalidade pode ser organizada em forma de programa votado à utilidade e à compreensibilidade. No texto intitulado Os sistemas compreendem os sistemas, Luhmann (1996, p. 93-136) considera o conceito de compreensão (verstehen) ligado ao sistema. A princípio, Luhmann classifica
três tipos de sistemas: biológicos, psíquicos e sociais. Os modos de operação e reprodução de cada um deles implicam para o primeiro, a vida, para o segundo, a consciência e para o terceiro, a comunicação. Para Luhmann (idem), é um equívoco considerável imaginar que apenas os sistemas psíquicos podem compreender o mundo, o que significa dizer dizer que os sistemas sociais se compreendem a si próprios. No que diz respeito ao sistema educacional, este teria início apenas quando, numa lógica de comunicação, o professor buscasse entender se foi compreendido. Tal postura repõe a ideia de que os enunciados que proferiu, embora simulassem fator de racionalidade pessoal no domínio da compreensão, inscreveram- se numa perspectiva autopoiética do sistema. A noção de autopoiese em Maturana e Varela (1997), assumida por Luhmann, evoca o relativo fechamento e autonomia do sistema, visto que ele não necessita trazer de fora nada que lhe seja estranho. Essa perspectiva declara inócua a tradição do pensamento sistêmico tradicional quando destitui de importância o conceito input / output. Em decorrência, inviabilizam-se, da mesma forma, os conceitos de causa e consequência, e também os de finalidade ou teleologia. Assim, os desenvolvimentos relacionais marcados pelas comunicações têm prioridade sobre a ideia de comunicação como fator de compreensibilidade ou conhecimento. Dizemos aqui comunicações, pois a comunicação, no sentido da compreensão sociológica clássica, consolidada em Weber, Durkheim (Riutort, 1999) e revista em Habermas (idem), marcadas pela ontologia e teleologia, é uma probabilidade fraca na lógica sistêmica que é operada em Luhmann, como apontamos a seguir. Um dos conceitos fundamentais no pensamento de Luhmann (1993) é a improbabilidade da comunicação tomada como
constituição estrutural dos sistemas da ciência , educacional, psíquico e dos meios de comunicação de massa.. Originalmente, em Luhmann, as categorias código, programação, modo e função surgem como elementos que fornecem ao sistema mecanismos de redução da complexidade ambiente. Embora os textos e a bibliografia a que acedemos não contemplem o conceito sistema de pares ou de amizade , o incorporamos, simuladamente, em nossa reflexão, já que, em todos os casos relatados pelos professores, surge, direta ou indiretamente, a figura do grupo de pares como espaço operacionalmente fechado no plano da sociedade: a gang , a turma, o grupo de amigos. Entendemos também que este “sistema” se confirma como tal, em face do sistema educacional, sem se confundir com ele. Mais à frente, descreveremos como o sistema de pares, enquanto simulação, poderia ser representado, fundamentando-nos na tipificação de Reese-Schäfer (idem): Sistema Educacional (e os fatores centrais de redução da complexidade): Código binário: Notas boas/notas ruins Programação: Programas de ensino e aprendizagem Modo: Obrigações escolares, expectativas de carreira Função: Formação, formação continuada e escolha de carreira. Sistema da Ciência (e os fatores centrais de redução da complexidade): Código binário: Verdadeiro / não verdadeiro Programação: Investigação Modo: Conhecimento científico Função: Produção de novos conhecimentos
Sistema Intrapsíquico (e os fatores centrais de redução da complexidade): Código binário: Idêntico/ não idêntico Programação: Saúde mental Modo: Consciência Função: Organização individual da identidade Analogicamente aos anteriores, e conforme anunciamos, adicionamos aqui o que denominamos um sistema de pares ou de amizade: Sistema de pares (e os fatores centrais de redução da complexidade): Código binário: Mais fidelidade, menos fidelidade; aceitação/ rejeição Programação: Preservação coletiva da identidade Modo: Colaboração para a reprodução do grupo Função: Organização coletiva da identidade Quanto ao sistema dos meios de comunicação de massa, lembramos que os media reproduzem os conteúdos informativos, mas se distanciam do modo como estes conteúdos vão operar, para além dos fluxos comunicativos que lhe são inerentes e em relação a cada sistema em causa (sistema educacional e sistema de pares sobretudo). Lembramos também a configuração “código- programa-modo-função” no sistema dos meios de comunicação de massa: Sistema dos Media (e os fatores centrais de redução da complexidade): Código binário: Informação / Não informação
foram recolhidos entre os anos de 2005 e 2011, constituem um conjunto mínimo, selecionado de um conjunto maior de relatos de professores em atividade em Portugal (Lisboa). Esse material resultou, majoritariamente, de seminários, coordenados por nós na Escola Superior de Educação de Lisboa, com a finalidade de descrever alguns comportamentos socioculturais de jovens alunos, compreendidos na relação entre o meio envolvente e a escola descrita. De modo muito provisório, e considerando-se terrenos concretos de observação empírica, inter ou transdisciplinarmente, supomos o caminho do investigar marcado pelo princípio de que os sistemas (sejam estes a escola, o indivíduo ou outros) compreendem os sistemas e de que o objeto de investigação não será, isoladamente, nem o sistema nem o seu meio (os ambientes de todos os sistemas em causa), mas exatamente a diferença entre a complexidade do ambiente e a sua redução pelo sistema. O caso Escola da Ponte: comunicações e sistemas O caso da Escola da Ponte é emblemático em Portugal, no campo da Educação e, pelo fato de insurgir-se como diferença evidente no plano do sistema educacional, permite uma aplicação exemplar da análise sistêmica inspirada em Niklas Luhmann. Situada num ambiente marcado pela marginalização e exclusão socioeconômica (Região do Vale do Rio Ave), a escola, tomada como um sistema em si própria, iniciou na década de 1970 uma série de transformações que logo tomaram a forma de confrontação com as orientações oficiais do Ministério da Educação português. Essas transformações surgiram como irritações ( perturbações ) no sistema educacional nacional, à medida que despoletavam fluxos de comunicações geradas no interior do sistema e
determinantes de uma reorientação autopoiética O conceito de autopoiesis , tal qual formulado em Maturana e Varela (1997), entende essas perturbações como resultado das atividades do ambiente e possíveis geradoras de incorporações de estruturas na dinâmica das trocas de comunicação com o sistema. É um movimento que possibilita mudanças de estado que, por sua vez, podem provocar novas alterações relativas no ambiente. Vale dizer, também, neste caso, alterações no sistema educativo nacional. Com efeito, o Sistema Sócio-Comunitário da região do Vale do Rio Ave congregava, e ainda o faz, um conjunto de hábitos coletivos e individuais marcados por uma cultura contraditória aos objetivos declarados pelos programas (programação em Luhmann) do Sistema Educacional Nacional, do Ministério da Educação e do susbsistema Escola da Ponte, naquela altura. Em discurso oral, um dos fundadores da Escola, José Pacheco^1 , proferiu que o início do processo de transformação interno esteve associado à chamada Sala do Lixo , para onde eram enviados todos os alunos incapazes de responder às normas previstas no código do Sistema. Para não expulsá-los da Escola, fato que poria em causa o Sistema Político de “uma sociedade em mudança”, esses alunos eram deslocados para as salas dos fracos. Todavia, a quantidade de alunos fracos já excedia o número dos médios e bons alunos. Neste exemplo, podemos entender como Luhmann vê a noção sistêmica, considerando os homens como entornos do sistema. A ação humana, antes de ser uma consequência de uma consciência plasmada num eixo teleológico/ontológico, é a consequência (^1) Discurso proferido na Escola Superior de Educadores de Infância, em Maio de
No caso Escola da Ponte, um dos elementos que incomodava o Ministério da Educação era o fato de que aquela escola abolira as avaliações notas altas / notas baixas, substituindo este processo pela autogestão do aluno acerca da sua formação, quer no plano da formação profissional quer na preparação para os exames nacionais. A partir daqui, podemos considerar, por meio do quadro código-programação-modo-função, que, apesar de as diferenças parecerem estruturais, apenas divergem nos plano do código e da programação, pois a Escola da Ponte, enquanto sistema (ou fator de irritação), garante o mesmo modo e a mesma finalidade funcional que o sistema educativo nacional, respectivamente: a) modo : Obrigação escolar, expectativas de carreira e b) função : Formação, formação continuada e escolha de carreira. O que mais nos interessa aqui é a possibilidade de a questão Escola da Ponte poder ser abordada para além de objeto monodisciplinar, ou bidisciplinar, na confluência da Pedagogia e da Sociologia. Nessa medida, não nos interessarão as prerrogativas específicas da investigação pedagógica, ou sociológica, voltadas para o sistema educacional ou para o entorno “social” , mas sim, as diferenças e características dos fluxos de comunicações entre os sistemas e seus entornos. Dessa forma, evocamos a absoluta necessidade de a investigação considerar, ao mesmo tempo, as diferenças sistema-entorno no que toca às matrizes culturais dos educandos da Escola. Tal envolverá, no mínimo, o Sistema de Pares, o sistema intrapsíquico de alunos e professores, e outros sistemas integrados, e operacionalmente fechados, na dinâmica autopoiética do sistema, em face de seus ambientes. Alguém poderá dizer que essa forma de investigar, ou de observar, nunca terá fim, mas, como essa perspectiva abole o “do que se trata” e “aquilo que está por trás” (Marcondes Filho, 2004, p. 421), a
observação deverá constituir cenários selecionados que perfaçam um conceito de sociedade marcado pelos jogos de comunicações entre sistemas operacionalmente fechados. De qualquer forma, o sistema educacional aparece, nesse quadro, como sistema apto à observação, como qualquer outro citado.
A professora M. relatou o caso de C. que era aluno da Instituição Casa Pia de Lisboa e apresentava comportamento temerário e marginal, tendo já sido detido pelas forças de segurança mais de uma vez. A família, claramente desestruturada é monoparental: o pai saíra de casa havia vários anos e a mãe prostituía-se, utilizando as dependências da moradia comum. A professora iniciou um processo de aproximação com o aluno e percebeu que ele tinha uma característica particular notável que era o gosto pela história e pelo passado épico. Passou, então, a estimular essa apetência com o objetivo de transformá-la em competência escolar. Desse modo, pediu que o aluno preparasse apresentações baseadas em temas da História de Portugal, o que era realizado com afinco e sucesso. Apesar de o aluno continuar a apresentar comportamentos arredios e agressivos em outras disciplinas, passou a assumir com responsabilidade as atividades propostas pela docente. Todavia, o empreendimento não estava previsto como fator de desenvolvimento curricular institucional e a estratégia docente esbarrou em seu isolamento institucional. Em determinado momento, a docente foi deslocada, por algum motivo, para outra unidade da Instituição, e o aluno ficou “ entregue aos lobos ” e, nas palavras da professora: “ as últimas notícias que tive dele não eram nada auspiciosas ”.
professora pudessem chegar a práticas distintas, permitindo o desenvolvimento de uma observação do tipo: o prazer estimulado no plano do sistema intrapsíquico do aluno permitiu sua adaptação relativa ao código do sistema e posterior integração. Mas será, preponderantemente no interior do sistema, apenas uma observação que ele próprio, sistema, não processa. A ação de observar, no sistema da Ciência, desde que não consagre a investigação a partir “do que se trata” – na tradição da sociologia positivista (Marcondes Filho, 2004, p. 421) – ou do “que está por trás” – na tradição da sociologia crítica (idem) – permite o considerar de todas a observações geradas no plano temporal e que extravasam a localização num só sistema. O exemplo de observação , dado por Luhmann, coincide com a noção de redução da complexidade no interior dos sistemas. Um exemplo de observação aqui, e que nos interessa particularmente, é o que ocorreu com a Pedagogia no século XVIII, quando as crianças passaram a ser vistas como um conjunto de seres humanos com prerrogativas e perspectivas próprias e não apenas adultos em crescimento (Luhmann apud Neves, C. e Neves, F., 2006). Muito do que se pode observar hoje no plano codicial e programático da Educação de Infância – Sistema Educacional – está marcada por essa observação. Tal máxima, entendida no desdobramento de medium e função , no interior do sistema educacional, gerou interessantes perturbações, na medida em que se associou a elementos dos sistemas econômico e político. Como exemplo, citamos o preparo do educando para a autonomia do consumir e para uma possível debilidade interpretativa crônica associada ao desenvolvimento do individualismo. Da mesma forma, não se pode esquecer da fragilização da consciência pública em nome da adaptação futura e adequada do educando no mundo profissional.
A professora Sofia Burigo relatou o caso da Escola EBI de A. onde há conflito quase aberto entre as normas propostas pelo código sistêmico e as irritações causadas pelos fluxos comunicativos partilhados conjuntamente com os sistemas familiares do bairro problemático, além do sistema de pares das gangs juvenis e, neste, particularmente, o consumo dos media, entre outros. A escola exige regras, comportamentos e avaliações, mas […] antes da escola estão as obrigações familiares de arrumar a casa, levar os irmãos mais novos à ama, ao infantário ou à avó, buscar o pão. Na escola deverão pedir comida e material porque têm direito a estes benefícios. A família vê a escola, onde é obrigatório levar os filhos (ensino obrigatório), como um local onde os filhos ‘têm o direito de comer’ e ‘ter o material de graça’ porque ‘o povo de A. é pobre’. Nas aulas, os educandos não aguentam noventa minutos sentados porque os corpos pedem movimento e não sossegam, treinados que estão para fugir à surra do pai/ padrasto, à polícia, ao bando rival. Tenho um aluno de etnia cigana, o G., que entrou em depressão devido ao dilema com que é confrontado diariamente: ou leva surras do pai porque não é capaz de dar surra na escola aos colegas de origem africana que o roubam, ou recebe surra dos colegas por ser um cigano que não se deixa roubar. Nunca está nas aulas conforme o que é pedido pelos educadores. Sai da sala de rompante, atira com as portas sem que se saiba o motivo, chama o pai à Escola pelo telemóvel (celular) e não termina as tarefas propostas.
do bairro. J.J. porta-se bem nas aulas, está no seu canto, faz o que lhe pedem. Sabe que os professores têm medo dele. Cá fora, quando está nos corredores imita Zé Pequeno, um dos traficantes de droga do filme A Cidade de Deus , de Fernando Meirelles. Aliás, para muitos dos meus educandos, este é um filme de culto. Alguns identificam-se mesmo com a Caixa Baixa , aquele bando de garotos que acaba por controlar o narcotráfico na favela Cidade de Deus. No trecho acima, especialmente, observamos o indiciamento dos fluxos comunicativos relativos ao Sistema dos Media , ao Sistema de Pares ou Amizade, ao Sistema Moral, Ético, da Arte, e outros, numa configuração complexa e, segundo nós mesmos, desejosa de ser observada de um ponto de vista não teleológico. Na continuação do relato: Pelo menos acreditam que as suas vidas assemelham- se às vidas das personagens do filme. Estas surgem aos seus olhos como modelos épicos a seguir. Logo, a sua identificação é dupla. O filme funciona como um agente de socialização significante sobre uma socialização profunda que vai ocorrendo no bairro/favela. Procurei saber como tiveram acesso ao filme, visto não ser uma obra comercial de grande público (não é um filme de ação típico). Alguém do bairro terá visto a Cidade de Deus através de um dos canais da TV Cabo e, rapidamente, espalhou-se a notícia de que era um filme para todos verem. A partir daí, houve quem expeditamente tratasse de arranjar várias cópias. É um filme que é visto pelos educandos várias vezes. Isto assusta os professores. A maioria nem viu o filme, mas como sabem que a ação se desenrola numa favela brasileira ficam assustados com a ideia dos seus alunos idolatrarem as personagens da
história. E é o que acaba por acontecer. Suponho que o melhor a fazer seria “desmontar/analisar”, debater o filme na escola, tornando-o fator curricular alternativo e possibilitando a educação para a cidadania. Este trabalho mobilizaria, de forma integrada, vários saberes, tais como a Língua portuguesa, as Artes e Educação Visual, a Música, a Geografia, as Ciências da Natureza e outros. Mas os educadores não conseguem nem ter os media como material de trabalho e, dessa forma, também não conseguem considerar o modo de vida dos seus educandos quando preparam as aulas. Para mim, J.J. aprende a jogar o jogo da adequação e sabe adaptar-se às condições do bairro e da escola. Os professores estão distantes desse saber pois apenas repetem conteúdos contraditórios ao vivido pelos alunos. A flexibilização dos currículos vinha a calhar, mas é como se houvesse uma rejeição natural. Nesse caso, a partir do qual não pretendemos gerar interpretação ou descrição de natureza sócio-pedagógica, percebemos, para além dos sistemas citados, um conjunto de sistemas evocados (sistema educacional, sistema de pares, sistema político, sistema econômico, sistema do direito), que estão em constante partilha de comunicações, tendo em vista que, concomitantemente, uns são ambientes/entornos dos outros. A professora que gerou o relato, evoca, em forma de observação , uma potencialidade do sistema (rever o desenvolvimento curricular e a gestão educacional), ao mesmo tempo em que proporciona um vislumbrar da autopoiesis do sistema educacional no que tange ao seu fechamento operacional. Por outro lado, demonstra o trânsito efervescente de comunicações no plano do sistema de pares e a funcionalidade e estratégias tecnológicas do sistema dos media. Todavia, mostra-se impotente diante dos fluxos de comunicações que ultrapassam o seu desejo e a sua função.