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Shultz Kirsten A Era das revoluções, Resumos de História Moderna

Aborda que a vinda da família real foi uma estratégia política de preservar o absolutismo português perante a chamada Era das Revoluções.

Tipologia: Resumos

2025

Compartilhado em 12/05/2025

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Capítulo 3
A era das revoluções e a transferência
da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro (1790-1821)*
Kirsten Schultz
No contexto da era das revoluções, a independência brasileira representou uma
alternativa conservadora aos desafios republicanos lançados à monarquia que
caracterizaram os processos de independência dos Estados Unidos e da América his-
pânica, assim como a Revolução Francesa. Grande parte desse conservadorismo foi
atribuído à transferência da corte portuguesa em 1807/08. Argumentou-se que a
presença do príncipe herdeiro do trono português no Rio de Janeiro significava que
a fundação do império do Brasil em 1822 asseguraria a dominação da casa de Bragança
no Novo Mundo. Apresento neste capítulo uma interpretação alternativa a esse argu-
mento, ao descortinar como os próprios atores definiam a Era das Revoluções no
mundo luso-brasileiro; como reagiram especificamente à Revolução Francesa; e como
suas reações foram substancialmente alteradas em função da transferência da corte
para o Brasil.
Não obstante os esforços envidados nos anos 1790 para isolar as possessões do
soberano português das conseqüências da revolução, daquilo que o ministro d. Rodrigo
de Souza Coutinho caracterizou como a adoção de “excessos” e “absurdos” pela Re-
volução Francesa, a invasão de Portugal pelas tropas de Junot e a transferência da
corte deixaram claro que não havia mais como negar o impacto da revolução. De
fato, mais do que uma simples defesa contra a ameaça revolucionária, a transferência
* Tradução de Jurandir Malerba.
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Capítulo 3

A era das revoluções e a transferência

da corte portuguesa

para o Rio de Janeiro (1790-1821)*

Kirsten Schultz

N

o contexto da era das revoluções, a independência brasileira representou uma alternativa conservadora aos desafios republicanos lançados à monarquia que caracterizaram os processos de independência dos Estados Unidos e da América his- pânica, assim como a Revolução Francesa. Grande parte desse conservadorismo foi atribuído à transferência da corte portuguesa em 1807/08. Argumentou-se que a presença do príncipe herdeiro do trono português no Rio de Janeiro significava que a fundação do império do Brasil em 1822 asseguraria a dominação da casa de Bragança no Novo Mundo. Apresento neste capítulo uma interpretação alternativa a esse argu- mento, ao descortinar como os próprios atores definiam a Era das Revoluções no mundo luso-brasileiro; como reagiram especificamente à Revolução Francesa; e como suas reações foram substancialmente alteradas em função da transferência da corte para o Brasil. Não obstante os esforços envidados nos anos 1790 para isolar as possessões do soberano português das conseqüências da revolução, daquilo que o ministro d. Rodrigo de Souza Coutinho caracterizou como a adoção de “excessos” e “absurdos” pela Re- volução Francesa, a invasão de Portugal pelas tropas de Junot e a transferência da corte deixaram claro que não havia mais como negar o impacto da revolução. De fato, mais do que uma simples defesa contra a ameaça revolucionária, a transferência

  • Tradução de Jurandir Malerba.

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da corte pareceu constituir uma transformação revolucionária do próprio império português. Em resposta, contemporâneos começaram a considerar uma política im- perial e monárquica que não só negaria a mudança e defenderia o status quo ante , pré-revolucionário, mas, ao contrário, levando em conta as demandas da conjuntura revolucionária então vivida, forneceria à monarquia e ao império as bases para sua “regeneração”. Na década de 1820, essa regeneração foi então ao mesmo tempo desa- fiada e redefinida por uma emergente política constitucionalista transatlântica. Tais transformações na percepção da política e nas bases da legitimidade política sugerem que não houve continuidade, mas antes uma interação de agendas contra-revolucio- nárias dinâmicas e inovadoras, as quais definiram a transição do Brasil de colônia de Portugal para império independente.^1

Uma era de revoluções

A idéia de uma era das revoluções foi originariamente proposta e amplamente disseminada há meio século por R. R. Palmer em seu volumoso The age of democratic revolution: a political history of Europe and America. Nele, Palmer (1959:4) sustenta que, no final do século XVIII, testemunhou-se um momento crítico na história da “civilização atlântica” que se manifestou “de diferentes modos e com desdobramen- tos diversos nos vários países”, todos marcados por “um novo sentimento de deman- da de uma certa igualdade, ou pelo menos um desconforto com velhas formas de estratificação social e hierarquia formal”. Os momentos mais emblemáticos e trans- cendentes dessa era foram a independência dos Estados Unidos da América e a Revo- lução Francesa. Pesquisas mais recentes procuraram integrar a independência da América hispânica e a revolução haitiana em interpretações sobre o escopo e o senti- do dessa época, esclarecendo como hierarquias de cor e cultura, e o status de servidão involuntária foram postos em xeque com ataques mais amplos a princípios e práticas das regras hereditárias e ao lugar subordinado da América no império europeu. Tan- to entre as antigas quanto entre as novas narrativas da revolução, contudo, o mundo luso-brasileiro permaneceu ou flagrantemente ausente ou foi sumariamente negli- genciado com referências a seu conservadorismo. Segundo Lester Langley (1996), “a despeito de diferenças aparentemente irreconciliáveis para com a metrópole, elas [as

(^1) Gould, 2000; e McMahon, 2001.

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idéias pudessem ser disseminadas, concentraram a atenção nas pessoas suspeitas de apoiar propostas insurgentes. As restrições concernentes aos estrangeiros — visitan- tes da cidade não pertencentes ao império português — foram sensivelmente refor- çadas. 5 A resposta mais virulenta à ameaça de revolução, contudo, foi dirigida aos vassalos da coroa portuguesa: um inquérito abusivo orquestrado pelo vice-rei conde de Resende, que procurou identificar “as pessoas que, com escandalosa liberdade, se atreviam a envolver em seus discursos matérias ofensivas à religião e a falar nos negó- cios públicos da Europa com louvor e aprovação do sistema atual da França”, e quem, “além dos ditos escandalosos discursos, se adiantasse a formar ou insinuar algum plano de sedição”.^6 Os alvos velados da investigação eram os membros de uma socie- dade literária local, homens que liam os jornais e panfletos europeus, assim como os trabalhos de Raynal e Mably e o Emile , de Rousseau,^7 e que se mantinham atualizados sobre os acontecimentos e debates, freqüentando os saraus da sociedade literária, onde “se leem as gazetas e discursos Francezes” e onde, conforme estipulava um do- cumento escrito clandestinamente, ninguém desfrutaria de “superioridade” e as dis- cussões seriam “dirigid[as] igualmente por modo democrático”.^8 Os membros da sociedade e seus amigos e associados debatiam a Revolução Francesa e as guerras revolucionárias e suas conseqüências para a monarquia portuguesa. Num dos deba- tes, por exemplo, o ourives Antônio Gonçalves dos Santos defendeu o regicídio fran- cês argumentando que “a morte do rei de França fora justa porque foi falso ao jura- mento que fizera à assembléia”, enquanto outro presente reclamava que a Revolução Francesa havia mostrado que “os maus governos se deviam sacudir e repelir”.^9 Refle- xões sobre a autoridade política no mundo português, porém, nem sempre culmina- vam em endossos gratuitos do republicanismo. Para alguns, atacar casos específicos de tirania e corrupção e reconhecer as origens populares da soberania da coroa portu- guesa e os limites da autoridade paterna significavam defender a monarquia e sugerir modos para que a instituição pudesse sobreviver ao desafio revolucionário. Embora ao tempo em que a investigação foi encerrada, em 1797, por instrução do novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rodrigo de Souza Coutinho, não se houvesse obtido qualquer prova de conspiração, os anos de prisão, interrogatório e

(^5) Barrow, 1806:85-86; Wilson, 1799:33; e Tuckey, 1805:51. (^6) Autos da Devassa... , 1994:36. (^7) Ver Rellação dos livros..., 1901:15-18; e cartas confiscadas nos Autos da Devassa... , 1994:116-120. (^8) José Bernardo da Silveira Frade em Autos da Devassa... , 1994:38. Os manuscritos aparentemente rascunha- dos por Silva Alvarenga são citados em Jancsó, 1997:413. (^9) Manoel Pereira Landim e Jacinto Martins Pamplona Corte Real, apud Autos da Devassa... , 1994:42, 61.

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averiguação revelaram as ramificações e o impacto de uma era das revoluções sobre o império português. Havia no Rio de Janeiro pessoas dos mais variados escalões so- ciais que desejavam discutir o contexto revolucionário transatlântico e o futuro da monarquia. Essas discussões, revigoradas pelo afluxo de notícias da Europa, levaram ao que David Higgs (1994) caracterizou como “extratos e formas de desrespeito ao status quo num tempo em que os ecos da experiência jacobina na França ressoavam pelo mundo atlântico”. Para os administradores imperiais, os comentários dos repre- sentantes legais sobre a monarquia e o império abalavam a imagem de uma popula- ção leal sobre a qual, acreditavam os oficiais lusos, se apoiava a manutenção do impé- rio, alimentando, conseqüentemente, um sentimento crescente de vulnerabilidade. Conforme advertia seu superior, o juiz que presidiu a investigação no Rio, acima de tudo não era do melhor interesse da coroa permitir que os franceses descobrissem que seus “abomináveis princípios” tinham conquistado simpatizantes no Brasil.^10

Revolução, contra-revolução e a transferência da corte

Além de guardar ferrenhamente os portos e investigar as dissidências locais, os administradores imperiais portugueses procuraram isolar da revolução os domínios da coroa por meio da diplomacia, levando a cabo uma série de negociações com monarquias européias e com os franceses, a fim de estabelecer a neutralidade portu- guesa nas guerras revolucionárias e napoleônicas. Porém, a manutenção da neutrali- dade apoiava-se em algo mais do que a vontade da coroa portuguesa. Conforme foi se tornando impossível conciliar as crescentes demandas de Napoleão com os com- promissos firmados com a coroa britânica, os conflitos resultantes redundaram na perda de território português para os espanhóis, bem como na perda de território sul-americano para o regime francês. 11 Nesse contexto, membros da corte lusa come- çaram a argumentar que aquela resposta à revolução poderia se desdobrar em alguma outra coisa que não uma defesa desqualificada do status quo. O alastramento do movimento revolucionário, em outras palavras, reclamava medidas ousadas, e não simplesmente medidas conservadoras. Assim, contrariando aqueles que insistiam em manter negociações com a França, o conde de Ega sustentava que chegara a hora da mudança da corte real. Não era apenas a monarquia, mas o próprio império que corria perigo. “Ou Portugal há de fechar os seus portos aos ingleses e correr o risco de

(^10) Apud Santos, 1992:103. (^11) Manchester, 1964.

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Se, contudo, a transferência da corte significou o fim do Brasil como “colônia”, não significou, como apontaram os funcionários da coroa, o fim do império. De fato, a redenominação foi concebida como uma medida de reforço, e não de enfra- quecimento, dos laços entre Portugal e Brasil. Enquanto termos como “conquista”, “possessão” e, no século XVIII, “colônia” faziam parte do que o estadista José da Silva Lisboa descreveu como uma vulgar nomenclatura, que impoliticamente separava, como distinctas classes e castas, os Vassalos do mesmo Soberano”, o documento de- signando o Brasil como “reino” refletia um “novo systema conciliador”, que alimen- tava um “Espírito de Nacionalidade” e fortalecia o homogeneo Corpo Político da Monarchia”.^17 Ao evocar um reformismo anterior que procurava assegurar a unifica- ção do que Souza Coutinho, em 1797, definia como “todas as partes que compoem o todo”, d. João — proclamava um orador — “consolida” o império, resgatando “os princípios da vida social as mais distantes do corpo político”. 18 Para avançar ainda mais nesse entendimento do império como o que um diplomata descreveu como “uma única dominação moral e política”,^19 o diploma real não só estabelecia que o próprio Brasil era um reino, mas também reafirmava a unidade inerente do império, definindo ao mesmo tempo o Brasil como parte de “um só e único Reino”, o “Reino Unido” da monarquia portuguesa. Esse triunfo ao mesmo tempo da autoridade e da unidade indivisível e histórica dos três reinos tornou-se manifesto na cidade do Rio de Janeiro em 1818, nas cele- brações da aclamação de d. João ao trono. Na procissão de d. João até a capela real e nas festividades que se seguiram, suntuosamente decoradas com câmaras e fachadas de arquitetura efêmera, arcos triunfais, fogos de artifício, música e tributos alegóri- cos evocavam a história do império e, como o cronista oficial sugeria, o “êxtase” que tanto o Reino Unido quanto a Aclamação produziram em cada vassalo real. Quais- quer potenciais contradições dentro do Reino Unido, tensões criadas pela ascendên- cia do Brasil no contexto da ocupação de Portugal, seriam resolvidas resgatando os eventos que culminaram na reconfiguração do império. Em outras palavras, confli- tos internos à monarquia e ao império eram dirimidos em favor de conflitos que transcendessem o mundo português. A criação do Reino Unido e a Aclamação tor- naram-se assim celebrações da derrota da Revolução Francesa e de Napoleão. Uma ode comemorativa assim descrevia os eventos recentes: “Septro leve e suave os Lusos

(^17) Lisboa, 1818:69, 116. (^18) Seixas, 1818:14. (^19) José Anselmo Correa Henriques para Viana, Lisboa, 16 dez. 1814, in Mendonça, 1984:276.

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rege/No meio da tormenta do Universo/Do systema perverso/Benigno acolhe o Principe Piedozo (…)”. O Reino do Brasil também emergia como uma trincheira contra o alastramento de insurgências republicanas desde a vizinha América espa- nhola e um como freio contra a influência dos Estados Unidos, que, de acordo com Silva Lisboa, “ja manifestavão todos os symptomas de apoiarem o systema do presu- mido Autocrator da França”. 20 Assim, com a transferência da corte, as tentativas conservadoras de obliterar a possibilidade de mudança dentro do império português numa era das revoluções foram deslocadas, transformadas em uma resposta à revolução que parecia ela mes- ma uma atitude revolucionária. Essa revolução máxima no sistema geral político era, contudo, uma revolução que defenderia e vingaria a monarquia, ameaçada pela corrupção e pela violência instaladas na Europa, ao redefinir o império como ameri- cano. Alegorizando a criação da nova corte, Silva Lisboa dizia que a história era representada significativamente pela mitologia. O Rio de Janeiro, proclamava Cairu, era “o Acrocerauneo Promonotorio, donde se expedirão os raios da activa e santa Guerra, com que a mythologia figura ao Dominandor Celeste anti-trovejando aos Titães, que ousarão assaltar Olympo”.^21

A revolução e a nova corte real

Como o Brasil era o lugar privilegiado onde o prestígio da monarquia e do império seriam restaurados, a nova corte do Rio de Janeiro e seus habitantes haveri- am de encarnar essa transformação político-cultural. Muitos dos aspectos práticos dessa transformação foram confiados à Intendência Geral da Polícia, uma instituição fundada logo à chegada do príncipe regente em 1808, modelada conforme sua contraparte de Lisboa e dirigida por Paulo Fernandes Viana, natural do Rio de Janei- ro. Viana abraçou a causa de fazer do entorno urbano da cidade algo “[compatível] com a residencia de Sua Alteza Real nesta Cidade”, assegurando que a cidade perma- necesse livre da “desordem”, e mantendo o que um de seus informantes descreveu como “ un government purament monarchique ” na era das revoluções. 22 Para Viana, a afirmação coletiva de “respeito, a vassalagem” e a diminuição do “desgosto” e da

(^20) Ver [Souza], 1818:5, 14 e 20; Santos, 1981, t. 2, p. 153-156, 165, 176-177 e 216; e Lisboa, 1818:82-83. Sobre a tradição da Aclamação, ver Souza, 1998:35; Ribeiro, 1995:74-88; e Malerba, 2000:118-123. (^21) Lisboa, 1818:82-83. (^22) Cailhé de Geine, “Projet” e “Memoire et notes explicatives sur le projet”. Rio de Janeiro, 15 dez. 1820. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante BNRJ), Ms. I-33,29,8 e I-33,29,16. (N. do Org. — O nome de Cailhé de Geine aparece de diversas formas nos documentos consultados. Geine de Cailhé, Cailhé de Geine, Caille de Geine, Geine de Caille. Nesta obra optamos pela grafia abrasileirada Cailhé de Geine.)

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vigilância, especialmente sobre as atividades maçônicas, ligadas aos insurgentes em ambos os lados do Atlântico, que passaram a ser consideradas criminosas, seguindo a prescrição da coroa, de 1818, sobre as sociedades secretas. 26 Durante a década de 1810, a possibilidade de uma insurreição abolicionista era também matéria que requeria especial preocupação. Além do mais, argumentava Viana, o “exemplo” do Haiti e a guerra na Europa haviam tornado essa ameaça particularmente mais perigosa. A população escrava constituía um ponto fraco na defesa cultural e política contra Napoleão que se supunha que o Brasil representava. Uma rebelião de escravos na nova corte do príncipe regente, escreveu Viana em 1808, certamente encorajaria os “bem conhecidos inimigos” da monarquia portuguesa.^27 Mesmo após o final da guerra, insistia o intendente em 1816, tendo sido informado “de certo exageração, que tem havido espirito insubordinado na escravatura da Bahia”, os partidários de Napoleão acreditavam que lá “possão ser mais bem recebidos”. 28 Em conseqüência, Viana perseguiu todos, brancos ou pretos, suspeitos de simpatias abolicionistas ou de terem conexões com o Caribe. Assim, ainda em 1818, “um preto” da “Nação Franceza” chamado Carlos Romão foi posto na cadeia da cidade, de modo que o intendente pudesse descobrir se ele era “da Ilha de São Domingos, ou dali viesse”, ou se havia “outros, ou mulatos, se já esteve na Bahia, ou conhece alguns que lá estejão e viessem de São Domingos, nomes, e signaes por onde se possão descobrir”. Tais ações, contudo, também incorriam num risco. Como Viana comen- tou com Souza Coutinho, após a prisão de “tres negros da Martinica”, para que ele pudesse verificar suas ocupações passadas e presentes, “destes mesmos sempre tenho procurado não entrar com elles em exames judiciaes nem com inquirições de teste- munhas que sempre vão dar Corpo que as couzas não tem, e suscitar ideas, athe ignoradas da maior parte das gentes”.^29 Essa possibilidade de as prisões e os interrogatórios poderem dar publicidade às idéias que supostamente deveriam reprimir era apenas um dos problemas que o

(^26) [Carta Régia, “Constando com toda a certeza, a existencia de huma conjuração...”], 31 maio 1817. [Rio de Janeiro]: Impressão Régia, [1817]; Souza, 1998:57-74. Sobre a maçonaria no Brasil e seu papel em 1817, ver Barman, 1988:57-63; Ferreira e Ferreira, 1962:196-216; Santos, 1965:51-59; e Pinto, 1961. De acordo com Barman, já havia atividades maçônicas antes no Brasil, mas estas se intensificaram após a chegada da corte. (^27) Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro e secretário da repartição da Guerra”, 23 maio 1808, ANRJ, códice 318, f16-16v. (^28) Viana [representação para dom João], 24 nov. 1816, ANRJ, MNB, caixa 6J 83. (^29) Viana, “Registro do ofício expedido ao juiz do Crime do Bairro de Santa Rita”, 11 abr. 1816, ANRJ, códice 329, v. 3; Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro de Estado dos Negócios de Guerra”, 7 jul. 1808, ANRJ, códice 318, f38.

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intendente enfrentava enquanto procurava assegurar a lealdade e a segurança do Rio de Janeiro. Na verdade, conforme Viana e outros funcionários reais viriam a reco- nhecer, as expressões de contestação estavam associadas a muitas das inovações que fizeram do Rio de Janeiro uma corte real. O que Viana descrevia num relatório como as comunicações freqüentes que se tornaram possíveis pela abertura dos portos, as- sim como a inédita proliferação da imprensa, eram realidades que não podiam ser mais negadas ou, como Viana sempre reclamava, não podiam ser mais completa- mente controladas. 30 A imprensa de língua portuguesa publicada fora do império português, cuja existência era alimentada pela insistência da coroa em cercear a liber- dade de imprensa em seus territórios, conforme observou o editor do Correio Braziliense sediado em Londres, provou ser particularmente tediosa. Na realidade, a habilidade da coroa para proibir essas publicações era aparentemente limitada, já que, observava um habitante do Rio, os caixeiros da cidade liam os “folhetos de Londres”, especial- mente O Portuguez , periódico abolido em Londres entre 1814 e 1826 e oficialmente banido pela coroa.^31 De Londres também vinham exemplares do proscrito Campião, ou Amigo do Rey e do Povo e o mais conhecido e legal Correio Braziliense , onde os leitores podiam encontrar as vociferações do editor contra o “despotismo” do intendente. 32 No final da década, esse volume inédito de material impresso de opo- sição deu sinais de estar se esgotando, conforme observou a historiadora Lisa Graham (1997:95) sobre as hierarquias francesas do século XVIII, nas quais se baseava a autori- dade política. De fato, nos jornais importados do estrangeiro, os residentes locais liam sobre a crise imperial, mudanças no tráfico internacional de escravos, uma possível separação de Brasil e Portugal e, lamentava Viana, projetos de Constituição.^33 O conhecimento de que, advertia um observador, “as conversações” eram “sem- pre fundadas no que se lê nos journaes”^34 também redundava no que os contempo- râneos chamam de “opinião pública”. Conforme Hipólito José da Costa, editor do Correio Braziliense , o “caráter dos homens públicos é objeto de pública observação,

(^30) Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro de Estado dos Negócios do Brasil”, 14 mar. 1811, ANRJ, códice 323, v. 3, f28. (^31) Alves, 1992. (^32) Correio Braziliense , abr. 1813 e fev. 1819, em Lima Sobrinho, 1977:90-96, 238-242; Viana para Luiz Pedreira do Couto Ferraz, 26 out. 1819, ANRJ, códice 330, v. 1; e Souza, 1998:77. Funcionários reais em Portugal compartilhavam as preocupações sobre esses periódicos, incluindo o Correio Braziliense , e em 1817 proibiram sua importação para Portugal. (^33) Souza, 1998:75-76; Viana para Sua Alteza Real, 8 nov. 1818, BNRJ, Ms. I-33, 27, 10. (^34) Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro para Sua Alteza Real, n.d., n.p. Rio de Janeiro, c .1818[?], AHI, lata 170, maço 5, pasta 6.

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de outros argumentos lançados por panfletos britânicos, incluindo um que sustenta- va que a mudança para o Brasil fora orquestrada por Bonaparte e servilmente execu- tada por ministros francófilos de um débil príncipe português. Desafiados por tais acusações, inúmeras vezes expressas em discursos dissidentes pelas ruas e lojas da cidade, os funcionários reais, assim como seus pares na França, reconheciam que a resposta teria que abranger não apenas a supressão desses panfletos e a repressão daqueles que ousavam debatê-los, mas também um gênero de refutação concertada e mais persuasiva: panfletos que, conforme sugeria o intendente, contradissessem as falcidades e mentiras dos Francezes”. 37 Para essa tarefa a coroa tinha sua própria Impressão Régia. De fato, no início da década de 1810, a maioria das publicações da Impressão Régia incluía panfletos atacando Napoleão e afirmando a posição e as alianças da coroa portuguesa.^38 Essas incluíam a própria justificativa oficial da coroa para a sua conduta, o Manifesto, ou exposição fundada , escrito por Souza Coutinho e publicado em 1808 em português e em francês, e que se centrava na traição diplomática francesa e em sua beligerância. Um ano depois, a Impressão Régia divulgou argumentos similares emitidos pelo primeiro historiador português da guerra peninsular, José Acúrsio das Neves, em seu Manifesto da razão contra as usurpações francezas (1809:20-22). 39 Relatos minuciosos das circunstâncias, incluindo reedições de panfletos originariamente publicados em Portugal, foram também editados pela Impressão Régia, como o satírico Receita espe- cial para fazer Napoleões : “Hum punho de terra corrompida”, “Hum quintal de men- tira refinada”, e “Hum barril de impiedade alambicada”. Juntos, esses panfletos bara- tos e breves formavam um gênero bélico transnacional e transatlântico, construindo, por um lado, uma “lenda negra” de Napoleão e dos franceses por meio de referências concisas e repetidas ao oportunismo, à velhacaria e à perfídia e, por outro, celebran- do o heroísmo e o patriotismo português. 40

(^37) Ver Viana para o conde de Aguiar, 27 nov. 1809, ANRJ, MNB, caixa 6J 78. Um artigo na Gazeta do Rio de Janeiro de 29 de abril de 1809 tornava pública a necessidade de “os escritores desmascararem os crimes e intrigas do inimigo comum”. Apud Sá, 1816. (^38) O mais completo resgate das publicações da Impressão Régia encontra-se nos dois volumes organizados por Camargo e Moraes (1993). Uma análise revela que, nos dois primeiros anos de funcionamento da Impressão Régia, mais da metade de suas publicações anuais referiam-se à invasão francesa e à guerra penin- sular. Depois houve um declínio gradual das publicações sobre o assunto. De 1810 a 1812 a média anual era de 20%, enquanto de 1813 a 1815 passou a ser de 9%. (^39) Tanto o Manifesto, ou exposição fundada, quanto a Justificativa do procedimento da Corte de Portugal a respeito da França... Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, encontram-se em Coutinho, 1993, t. 2, p. 335-

(^40) Receita especial para fabricar Napoleões... Rio de Janeiro: Régia Officina Typografica, 1809 (reedição). Sobre o gênero de panfletos antinapoleônicos, ver D’Alcochete, 1977.

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Esse esforço para moldar uma opinião pública favorável à coroa por meio da imprensa foi além da Impressão Régia, chegando até Londres, onde eram publicados muitos dos trabalhos críticos encaminhados ao Rio de Janeiro. Como observou Barman, juntamente com as publicações tidas como ofensivas ou sediciosas, a coroa encorajava a publicação de panfletos refutando argumentos feitos na imprensa expatriada e subsidiava o periódico O Investigador Portuguêz , fundado em Londres em 1811. Um ano depois, funcionários reais ainda buscavam um acordo com Hipólito da Costa, editor do Correio, que incluía subsídios, aquisição compulsória e distribui- ção, em troca de menos comentários direcionados aos oficiais da coroa e a seus negó- cios, do fim das “dissertações de Cortes” e das comparações a que Hipólito repetida- mente se referia como a “antiga Constituição portugueza” com a “actual Constituição ingleza” e, como sugere uma correspondência sua, da publicação de artigos ou maté- rias recomendadas pelo intendente. 41 A decisão da coroa de se opor à crítica impressa instituindo um prêmio impres- so e, mais concretamente, oferecendo apoio financeiro a seu empreendimento pode ter levado, segundo Barman, à conseqüência não-intencional de acelerar o surgimen- to de uma imprensa periódica em língua portuguesa; na década de 1810, havia oito periódicos publicados em Londres, Lisboa e Rio de Janeiro. Esses números também atestam o reconhecimento, por parte dos funcionários reais, tanto da inevitabilidade da contestação, quanto da função política da opinião pública. Por conseguinte, eles sustentavam o que Arlette Farge (1995:198) descreveu como um “senso crescente do direito de saber e julgar”. No Rio de Janeiro, tais julgamentos concentravam-se no sentido da guerra e na retirada da família real para Lisboa. Eles sinalizavam que, enquanto Viana se dedicava à “alta polícia”, encenando celebrações de louvor, prote- gendo a coroa de conspirações e investigando dissidências, a transformação do Rio de Janeiro em corte real não era, nem poderia ser, baseada num consentimento pas- sivo. Como reconheciam os próprios funcionários reais, salvaguardar a instituição da monarquia numa cidade aberta a estrangeiros e crescentemente informada da políti- ca da guerra e da revolução em ambos os lados do Atlântico requeria compromisso com opiniões que, naquele momento mais do que em qualquer outro da história da cidade, eram propositadamente formadas em público.

(^41) Sobre os subsídios ao Correio Braziliense , ver Barman, 1988:53; Vicente Pedro Nolasco da Cunha para Domingos [de Sousa Coutinho?], Londres, 24 out. 1809, AHI, lata 203, maço 2, pasta 5; Heliodoro de Araújo Carneiro para Viana, Londres, 8 ago. 1814, e Hipólito José da Costa para Viana, 20 ago. 1820, apud Mendonça, 1984:266, 398; Araújo Carneiro para o marquês de Pombal, 8 jan. 1810, e 9 mar. 1810, BNRJ, Ms. Arcaz 2; Guilherme Cypriano de Souza para o conde de Linhares, Londres, 7 mar. 1810, BNRJ, Ms. II- 31, 1, 3, n. 2; e Viana para Sua Alteza Real, 28 nov. 1818, BNRJ, Ms.II 33-27-20, n. 3.

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A defesa da monarquia e a invocação da religião, da história e da tradição, contudo, não excluiam um impulso de mudança. Na verdade, a regeneração da po- lítica para o constitucionalismo, em certos momentos, parecia depender de significa- tivas transformações jurídico-institucionais. Conforme explicava um panfletário, o “methodo antigo, de convocar Côrtes, bem que seja legal, não he proprio da epoca presente”. “[A]s leis são, como tudo o mais que com o tempo envelhece”, e prosse- guia, “[e como] ellas tem por fito o regular costumes, se os costumes mudão, devem as leis também mudar”. A missão do constitucionalismo, portanto, seria a de tornar as leis “mais conformes às idéias do século”. 43 Ao evocar “as idéias do século”, o panfletário também revelava a influência do Iluminismo e da Revolução Francesa no discurso constitucionalista português. Como vimos, no final do século XVIII e início do XIX, os funcionários reais procuravam evitar o engajamento com o pensamento político francês e suas esferas de influência. O constitucionalismo e, mais importante ainda, a liberdade de imprensa que seus defensores asseguraram, puseram por terra aqueles limites, construindo-se sobre um antigo e censurado engajamento ao pensamento e à política do século XVIII, e per- mitindo uma consideração mais aberta do significado do Iluminismo e da Revolução Francesa. Enquanto os funcionários reais, nos anos 1790 a 1810, procuraram garan- tir a lealdade dos residentes “a Sua Majestade”, “Nosso Senhor” e “Pai Comum”, os constitucionalistas celebraram o triunfo do governo contratual sobre a norma paternal; eles saudaram a nova entidade política do “povo”; aclamaram o surgimento do “públi- co” como a derrota dos interesses estreitos e privados associados ao absolutismo. 44 Os constitucionalistas também enfrentaram dois dos mais emblemáticos prin- cípios da Revolução Francesa: a liberdade e a igualdade. Como combatia um panfletário, embora a liberdade não pudesse ser edificada como “absoluta”, ela era “natural”. O homem nascia “livre” e sua liberdade era então limitada, primeiro, por sua relação com Deus e, depois, por sua relação com sua esposa, filhos e outros homens. “Quanto mais são as relações”, explicava, “mais os deveres, ou obrigações; e quanto mais deveres, menos liberdade”. Embora limitada, essas liberdades e direitos eram igualmente desfrutados por todos. Adão e Eva foram eles mesmos “perfeita- mente iguaes”, argumentava, pois tinham não apenas “igual liberdade”, mas também “iguaes relações” e “iguaes deveres”. Em outras palavras, liberdade e igualdade ti- nham sempre relação uma com a outra. Ou, como explicava mais sucintamente ou-

(^43) Das sociedades ... , 1821:4-5. (^44) Verdelho, 1981:103-111, 116-119; e Lima, 1821a:10.

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tro panfleto, a “igualdade dos direitos de todo Cidadão e da fraqueza igual em todos diante da lei”. Esse tipo de linguagem rousseauniana foi usado, assim, quando os constitucionalistas explicavam a lei ou a “Lei Fundamental” como a expressão da “vontade geral” do povo e do pacto, ou constituição, por meio da qual os direitos eram estabelecidos. 45 Esses direitos e liberdades civis, por seu turno, coincidiam com a “nobreza do cidadão”, um “vassalo livre”, conforme explicava um catecismo constitucional, nas- cido ou naturalizado “nas terras pertencentes à Corôa de Portugal em qualquer parte do mundo”. Cidadão, neste sentido, adquiria o significado de identidade política nacional, como aquilo a que o intendente se referira impropriamente em 1818 como “vassallos dos Estados Unidos da America”. Entendimentos anteriores de cidadãos como bem considerados membros de uma comunidade urbana que cumpriam seus deveres para com Deus e o soberano também se ampliaram para incluir o que o visconde do Rio Seco se referia como um respeito pelas “authoridades constituidas” e o amor “ao Soberano e à Pátria”. Na verdade, como contestava um panfleto, en- quanto o status de vassalo originariamente qualificava uma pessoa como cidadão, a cidadania deslocava a vassalagem como um todo, como a nova ordem deslocava a velha. Ambos, cidadãos e vassalos, tinham “direitos” e virtudes. Além disso, um vassalo era dependente da coroa, enquanto um cidadão era um membro igualitário da nação soberana.^46 Ao chamar a atenção para os novos termos e papéis e identidades mutantes, os constitucionalistas também promoveram a idéia de que a criação de uma nova or- dem política dependia da criação de uma nova linguagem política, um discurso retórico que procurasse não só refletir os acontecimentos recentes, mas também persuadir e moldar a percepção de interesses como um meio de reconstituir a própria ordem política, nesse caso fazendo “a nação”, em lugar do rei, soberana. 47 Em outras pala- vras, ser um constitucionalista era falar como um constitucionalista. Por conseguin- te, os próprios panfletos freqüentemente serviam explicitamente para traduzir uma velha linguagem absolutista para uma nova, constitucionalista. Uma justaposição gráfica, ou “parallelo”, das categorias políticas usando uma lista de sinônimos e

(^45) Verdelho, 1981:48-50, 221-231. Dialogo instructivo… , 1821:4-5; Reflexões filosoficas... , 1821:2-4; Quali- dades... , 1821. (^46) Carvalho, 1821:20; Cathecismo constitucional... , 1821:4; Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro de Estado dos Negócios da Marinha”, 4 abr. 1818, ANRJ, códice 323, v. 5, f55-f55v; Dialogo entre o corcun- da... 47 , 1821:6; Azevedo, 1821:34; Qualidades... , 1821. Hunt, 1984:20-24.

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“a maior sensação possivel nos animos bem intencionados dos habitantes desta Capi- tal”. Para restaurar a integridade da ordem constitucional corrompida por uma investida lexical, o oficial militar de cujo balcão a saudação havia sido feita foi com- pelido a dar uma explicação pública de sua conduta, publicada tanto como um pan- fleto avulso quanto como um artigo na Gazeta da cidade.^51 O interesse em disseminar uma língua constitucional transparente, e em refor- çar seu uso, foi relacionado ao entendimento constitucionalista da nova natureza da política e da vida pública. Como explicava o visconde do Rio Seco:

O Maior dos bens, que trazem a Sociedade os Governos Liberaes he sem duvida a faculdade de cada hum dos Cidadãos poder expor a verdade em todo seu esplen- dor, e clareza. Perdem com ella, o seu uso as mascaras, e os disfarces; e o homem apparece tal qual o tem formado a cadeia dos seus procedimentos. A Lei fica sendo o compasso de todas as suas acções; o interesse geral o centro, a que ellas convergem; e o Publico o Juiz severo, que as condemna, ou premeia segundo a relação, em que estão para com a Sociedade em que elle vive (…). Tudo se rende ao Império da verdade (...).^52

Essa visão do julgamento coletivo verdadeiro também era descrita como “opi- nião pública”. Os constitucionalistas denunciaram perante o “tribunal da Pública Opinião, os erros e os abusos” do governo absolutista e avisaram que “os Monarcas de hoje tem necessidade não só de consultarem, mas de terem os olhos sempre fixos sobre o Norte da Opinião pública”.^53 Quando os constitutionalistas herdaram e compartilharam esse sentido de opinião pública como algo que podia ser julgado e engajado, declararam também que seu status no “sistema constitucional” era fundamentalmente diferente. Os absolutistas procuravam “desviar a opinião pública do verdadeiro espirito do bem”.

(^51) Pedro Alvarez Diniz para João Ignacio da Cunha [intendente], 25 set. 1821, e “Auto das perguntas feitas ao preso Manuel Luiz Nunes,” 2 out. 1821, ANRJ, MNB, caixa 6J 86; António Luíz Pereira da Cunha para Luiz de Souza e Vasconcellos, 26 set. 1821, ANRJ, códice 330, v. 1; João Ignacio da Cunha, “Ofício expedi- do ao ministro e secretário de Estado”, [11] out. 1821, ANRJ, códice 323, v. 6, f93; José de Almeida, tenente-coronel graduado do Batalhão de Caçadores da Corte, “[Anúncio] Havendo feito a maior sensação possivel nos animos bem intencionados dos habitantes desta Capital...”. Rio de Janeiro: Impressão Nacional,

(^52) Azevedo, 1821:iii. (^53) O português constitucional regenerado (18 set. 1821), apud Pina, 1988:102; Carta de André Mamede... , 1821:5; Qualidades..., 1821; e Miranda, 1821:50.

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Os panfletários também afirmavam que o policiamento absolutista distorcia a opi- nião, espionando “as mais secretas conversações, obrigando os Cidadãos (…) a disfarçarem a sua Linguagem; chamando ao dia noite, ao branco preto (…)”. Os constitucionalistas, ao contrário, reivindicavam liberar a opinião pública, torná-la transparente, trazê-la para a abertura e colocá-la no centro do exercício da sobera- nia nacional. “A opinião pública”, declarava um panfletário, “expressa o voto do Povo”. Assim, como reconheceu o sucessor de Viana no posto de intendente, de- pois de 1821 devia “o público, juiz imparcial”, decidir se os próprios oficiais havi- am observado adequadamente a lei. Como um panfletário explicava esse processo, “palavras” políticas e “discursos impressos” eram “lançados, por assim dizer, dentro de uma vasta Estacada, aonde a todo o cidadão he licito entrar e combater, tendo por juiz a Nação inteira que pode sentenciar livremente”. Quanto mais aberto fosse esse confronto, mais legítimos seriam os seus resultados. Tal “liberdade de discussão”, afirmava, era o único modo de “dar a conhecer a verdade”. Ela formava a “a baze fundamental de toda a permanência da liberdade civil e politica”. Portan- to, a liberdade de imprensa seria também crucial, uma vez que, sem ela, sustenta- vam os panfletários, “huma assembleia nacional (...) formará sempre huma repre- sentação infiel”. Assim, declarava, “perguntar se a Imprensa deve ser livre ou escrava” era “o mesmo que perguntar, por outras palavras, se a Monarchia deve ser Consti- tucional ou absoluta”.^54 Para os constitucionalistas, essa nova política deliberativa pública devia ser não só livre, mas também educada. É na educação, entendia o magistrado fluminense José Albano Fragoso, que “se radica a moral publica”. Ou, como um jornal consti- tucional declarou, tornar “oportunas excursões pelo florido campo da Literatura clássica, antiga e moderna, fazer tudo isto, fazê-lo com frequência, reduzi-lo a pou- cas páginas e pô-lo ao alcance da multidão é fazer um serviço eminente ao seu país e a civilização em geral”. Juntamente com essa busca a realizar, contudo, os constitucionalistas também reclamavam uma educação francamente nova e cívica. Conforme dizia Fragoso, como previamente na educação “não se tem procurado vulgarizar as noções de tudo que interesa ao homem na qualidade de Cidadão”, na verdade seu objetivo deveria ser o de “formar homens, e Cidadões, com os conhe- cimentos relativos à Sociedade, e Governo em que vivem (…)”. Citando tanto

(^54) Lima, 1821b:7; Qualidades... , 1821; Neves, 1995:123-138; João Ignacio da Cunha, “Registro do ofício dirgido a Secretaria de Estado dos Negócios de Guerra”, 8 dez. 1821, ANRJ, códice 323, v. 6, f103; Quaes são... , 1821:1-2. Para noções de uma imprensa livre no constitucionalismo português, ver também Pina, 1988:101.