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Gilberto Frayre, conteúdo de antropologia
Tipologia: Notas de estudo
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SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12 (1): 69-100, maio de 2000. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 12 (1): 69-100, maio de 2000.
A R T I G O
RESUMO: O texto procura enfatizar o conteúdo macrossociológico da obra dos anos trinta de Gilberto Freyre. Ao invés dos temas classicamente vincula- dos à obra de Gilberto Freyre, como a mestiçagem e a história da vida privada, o ponto principal da argumentação é reconstruir o embate entre valores oci- dentais da Europa já burguesa, que tomam o país de assalto a partir de 1808, e os valores tradicionais que Freyre chama de “orientais” para se referir ao conjunto de valores africanos, portugueses e rurais da vida colonial brasileira. Gilberto Freyre desenvolve em Sobrados e mucambos uma historiografia da institucionalização desses novos valores ocidentalizantes que se contrapõe, com vantagens, à versão dominante do Brasil como ainda dominado por valo- res pessoais e semi-tradicionais.
ilberto Freyre é, talvez, o mais complexo, difícil e contraditório entre nossos grandes pensadores. Sua obra tem permanecido um desafio constante aos comentadores, como iremos ver a seguir, e a vitalidade de seu pensamento se mostra no crescente interesse por sua obra. Ele é, talvez, o mais “moderno” entre os clássicos do pensamento social brasileiro e suas questões “ganham” ao invés de perderem em atualidade. A enorme dificuldade envolvida numa adequada compreensão de sua obra resulta de vários fatores combinados. Uma razão importante parece-me a extraordinária disparidade de sua obra. Enquanto, normalmente, na maioria dos grandes autores, a obra de maturidade representa uma condensação intelectual que propicia maior grau de coerência e elaboração dos temas que marcaram a
JESSÉ SOUZA
Professor do Departa- mento de Sociologia do ICS - UnB
UNITERMOS: cultura brasileira, cultura ocidental, iberismo, macrossociologia, Gilberto Freyre.
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trajetória intelectual desses autores, Gilberto parece ser uma exceção a essa re- gra. Seus melhores livros são escritos ainda na década de trinta, quando o autor ainda era muito jovem, e dentre eles, além de Casa-grande e senzala , especial- mente Sobrados e mucambos , a sua obra prima no nosso ponto de vista. Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto, propositivo, hi- potético, o que levou a alguns comentadores a interpretá-lo pelo paradigma da ambigüidade e da contradição constitutivas. Foi precisamente esse aspecto aberto, inquisitivo, de sua obra de juventude, que foi substituído na maturida- de por um espírito de sistema fechado, uma compilação de certezas e de su- gestões de intervenção prática e política. No prefácio de 1969 para a edição brasileira de Novo mundo nos trópicos , livro originalmente publicado em inglês em 1963, percebe-se essa torção peculiar da atitude de Freyre em relação aos estudos realizados na dé- cada de 30. Aqui, Freyre pretende “responder” aos seus primeiros críticos que reclamavam que ele “não concluía”, não possuía uma tese central clara, nem muito menos tinha uma proposição concreta e clara “sobre o que fazer”. Essa é certamente uma crítica e uma demanda ao pesquisador bem brasileira. A pequena distância objetiva e subjetiva entre o domínio da refle- xão, a ciência, e a esfera da ação prática, a política, torna entre nós quase impossível uma clara divisão de trabalho entre essas duas esferas comple- mentares. Pede-se, constantemente, o apagamento das fronteiras, confundin- do-se as condições de validade de cada domínio, exigindo-se de uma esfera o que só é razoável demandar-se de outra. Gilberto Freyre, seja por oportunismo político, seja por vaidade pessoal, cede ao apelo. Aqui, talvez, tenham-se encontrado expectativas obje- tivas e inclinações pessoais. O certo é que a obra madura de Freyre é uma espécie de caricatura de sua obra de juventude. O que nesta abre-se à indaga- ção do leitor, um constante descortinar de aspectos e variantes que se ofere- cem à curiosidade e ao escrutínio deste, naquela tende sempre ao enrijecimento, um fechamento de horizontes e perspectivas. Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura. Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude acerca da especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma ideologia nacionalista e luso-imperialista de duvidoso potencial democrático. O que antes adquiria a forma do questionar-se acerca das peculiaridades e transformações de uma cultura européia nos trópicos, transforma-se em “tropicologia”, um conjunto de asserções de cientificidade duvidosa, carregadas de impres- sionismo, mas facilmente utilizáveis como uma ideologia unitária do “tropi- cal e mestiço”. Uma ideologia do “apagamento das diferenças”. A “tropicologia” transforma-se, inclusive, em ciência específica, a qual, “já referendada pelos sábios da Sorbonne” (Freyre, 1969, p. 20), se dedicaria ao estudo do homem nas condições tropicais. O fato do elemento mesológico aqui ser o dado essencial não é de forma alguma acidental. Ao contrário, ele representa o fundamento mesmo daquilo que já foi chamado “concepção neolamarckiana” (Araújo, 1993, p. 39) de ciência em Gilberto
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contro intercultural nos trópicos. Esse texto parece-me concentrar os temas que associamos comumente com o debate ligado a Gilberto Freyre, como a miscigenação e a comparação, às vezes explícita, o mais das vezes implícita mas sempre presente, com o desenvolvimento norte-americano. Em Sobrados e mucambos , no entanto, a questão central parece-me um ponto, até onde pude perceber, secundarizado pela crítica pelo menos com relação ao desenvolvimento de todas as suas conseqüências: a “ambigüidade” cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de “ocidentalização” a partir da influência da Europa “burguesa”, e não mais por- tuguesa, que toma de assalto o país no séc. XIX. Esse processo tem sido perce- bido, geralmente, como “mudança de hábitos” de vestir, de leitura, de consumo em geral. O brasileiro se transveste de “civilizado”, conferindo sentido àquela frase ainda hoje utilizada por todo brasileiro, civilizando-se “para inglês ver”^1. Existe, na realidade, toda uma sociologia do “para inglês ver”, que se nutre na idéia de que o processo de absorção da modernidade européia no Brasil é um verniz, uma aparência, ou no melhor dos casos uma primeira epiderme. Acredito que uma leitura alternativa de Sobrados e mucambos pode nos trazer uma outra concepção desse processo.
Casa-grande e senzala e a peculiaridade do patriarcalismo tropical
Seria ingenuidade começar a tratar de um dos livros mais discuti- dos da historiografia brasileira sem, antes de tudo, “comentar” os comentadores e partir do patamar da discussão mais sofisticada. No caso de Gilberto Freyre, o trabalho de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre sua obra na década de trin- ta (cf. Araújo, 1993) transformou-se rapidamente em referência obrigatória para os estudiosos do autor. E isto por boas razões. A abordagem de Araújo é original e cuidadosa, ajudando a situar o debate acerca das contribuições de Gilberto Freyre para uma moderna sociologia brasileira em novos termos. É a partir de uma respeitosa polêmica com a interpretação proposta por Luiz Costa Lima no seu O aguarrás do tempo (Lima, 1989), que Araújo constrói seu argumento. A tese de Lima é clara: Freyre não teria, apesar de ter dito o contrá- rio no prefácio de Casa-grande e senzala , desvinculado raça e cultura e dado proeminência a esse último. Essa operação o teria diferenciado das teorias racistas anteriores, como a de Oliveira Vianna, por exemplo. Para Lima, Freyre não só não se liberta do paradigma anterior, como introduz a variável cultural como elemento ancilar em relação ao componente racial, servindo aquela apenas para conferir maior visibilidade a este último (cf. Lima, 1989, p. 205). Para Lima, a ambigüidade constitutiva da metodologia freyriana se transmite também para seu conteúdo. No tema central da miscigenação por exemplo, pergunta-se o autor, que confraternização seria essa cuja “igualda- de” se restringiria ao encontro com vistas ao coito? (cf. Lima, 1989, p. 214). Nesse aspecto fundamental da argumentação Freyriana, a base mesma de sua tese da proximidade e comunicação entre as distintas tradições culturais que formavam o Brasil colônia, portanto, Lima veria, antes de tudo, um recalque
(^1) A expressão “para in- glês ver”, no Brasil, refere-se a qualquer situação onde o intui- to é induzir alguém em erro acerca de uma verdade que não se quer mostrar. Pre- cisamente como, no séc. XIX, pretendia- se mostrar “aos ingle- ses” que o comércio escravocrata havia cessado, quando ela continuava na práti- ca, ou que, em geral, ter-se-ia atingido no Brasil um grau de “ci- vilização” maior do que era realidade.
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do conflito e a criação de uma “imagem idílica” (cf. Lima, 1989, p. 217) da herança que o colonizador nos legou. A interpretação de Araújo se dirige precisamente a esses dois pon- tos fundamentais. De início, Araújo parece concordar com as críticas de Lima. Efetivamente, a “imprecisão” conceitual é vista como um dado constitutivo da argumentação Freyriana. No entanto, no desenvolvimento do raciocínio, Araújo desenvolve uma interessante hipótese explicativa para a presença es- púria do componente “raça” em Gilberto Freyre. Freyre teria assimilado uma noção “neolamarckiana” de raça, que exigiria a mediação do meio físico, en- quanto elemento adaptador capaz de incorporar, transmitir e herdar caracte- rísticas culturais. Assim, “raça” seria antes um “produto”, um “efeito”, do que causa da combinação entre meio e cultura. Raça seria uma transformação cultural modificada e adaptada ao meio (cf. Araújo, 1993, p. 39). Assim, apesar de admitir a “imprecisão” localizada por Lima, Araújo ressalta antes o papel dominante do elemento cultural, sendo o componente racial subordinado no processo de determinação causal. Essa concepção, dado o “compromisso biológico” que implica, efetivamente se desviaria do puro legado de Franz Boas (a quem Freyre diz seguir nesse particular), mas não implicaria, por outro lado, qualquer adesão às formas de hierarquia racial típi- cas do “racismo científico” antes dominante nos nossos meios intelectuais. Teríamos a ver, aqui, quando muito, com um “resto”, um último elo entre teoria social e biológica (cf. Araújo, 1993, p. 40). Com relação ao segundo argumento levantado por Lima, o da “ima- gem idílica”, Araújo é ainda mais cauteloso. Ele aceita parcialmente a crítica e a denomina de uma “meia-verdade” (cf. Araújo, 1993, p. 48). O autor percebe que, para construir seu argumento, é necessário qualificar a especificidade da escravidão brasileira. Esta é violenta como qualquer escravidão, mas ao contrá- rio da escravidão na Grécia antiga, por exemplo, ela admite proximidade e in- fluência recíproca entre as culturas dominante e dominadas. Assim teríamos paralelamente à imensa violência e perversão ine- rente a toda sociedade escravocrata um componente de “proximidade”, expli- cando o caráter sincrético de nossa cultura por oposição à “pureza” da cultura grega antiga que pouco foi tocada pelas culturas dominadas. Esse componen- te de “proximidade” entre senhor e escravo vê o autor como influência cristã, o qual se contraporia polarmente com o elemento “despótico oriental” herda- do dos mouros, como dois aspectos da “bicontinentalidade” portuguesa. A consideração da escravidão grega antiga ao invés da americana sulista se deve ao fato de Araújo não ter encontrado nenhuma alusão a disparidades entre as duas formas de escravidão em Casa-grande e senzala (cf. Araújo, 1993, p. 98). Esse ponto é fundamental, e está vinculado também à forma peculiar, e a meu ver invertida, de como Araújo percebe a influência moura. Voltaremos a discutir esses aspectos com mais vagar adiante. Para Araújo, a ambigüidade entre os elementos oriental-despótico e cristão-aproximativo não é solucionável, ela seria constitutiva do argumen- to freyriano. Seria precisamente um exemplo conspícuo dessas “contradições
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inclusive de Sobrados e mucambos. Nesse sentido, apesar de Araújo perceber com perspicácia a redução da proximidade social a partir do processo civilizador europeizante, ele a vincula a uma transformação da “ hybris ” ante- rior, enfatizando antes a continuidade sob outras formas do que a descontinuidade representada pela entrada de elementos radicalmente novos em Sobrados e mucambos. Esse ponto é essencial como iremos ver mais adiante. A ênfase na continuidade entre esses dois livros termina por não permitir a localização de uma outra “novidade radical” na sociologia Freyriana que não tem a ver com o tema da mestiçagem e, portanto, com a temática que o conceito de “ hybris ” pretende aludir.
A semente da formação social brasileira
Como Freyre afirma nas primeiras páginas de Casa-grande e senza- la , em 1532, data da organização “econômica e civil” do Brasil, os portugueses, que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiões tropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadora comercial e extrativa no sentido mais permanente e estável da atividade agrícola. As bases dessa em- preitada seriam: no aspecto econômico, a agricultura da monocultura baseada no trabalho escravo, e no aspecto social, a família patriarcal fundada na união do português e da mulher índia. Na política e na cultura essa sociedade estaria fundamentada no particularismo da família patriarcal para Gilberto Freyre. O chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até El Rei a compromissos, dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios (cf. Freyre, 1957, p. 17-18). O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de apontar para a extraordinária influência da família como alfa e ômega da organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual e litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento de dependência política e econô- mica em relação ao senhor de terras e escravos, o patriarcalismo familiar pode desenvolver-se sem limites ou resistências materiais ou simbólicas. A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos “intermediários” constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os escravos da lavoura. É precisamente nesse ambiente saturado de paixões violentas que surge o tema da “ambigüidade” e da “imprecisão”. A questão é real e signifi- cativa referindo-se à forma peculiar em que uma sociedade singular vinculava umbilicalmente despotismo e proximidade, enorme distância social e íntima comunicação. Acompanhemos, antes de tudo, a forma como Gilberto Freyre monta o seu quebra-cabeças multicultural. Esqueçamos por um instante o ín- dio, cuja influência foi importante mas datada, tendo sido decisivo no período imediatamente inicial de colonização e desbravamento dos sertões (cf. Freyre,
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1957, p. 160-161), e nos concentremos nos dois elementos principais e mais permanentes do patriarcalismo brasileiro: o português e o negro. Toda a análise de Casa-grande e senzala é dependente e decorren- te da opinião singular de Freyre acerca do português. É o português o elemen- to principal, sob vários aspectos, do processo sincrético de colonização brasi- leiro. Antes de tudo, ele é o elemento dominante nos aspectos da cultura mate- rial e simbólica. É ele o motor e idealizador de todo o processo e é dele a supremacia militar. Se esse elemento a tal ponto dominante não carregasse em si próprio os germes da cultura que aqui iria se desenvolver, toda a argumen- tação de Freyre perderia em plausibilidade. Mas o português é precisamente a figura do contemporizador por excelência e é, exatamente nesse traço da predisposição ao compromisso, que ele se diferencia do colonizador espanhol e, especialmente, do anglo-saxão nas Américas. É o português o portador da característica mais importante da vida colonial brasileira: o elemento da “plasticidade”, do homem “sem ideais absolutos nem preconceitos inflexíveis” (cf. Freyre, 1957, p. 191). É essa plasticidade que irá propiciar a extraordinária influência da cultura negra nos costumes, língua, religião e, especialmente, numa forma de sociabilidade en- tre desiguais que mistura “cordialidade”, sedução, afeto, inveja, ódio reprimi- do e praticamente todas as nuances da emoção humana. É exatamente no ponto de encontro do português e do negro que Freyre cria o drama social do Brasil colônia. O ponto problemático é a afirma- ção simultânea de desigualdade despótica, que a relação escravo/senhor pro- picia, com intimidade e até, em alguns casos, afetividade e comunicação entre as raças e culturas. Nesse ponto, urge a discussão do que afinal constituiria a especificidade da escravidão brasileira. De onde ela vem, como e porque ela se distinguiria de outras sociedades escravocratas. Acredito que a comparação privilegiada por Gilberto Freyre nesse aspecto seja por referência ao sul escravocrata norte-americano. Embora Benzaquen de Araújo aponte corretamente no seu estudo que todas as cita- ções no texto de Casa-grande e senzala tendem a apontar “a mais absoluta similaridade, nunca apontando para nenhuma diferenciação” (Araújo, 1993, p. 98) entre os dois sistemas, acredito que ainda se possa fazer algumas qua- lificações interessantes acerca desse tema. Sem dúvida, esse ponto é insisten- temente repetido em Casa-grande e senzala : fundamental é o sistema econô- mico de produção escravocrata e monocultor e a organização patriarcal da família (cf. Freyre, 1957, p. 360, 410 e 422). Esses são pontos que aproxi- mam todas as formas de sociedades escravocratas nas Américas, seja nos EUA, Brasil ou Cuba. No entanto, se os pontos essenciais são os mesmos, isso não significa que as diferenças “acessórias” não sejam importantes ou até decisi- vas no estudo comparado de sociedades de um mesmo tipo. Acredito, portanto, que devamos examinar essa “essência” seme- lhante das grandes sociedades escravocratas das Américas cum grano salis. Afinal, isso equivaleria a dizer, em termos de hoje, que as sociedades industri- ais avançadas dos EUA e da Alemanha Federal são “essencialmente” seme-
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glesa, e mesmo do que nas Américas francesa e es- panhola, já me parece documentado de forma idô- nea” (Freyre, 1969, p. 179). Essa característica nova, maometana, seria precisamente, portanto, o fator responsável pelo caráter mais “benigno” (voltaremos a esse ponto adi- ante) da escravidão brasileira nas Américas e especialmente em relação à do Sul dos EUA. Que fator teria sido esse? “E por que foi assim? Não pelo fato de os portugue- ses serem um povo mais cristão do que os ingleses, os holandeses, os franceses ou os espanhóis, a ex- pressão “mais cristãos” significando aqui, eticamen- te superiores na moral e no comportamento. A ver- dade seria outra: a forma menos cruel de escravi- dão desenvolvida pelos portugueses no Brasil pare- ce ter sido o resultado de seu contato com os escravocratas maometanos, conhecidos pela manei- ra familial como tratavam seus escravos, pelo moti- vo muito mais concretamente sociológico do que abs- tratamente étnico de sua concepção doméstica da escravidão ter sido diversa da industrial. Pré-indus- trial e até antiindustrial. Sabemos que os portugueses, apesar de intensamen- te cristãos – mais do isso até, campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã – imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em certas técni- cas e em certos costumes, assimilando deles inúme- ros valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à orga- nização da família, inclusive às atividades domésti- cas, sem ser decisivamente dominada por um propó- sito econômico-industrial, foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à co- lonização predominantemente, mas não exclusiva- mente cristã, do Brasil” (Freyre, 1969, p. 180). Portanto não foi o elemento cristão, como supôs Araújo (1993, p. 55), mas o mouro que explicaria para Gilberto Freyre o elemento de “proxi- midade”, a especificidade da escravidão brasileira como expressão social e cultural singular. Esse ponto é fundamental porque, apenas a partir dele, po- demos reconstruir o que Freyre sempre procurou: o elemento distintivo capaz de explicar, precisamente, a “diferença específica” da sociedade escravocrata brasileira em meio às experiências “essencialmente similares” das outras so- ciedades escravocratas do continente. Resta ainda perguntar: o que significa exatamente a influência des- se elemento familiar? O esclarecimento desse aspecto é absolutamente cen- tral, posto que ele pode ajudar a compreender não só a instituição da escravi-
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dão brasileira enquanto tal para Gilberto Freyre, mas a peculiaridade da “for- mação social brasileira” como um todo. Sendo uma “instituição total” no Bra- sil, a forma peculiar da escravidão traria consigo a “semente” da forma social que se desenvolveria mais tarde. Qual seria essa “semente”? Ao se referir a uma conversa sobre o assunto com seu mestre Boas, Freyre nos dá pista inte- ressante para a questão: “Quando, em 1938, falei ao meu velho professor da Universidade Columbia, o grande Franz Boas, sobre as idéias que tinha a esse respeito, ele me disse que as mesmas poderiam servir de base a nova compreensão e mesmo interpretação da situação brasileira; e que eu devia continuar minhas pesquisas relativas à co- nexão existente entre a cultura portuguesa e a moura
- ou maometana – particularmente entre seus siste- mas de escravidão. Argumentou ainda que os maometanos, árabes e mouros, durante muitos séculos haviam sido superiores aos europeus e cristãos em seus métodos de assimilação de culturas africanas à sua civi- lização ” (Freyre, 1969, p. 180)^2. O contexto da reportagem dessa conversa com o antigo mestre re- mete à alegria de Freyre de ver suas intuições corroboradas por figuras para ele respeitáveis e acima de qualquer suspeita. A parte da citação em destaque mostra uma concordância de Boas no aspecto que sempre foi, para Freyre, o aspecto mais conspícuo da formação brasileira: o sincretismo cultural, uma combinação entre Europa e África que logrou produzir uma sociedade singu- lar, não redutível a nenhum dos termos que haviam participado originalmente da sua formação. Importante para nossos propósitos, no entanto, é a circuns- tância de que é precisamente a herança cultural moura na forma da escravi- dão, que parece ter sido o elemento decisivo da singularidade da sociedade escravocrata colonial e, portanto, da semente futura da sociedade brasileira. Essa influência cultural, não obstante, parece não ter agido sozi- nha. Um outro fator, sociológico estrutural, teria agido combinadamente, qual seja, a necessidade de povoamento de tão grandes terras por um país pequeno e relativamente pouco populoso: “Daí a forma de escravidão que os portugueses ado- taram no Oriente e no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira árabe que à maneira européia; e haver incluído, a seu modo, a própria poligamia, a fim de aumentar-se, por esse meio maometano, a popula- ção...” (Freyre, 1969, p. 180). O tema da família aumentada é aqui a chave da especificidade que Freyre pretende construir. Para Freyre, essa instituição não estava ligada primeira- mente à necessidade funcional e instrumental de aumentar o número de escravos. É que a família polígama maometana tinha uma característica muito peculiar: “De acordo com os maometanos, bastava ao filho da^2 Grifo meu.
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ma de tudo, o alcance analítico dessa noção para a empreitada hermenêutica que Freyre se propõe. Estou convencido de que a análise desse conceito pode ser de alguma ajuda para a compreensão da ambigüidade ou imprecisão talvez mais importante no conceito de patriarcalismo de Gilberto Freyre: a consideração simultânea de distância e segregação com proximidade e intimidade. O final do primeiro capítulo de Casa-grande e senzala fornece uma interessante chave explicativa, social-psicológica, do patriarcalismo. Este capí- tulo é um esforço de síntese, que abrange o período de formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro que constitui o período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as conseqüências do fato de que a família é a unidade básica , dada a distância do estado português, e de suas instituições, da formação brasileira, e interpreta o drama social da época sob a égide de um conceito psico-analítico: o de sado-masoquismo^3. Na construção desse conceito, Freyre se concentra em condiciona- mentos estritamente macro-sociológicos, semelhantes àqueles que guiariam a reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do caso euro- peu na passagem da baixa à alta idade média. No contexto da teoria sociológi- ca desenvolvida por Norbert Elias a partir do seu estudo clássico sobre o pro- cesso civilizador do ocidente (cf. Elias, 1976), interessa a esse autor demons- trar a interdependência entre a forma peculiar de organização social e a forma correspondentemente específica de economia emocional e de relações intersubjetivas que se estabelecem em dada sociedade. Apenas na passagem da baixa à alta idade média, ou melhor, na pas- sagem da sociedade de cavaleiros guerreiros para a sociedade incipientemente cortesã, temos a ver com uma primeira forma de regulação externa significativa^4 da conduta, ainda que estejamos muito longe do tipo de regulação interna exigida por uma sociedade industrial democrática moderna. A forma social anterior, no entanto, a sociedade guerreira medieval, como descrita por Elias, é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como vista por Gilberto Freyre. Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorial condici- onado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato. Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe dominan- te é exercido pela via direta da violência armada (como era o caso nos dois tipos de sociedade), não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez. As emo- ções são vividas em sua reações extremas, são expressas diretamente, e a convi- vência de emoções contrárias em curto intervalo de tempo é um fato natural. Na dimensão social, as rivalidades entre vizinhos tomam por com- pleto também todos os seres que se identificam em linha vertical com os res- pectivos senhores. Elias relata, nesse sentido, a espessa rede de intrigas, inve- jas, ódios e afetos contraditórios que é congênito a esse tipo de organização social (cf. Elias, 1976, p. 278). O “excesso” de que nos fala Araújo é um atributo desse tipo de sociedade portanto e não só da brasileira colonial. No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social era ainda maior pela ausência das relações de vassalagem, as quais, ao menos em
(^3) Para Freud, tanto o sa- dismo quanto o maso- quismo são compo- nentes de toda relação sexual “normal” des- de que permaneçam como componentes subsidiários. É apenas quando o infligir ou receber a dor transfor- ma-se em componen- te principal, ou seja, passa a ser o objetivo mesmo da relação, que temos o papel determinante do com- ponente patológico. (^4) Para Elias, um “ponto zero”, um início abso- luto, nesse tema, não existe (cf. Elias, 1976, Vol. I, p. 75).
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tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e, portanto, a manutenção de um mínimo de disciplina necessário à empresa militar. Estamos lidando, no caso brasileiro, na verdade, com um conceito limite de sociedade, onde a au- sência de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa ser descrito a partir de categorias social-psicológicas cuja gênese apon- ta para as relações sociais ditas primárias_._ É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sado-masoquista, no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transforma-se em objetivo máximo das relações interpessoais, que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a di- reção dos impulsos agressivos e sexuais primários depende “em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais do que predisposição ou de perversão inata” (Freyre, 1957, p. 59). “A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e muleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas rela- ções o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa grande, principalmente em engenho; e a que insistente- mente temos aludido neste ensaio. Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escra- vidão” (Freyre, 1957, p. 361). Ou ainda, ao discorrer sobre a permanência dessa “semente” de sociabilidade nacional, mesmo depois de abolida a escravatura: “Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Braz Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do siste- ma escravocrata” (Freyre, 1957, p. 354). E ainda uma última citação, para não abusar da paciência do leitor, esta de Machado de Assis, usado aqui por Freyre de modo a esclarecer de que maneira os valores do sado-masoquismo social se transmitia (se transmite?) de pai para filho pelos mecanismos sutis da “educação”.
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fala Gilberto não significa de modo algum igualdade entre as culturas e raças. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior no caso, houve perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem portu- guês com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Gilberto (Freyre, 1957, p. 60, 326 e 332). Era sádica, final- mente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos (cf. Freyre, 1990, p. 68 e 71). O senhor de terras e escravos era um hiperindivíduo, não o super- homem futurista nietzscheano que obedece aos próprios valores que cria, mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites em relação aos seus impulsos primários. Se as condições socioeconômicas específicas ajudam a compreen- der o caráter despótico e segregador do patriarcalismo, o que dizer do elemen- to de “proximidade”? Em parte, o próprio conceito de sado-masoquismo im- plica “proximidade” e alguma forma de “intimidade”. Intimidade do corpo e distância do espírito, sem dúvida, mas de qualquer modo “proximidade”. E, efetivamente, grande parte da relação entre senhores brancos e escravos ne- gros, como vimos acima, se realizava sob essa forma de contato “íntimo”. No entanto, Freyre refere-se, simultaneamente, a uma proximidade “confrater- nizadora” entre portadores de culturas dominantes e dominadas. A extensão da família poligâmica, de origem moura, entra no raciocí- nio do autor, creio eu, precisamente para explicar esse outro tipo de “comunica- ção social” entre desiguais. É aqui que se forja a “pré-história” do mestiço, especialmente do mulato brasileiro, tema que será um dos fios condutores da narrativa Freyriana em Sobrados e mucambos. Para Freyre, o tema da ascensão social do mulato seria tema para ser guardado para ser discutido mais tarde: em outro livro (cf. Freyre, 1957, p. 396), que tratasse de outro período histórico de nossa formação, que viria a ser precisamente Sobrados e mucambos. Mas já em Casa-grande e senzala , encontramos a menção das enormes famílias polígamas formadas também por filhos naturais e ilegítimos, os quais, não sendo nem se- nhores nem escravos, seriam já uma proto-classe média naquela sociedade tão radicalmente dividida em pólos antagônicos. Como a participação no manto protetor paterno depende da discri- ção e arbítrio deste último, todas as modalidades de “protetorado pessoal” são possíveis. O leque de possibilidades vai desde o reconhecimento privile- giado de filhos ilegítimos ou naturais em desfavor dos filhos legítimos, como nos exemplifica Freyre em numerosos casos de divisão de herança, até a total negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os fi- lhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendo uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca. Interessante é o passo logicamente imediatamente posterior, ou seja, a transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em “familismo”. Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma de
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bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes entre si, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades. No tipo de sociedade analisado em Casa-grande e senzala , o patriarcalismo familial se apresenta em forma praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pela figura do patriarca. A especificidade do caso brasileiro sendo representada pela possibilidade (influência maometana para Freyre), sempre incerta mas real, de identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos ou naturais com escravas ou nativas. A ênfase norte-americana na pureza da origem, por exem- plo, retirava de plano essa possibilidade. No entanto, o peso do elemento “tradicional”, ou seja, o conjunto de regras e costumes que com o decorrer do tempo vão se consolidando em uma espécie de direito consuetudinário regulando as relações de dependência, como nos lembra Max Weber no seu estudo acerca do patriarcalismo, e que serve de limitação ao arbítrio do patriarca, parece ter sido, no caso brasileiro, reduzido ao mínimo. Daí a ênfase no elemento sado-masoquista em Gilberto Freyre. O mai- or isolamento e conseqüente aumento do componente autárquico de cada siste- ma “casa-grande e senzala” pode aqui ter sido o elemento principal. A ausência de limitações externas de qualquer tipo engendra relações sociais onde as incli- nações emotivas da pessoa do patriarca jogam o papel principal. Este ponto não me parece um aspecto isolado ou pitoresco da refle- xão gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica dos princípios estruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito de patriarcalismo e, portanto, a toda a empresa gilbertiana. Afinal é o sadismo transformado em mandonismo, como Freyre irá analisar em Sobrados e mucambos , que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profunda- mente brasileira de lidar com as noções de público e de privado. A conseqüência política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera públi- ca das relações políticas e sociais, se torna evidente na dialética de mando- nismo e autoritarismo de um lado, no lado das elites mais precisamente, e no populismo e messianismo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre dou- tores e analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e as massas ameríndia e africana e assim por diante. Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série de moti- vos “racionais” para aumentar na maior medida possível seu raio de influên- cia por meio da família poligâmica. Existe toda uma gama de funções de “con- fiança”, no controle do trabalho e caça de escravos fugidos, além de serviços “militares” em brigas por limites de terra, etc., que seriam melhor exercidas por membros da “família ampliada” do patriarca. E aqui já temos uma primei- ra versão da ambígua “confraternização” entre raças e culturas distintas, que a família ampliada patriarcal ensejava. Enquanto esse tipo de serviço de con- trole e guarda era exercido nos EUA exclusivamente por brancos, no Brasil havia predomínio de mestiços (cf. Degler, 1971). Nota-se, desde aí, a ambi-
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formação social de largas proporções implicando novos hábitos, novos pa- péis sociais, novas profissões, nova hierarquia social. Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as mu- danças econômicas, materializadas na introdução da máquina e na constitui- ção de um incipiente mercado capitalista, foram acompanhadas também de mudanças ideológicas e morais importantes. Com a maior urbanização, a hie- rarquia social passa a ser marcada pela oposição entre valores europeus bur- gueses e os valores anti-europeus do interior, marcando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje. O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela primeira, com va- lores universalizantes. Esses valores universais e idéias burguesas entram no Bra- sil do século XIX do mesmo modo como se haviam se propagado na Europa do século anterior: na esteira da troca de mercadorias^6. Esse ponto é absolutamente fundamental para uma adequada compreensão de todas as conseqüências do argu- mento de Gilberto Freyre nesse livro original e importante. A crítica geralmente releva o aspecto da mudança comportamental da influência europeizante (não ibé- rica e até antiibérica) no sentido de apontar para as novas modas de vestir, de falar, de comportamento público, etc. É como se os brasileiros tivessem passado a con- sumir pão e cerveja como os ingleses, consumir a alta costura de Paris e “civilizar- se” em termos de maneiras e comportamento observável. Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como possuindo alguma dose de afetação e superficialidade conferindo substância para a ex- pressão, ainda hoje muito corrente no Brasil para designar comportamentos exteriores, superficiais, para “causar impressão”, que é o dito popular “para inglês ver”. Essa leitura do processo de modernização brasileiro como um processo inautêntico, tendo algo de epidérmico e pouco profundo, é certamen- te uma das nossas “sociologias oficiais”. Ela está na base da teorização de um Roberto Schwartz, acerca da sociedade do “favor” e onde as “idéias estão fora de lugar”, argumento defendido no contexto da sua interpretação de Ma- chado de Assis. As idéias fora de lugar, no caso, são idéias liberais numa sociedade ainda escravocrata^7. Em Sobrados e mucambos Gilberto Freyre percebe a “reeuro- peização” do Brasil do séc. XIX, como um processo que tinha certamente elementos meramente imitativos do tipo para “inglês ver”, elementos esses aliás típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fundamental, no entanto, é que existiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado cultural. Mais importante ainda é a construção, nesse período, de instituições fundamentais, como um estado e mercado incipientes, base sobre a qual poder-se-ia desenvolver-se, em bases autônomas, os novos valo- res universalistas e individualistas. O embate valorativo entre os dois sistemas é a marca do Brasil mo- derno, cuja genealogia Freyre traça em Sobrados e mucambos com uma maestria exemplar. Nesse novo contexto urbano o patriarca deixa de ser referência abso- luta. Ele próprio tem que se curvar a um sistema de valores com regras próprias
(^6) Esse processo, no caso europeu, é analisado admiravelmente por Habermas (1975). (^7) A teoria das “idéias fora do lugar” guarda sua plausibilidade, certamente, apenas num registro sincrô- nico. A partir de uma ótica diacrônica, perce- bemos que essas idéias seriam melhor desig- nadas como “à procu- ra de um lugar”, o qual, aliás, logo encontraram sendo o individualis- mo, e por conseqüência o liberalismo, um com- ponente constitutivo da realidade brasileira desde então.
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e aplicável a todos inclusive a antiga elite social. O sistema social passa a ser regido por um código valorativo crescentemente impessoal e abstrato. A opres- são tende a ser exercida agora cada vez menos por senhores contra escravos, e cada vez mais por portadores de valores europeus – sejam esses efetivamente assimilados ou simplesmente imitados – contra pobres, africanos e índios. A época de transição do poder político, econômico e cultural do cam- po para a cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foi transposto tal qual era exerci- do no campo para a cidade. A metáfora da Casa e da Rua em Gilberto assim o atesta. O sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolonga- mento material da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essa espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência. O sado-masoquismo social muda de “habitação”. Seu conteúdo, no entanto, aqui- lo que o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não reconhecimento da alteridade , permanece. A passagem do sistema “casa-grande e senzala” para o sistema “so- brado e mocambo”, fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Gilberto. Esses fragmen- tos espalham-se agora por toda a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. Da Casa-grande e senzala , depois Sobrados e mucambos , e, talvez, hoje em dia, bairros burgueses e favelas, as acomoda- ções e complementaridades ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não representou mais do que o prolongamento da desbragada incúria dos interes- ses públicos em favor dos particulares. O abastecimento de víveres, por exem- plo, foi um problema especialmente delicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e os viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos (cf. Freyre, 1990, p. 171-177). Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez, então perigosos, criminosos, “capoeiras”, etc. Os sobrados senhoris, também ne- nhuma obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuras e anti-higiênicas, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos moleques, dos capoeiras, etc. No entanto, a urbanização também representou uma mudança lenta mas fundamental na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixa de ser familiar e abstrai-se da figura do patriarca passando a assumir formas impes- soais. Uma dessas formas impessoais é a estatal que passa, por meio da figura do imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente dos mais ricos e dos enriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas. O estado, ao mesmo tempo, mina o poder pessoal pelo alto, penetrando na própria casa do senhor e lhe roubando os filhos e tranformando-os em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por burocratas, juízes, fiscais,