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Neste texto, a autora explora a relação complexa entre a natureza, o sexo e as nossas ideias sobre deus. A natureza é apresentada como o grande problema moral, e a atitude humana em relação a ela é fundamental para entender nossas ideias sobre sexo e gênero. O autor aborda as ideias de rousseau, sade e freud sobre a relação entre a natureza e a sociedade, e como elas influenciam nossas atitudes em relação ao sexo e à liberdade. O texto oferece uma perspectiva interessante sobre a intersecção entre natureza e cultura, e sobre como as ideias filosóficas influenciam nossas percepções e valores.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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No princípio era a natureza. Pano de fundo a partir do qual, e contra o qual, se formaram as nossas ideias acerca de Deus, a natureza continua a ser o pro- blema moral supremo. Enquanto não clarificarmos a nossa atitude em relação à natureza, não poderemos esperar compreender seja o que for a respeito de sexo e género. O sexo é um subconjunto da natureza. O sexo é o natural no homem. A sociedade é uma construção artificial, uma barreira contra o poder da na- tureza. Sem a sociedade, vogaríamos na tempestade desse mar bárbaro que é a natureza. A sociedade é um sistema de formas, transmitidas de geração em ge- ração, cujo fim é atenuar a nossa humilhante passividade face à natureza. Nós somos apenas uma entre a vastidão de espécies sobre as quais a natureza exer- ce indiscriminadamente a sua força. A natureza tem para nós desígnios de um senhor em relação aos seus escravos; desígnios esses que em grande parte nos escapam. A vida humana começou como fuga e medo. A religião emergiu a partir de rituais propiciatórios, de feitiços destinados a aplacar a punição dos elementos. Ainda hoje, são raras as comunidades humanas em regiões crestadas pelo sol ou assoladas pela neve. O homem civilizado esconde de si mesmo o grau da sua subordinação à natureza. O esplendor da cultura e o consolo da religião ab- sorvem a sua atenção e proporcionam-lhe uma fé. Mas basta um encolher de ombros da natureza, para que tudo sejam ruínas. Incêndios, cheias, tempesta- des, tornados, furacões, erupções vulcânicas, tremores de terra — em qualquer parte e a qualquer momento. O cataclismo não distingue os bons dos maus. A vida civilizada requer um estado de ilusão. A ideia de que a natureza e Deus são, em última análise, benevolentes, é o mais poderoso dos mecanismos de so- brevivência ao dispor do homem. Sem essa ideia, a cultura daria lugar ao ter- ror e ao desespero. A sexualidade e o erotismo constituem uma intrincada intersecção entre na- tureza e cultura. As feministas simplificam grosseiramente a questão sexual ao reduzir o sexo a uma convenção social. Segundo elas, basta que se reajuste a so- ciedade, que se elimine a desigualdade sexual e se purifiquem os papéis sexuais, para que reinem a felicidade e a harmonia. Aqui, o feminismo, tal como todos
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os movimentos de libertação dos últimos dois séculos, segue na peugada de Rousseau. O Contrato Social (1762) começa da seguinte forma: «O homem nasceu livre, e em toda a parte se encontra agrilhoado». Ao opor a benigna e ro- mântica natureza à sociedade corrupta, Rousseau deu origem à corrente pro- gressista da cultura do século XIX, para a qual a reforma social era o meio pelo qual se alcançaria o paraíso na terra. Tais esperanças rebentaram como bolas de sabão contra a catástrofe de duas guerras mundiais. Mas o rousseaunismo res- surgiu com a geração dos anos 60 do pós-guerra, a partir da qual se desenvol- veu o feminismo contemporâneo. Rousseau rejeita o pecado original, a pessimista visão cristã segundo a qual o homem nasce impuro e propenso ao mal. As ideias de Rousseau, inspiradas em Locke, acerca da bondade inata do homem estão na origem da ecologia so- cial, que é actualmente a ética dominante nos Estados Unidos no âmbito dos serviços sociais, do código penal e das terapias behavioristas. O seu pressu- posto é o de que a agressão e a violência têm origem na privação social — co- munidades pobres, lares disfuncionais. Em conformidade com isso, o feminis- mo atribui à pornografia a culpa pela violação e, num enfatuado raciocínio circular, interpreta os surtos de sadismo como uma forma de reacção contra a segunda. Mas há testemunhos de violação e sadismo ao longo de toda a histó- ria e em todas as culturas. Este livro adopta o ponto de vista de Sade, o menos lido dos grandes auto- res da literatura ocidental. A obra de Sade, uma contestação satírica e abran- gente das ideias de Rousseau, foi realizada na década que se seguiu à primeira experiência rousseauniana falhada — a Revolução Francesa, que terminou não num paraíso político mas no inferno do reinado do Terror. Mais do que em Loc- ke, Sade inspirou-se em Hobbes. A agressão deriva da natureza; é aquilo a que Nietzsche chamará a vontade de poder. Para Sade, regressar à natureza (ro- mântico imperativo que ainda hoje permeia a nossa cultura, desde o aconse- lhamento sexual aos anúncios a cereais) seria dar livre curso à violência e à lu- xúria. Concordo. A sociedade não fomenta o crime, é antes a força que refreia o crime. Quando o controle social é enfraquecido, a crueldade inata do homem irrompe. O violador é originado não por más influências sociais mas porque o condicionamento social, no seu caso, falhou. Ao procurarem separar o sexo das relações de poder, as feministas opõem-se à natureza. Sexo é poder. Identida- de é poder. Na cultura ocidental não há relações que não sejam de exploração. Todos matamos para sobreviver. A lei natural universal que diz que a criação se faz a partir da destruição vigora tanto no espírito como na matéria. Como afirma Freud, herdeiro de Nietzsche, identidade é o mesmo que conflito. Cada geração conduz o seu arado sobre as ossadas das gerações anteriores. O liberalismo moderno padece de contradições não resolvidas. Exalta o in- dividualismo e a liberdade e, na sua ala radical, condena como opressiva a exis- tência de classes sociais. Mas, por outro lado, espera que o governo providen- cie a satisfação das necessidades materiais de todos, algo que apenas se consegue através de um acréscimo da autoridade e da burocracia. Por outras palavras, o liberal define o governo como um pai tirano, mas ao mesmo tempo
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nificava um espírito com um grau de divindade inferior ao dos deuses olímpi- cos. O pária Édipo torna-se um daimon em Colono. O termo acabaria por sig- nificar posteriormente a sombra que guarda o homem. O Cristianismo trans- formou o demónico em demoníaco O daimon grego não era maligno, ou antes, era ao mesmo tempo maligno e benigno, como a própria natureza, na qual ha- bitava. Durante o dia somos criaturas sociais, mas à noite descemos até ao mundo dos sonhos onde a natureza reina, onde a única lei é a do sexo, da cruel- dade e da metamorfose. O próprio dia é invadido pela demónica noite. A todo o momento, a noite bruxuleia na imaginação e no erotismo, subvertendo a nos- sa luta pela virtude e pela ordem, ao mesmo tempo que concede a pessoas e ob- jectos aquela aura misteriosa que nos é revelada através do olhar do artista. O carácter do sexo como algo que é dominado por fantasmas está implícito na brilhante teoria do «romance familiar» concebida por Freud. Todos temos uma incestuosa constelação de personas sexuais, que nos acompanham da in- fância até à morte e que determinam o quê e o como do nosso amor ou do nos- so ódio. Qualquer encontro, com amigo ou inimigo, qualquer choque com a au- toridade ou submissão à mesma, comporta o traço perverso do romance familiar. O amor é um palco sobrelotado pois, como observa Harold Bloom, «Nunca abraçamos (sexualmente ou de outra forma) uma só pessoa, aquilo que abraçamos é todo o conjunto do seu romance familiar.»^1 Continuamos a saber muito pouco acerca do mistério da catexis, o investimento da libido em certas coisas ou pessoas. Na esfera do sexo e da emoção, o elemento de livre arbítrio é muito diminuto. Apaixonar-se, como o sabem os poetas, é algo de irracional. Tal como a arte, o sexo está carregado de símbolos. O romance familiar sig- nifica que o sexo entre adultos é sempre uma representação, uma interpretação ritual de realidades desaparecidas. Um erotismo perfeitamente humano pode bem ser impossível. Em todo e qualquer romance familiar existe hostilidade e agressão, desejos homicidas do inconsciente. As crianças são monstros de egoísmo e vontade desenfreadas, pois irrompem directamente da natureza, ameaçadoras sugestões de imoralidade. Essa demónica vontade é algo que fica para sempre dentro de nós. A maior parte das pessoas esconde-a sob preceitos éticos adquiridos, e só a reencontra nos sonhos, que rapidamente são esqueci- dos ao acordar. A vontade de poder é inata, mas os guiões sexuais do romance familiar são aprendidos. Os seres humanos são as únicas criaturas nas quais a consciência aparece inextrincavelmente unida ao instinto animal. Na cultura ocidental é impossível um encontro sexual puramente físico ou isento de an- siedade. Não há atracção, nem carícias, nem orgasmos que não sejam molda- dos por sombras psíquicas. A busca da liberdade através do sexo está condenada ao fracasso. No sexo, quem governa é a compulsão e a velha Necessidade. As personas sexuais do ro- mance familiar são eliminadas pela forte torrente da regressão, o movimento de retrocesso em direcção à dissolução primeva, que Ferenczi identifica com o oceano. Um orgasmo é uma dominação, uma rendição, ou uma passagem. A natureza não respeita a identidade humana. Por isso é que tantos homens vol- tam as costas ou fogem após o acto sexual: sentiram de perto a aniquilação do
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demónico. O amor ocidental é feito a partir de um deslocamento de realidades cósmicas; é um mecanismo de defesa que racionaliza forças desgovernadas e ingovernáveis; é, à imagem da religião primitiva, uma forma de controlar o nosso medo primordial. O sexo não pode ser compreendido porque também a natureza não pode ser compreendida. A ciência é um método de análise lógica das operações da na- tureza. Permitiu atenuar a ansiedade humana acerca do cosmos ao demonstrar a materialidade das forças da natureza e a sua frequente previsibilidade. Mas a ciência está sempre numa situação de desvantagem. A natureza quebra as suas regras sempre que quer. A ciência não consegue impedir a queda do raio. Pro- duto da mente apolínea, a ciência ocidental tem a esperança de conseguir, atra- vés da fria luz do intelecto, de um processo de nomeação e de classificação, afastar e derrotar a noite arcaica. O nome e a pessoa fazem parte da busca ocidental da forma. O Ocidente in- siste na identidade discreta dos objectos. Nomear é conhecer; conhecer é do- minar. A minha intenção é demonstrar que a grandeza do Ocidente teve origem nesta certeza ilusória. A cultura do Extremo Oriente nunca lutou desta forma contra a natureza. A sua regra é a conformidade, não o confronto. A meditação budista procura a unidade e a harmonia com a realidade. Os físicos do século XX vão ao encontro de Heraclito e postulam que toda a matéria está em movi- mento. Por outras palavras — nada existe, apenas energia. Mas esta ideia não foi absorvida pela nossa imaginação, pois invalida os pressupostos morais e in- telectuais do Ocidente. O ocidental conhece através da visão. As relações de natureza perceptiva es- tão no centro da nossa cultura e deram origem aos nossos titânicos contributos para a esfera da arte. Ao caminhar na natureza, nós vemos, identificamos, no- meamos, reconhecemos. Este reconhecimento é o nosso apotropaion , isto é, a nossa forma de afastar o medo. Esse reconhecimento é uma cognição ritual, uma compulsão de repetição. Nós dizemos que a natureza é bela. Mas este juí- zo estético, que nem todos os povos têm partilhado, é outra forma de autode- fesa, desoladoramente incapaz de abranger a totalidade da natureza. O bonito na natureza está confinado à fina película deste globo em que nos acotovela- mos. Basta-nos arranhar essa fina camada para que irrompa a demónica feal- dade da natureza. A nossa concentração no belo é uma estratégia apolínea. As folhas e as flo- res, os pássaros, os montes constituem um padrão de retalhos pelo qual cria- mos o mapa do conhecido. Aquilo que o Ocidente reprime na sua visão da na- tureza é o ctónico, termo que significa «da terra», mas das suas entranhas, não da sua superfície. Jane Harrison utiliza o termo para caracterizar a religião gre- ga pré-olímpica, e eu adopto-o como substituto para «dionisíaco», que está ho- je demasiado contaminado com conotações de vulgar jovialidade. O dionisía- co não é nenhum piquenique. São as realidades ctónicas de que Apolo foge, a trituração cega das forças subterrâneas, a longa e lenta sucção, a treva e o lo- do. É a desumanizante brutalidade da biologia e da geologia, a dissipação e a matança darwinianas, a sordidez e a podridão que precisamos de afastar da nos-
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