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Este texto explora a relação entre cor e raça no brasil, analisando como essas categorias são utilizadas para definir e classificar pessoas, além de examinar o papel que elas desempenham na sociedade brasileira. O autor aborda a história da ideia de 'branqueamento' e o orgulho social associado à cor, além de discutir a complexidade e ambivalência das classificações raciais e coloriméricas.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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remetem a contradições básicas e por definição insolúveis. Isto é, na perspectiva estrutural de Lévi-Strauss, a causa de um mito é sempre uma contradição, e por isso ele cresce em espiral, a partir de suas inú- meras versões. Por isso, também, é preciso “levar a sério os mitos”, assim como levar a sério a história, e não descartá-los rapidamente. Todo esse longo introito visa apenas anunciar uma proposta: “é preciso cuidar e atentar para nossos mitos”. E se esses são muitos, sugiro tratar de um deles, em particular. Por isso selecionei um mito fundador entre outros tantos: nosso “mito das três raças mestiçadas”. Ora três tristes raças (numa paródia com o romance de Cabrera Infante – Três tristes tigres ), ora três alegres raças... O fato é que raça “sempre deu o que falar”, para o bem e para o mal, como os mitos cujas versões parecem dialogar entre si. Preto, branco e amarelo não são, porém, apenas cores. Ao contrá- rio, são “relação”. Além do mais, e como bem mostrou Victor Turner, em Floresta de símbolos, há elementos essenciais a serem retirados da re- leitura das cores. Diz ele que seriam símbolos primordiais produzidos pelo homem, a representar produtos do corpo humano cuja produção está associada à emoção. Por outro lado, a essas experiências corporais corresponde uma percepção de poder, ou ao menos uma classificação de rótulo cromático. Afirma ainda que as cores representam experi- ências físicas intensificadas, assim como proporcionam uma espécie de classificação e nominação primordial da realidade. Cores são, pois, sínteses e condensações das mais poderosas (4) e gostaria de destacar o quanto se produz em cima dessas classificações. Por suposto não temos espaço para refazer toda essa história das cores, em nosso país. Afinal, desde os primeiros relatos seiscentistas, o Brasil foi elevado a partir de sua grande natureza, enquanto seus nativos eram considerados pouco confiáveis. “Homens sem fé, sem lei e sem rei” foi a definição certeira de Gandavo, viajante lusitano que levantava uma primeira suspensão por sobre “as gentes” des- sa América portuguesa. E o que dizer do primeiro concurso sobre “Como escrever a história do Brasil” realizado em 1845? Nesse caso, ao invés da versão negativa ou apreensiva, venceu o “otimismo” do naturalista bávaro M. Von Martius, que se utilizou da metáfora de um rio composto por vários afluentes: um branco mais caudaloso; um indígena menos profundo, e um negro “quase um riacho”. De lá para cá muitas versões se sobrepuseram, algumas mais negativas, outras francamente positivas. O Brasil de finais do XIX parecia con- denado ao fracasso, tal a carga pessimista que recaía sobre a ideia de miscigenação. Segundo as teorias raciais deterministas, em grande voga naquele contexto, não haveria futuro para um país de “raças cruzadas como o nosso”, e definitivamente “degenerado”. Mas as políticas de eugenia, esterilização e um quase apartheid social dariam lugar a novos mitos, como o criado nos anos 1930, por Gilberto Freyre, mas também Donald Pierson e Arthur Ramos, entre tantos outros. Nesse caso, em vez de veneno seríamos o remédio, para um mundo em guerra e marcado por divisões de classe, origem e cor. O “mito da democracia racial” forjado nesse momento, e amplamente amparado pelo governo Vargas, se colaria à nossa representação na- cional tal qual tatuagem, fazendo da aparência física uma questão de caráter e padrão cultural. Se hoje andamos longe dessa última visão; se de há muito tem se discutido e mostrado o racismo vigente entre
iNtrodução: Nas tramas do mito raCiaL Se existe alguma especi- ficidade na antropologia, ela reside no fato de se pensar e reconhecer com uma disciplina da alteridade, ou como quer Merleau Ponty “uma maneira de pensar quando o objeto é outro e que exige a nossa própria transformação”(1). Ou seja, se nos fiarmos na noção de alteridade, na perspectiva expressa por Rousseau em O contrato social, alteridade significaria a capacidade de nos identificarmos com o “outro” de tal maneira, que passamos a estranhar a nós mesmos, em nossos valores e concepções mais fundamentais. Esse movimento de aproximação e de estranhamento faria parte fundante dessa epis- theme a qual, nas palavras de Claude Lévi-Strauss, sempre se definiu como uma ciência do outro; do olhar sobre o nativo, e com o nativo. Vale lembrar, também, que a disciplina pode se voltar não só para o “outro mais outro”, como se debruçar sobre nós mesmos, acerca de nossas “filosofias” mais arraigadas. Dizem que talvez o que mais definiria nossa sociedade ocidental, é que somos “um povo com história”. Ou melhor, não há povo sem história; isso se tomarmos o conceito de história como sinônimo para temporalidade. Não existe sociedade que não pense em cate- gorias como tempo e espaço, a despeito das concepções serem pro- fundamente diversas. Nos termos de Durkheim, estaríamos lidando com uma “categoria básica do entendimento”: não há sociedade que não a tenha, mas cada cultura a realiza empiricamente de forma par- ticular e diversa (2). Assim sendo, nossa especificidade estaria mais no grau e na escala que a história toma entre nós, sendo parte funda- mental dos discursos oficiais e nacional. Além do mais, se há povos que pensam o tempo de maneira sincrônica, ou mesmo espiralada, já nós usamos noções como cronologia, seriação e continuidade. Nos- sa história é sempre datada e, de alguma maneira, evolutiva. Mais ainda, ela parece central na conformação de discursos de identidade e de nacionalidade. É ainda uma vez Lévi-Strauss quem afirma que a história seria a “nossa grande narrativa social”, ou a nossa ideologia política. Diz ele: “Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a história”. Como se pode notar, e parafraseando o famoso dito de Lévi- Strauss para o mito, a história parece mesmo “boa para pensar”. Assim como se estudam parentescos, rituais, simbologias, também a história permite prever como a humanidade é una – universal – em suas estruturas mais básicas, mas vária em suas manifestações. A história cumpriria para nós o mesmo papel que os mitos, para outras sociedades: corresponde a uma espécie de cantilena sobre a origem, narrada pelo grupo, coalhada de tradição que, em nosso caso, começou oral e depois passou a escrita. Por outro lado, assim como os mitos, também a história, sua sucessão e constante reescrita
nós, o fato é que raça é ainda, e cada vez mais, um tema central em nossa agenda nacional (5). Mas gostaria de tomar os discursos sobre raça, não como mera ideologia ou falso discurso, e mais como mitos nacionais. Nesse sentido, vale indagar sobre sua pertinência e constância na fala dos políticos, mas também dos artistas e na teoria do senso comum. Esse é ainda um país que se define pela mestiçagem, seja ela mais ou menos alentadora: moeda de enaltecimento ou categoria de acusa- ção. Vamos, portanto, nos concentrar em alguns episódios pontuais, entendendo-os como “versões” de um mito que continua a produzir variações entre nós. Mais ainda, pretendo me fiar na máxima de Durkheim que mostrou como “a soma dos indivíduos não é igual a sociedade”. A lógica do social, do coletivo, funda categorias presen- tes nos indivíduos, mas não reduzidas a eles. Penso nos casos como exemplos de posturas e tendências mais amplas, e menos na psico- logia de cada um. Talvez nessa esquina, a antropologia, a despeito de trabalhar com categorias nativas, pense menos no indivíduo, e mais em estruturas mais amplas e que não cabem reunidas numa só persona. Sem ter a intenção de fazer um grande balanço, pretendo apenas iluminar certos cenários, e com eles recuperar com quantas versões se potencializa um mito.
CeNa 1: raça Como Cor e NeGoCiação Saint Hilai- re, viajante francês que esteve no Brasil entre 1816 e 1819, narrou uma cena que de alguma maneira faz sentido até os nossos dias. Enquanto andava pelo interior de Minas Gerais, deparou-se com uma pe- quena tropa. Rapidamente, perguntou ao soldado mais próximo onde estava o chefe, ao que o subal- terno apontou uma figura em meio aos demais. O francês então reagiu: “Seria aquele negro?”. E o soldado prontamente obstou: “ele não é negro, pois se fosse não seria chefe”. Também o inglês Henry Koster, que esteve no Brasil em 1809, comenta sua surpresa ao encontrar pela primeira vez um soldado de exército, negro. Mais uma vez, a resposta que recebeu foi reveladora: na opinião das testemunhas não se tratava de um negro, mas sim de um “oficial”(6). Parecido é o depoimento de Rugendas, em sua Viagem pitoresca através do Brasil : “Seria fácil citar numerosos exemplos de homens que ocupam os cargos mais elevados e que se contam entre os mais hábeis funcionários, embora em seu aspecto exterior revelem, indiscutivelmente, a ascendência índia ou africana ...”. Quando perguntou a um mulato sobre a cor mulata de um determinado capitão-mor, obteve a resposta. “Era, mas já não é”. E como o estrangeiro desejasse uma explicação para tão singular metamorfose, o mulato acrescentou: “Pois, senhor, capitão-mor pode ser mulato?” (7). Ficou famoso o caso de uma professora de filosofia da USP, que respondendo ao censo disse que sua cor era negra. Foi, então, pron- tamente contrariada pelo seu entrevistador que reagiu: “– ora, muito bem a senhora é professora universitária ou muito bem é negra. Os dois juntos... não pode ser”! Dizem que no Brasil a riqueza embranquece, assim como o poder e a ascensão na hierarquia social. Essa história seria muito repetida, com os inúmeros casos de políticos branqueados
em suas fotos, vestes e atos; jogadores de futebol que se entendem mais claros conforme sobem nos holofotes ou meros populares. Ro- naldinho, conhecido jogador de futebol, quando indagado sobre sua cor reagiu: “Quero crer que sou negro”. E logo seu pai brincou com o titubeio do filho com a expressão: “– Larga de ser besta, Ronaldinho”. Todos sabem que “casar bem” em geral significa contrair matri- mônio com alguém mais branco, e não necessariamente mais rico. Assim como “nascer feio”, pode representar, neste país dos casamen- tos mistos, vir ao mundo mais escuro que os demais irmãos. “Raça social” é a expressão encontrada por Vale e Silva para explicar esse uso travesso da cor e para entender o “efeito branqueamento” exis- tente no Brasil (8). Isto é, as discrepâncias entre cor atribuída e cor autopercebida estariam relacionadas com a própria situação socio- econômica dos indivíduos. No país dos tons e dos critérios fluidos, a cor é um critério de classificação, variando em função do local, da hora e, sobretudo, da condição. É por esse motivo, ainda, que os dados estatísticos provenientes do censo, no que se refere à raça surjam quase irreais ou dificilmente interpretados. No último censo, por exemplo, mencionava-se que apenas 6% da população brasileira era negra, apesar de toda a evidên- cia em contrário. Por sinal, é sempre bom lembrar que nosso censo usa apenas cinco cores como cri- tério de definição, e dentre elas se encontra o “par- do”; que funciona como uma espécie de coringa da classificação: nunca uma autodenominação, sempre um atributo externo. Ninguém se define como pardo; apenas recebe tal definição. Foi Fer- rez, esse grande escritor que se define como sendo da periferia, que certa vez disse que “de noite, na favela, até japonês é preto ou pardo”. Para além da piada, ele se referia à extrema manipulação das co- res vigente entre nós, e sua condicionante social. Introduzia também uma variante ao provérbio – “de noite todos os gatos são pardos”; expressão de difícil compreensão, mas que pode muito bem ser explicada como mais um golpe da “ideologia do senso comum”. A noite, ninguém sabe ou determina nada.
CeNa 2: QuaNdo eu era NeGro... Acabo de realizar uma entrevista com um conhecido dentista negro em Poços de Caldas. Ele sabia que o motivo da minha visita era entrevistá-lo sobre sua experiência racial. Nada era segredo ou jogo de dissimulação, de parte a parte. O dentista, que com seus sessenta e muitos anos de idade já tinha cabelos brancos e devidamente penteados junto à cabeça, me recebeu com um charuto nas mãos e me explicou que fazia parte do Rotary Club local. Até aí, tudo estava bem, e absolutamente conforme o mo- delo que haviam me passado. Foi então que ele se virou e desabafou: “Minha filha, quando eu era negro, minha situação era bem difícil!”. O que significa ser negro no passado e não ser mais no presente? Longe de condenar o nosso dentista, ou rir de sua fala, penso que ela merece reflexão. Ela exprime uma concepção da cor, tal qual experiência social, e das mais sofridas. Ou seja, ter certeza da cor negra é compactuar da evidência da exclusão social. É ter certeza da discriminação e sofrer, cotidianamente, com ela. Significa ser barra-
cor; só muito mais tarde quando se achava longe de seu grupo, e já no Rio de Janeiro. Foi ele quem introduziu Jorge Amado, Arthur Ramos e Ruth Landes no mundo do povo de santo. Encontrou seu lugar como especialista em “assuntos negros”, e, enquanto pode, negociou a cor, como um marcador social a seu favor. Ao mesmo tempo em que Salvador se transformava, nos anos 1930, no lugar, por excelência para a realização desse tipo de estudo; já Carneiro encontrava para si um lugar ao sol. Nessas ocasiões não era negro, e se diferenciava, inclusive, deles. Achava, por sinal, que os africanos não haviam progredido ou “absorvido” a “cultura superior do branco”. E não é fato desimportante ter sido Ruth Landes, a pesquisadora norte-americana e colega afetiva de Carneiro, quem mencionou esse interdito do pesquisador, em relação à sua própria cor. Dizia ela que Carneiro “não ligava a raça a assuntos pessoais ou sociais”. Dizia mais: que certa vez teria lhe aconselhado não viajar para o sul dos EUA, e que a reação de Edison fora de absoluta perplexidade. Quando a antropóloga explicou que “eles o incomodariam com o pretexto da sua cor”, o rosto do etnólogo se “contorceu como se eu o tivesse chicoteado sobre os olhos. Pensei, agoniada, que um ameri- cano não devia ter de fazer tais coisas a outros seres humanos” (12). Com certeza Carneiro agenciava uma série de marcadores sociais à sua disposição. Para Ruth ele atuava como um especialista em temas do negro (e era negro); para o povo de santo era um “estudioso, um aristocrata”, já que intelectual e jornalista. Para o antropólogo Arthur Ramos era um “nativo” (uma espécie de facilitador da etno- grafia). E para Jorge Amado, o colega mais pobre, e “do candomblé”. Já Edison, usava a cor como trunfo teórico e profissional, mas nun- ca deixou de manter grande distância entre “eles” e “ele próprio”, como mostra Gustavo Rossi. O fato é que, apesar de fazer parte da sociedade baiana e de certos estratos médios ascendentes duran- te o Império, os Souza Carneiro não estavam imunes à violência simbólica e ao jogo de estereótipos por lá praticados. Processos que implicavam em discriminação, intimidação, e acuamento social não seriam estranhos a Edison, que vivenciou a falência econômica do pai, e diferentes processos de apadrinhamento que ajudaram a evitar uma tragédia familiar anunciada. Por conta das posições que acumularam no interior de um certo grupo social mais prestigiado, pode-se imaginar que os Car- neiro dificilmente seriam considerados “negros”. Afinal, negros eram ou os “bárbaros africanos” que praticavam rituais religiosos; ou trabalhadores braçais e manuais; incultos e apartados dos ga- nhos educacionais. Entretanto, a família, por mais que tivesse uma formação educacional e um convívio social distinto, não escapa- ria, em inícios do século XX, do processo de rebaixamento social comum a uma série de outros segmentos negros espalhados pelo país; situação que seria vivenciada por Edison de maneira das mais ambivalentes. De um lado, Edison segurava tenazmente seu lugar de “não negro”, mantendo sempre distância de tudo o que o vin- culasse diretamente a esse mundo: estudava essas manifestações, mas, com certeza, não era “um deles”. Nesses momentos apegava- se à sua “ciência” e aos ganhos que sua formação educacional lhe promovia. De outro, sempre fez da questão negra seu espaço de trabalho e de atuação.
Fazendo uso de um aprendizado de longo tempo, os Souza Carneiro, os Rebouças e tantos outros, procuraram agir, atuar e agenciar-se simbolicamente. Para tanto, investiram em distinções – profissionais, culturais pessoais e sociais –, e colocaram a raça “entre parênteses”, como bem mostra Luiz Rossi (13). Nosso personagem, como tantos outros, sofreu com as armadilhas da confusão racial e social de um lado, e com os processos de pressão social de outro; na mesma medida em que se valeu dos lucros simbólicos conquistados como especialista no nascente campo de estudos afro-brasileiros. Negro ou não era uma questão de relação e circunstância. Estudava o negro para, de alguma maneira, não ter que se estudar.
CeNa 4: hoje sim, oNtem Não, amaNhã taLvez Mas não espero com isso ter convencido que assumir posições sociais, determinar marcadores raciais é operação “sem volta”, consciente e sem retorno. Ao contrário, não são poucos os exemplos que mostram as idas e voltas pessoais, no que se refere à essa difícil delimitação da raça e da cor. Os exemplos são inúmeros e, mais uma vez, com o risco as- sumido de simplificar, selecionei um. Todo mito, como vimos, tem versões, mas algumas servem como referência. Nesse caso pretendo tratar de um jogo de futebol que ocorre na favela de Heliópolis faz alguns anos e que recebeu o sugestivo nome de Pretos X Brancos. Esse é um jogo ... mas muito mais que um jogo. Clifford Geertz, em ensaio clássico sobre a briga na rinha de galos em Bali, mostrou como o jogo servia como porta de entrada dessa sociedade e revelava, entre outros, de que maneira um ritual condensa, amplifica e muitas vezes cria elementos reveladores do lo- cal em que se insere (14). O fenômeno que se pretende aqui analisar, não pode ser considerado nem “nacional”, como a briga de galos em Bali, e muito menos ilegal. Também não se fazem apostas nesse jogo conhecido como “Pretos contra Brancos”. Mas há paralelos a explo- rar. Também no exemplo brasileiro, “ser caçoado é ser aceito”(15), e a graça aparece na piada, que só provoca o riso nesse contexto deli- mitado: nos vocábulos e nas expressões que reaparecem a cada ano e no mesmo lugar. Fora dele, tudo pareceria “sinal de racismo”, como explicam alguns informantes. Por outro lado, da mesma maneira que os balineses, os nossos boleros também despendem muito tem- po com seus favoritos: agenciam, discutem, admiram ou discordam profundamente dos jogadores selecionados para entrar na seleção daquele ano. O ritual, que ocorre só em dezembro, vai se desenrolan- do, porém, (fora do campo) o ano todo: no começo são as gozações e comentários daqueles que ganharam; já perto da partida trata-se de armar a equipe e esquecer (ou lembrar) do ano que passou. Estamos nos remetendo, ainda, a um ritual essencialmente masculino – assim como a rinha de galos –, em que a virilidade é jogada de maneira cres- cente, conforme vão se alternando as diferentes partidas da rodada. Mas falta o fundamental: é fato que não há uma cosmologia eviden- te jogada nessa partida, porém, também aqui somos submetidos a um jogo de classificações internas e que levam a refletir acerca das maneiras como no Brasil descrevem-se “cores tal qual marcadores”. Nessa “pelada”, praticada há mais de 30 anos, se realizam, atuali- zam e alteram formas de nominação acerca de diferentes grupos que moram na favela de Heliópolis, na grande São Paulo; mais eviden-
reitera que: “em dia de Pretos contra Brancos escuto muita coisa que, se fosse num dia normal, ia dar problema”. O evento pode ser entendido como o resultado de um amplo de- bate em que se discutem agilidades em campo, mas também as cores (raças e origens) dos jogadores. Por sinal, o caráter pragmático da de- cisão de montar uma equipe boa e competitiva, condiciona bastante a indicação final da cor dos jogadores. Mas não é só: “Pretos contra Brancos” parece, nesse sentido, um laboratório do uso alargado que a cor tem ganhado no Brasil. Longe da definição biológica e do mo- delo do one drop rule – mais própria ao contexto norte-americano –, no Brasil parecemos conviver com a “descrição e a nomeação das cores”. Praticamos, como afirmou Oracy Nogueira, um preconceito de “marca” e não de “origem”, e as definições mais lembram um gra- diente flexível (18). Ou seja, nos marcadores vigentes operam muito mais critérios externos de definição – como traços do fenótipo –, do que as denominadas determinações biológicas. Por isso mesmo, muitas vezes no Brasil, o conceito de raça é substituído pela noção de cor e os termos ficam, de certa maneira, mais escorregadios e porosos. Não por acaso, os jogadores da favela de Heliópolis, quando realizam o clássico “Preto contra Branco”, refazem o velho modelo: formalmente são “onze esportistas de pele preta contra onze de pele bran- ca”; no entanto, “na prática a teoria é outra”. Os nomes misturam-se, assim como se mesclam co- res e definições. A cada ano os jogadores podem redefinir seu time, assim como passam em revis- ta a sua cor, ou se atribuem os mais diferentes nomes: verde, melado, café com leite, lâmpada, queimado de sol... O jogo da favela de Heliópolis é um bom pre- texto para entender a discrepância anotada, por vários autores, entre a classificação do censo, e os resultados, por exemplo, da Pesquisa nacional por amostra de domi- cílios (Pnad), realizada em 1976. Diferente do censo, quando a cor é atribuída pelo pesquisador, nesse caso os brasileiros usaram 136 cores diferentes para se autodefinir, reveladoras de uma verdadeira “aquarela do Brasil”. A pesquisa parece ter gerado reações que variam da resposta positiva e direta, até a visão mais negativa ou mesmo, e tão somente, um certo tom de jocoso. Não pretendo esgotar as potencia- lidades desta lista, mas o que se pode dizer é que ela permite entender padrões de nomeação; a riqueza da representação com relação à cor e, por outro lado, como é problemática sua definição no Brasil (19). Como qualquer classificação essa listagem guarda seus próprios cri- térios e permite várias formas de ordenação. Enquanto certos termos recuperam as categorias tradicionais do censo; outros lhe escapam totalmente. Primeiramente, percebe-se a existência de uma espécie de arco-íris nacional, na auto definição dos entrevistados, que se di- zem: verdes, roxos, cor de burro quando foge, cor de rosa, cor de ouro, laranja, chocolate, café com leite, encerada, enxofrada... ou até azul marinho. Parece haver uma preocupação em descrever a cor, da forma mais precisa possível. “Amarela, verde, azul e azul-marinho, branca, bem-branca ou branca-suja, café ou café com leite, chocola- te, laranja, lilás, encerada, marrom, rosa e vermelha” são definições
temente descritos a partir de suas cores, bem como da manipulação das mesmas. Ao longo de três décadas, o divertimento foi se firman- do até que virou, nos termos dos moradores, “um clássico”. Foi na década de 1970 que os boleros dos mais de vinte campos de várzea espalhados pela região, hoje dominada pela maior favela da capital, começaram a se dedicar à “festa do Flor”. O destino do jogo mistura-se com a própria história da favela, cuja fundação data desse mesmo contexto. Foi em 1971 que a prefei- tura de São Paulo transferiu, provisoriamente, 150 famílias da Vila Prudente para uma região que ficava entre os córregos da Indepen- dência e do Sacomão, na Zona Sul da cidade. Em 1978, um novo alojamento provisório foi criado, agora com 60 famílias removidas da favela Vergueiro. O fato é que tal “improviso” resultou na maior favela de São Paulo (a segunda maior do Brasil e da América Latina), que conta atualmente com 100 mil habitantes (segundo dados do IBGE), sendo 49% de sua população composta por crianças e ado- lescentes, na faixa de 0 a 21 anos. O complexo Heliópolis/ São João Clímaco ocupa hoje cerca de 1 milhão de metros quadrados, entre o bairro do Ipiranga e de São Caetano do Sul. “A cidade sol”, conta, entretanto, com problemas estruturais sérios: 40% das casas não tem esgoto, mais de 60% das ruas não são asfaltadas, mais de 250 famílias moram em barracos insalu- bres e inseguros. Contudo, se as carências infraestruturais con- tinuam evidentes, a favela é uma das mais orga- nizadas, no que se refere à luta por melhores con- dições de vida para seus moradores (16). E, nesse sentido, o jogo “Pretos contra Brancos” representa uma, das muitas atividades empreendidas no local (17). E junto com o crescimento da favela, foram se formando as torcidas cativas, vestidas de preto ou de branco; verdadeiros sinaleiros a delimitar um jogo de cores. A prática é feita de muita festa, churrasco e cer- veja, enquanto se aguarda a sequência de quatro jogos. O primeiro jogo, denominado “Sucatão” (numa referência à idade média de seus jogadores), é composto pelos veteranos. Aí estão os fundadores do jogo e da prática, mas que não aguentam correr por muito tempo. Depois deles, é a vez de o “Veterano”, que é formado por jogadores de meia idade, atuar. Aqui a bola corre um pouco mais solta, e os jogadores desse “clássico” orgulham-se de ficar muito mais perto da bola. Os mais jovens dividem-se nas duas pelejas finais: os reservas participam do primeiro quadro e depois entram os profissionais; o “quadro principal”. Essa é a partida mais importante do dia. O grande evento de várzea acontece no aguardado domingo an- terior ao Natal e no campo impera a “gozação racial”. Como diz o senhor Zé Lauro Pereira, 62 anos, 30 de jogo e diretor do Flor de São João Clímaco: “Os caras tiram sarro mesmo”. Conta o diretor (que se define como branco): que “até caixa de banana já trouxeram para jogar nos pretos, mas que problema não existe porque, no campo e fora dele, são todos amigos”. Tudo se passa como se existisse uma fronteira imaginária clara entre esferas públicas e privadas: dentro do jogo não há racismo; fora dele não há o que discutir. Outro per- sonagem importante do local, líder da esquadra dos pretos, também
percentuais são mais altos entre negros (83% dizem que cor ou raça influenciam no trabalho), mas são igualmente elevados entre bran- cos (69%). Esses percentuais também aumentam de acordo com a escolaridade e a renda. Ou seja, quanto mais rico e escolarizado for o entrevistado, maior é a percepção de que a cor é elemento de dis- criminação. É isso, afinal, que mostram Lima, Rebouças e Carneiro, que “trocam de pele” quando se deparam com a discriminação da cidade grande ou da sociabilidade das altas rodas. Outro elemento a destacar é que 96% dos entrevistados, afirmou “saber a própria cor ou raça”. As cinco categorias de classificação do IBGE (branca (49%), preta (1,4%), parda (13,6%), amarela (1,5%) e indígena (0,4%), além dos termos “morena” (21%) e “ne- gra” (7,8%); os mais utilizadas. Dos entrevistados, 96% afirmam que conseguiriam fazer sua autoclassificação no que diz respeito a cor. Comparando a classificação de cor ou raça do entrevistado, feita por ele mesmo (autoclassificação), e a atribuída pelo entrevistador (heteroclassificação), observou-se um nível de consistência bastante alto, com exceção para o caso da categoria “morena”, mais usada pelo entrevistado (21,7%) do que pelo entrevistador (9,3%). Entre as dimensões de identificação oferecidas aos entrevistados, em relação à autoidentificação de cor ou raça, a que mais aparece é a “cor da pele”, citada por 74% dos entrevistados. Seguem “origem fa- miliar” (62%) e “traços físicos” (54%) mas não se mencionam os as- pectos sociais, relacionais e de circunstância. Não se trata de descon- fiar dos relatos, mas de se perguntar sobre como agem os indivíduos psicológicos, quando se pensam não no universo da pessoa, mas da sensibilidade social. Benedict Anderson chamou de “comunidades imaginadas” esse universo de sensibilidades partilhadas (27). Já Rai- mond Williams usou a expressão “estrutura de sentimentos” para dar conta dessa estrutura dada pelo social, que muitas vezes está para além do individual (28). A experiência da exclusão é sentida individualmente, mas parti- lhada e percebida socialmente por um jogo de “circunstâncias” e re- lações dadas na própria empiria sensível. Por isso, cor vira categoria local, ou como dizia Geertz para o contexto de Bali, uma maneira interna de interpretação, um mito local. Fazendo um paralelo com conceito retirado da obra de Manuela Carneiro da Cunha, gostaria de pensar que raça também se escreva com aspas e entre aspas: se o conceito não sobrevive mais na literatura científica da biologia, agora recuperada, a partir de categorias locais e empíricas, faz novo sentido para pensarmos como pragmaticamente ele se insere na realidade (29). Ou seja, faz muito tempo que se tem a certeza que, tomado biologicamente, o conceito de raça não passa (se muito) de estatístico e frágil em sua regularidade. No entanto, se to- marmos o uso social do conceito, veremos como ele vem sendo agen- ciado não só pelos grupos sociais, como no senso comum, e de uma forma geral. Assim, de nada ajuda ficarmos presos a uma definição canônica se o conceito está nas ruas e sendo negociado como discurso social; opera na sociedade e produz efeitos. Pensado dessa forma, raça (com aspas) teria novo sentido tanto quando disseminado pela teoria do senso comum (que reitera cotidianamente sua relevância como elemento a dividir e discriminar segmentos sociais), como ao ser uti- lizado numa agenda de inclusão social, necessária neste país marcado
(como vimos), mas também, do contexto em que o entrevistado se encontra. Tal maleabilidade permite um jogo de termos dentro de um leque possível e disponível. No bar (com os amigos “brancos”) Marcelo se dizia mulato. No jogo virou preto. Diante de nós, café com leite... Percebe-se, pois como nossos boleiros manejam marca- dores simbólicos disponíveis, de forma a agenciar constrangimen- tos sociais e possibilidades deixadas por certas indeterminações na classificação. Entretanto, não há como deixar passar que, mais recentemente, o tema tem sido agitado, sobretudo a partir de uma nova agenda mais atenta às desigualdades sociais. De toda maneira, tal radica- lização não inibe o jogo que rola dentro do campo, mas fora dele também. No dia a dia, nossos informantes agenciam tais categorias, que são antes relações que emergem nas confrontações das maneiras empíricas de operar e atualizar sistemas de classificação social. Eles funcionam, assim, e conforme mostrou Pina Cabral para o caso de Macau, como dinâmicas relacionais, “identidades continua- das”. São marcas de relações e sinalizadores emocionais (24). Como diz Geertz, “as sociedades, tal como as vidas, contêm as suas próprias interpretações” e quem sabe a cor seja uma maneira de nomear a nossa. Cor surge, assim, a um só tempo, como agência de integração, mas também como forma de distinção.
Para termiNar: “da Cor do moreNo” Estava para finalizar este artigo, quando recebi um telefonema de um jornalista da Folha de S. Paulo , que me indagava sobre a nova pesquisa feita pelo IB- GE em seis estados da União: Amazonas, Paraíba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal (25). A enquete mostra que o brasileiro resiste mais, ao definir a sua cor ou raça, aos termos preto e pardo, usados pelo IBGE, preferindo as opções moreno e negro. O trabalho revela também que há uma discre- pância entre a classificação feita pelos pesquisadores do IBGE e a autoclassificação dos entrevistados, no que diz respeito aos termos mulato e pardo. 22% dos entrevistados se autoclassificaram como morenos, mas, quando a classificação foi feita pelo entrevistador, este percentual caiu para 9%. No caso do termo pardo, 14% se autoclassificam como tal, enquanto os entrevistadores classificam 23% da população como tal. O IBGE, vale lembrar, não faz clas- sificação de cor ou raça em suas pesquisas tradicionais. É sempre o entrevistado que se autodefine (26). Nesse cálculo mais “nativo”, digamos assim, pardo sempre aparece como uma classificação externa; enquanto que moreno e mulato surgem como conceitos locais e socializados pelo cotidiano. São flexíveis, por certo, e permitem os jogos de manipulação que tentamos explorar neste artigo. Segundo a pesquisa, ainda, na hora de se autoclassificar, os brasileiros levam em conta principalmen- te a cor da pele, seguido de traços físicos e da origem familiar dos antepassados. E o termo mulato, de alguma maneira, dá “conta do recado”, uma vez que é suficientemente poroso para absorver nas suas variações os diferentes marcadores aí expressos. Interessante notar como 71% dos entrevistados afirmaram que a cor ou raça tem influência em relações de trabalho, sendo que 68% citam também a relação com a Justiça e com a polícia. Os
por desigualdades sociais, ainda mais agravadas por políticas de cor e, porque não, de “raça” (e notem as aspas propositais). Raças e cores no Brasil atuam como construções sociais ar- bitrárias, mas não aleatórias. Representam arranjos diacríticos, relacionais, posicionais, como ensina Manuela (e eu escorrego o argumento). Constituem, assim, argumento político podero- so e operante, para uma realidade política igualmente aguda. Como um dos mitos fundadores, esse Brasil mestiçado ajuda a pensar não só na “realidade empírica” desse verdadeiro suposto local, mas em sua construção social, para além das percepções mais individuais. Tristeza ou alegria, veneno ou remédio, saída ou contramão são posições, relações, que mostram as diferentes faces dessa verdadeira cosmologia, que continua a mostrar novas e inesperadas versões.
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros, do livro As barbas do imperador, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, e organizadora, em parceria com Ricardo Benzaquen de Araújo, de Raízes do Brasil: edição comemorativa. São Paulo: Companhia das Letras, Edição Comemorativa – 70 anos (1936-2006), 2006.
Notas e reFerÊNCias BiBLioGrÁFiCas