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Guias e Dicas
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Práticas Terapêuticas Tradicionais entre os Indígenas Americanos: Medicina e Feitiçaria, Provas de Medicina

Este documento discute as práticas terapêuticas tradicionais entre os indígenas americanos, incluindo a medicina e a feitiçaria. O texto aborda como as práticas terapêuticas indígenas estavam relacionadas com o conceito de enfermidade, a importância da comunidade no complexo shamanístico e a utilização de remédios vegetais. Além disso, o documento discute casos específicos de cura e o papel dos xamãs na sociedade indígena.

O que você vai aprender

  • Quais remédios vegetais eram utilizados pelos indígenas americanos?
  • Como os indígenas americanos concebiam a enfermidade?
  • Quais eram as categorias de remédios utilizados pelos indígenas americanos contra a mordedura de víboras?
  • Qual era a importância da comunidade no complexo shamanístico?
  • Quais práticas terapêuticas eram utilizadas pelos indígenas americanos?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Carnaval2000
Carnaval2000 🇧🇷

4.7

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Sobre feitiços e ritos: enfermidade e
cura nas reduções jesuítico-guaranis,
século XVII
On spells and rites: illness and cure
in the Jesuit Guarany reductions in
the XVII century
Eliane Cristina Deckmann Fleck
“[…] con anterioridad a la labor misionera entre los
Guaraníes, y antes de la venida de los españoles, estos indios
eran sanísimos, y como se expresaba un misionero al referirse a
ellos, sólo conocían una enfermedad: la vejez”1
Esta observação de Furlong nos remete a algumas indagações: Como
os indígenas mantinham-se sãos? Como curavam suas enfermidades? De
acordo com este mesmo autor, os índios guarani tinham seus médicos e
seus medicamentos, extraídos de sementes, raízes e folhas de árvores, prati-
cando escarificações, cauterizações, aplicação de ungüentos e ventosas e tra-
tamentos para verminoses. 2
A manutenção dessas práticas terapêuticas entre os Guarani, em especial,
do uso de ervas, raízes, resinas e gorduras animais, fica evidenciada na lista de
enfermidades e seu respectivo tratamento organizada por Cadogan e que con-
templa desde a dor de ouvido, até a epilepsia e os métodos contraceptivos. 3 Ele
registra, ainda, o uso do “humo de tabaco” que “ahuyenta tanto los seres malig-
nos como los pesares y las enfermedades, empleándose en la medicina y los
ritos”.4 Faz, ainda, referência às plantas milagrosas que “podrán ser halladas y
utilizadas por quienes se dedican con fervor a los ejercicios espirituales y
adquieren la buena ciencia; es decir, los médicos agoreros5.
Interessante observar que Furlong atribui a incidência de males gastro-
intestinais entre os Guarani às alterações em sua dieta alimentar, com a
TOPOI, v. 6, n. 10, jan.-jun. 2005, pp. 71-98.
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Sobre feitiços e ritos: enfermidade e

cura nas reduções jesuítico-guaranis,

século XVII

On spells and rites: illness and cure

in the Jesuit Guarany reductions in

the XVII century

Eliane Cristina Deckmann Fleck

“[…] con anterioridad a la labor misionera entre los Guaraníes, y antes de la venida de los españoles, estos indios eran sanísimos, y como se expresaba un misionero al referirse a ellos, sólo conocían una enfermedad: la vejez”^1

Esta observação de Furlong nos remete a algumas indagações: Como os indígenas mantinham-se sãos? Como curavam suas enfermidades? De acordo com este mesmo autor, os índios guarani tinham seus médicos e seus medicamentos, extraídos de sementes, raízes e folhas de árvores, prati- cando escarificações, cauterizações, aplicação de ungüentos e ventosas e tra- tamentos para verminoses. 2 A manutenção dessas práticas terapêuticas entre os Guarani, em especial, do uso de ervas, raízes, resinas e gorduras animais, fica evidenciada na lista de enfermidades e seu respectivo tratamento organizada por Cadogan e que con- templa desde a dor de ouvido, até a epilepsia e os métodos contraceptivos. 3 Ele registra, ainda, o uso do “humo de tabaco” que “ahuyenta tanto los seres malig- nos como los pesares y las enfermedades, empleándose en la medicina y los ritos”.^4 Faz, ainda, referência às plantas milagrosas que “podrán ser halladas y utilizadas por quienes se dedican con fervor a los ejercicios espirituales y adquieren la buena ciencia; es decir, los médicos agoreros”^5. Interessante observar que Furlong atribui a incidência de males gastro- intestinais entre os Guarani às alterações em sua dieta alimentar, com a

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introdução, pelos missionários, do consumo de carne bovina.^6 Entre as doen- ças mais graves que se tornaram freqüentes entre os Guarani, ao longo do século 17, ele destaca a varíola, observando que “Parece cierto que los españoles importaron este mal, que en forma tan rápida diezmaba a los indígenas que vivían en comunidad”. 7 Segundo este mesmo autor, apesar da disponibilidade de uma farmacopéia rica, as pestes que os missionários jesuítas registraram em suas Cartas Ânuas não puderam ser evitadas e nem eficazmente combatidas, por estarem os indígenas desprovidos de anticorpos para delas se defenderem.^8 Ao se referirem às pestes que acometeram os Guarani, há unanimidade entre os autores em estabelecer sua vinculação com a implantação das reduções.

La concentración de varios millares de indios en una sola aldea revolu- ciona de tal manera la economía tradicional [...] Al debilitar a los indios, esta hambre favorece la propagación de enfermedades importadas, con- tra las cuales su organismo no tiene defensa. Más o menos violentas, más o menos fulminantes, siempre, al decir de los propios jesuítas, las epide- mias causan estragos entre las nacientes cristiandades; y la concentración de los catecúmenos no hace sino favorecer la hecatombe. 9

É importante observar que apesar de os jesuítas terem se dedicado ao alívio dos doentes, as Constituições da Ordem definem “las ocupaciones que no convienen a clérigos y religiosos y entre ellas se cuenta la medicina, y mucho más el comercio al parecer íntimamente ligado al sostén de boticas”. (^10) Estas proibições podiam ser, no entanto, desconsideradas, quando o aten-

dimento se fazia necessário, “tratándose de la misericordia y caridad para con los pobres, cuando hace falta otro médico o cirujano”^11. A freqüência dos atendimentos levaria o Papa Gregório XIII, em 1576, a outorgar à Companhia de Jesus permissão para a prática da medicina, nos seguintes termos:

Ya que consta por la experiencia, que los fieles se inclinan mucho a la religión y piedad, si las personas religiosas ejercen para con ellos los oficios de la caridad, no sólo con sus almas, sino también con sus cuerpos, y habviendo la Compañía de Jesús, según supimos, algunos religiosos entendidos en medicina, cuya asistencia ante todo en regiones donde faltan médicos, puede ser muy útil no sólo para las almas, sino también

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grias^15 – com cortes na veia, escarificação ou aplicação de sanguessugas – ou pela submissão do paciente a uma série de purgantes e vomitórios. Assim, o médico seguia uma monótona rotina de sangrias e purgas, prescrevendo ainda emplastros, ungüentos e poções. 16 A Décima-Quarta Carta Ânua, relativa aos anos de 1635 a 1637, refere a prática:

Esta peste postró en menos de ocho días a toda la población, a grandes y chicos, hombres y mujeres. Sólo yo y un joven quedamos en pie [...] Adonde me volvía, no veía yo sino oscuras llagas, apostemas destilando pus y gusanos, y en todas partes se me presentaba el retrato de la muerte. Y para cuidar a cuatro mil enfermos quedaba sólo yo com aquel joven. Aconsejáronme algunas personas, sería bueno sangrar a los dolientes, y por no haber outro cirujano, yo en persona comencé a ejercer este oficio desconocido, abriendo venas día y noche. 17 Bastante oportunas são as considerações de M. Haubert que a partir dos efeitos provocados pelas epidemias, pergunta: “¿Cómo no escuchar entonces, com espíritu predispuesto, a sus grandes magos que les predican que sus males provienen de haber seguido a los sacerdotes extranjeros, y que, al hacerlos desaparecer, recuperarían la felicidad de sus antepasados?”^18. É importante lembrar que os próprios missionários reconheciam que “las epidemias causan estragos en las nacientes cristiandades”, visto que em razão delas, os índios buscavam novamente a proteção dos xamãs. O fato é que conquistadores e missionários introduziram vírus e bac- térias para os quais as populações nativas não possuíam anticorpos, o que provocou as epidemias e o descenso populacional. 19 A introdução e a pro- pagação de doenças desconhecidas como a gripe, sarampo, varíola, tubercu- lose, disenteria, febre amarela, malária, pneumonia epidêmica, cólera, tifo, sífilis, lepra, doenças venéreas, podem ser percebidas como o “hálito da Morte” 20 que debilitou e desorganizou as populações atingidas, facilitando o avanço da frente espanhola, porque “esas pestes desconocidas e incontrolables tenían que producir, además de su hundimiento demográfi- co, la más total desmoralización del indio”.^21 Em seu estudo sobre a epidemiologia na Amazônia, Coimbra Jr. afir- ma que “após o contato com sociedades de cultura ocidental é comum observarem-se drásticas mudanças em diferentes aspectos da vida destas po- pulações”. Dentre elas, destaca a “acentuada mortalidade verificada entre

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sociedades indígenas que quase sempre marca o período pós-contato” e o “processo de sedentarização, observando-se acentuada diminuição da mobi- lidade, aliada a mudanças no padrão de distribuição espacial das aldeias, organização social e sistema de subsistência”. Todas estas alterações, observa o autor, “têm implicações epidemiológicas [...]” 22. Cabe lembrar também que os surtos epidêmicos provocaram a deses- truturação e a desterritorialização tribal que levou à desnutrição, ou ainda às mudanças de dieta que, por sua vez, produziram novos distúrbios de saúde devido à fome ou à introdução de novos alimentos. Como bem salientou Carlos Coimbra Jr., “o mesmo processo saúde/ doença caracteriza uma das facetas de um sistema maior, onde indivíduos interagem com diferentes fatores ambientais em sua rotina diária de subsis- tência”. Dessa forma, “o quadro epidemiológico de uma população pode ser visualizado como resultante da constante interação entre uma gama de fatores de ordem biológica, ambiental e sócio-cultural” 23. Considerando o imenso território que os Guarani ocupavam no sécu- lo XVI^24 , as epidemias eram facilmente propagáveis, devido a sua grande população e à intensa comunicação que existia entre as aldeias, ligadas por uma rede de trilhas e caminhos abertos no interior das florestas ou pelos cursos d’água. Observamos este aspecto na Carta Ânua de 1634, na qual o Pe. Romero atribui a propagação das epidemias ao fato de os Guarani serem “natural- mente andarilhos”, o que provocava o descenso populacional, já que pou- cos “escapavam de padeçer destas pestes e enfermidades e, assim, uns suces- sivamente a outros vão caindo”^25. Em outro momento, o Pe. Romero refere a inexistência de cura para os infectados:

[...] o maior trabalho que temos nestas pestes e o que mais desassossego nos traz é o cuidar dos que estão fora da redução, porque muitas vezes vendo que pica a epidemia na redução, vão para suas antigas aldeias para que ela não os ataque, pensando estarem muito seguros lá. Outros, logo que começam a ficar enfermos, também se vão para curar-se lá, como eles dizem (como se tivessem os tristes alguma medicina ou médico que lhes curassem). Outros fogem da redução para que os padres não lhes curem nem lhes tirem as comidas. 26

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hacipabamo = “está a aldeia espantada com tantos enfermos”; mbae aci oqui rucu ore rehe = “chove a enfermidade sobre nós”. Retomando a abordagem de Coimbra Jr. em relação às diferentes res- postas das sociedades indígenas frente às epidemias, destacamos “a dispersão e fuga dos membros da aldeia, a aglomeração de seus habitantes em uma mesma maloca e a interrupção voluntária de atividade de subsistência”^31 como os padrões de comportamento mais comumente observados e acio- nados a partir de seu sistema de crenças e práticas médicas tradicionais. Há que considerar, para uma aproximação, que os indígenas america- nos “mantenían un equilibrio sanitario entre las causas de enfermedad y su medio ambiente”; acreditavam “en el origen mágico y sobrenatural de la enfermedad” e apoiavam suas práticas médicas “en recursos mágicos y reli- giosos y en alguna medida en remedios vegetales”. Para eles, a enfermidade era “el resultado de fuerzas extrañas y superiores al hombre, frente a las que solamente cabía el recurso a ofrendas y desagravios de tipo individual o colectivo, según la naturaleza del pecado cometido” 32. Quanto às tendên- cias predominantes na vivência religiosa dos indígenas sul-americanos, Susnik observou que “El hombre es consciente que todo o existente establecido puede reaccionar a él, cuando ocurren transgreciones del equilibrio de la vivencia; pueden irritarse las deidades, los dueños de animales y naturaleza o ya las almas des-idas de los muertos, infligiendo los ‘castigos’ de acuerdo a las violaciones sociomorales” (Susnik, 1989, p. 95). Entre os Guarani e os povos primitivos em geral, “enfermedad signifi- ca estar poseído o dominado por espiritus animales telúricos, que roban o destruyen al individuo, su alma, o su órgano enfermo” e aquele que revelar- se “dueño del remedio” ou “controlador de los espíritus malignos” demons- trará o verdadeiro poder mágico e religioso^33. Para estes indígenas, as enfer- midades tinham um caráter mágico, uma vez que se deviam à intrusão de um corpo estranho no organismo ou então a um malefício enviado por um inimigo. 34 Para ilustrar este aspecto, destacamos uma referência de Cadogan à punição pelos deuses decorrente da quebra de um tabu:

Cuando uno de los cónyuges hja sido culpable de adulterio hallándose la madre embarazada, los dioses se niegan a darle nombre a la criatura;

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es decir, se niegan a dotarle de “aquello que sostendrá erguido el fluir de su decir” = o mbo-e-ry moäá; y la criatura está condenada a morir pre- maturamente. 35

Essa mesma relação entre infrações do código moral e enfermidade pode ser percebida nesta interpretação dada ao que ocorreu com um indíge- na e que vincula a punição à desobediência às regras:

Pa’i Jachy enseñaron a los hombres la danza, las oraciones y los himnos sagrados. Un día en que Pa’i había ordenado fuera dedicado a la danza y la oración, un indio desobediente se internó en la selva en busca de hojas de pindó (palmera) para techar un rancho. Al volver fué converti- do en oso hormiguero grande […] 36 Na visão européia seiscentista, “o mal é […] considerado como uma realidade material, trazido de fora (‘o Inferno’) pelos ‘demônios’ e colocado no corpo do doente, o qual se encontrava exposto, sem defesa, a semelhante perigo pelo seu deus, a quem ofendera e que o abandonava assim aos execu- tores da sua vingança” (Le Goff, 1990, p. 23). Isso poderia explicar a difu- são e a consagração dessa percepção nas reduções, na medida em que tanto para os europeus, quanto para os Guarani, a perturbação da ordem natural

  • por intervenções sobrenaturais – decorria de transgressão moral ou reli- giosa. Apesar dessa percepção em comum, os missionários condenaram o emprego de ervas, resinas e bálsamos indígenas, limitando-se aos remédios europeus e às práticas terapêuticas européias, o que prejudicou o alívio dos enfermos em doenças que não puderam ser evitadas e para as quais não havia cura. O missionário jesuíta António Ruiz de Montoya registrou o amplo e difundido uso de ervas medicinais nas práticas curativas dos Guarani:

Usam os índios muitos remédios e ervas (medicinais), que lá a natureza tem produzido. A pedra de São Paulo é de ajuda comprovada; são-no também os alhos esmagados ingeridos o remédio como bebida, a pedra bezoar e outras ervas (medicinais). Mas, mais caseiro é o fogo, queiman- do-se com uma faca em brasa a parte ferida pulverizada com enxofre. É conhecido este remédio e, acudindo-se a tempo, gente picada por tais cobras está fora de perigo. Os fígados da víbora, sendo ingeridos com alimento, usam-nos como remédio. 37

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puladas pelos missionários com a intenção de converter os indígenas, ace- nando-lhes com a promessa da vida eterna. Isto pode ser comprovado em registros nos quais a ênfase dada nos relatos é a cura por intercessão divina ou pelo uso de relíquias sagradas, como nesta Carta de 1626:

Un niño estaba muy enfermo vino su Pe. a rogarme que le aplicase una reliquia de Nro. Pe. S. Ignacio, que es mucho que en tan breve tiempo le conozcan, confiando de alcanzar salud para el hijo por medio de su intercessión; hiçose asi i cobrola el niño. 44

A resistência anteriormente referida pode ser observada, inclusive, no tratamento das enfermidades dos missionários, como fica claro na Infor- mação sobre a Redução de Nra. Sra. De la Natividad del Acarayg:

Yo avia mas de mes i medio que lo estaba de tiriçia [...] e el Pe. Claudio com su gran caridad hiço una chozuela com unos cueros [...] i alli cobre alguna mejoria, mas con las oraziones / las oraziones del Pe. que con otro remedio, que no le avia, ni regalo ninguno [...]. 45

Além de negar a existência de remédios, uma vez que os expedientes utilizados não se enquadravam nos padrões europeus, o registro atesta a crença na intercessão divina e na eficácia das orações, coerente com a percep- ção de cura dos missionários e de eficácia da “magia eclesiástica”. Deve-se considerar também que não só eles consideravam natural invocar a ajuda de Deus, como também recebiam com naturalidade a misericórdia divina. Em sua obra “Os Reis Taumaturgos”, Marc Bloch (1924) lembrava que os ritos de cura não podem ser pensados e considerados fora das supers- tições que formam o “maravilhoso” de uma época e das “tendências gerais da consciência coletiva”. Entendemos que as curas realizadas pelos missionários jesuítas nas re- duções da Província do Paraguai devem ser analisadas a partir desta pers- pectiva, podendo-se acrescentar algumas indagações – os missionários real- mente curavam? Se não curavam, como mantiveram a crença em seus poderes? Há que considerar que os missionários referiram essencialmente os casos de doentes que se disseram (e se mostraram) curados após a interces- são dos santos, da água benta, do batismo ou das relíquias sagradas. Não há qualquer referência aos insucessos nas tentativas de curas, ou então, menção

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a recidivas de doenças, o que atestaria que a terapêutica empregada não havia sido eficaz, levando o indígena a repeti-la, ou então, a desacreditá-la. Quando as doenças cediam ou pareciam ceder, dando a ‘ilusão da cura”, se estabelecia uma relação entre fé e milagre, entre pecado e perdão, entre con- versão e cura. Em relação a muitos desses registros – de cura de indígenas dados como mortos –, deve-se considerar a tendência natural do corpo humano de se livrar de algumas doenças sem auxílio externo. Muitos dos achaques cura- dos milagrosamente pertenciam àquela espécie que só o tempo podia curar, tais como as febres e as feridas abertas. 46 Deve-se, ainda, considerar que as potencialidades dos medicamentos disponíveis eram muito restritas e que muitas das doenças e das curas estavam associadas à fantasia e à imaginação.^47 Em carta do Pe. Marcial de Lorenzana ao Provincial Pe. Diego de Torres, de 19 de julho de 1610, estes aspectos podem ser observados, per- mitindo, inclusive, uma aproximação com os reis taumaturgos de Marc Bloch:

Esta reducción, a ‘toto genere’ va cada dia mejor, y los indios y indias se pasan de muy buena gana al asiento nuebo. Despues de mi buelta se han animado mucho, y dicen q. han conocido ya el grande amor que les tengo, va acudiendo mas gente, muestran deseo de baptismo, no se nos muere nadie en las enfermedades, los que se han baptiçado in “articulo mortis’ han sanado, tienen gran devoción con los evangelios y dicen que quando el Pe. les pone las manos en la cabeça les pone una cura con que ellos sienten q. los sanan; los q. tenian dos mugeres las van dejando y hacen otras cosas en que dan muestras de temer a Dios. 48

Curiosa é também a crença numa “certa predestinação” dos jesuítas como médicos do corpo e da alma, e que os livraria do contágio em situa- ções de epidemia. Isso fica evidenciado na ânua referente aos anos de 1653 a 1637:

Mientras tanto se declaró una epidemia que hizo gran estrago. [...] El contágio se hizo tan general en la ciudad que postró también a todos los sacerdotes, menos a los de la Compañía, para que pudiesen asistir a los moribundos. No hicieron solamente esto, sino repartieron medicinas para los enfermos, y limosnas a los pobres. 49

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reavaliação e a reorganização do saber em relação à profilaxia e à terapêutica, isto é, em relação à saúde e à cura (“é salobre por sua natureza, muito gosto- sa, e favorece a origem de bom sangue”), a “medicina especial para a peste e fome” foi absorvida pelo discurso providencialista. 52 Os missionários se dedicam, principalmente, a enfatizar os prejuízos que a fome e as epidemias causavam ao projeto reducional, como fica ex- presso nesta passagem:

Perecia de ambre el pueblo [...] Los mas dellos com esta ocasion desampararon el pueblo, i recurieron por comida a los sembrados de sus tierras antiguas, donde no avia llegado esta plaga, i se vieron los padres en mucho trabajo para hacerlos volver a la redución porque alegaban se cansaban en sembrar pues los ratones lo destruian todo. 53

O comprometimento da conversão dos indígenas fica igualmente vi- sível na interpretação supersticiosa dada à praga de ratos, pois, na perspecti- va dos missionários, “al tiempo de sembrar, aparecieron enjambres de ratones, nacidos por la sequía, y comenzaron a devastar los campos, por lo cual que algunos víctimas de su superstición lo atribuyeron a brujería”^54. Se, por um lado, o retorno aos “sembrados de sus tierras antiguas” prejudicava o trabalho dos missionários, de outro, favorecia os magos que atribuíam aos missionários a responsabilidade pela fome e pelas epidemias, e prometiam restaurar a felicidade perdida. 55

Mucho trabajo les causó cierto célebre hechicero llamado Yaguacaporo, el cual propaló que era una divinidad, y que se le debia venerar como a dios, asseverando que él había hecho el cielo y la tierra, y que el podía producir buon tiempo y mal tiempo, y que era dueño de vida y muerte.^56

Em relação a esta disputa pelo controle da saúde e da doença, é preciso, ainda, reconhecer que “un solo médico no podía dar atención eficiente a cien mil indios, ni siquiera a la mitad” e isso pode significar “que las recetas y soluciones indígenas debían ser de uso general” 57 , o que permitia a sobre- vivência das práticas curativas xamanísticas, bem como a receptividade às prédicas dos magos. 58 Como estratégia empregada para contornar os pro- blemas decorrentes da impossibilidade de o médico atender a todos em uma situação de epidemia, os missionários:

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Formaron con esta ocasión […] entre los indios, cuadrillas de dos enfermeros, gente ya de madura edad, sanos, robustos y piadosos, para el servicio de los enfermos, y para investigar si los había en las casas, campos y selvas. Al mismo tiempo estos enfermeros eran los mejores propagadores de las prácticas religiosas. Llevaron a los enfermos a los Padres, para que rezaran el Evangelio sobre ellos, y procuraron que nadie muriese sin sacramentos. 59

A contestação (e perseguição) aos magos guaranis (“hombres-dioses”) que “profieren amenazas apocalípticas” 60 se deveu, não tanto às ervas, po- ções e bálsamos por eles empregados nas curas (terapêutica curativa), mas à atribuição da realização de milagres aos magos/messias, à “tradicional veneración de los restos óseos de los grandes chamanes” 61 , associada e agra- vada ainda pela pretensão de conduzir os índios ao Paraíso, salvando-os das enfermidades. Foram, sem dúvida, a mística envolvida nas curas e os rituais mágicos que garantiam sua eficácia que causaram a oposição dos missioná- rios. Daí ser possível perceber o confronto entre xamãs e missionários, como uma disputa de saberes e poderes, pelo controle das doenças e pela manipu- lação das curas e não-curas.^62 Esta passagem da Carta Ânua, relativa à Redução de Nra. Sra. de la Natividad del Acarayg refere-se à prática do ritual xamanístico de cura, bem como ao reconhecimento da eficácia de aplicação 63 :

Quando yo pase por esta reducion [para el Guayrá] me informaron los Pes. que eran muchos los hechiceros della en particular de una canalha que entre ellos llaman chupadores, porque com embustes i engaños que usan hacer creer a los ignorantes, que chupando a los enfermos la parte doliente, sale a fuera el humor maligno, llevando ellos para esto preveni- do en la boca alguna cosa que lo parezca. 64 Interessante observar que decorridos já dez anos desta referência feita aos chupadores, o redator da Ânua de 1637 – 39, o Pe. Francisco Lupercio de Zurbano, destacou a continuidade da prática^65 :

Su inclinación a la superstición, a la flojera, y a sus costumbres antiguas, les hacía casi ineptos para la religión. [...] había una especie de superstición muy arraigada entre ellos, que consistía en llamar, en caso de enfermedad, a los hechiceros para que los sanaran. Estos médicos

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en todo lo que el H. Blas ponia su mano, atribuindolo a su virtud y religion [...]. 72

As Ânuas referentes às primeiras duas décadas do século XVII infor- mam também sobre o uso de dois medicamentos, identificados como a “tierra de San Pablo” e o “licor de S. Nicolas”, empregados pelos missioná- rios para curar “algunas mordeduras de víboras”, com o que deixavam os indígenas “ganados i acreditado el Sto. Evangelio” 73. Diante destas observações, compreende-se a importância das curas “milagrosas”, sobretudo dos indígenas que haviam sido atacados por cobras, bem como os desdobramentos das mesmas, evidenciados na disposição à conversão, como registrado na Conquista Espiritual do Pe. Montoya.

Una cobra venenosa tinha picado ‘de morte’ um índio no pé. Caiu este como morto, destilando de ambos os pés e dos olhos, ouvidos, narizes (narinas), boca e demais partes do corpo muito sangue. [...] Nestas con- dições confessou-se e, como em último transe, recebeu com extrema devoção os óleos dos enfermos. Com a mesma piedade e não pequena instância pediu, em seguida, que o levassem à igreja, visto que queria despedir-se desta vida assistindo ao santo sacrifício da missa. Vendo ser tanta a sua devoção, o padre acabou cedendo, e num lugar próximo e decente celebrou a missa, que o doente ouviu, ficando são na hora. 74

Apesar dos sucessos obtidos através da “magia eclesiástica” e das “expe- riências medicinais”, os missionários tinham consciência de “sus limitaciones y por eso se preocuparon cuanto antes, traer de Europa hombres especializa- dos en la ciencia médica” 75. Esta preocupação teria se materializado na soli- citação de envio de médicos, enfermeiros e boticários às missões, encami- nhada ao Padre Geral da Companhia de Jesus, em 1632. Referindo-se, em especial, à atuação da Companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite informa sobre enfermeiros e boticários nas aldeias e colégios jesuítas:

[...] havia lei da Companhia que todas as aldeias de índios dispusessem de enfermaria. Quando não era casa à parte, junto da residência havia algum Padre ou Irmãos com medicamentos para os índios enfermos. E tanto nos Colégios como nas Aldeias, os Irmãos enfermeiros deviam prestar os primeiros curativos de urgência em caso de ferimentos, e o faziam segundo a sua aptidão pessoal, enquanto não se recorria ao médico ou

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cirurgião nas terras em que os havia. [...] No Brasil, além das duas mo- dalidades de enfermeiros e cirurgiões da Companhia, havia as Boticas. [...] no Brasil elas nasceram sobretudo duma necessidade local. A prin- cípio os medicamentos vinham do Reino já preparados. Mas as piratari- as do séc. XVI e as dificuldades da navegação impediam com freqüência a vinda dos navios de Portugal, e era preciso reservar grandes provi- sões[...]. 76

Isto explica por que, apesar das dificuldades em compreender as práti- cas da terapêutica indígena e das restrições na aplicação de sua farmacopéia (definidas por princípios religiosos), os herbários e boticários das Missões Jesuíticas são admirados por cronistas e historiadores como Azara, Lozano e Guevara. Ainda segundo Serafim Leite, isto se deveu à imperiosa necessidade de contornar a inconstância das remessas de medicamentos da Europa, o que por um lado “obrigou [...] os Jesuítas a terem abundante provisão de medi- camentos; e também logo a procurarem os que a terra podia dar, como as suas plantas medicinais, que começaram a estudar e a utilizar em receitas próprias [...] Destes remédios e tisanas, iniciadas no século XVI, se foi pou- co e pouco ampliando a preparação de outros, com ingredientes europeus e da terra, até se estabelecer a farmacopéia brasileira [...]”^77. Em relação aos boticários existentes nos Colégios e nas Reduções é ilustrativo o registro feito na Ânua de 1637 – 39:

Así trabajan los mestros incansablemente en provecho de las almas, siendo al mismo tiempo muy frecuentada la portería por los pobres y hambrientos que hallan allí alivio en sus sufrimientos materiales. Se les reparte, sean pocos o sean muchos, alimentos en abundancia; no pocas veces también abrigos para cubrirse. Esto para los sanos. Para los enfer- mos empero, hay una botica especial en casa, de donde se reparte gratis toda clase de medicinas. Asó logra la Compañía aucir a todas las necesidades humanas, las del alma y las del cuerpo, todo por amor a Dios y por caridad para con el prójimo. [...] Estas cosas suceden en casa. Fuera de ella no se hace menos. Continuamente son llamados los nuestros al campo y a las estancias [...] para sistir a los enfermos, tanto espiritual como corporalmente. Pues, fuera del alimento de las almas les suministran medicinas y alimentos convenientes. 78

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medio de hallar específicos, y no el que usan en Europa valiéndose siempre de lo que hay en la botica [...]” 84. Pelo exposto, conclui-se que, não somente os Guarani reformularam suas atitudes diante da doença e da morte, mas também os missionários jesuítas vivenciaram, em especial em relação às práticas terapêuticas, uma oportuna e conveniente flexibilização que lhes permitiu controlar as doen- ças, manipular as curas e as não-curas e promover manifestações de piedade e de devoção coerentes com o projeto de civilização-conversão da Com- panhia de Jesus.

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