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São Vinculantes os Enunciados da Súmula do TJSP?, Teses (TCC) de Direito Processual Civil

Questiona-se acerca do efeito que o inciso V do art. 927 do CPC é capaz de engendrar quando às súmulas dos Tribunais de Justiça – inclusive quando se fala do TJSP, maior Tribunal do mundo em volume de processos. Ao final, veremos que, apesar da vinculatividade, cerca de 25% dos enunciados da súmula editada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo se afiguram inaplicáveis.

Tipologia: Teses (TCC)

2020

Compartilhado em 17/04/2020

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ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
VITOR AUGUSTO HADDAD
São Vinculantes os Enunciados da Súmula do
Tribunal de Justiça de São Paulo?
São Paulo - SP
2020
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ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

VITOR AUGUSTO HADDAD

São Vinculantes os Enunciados da Súmula do

Tribunal de Justiça de São Paulo?

São Paulo - SP 2020

VITOR AUGUSTO HADDAD

São Vinculantes os Enunciados da Súmula do

Tribunal de Justiça de São Paulo?

Monografia apresentada à Escola Paulista da Magistratura, como exigência parcial para aprovação no 9ºCurso de Pós-Graduação ‘Lato Sensu’

  • Especialização em Processual Civil Orientadora: Profª. Márcia Helena Bosch São Paulo - SP 2020

RESUMO Com o advento da Lei nº 13.105/2015, o (ainda) novo Código de Processo Civil, diversas mudanças foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas, a de maior relevo, do ponto de vista estrutural do direito, é a instituição de um sistema de precedentes no Brasil. Nada obstante, para além do IRDR e IAC, poucos juristas se atentaram para o fato de que as Súmulas, ante a novel sistemática, adquiriram contornos de ainda maior relevo à consecução do ideal de uniformização da jurisprudência no país. Trata-se, com efeito, de algo pouco compreendido. A bem da verdade, esta pesquisa não encontrou estudo algum debruçado sobre a questão do efeito que o inciso V do art. 927 do aludido diploma é capaz de engendrar quando às súmulas dos Tribunais de Justiça – inclusive quando se fala do TJSP, maior Tribunal do mundo em volume de processos. Daí a premência da questão que noutros termos aqui se coloca: a Súmula do TJSP é agora vinculante? Veremos que a pergunta é bem mais complexa do que a princípio parece. Estudaremos seus fundamentos, contexto e função; a dogmática instituída e sua importância para o mundo do civil law. Falaremos sobre a eficácia vinculante que exsurge do aludido dispositivo e testaremos sua constitucionalidade. Com isso, bem compreendidos sua normatividade e elementos constitutivo, bem como sua dinâmica e operação, enfrentaremos a questão que foi colocada – com o que chegamos a uma surpreendente conclusão: apesar da vinculatividade, cerca de 25% dos enunciados da súmula editada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo se afiguram inaplicáveis. Palavras-chave: Uniformização da jurisprudência. Súmulas. Precedentes. Efeito vinculante.

ABSTRACT With the enactment of Law no. 13.105/2015, the (still) new Code of Civil Procedure, several changes were introduced in the Brazilian legal system. Among them, the most important from the structural point of view of law, is the institution of a system of precedents in Brazil. Notwithstanding, besides the IRDR and IAC, few jurists paid attention to the fact that the Súmulas, before the new systematics, took on even greater relevance to the achievement of the ideal of standardization of jurisprudence in the country. It is, in fact, something little understood. Indeed, this research did not find any study addressing the issue of the effect that item V of art. 927 of the aforementioned diploma is capable of generating when it comes to the súmulas of the Courts of Justice - including when we talk about TJSP, the largest Court in the world in terms of volume of cases. Hence the urgency of the question that, in other terms, is posted here: is the Súmulas of TJSP now binding? We will see that the question is much more complex than it seems at first. We will study its fundamentals, context and function; the instituted dogmatics and its importance to the world of civil law. We will talk about the binding effectiveness that emerges from the mentioned instrument legal and test its constitutionality. Thereby, well understood its normativity and constitutive elements, as well as its dynamics and operation, we will face the question that was posted – which leads us to a surprising conclusion: despite the binding effect, about 25% of the enunciations of the súmula edited by TJSP appear inapplicable. Keywords: Uniformity of jurisprudence. Súmulas. Precedents. Binding effect.

I. Introdução Dentre as diversas novidades advindas da Lei nº 13.105/2015, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o (ainda) novo Código de Processo Civil – cuja eficácia normativa, como cediço, extravasa em muito o âmbito civilista do processo –; a mais importante, do ponto de vista estrutural do direito, é a ideia de uniformização da jurisprudência enquanto corolário da instituição de um sistema de precedentes no Brasil. Foi essa, aliás, a qualificação dada pelo Professor Alexandre Câmara quando introduziu o Tema “Sistema de Precedentes e Uniformização de Jurisprudência: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – Incidente De Assunção De Competência (IRDR e IAC)”, em palestra ministrada na Escola Paulista da Magistratura no dia 13 de maio de 2019 1 . O que faz todo sentido; afinal, trata-se de atribuir à determinados pronunciamentos jurisdicionais a qualidade de fonte de direito, para que o mesmo entendimento já exarado seja aplicado com equidade a casos análogos – persuasivamente ou com vinculação. Trata-se de algo eminentemente novo no Brasil. Recobre-se que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas sequer existia antes do novel diploma. Nada obstante, menos de quatro anos depois, só no STJ já são mais de 1.000 temas afetados 2 . Importante notar que a instauração de qualquer dos incidentes de uniformização de jurisprudência (IRDR e IAC) têm o condão de causar a suspensão de todos os processos em andamento que contenham a mesma controvérsia. O que pode durar anos – e nem sempre corresponde à melhor técnica. Veja-se, por exemplo, que admitido o incidente, seja ele IRDR ou IAC, deve o relator suspender todos os processos pendentes – individuais ou coletivos – que tramitam no Estado (art. 982, I do CPC) 3

. O grande problema é que, não raro, os tribunais demoram para decidir (^1) CÂMARA, A. A. F., “Sistema de precedentes e uniformização de jurisprudência: IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e IAC – Incidente de Assunção de Competência” (palestra), Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 13 de maio de 2019. (^2) Em consulta realizada no dia 10/01/2020, esta pesquisa identificou 1.040 temas afetados. (^3) Para o IRDR há expressa previsão de suspensão dos processos (art. 982, I do CPC). Quanto ao IAC, não há idêntica regra no art. 947. Contudo, por integrar o microssistema de formação de precedentes vinculantes, entende-se que devem ser aplicadas as normas que o compõem. Entendimento esse, aliás, adotado pelo STJ nos três primeiros IAC admitidos, onde houve a suspensão dos processos em razão da decisão de admissão (RESP 1.604.412/SC, RESP 1.303.374/ES e RMS 53720/54712/SP)

sobre os temas afetados – atrasando a solução para milhares de processos que ficam paralisados 4 . Ora, quantos são os entendimentos já sedimentados que deixam de ser observados simplesmente porque a eles não se atentou o operador do direito? Quer dizer, sem qualquer necessidade de suspensão, simplesmente a organizar a jurisprudência que já é dominante em determinado tribunal, podem ser enunciados em sumulas os entendimentos que, pela via recursal, se farão de todo modo prevalecer. Com efeito, para além do IRDR e do IAC, constituem as súmulas importante – conquanto não raro relegado – instrumento disponível à consecução do ideal de uniformização da jurisprudência país. Nada obstante, é patente a necessidade de uma releitura da ideia mesma de súmulas. Acredita-se que, ante a sistemática instituída pelo novel diploma processual, adquirem elas potencial que ainda não foi seriamente estudado. Sem ousar fazê-lo exaustivamente aqui, pretende este trabalho identificar se é possível afirmar que o Código de Processo Civil de 2015 atribuiu efeito vinculante à Súmula do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para tanto, na abertura do estudo, procuramos compreender quais os escopos da nova sistemática, sobretudo do ponto de vista da problemática a que se contrapõe como resposta, de modo tal a tornar mais claro efetivamente do quê se trata a concepção engendrada pelo legislador (capítulo II). Passamos, então, ao instituto que chamamos súmula, buscando compreender o sentido de um conceito que traduza seu contexto histórico e principais funções (capítulo III). Com isso, espera-se alicerçar uma base teórica segura à compreensão do sistema de precedentes instituídos no Brasil (capítulo IV). Veremos que aludido sistema, entre (^4) Observe-se que, nos tribunais do Brasil, 2,1 milhões de processos encontram-se paralisados em virtude de suas vinculações a temas repetitivos. Segundo dados que integram o relatório “Causas Recorrentes que Incham e Atrasam a Justiça”, O TJSP é o Tribunal com o maior número, com 536,2 mil processos sobrestados. O dado integra o relatório que o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) do Conselho Nacional de Justiça tornou público em 2018. Sobreleva, ademais, que a suspensão dos processos pode durar anos. O caput do art. 980 do CPC dispõe que “O incidente será julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus”; dão obstante, o parágrafo único respectivo excepciona que “superado o prazo previsto no caput, cessa a suspensão dos processos prevista no art. 982, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário” (grifo nosso). (CNJ. Causas recorrentes que incham e atrasam a justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias. Brasília. 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/02/9713790dc724bd649ecc373c44a6b60f.pdf. Acesso em: 13 de janeiro de 2020)

da qual é possível compreender os mecanismos de distinção (distinguish – restritiva ou ampliativa) e superação (overruling) de sua normatividade vinculativa. O que é essencial à consecução da tarefa a que nos propusemos. Basta notar que a observância obrigatória a determinado precedente pressupõe identidade entre casos – o que se verifica, a contrario sensu, quando rechaçada hipótese de distinção. Por outro lado, em não havendo distinção e em estando a ele vinculado, apenas mediante superação pode o órgão prolator se afastar do precedente invocado. Daí a importância de se compreender como os precedentes se relacionam entre si e com as demais normatividades a que, em maior ou menor grau, se vincula o julgador. Chega-se, com isso, ao capítulo X. Nele, cuida-se de derradeiramente enfrentar a questão. Ficará ainda mais claro que a súmula de um Tribunal – e seus respectivos enunciados

  • só pode ser compreendida à luz dos precedentes que lhe deram ensejo. Jamais enquanto normas gerais e abstratas. Por isso, investigaremos a conformidade dos enunciados sumulares emitidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, para que se possa assim finalmente identificar o que há – ou não – de vinculatividade. Esboçados o escopo e a abordagem da pesquisa, passa-se ao estudo propriamente dito. É o que se faz.

II. Fundamentos para adoção de um sistema de precedentes vinculantes Com o advento do Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº. 13.105/2015), o sistema jurídico brasileiro passa por uma profunda mudança. Um importante aspecto da transição que se observa, notadamente, é a adoção expressa da vinculação dos precedentes judiciais tendo em vista a consecução do ideal da uniformização da jurisprudência no Brasil. Desde a tramitação do projeto no Congresso Nacional, a inovação normativa polariza o debate doutrinário sobre o tema. Desperta atenção sobretudo na medida em que, em tese, impõe limites de cunho material ao ato de decidir – cuja maior discricionariedade estava acobertada pela independência funcional e pelo livre convencimento motivado do magistrado. A par disso, para alguns, a ideia de vinculação aos casos precedentes seria uma importação inadequada, vinda de uma tradição jurídica notadamente distinta (common law), representando uma ameaça de ruptura com os princípios da legalidade e separação de poderes. Para outros, a teoria dos precedentes, enquanto fonte de direito, seria intrínseca à tradição mesma do civil law, refletindo não mais que um imperativo da racionalidade, coerência, segurança jurídica e igualdade. Deixe-se de pronto bastante claro que, para esta pesquisa, sendo una a jurisdição no Brasil, um só Direito deve ser aplicado no território nacional. Daí que não se pode coonestar que casos iguais sejam tratados de forma diferente, a depender da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão jurisdicional. Parte-se, com efeito, da premissa de que não se pode admitir que a sorte dos litigantes fique a depender do fenômeno da jurisprudência lotérica. Não obstante, na realidade brasileira, a prática parece ser bastante diferente. Há pouco tempo atrás, minha mãe, que é advogada, confessou-me que mentira para seu cliente: explicou-lhe que a vitória no processo era incerta; mas que se a justiça era cega, não era porque não via, e sim porque lhe importava apenas o peso em cada um de seus pratos

  • e que se fizessem pesar os fatos, o direito seria reconhecido. Confessou que o disse sabendo que não era assim. Que no mesmo dia tinha sido intimada acerca de embargos que opusera em virtude de manifesto erro material. Que foram rejeitados e sabia que não foram lidos. E que sói ocorrer assim. Daí a anedota contada na citada palestra pelo Professor Alexandre Câmara, a representar o que considera o maior drama na vida de um advogado:

o que, à luz dos princípios basilares de um Estado Constitucional, por certo não pode ser tido como natural. Converter-se-ia, com isso, a independência funcional e o livre convencimento motivado em escusas para que se admita que juízes diferentes julguem radicalmente diferente casos iguais ou muito parecidos. Porque se isso for tido como correto e normal, estar-se-ia a dizer que é razoável que exista um direito diferente para cada pessoa. É imperativo que se estabeleça um equilíbrio entre legalidade e arbítrio. Sobreleva, pois, que o caput do art. 5º da Constituição Federal dispõe que “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza” – deixando manifesto que perante a justiça o tratamento isonômico se impõe como princípio norteador elementar; donde dimana, inclusive, o direito fundamental à segurança jurídica. Entretanto, não se trata de um desafio singelo. Observados os dados dos relatórios “Justiça em Números”, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, constata-se que se afigura humanamente impossível ao juiz, especialmente ao magistrado paulista, apreciar, com a detida atenção que dele se espera, as questões que lhe são postas à frente. O que se expressa no gigantismo dos números do Tribunal de Justiça de São Paulo: considerado o maior tribunal do mundo em volume de processos, o número de demandas corresponde a 26% do total de processos em andamento em toda a Justiça brasileira 10

. No ano-base de 2018, foram cerca de 5,5 milhões de casos novos, 20 milhões de processos em andamento; contando com mais de 2.700 magistrados e 68. servidores e auxiliares nas suas 320 comarcas^11. Vê-se patente, pois, que o volume de demandas que chegam ao judiciário é muito maior que a capacidade de o juiz compreendê-las em toda a sua complexidade. Doutra banda, o crescente processo de judicialização pelo qual passa nossa sociedade questiona cada vez mais sua atuação, tencionando seus limites enquanto Poder – ele próprio cada vez mais demandado 12 . (^10) TJSP. Quem Somos. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/QuemSomos. Acesso em: 18 de janeiro de 2020. (^11) CNJ. Justiça em números 2019. Brasília. 2019. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp- content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf>. Acesso em: 12 de janeiro de

(^12) Nesse sentido, recorde-se que o Poder Judiciário também atua como um pólo gerador de demandas, sobretudo em decorrência (STF, Ministros do STF começam análise de Enunciados de jurisprudência para edição de nova súmula (atualizada), 2003) de fatores como a velocidade pela qual responde às demandas que chegam

Ademais, fato é que a massificação das demandas judiciais tem cobrado um altíssimo preço de toda a sociedade: juízes consumidos pela demanda judicial, advogados frustrados pela forma como são respondidas suas razões e jurisdicionados periclitantes quanto ao desfecho de sua causa. De mais a mais, não se pode ignorar que são milhões de causas repetitivas no país. Não se cogita sejam individualmente julgadas – até porque, o escopo da economia processual é também a efetividade da jurisdição. A segurança jurídica seria outrossim gravemente atingida. Ao contrário do que muitas vezes se espera, juízes não são máquinas. Não obstante, a ausência de um procedimento decisório articulado torna absolutamente imprevisível a solução que será adotada por este ou aquele julgador. O congestionamento causado, por outro lado, afeta também outros processos, que se perdem em meio à massificação de litígios. Do ponto de vista do jurisdicionado, afigurando-se injusto que haja desfechos completamente distintos para demandas idênticas, a ideia de loterização atua como concausa e corolário do déficit de previsibilidade e estabilidade nas relações sociais subjacentes aos litígios. Ora, se no civil law a legislação em abstrato pretende traduzir previsibilidade (princípio da legalidade), a disparidade das decisões judiciais, a revelar seu conteúdo concreto, coloca à prova a coesão do sistema^13. Sem segurança jurídica não há pacificação social. À vista de tal cenário, a ideia de uniformização da jurisprudência tenciona engendrar e garantir um padrão mínimo de segurança jurídica e isonomia (pressupostos de natureza deontológica), com vistas sobretudo à celeridade processual, desestímulo à litigância e solução para causas repetitivas (pressupostos pragmáticos) 14 . Com isso, igualdade perante a jurisdição, racionalidade, previsibilidade, estabilidade, confiança, coerência, imparcialidade, economia processual (de processos e de despesas), até ele, ausência de uniformização jurisprudencial e gerenciamento de processos. (GABBAY, D. M.; et al. Diagnóstico sobre as causas de aumento das demandas judiciais cíveis, mapeamento das demandas repetitivas e propositura de soluções pré-processuais, processuais e gerenciais à morosidade da Justiça. Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2010. p. 10. (^13) Como veremos mais adiante, a importância da previsibilidade das decisões judiciais no common law é inerente à tradição jurídica e, portanto, ao próprio sistema – daí a força da regra do stare decisis. Nesse sentido, Marinoni (2016) explica que “O advogado de common law tem possibilidade de aconselhar o jurisdicionado porque pode se valer dos precedentes, ao contrário daquele que atua no civil law, que é obrigado a advertir o seu cliente que determinada lei pode – conforme o juiz sorteado”. (MARINONI, L. G. Precedentes obrigatórios. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016. p. 43) (^14) NEVES, D. A. A. Manual de direito processual civil. 9. ed. Salvador: Jus Podivm, 2017.

fáticas semelhantes, deve haver fundamentação adequada que a justifique. Trata-se da autovinculação do Poder Judiciário, mediante redução do espaço de discricionariedade dos órgãos de decisão isoladamente considerados. Em síntese, cuida-se da uniformização da aplicação do Direito à luz de uma teoria própria de precedentes formalmente vinculantes. Como oportunamente se verá, é inegável a influência do comom law no sistema de precedentes instituído no Brasil. Sem embargo, conquanto importante ponto de partida, não se pode cogitar que as formulações sobre o tema sejam meramente transplantadas para a nossa realidade. Com efeito, carece o estudo de uma teoria insculpida à luz da tradição jurídica brasileira e de seus próprios institutos. Nessa senda, antes de proceder à análise de seu efeito vinculante, enquanto instrumento de uniformização tipicamente brasileiro, impende um estudo mais detido quanto ao conceito de súmula e seus respectivos enunciados, contextualizando sua adoção entre nós e suas principais funções.

III. Súmulas: contexto e função A ideia de uniformização não é nova entre nós. Já no Brasil Colônia podem ser observados mecanismos de uniformizar e racionalizar a atividade jurisdicional. A propósito, com tal escopo eram utilizados os chamados Assentos das Casas de Suplicação – instrumentos balizadores da jurisprudência brasileira, incumbindo aos juízes de instâncias inferiores observar os dispositivos dos Tribunais Superiores portugueses como leis a serem cumpridas 17 . Também à fase republicana não faltou tal intento. Destacam-se os prejulgados da Justiça do Trabalho, possibilitando ao TST estabelecer, de forma genérica e abstrata, a interpretação reputada adequada ao texto legal^18. Aliás, quanto ao tema, quando de sua palestra na EPM, Nelson Nery Jr. (2019) comenta que esses prejulgados eram o gérmen do que hoje se entende por súmula. Nesse sentido, visando racionalizar o trabalho, com base no trabalho do Ministro Victor Nunes Leal, propôs-se a adoção de um sistema similar aos assentos expedidos pela Casa de Suplicação de Lisboa e aos prejulgados da Justiça do Trabalho, na tentativa de alcançar um meio-termo entre a rigidez destes e a ineficiência daqueles^19. (^17) Os assentos, já consolidados na cultura portuguesa, estavam previstos nas Ordenações Filipinas e na Lei da Boa Razão de 1769, nos arts. 4° e 5°. Segundo o Professor Nery Jr. (2019), trata-se da primeira experiência de uniformização no direito luso-brasileiro, quando a Casa de Suplicação de Lisboa, antiga Suprema Corte de Portugal, emitia entendimentos abstratos, enunciados sob forma de teses, com efeito de legislação. Seria o judiciário elaborando um texto que teria vinculação com força de lei – portanto, um texto geral e abstrato, que são características de qualquer texto legal. (^18) O prejulgado trabalhista encontrava-se previsto nos artigos 702, alínea f e §1º e 902 §§1º e 2º da CLT, e foram objeto de muitas críticas pela doutrina especializada. Veja-se, por exemplo, o comentário de Evaristo de Moraes Filho: “Somos dos que admitem a sua inconstitucionalidade, pela verdadeira ditadura judiciária que estabelece, de cima para baixo, dando às decisões do TST, neste particular, mais força vinculativa, sem qualquer margem de divergência, do que a existente na própria lei”. Posteriormente, aludido instituto veio mesmo a ser declarado inconstitucional pelo STF e depois foi revogado. (apud: FERNANDES, E. B. D. O legado do ministro Victor Nunes Leal: defesa e construção de uma corte suprema democrática. Prêmio Victor Nunes Leal, Rio de Janeiro, 2010. pp. 23-24). (^19) Como observou o próprio Ministro, “As raízes dessa fórmula estão na abandonada tradição lusobrasileira dos assentos da Casa da Suplicação e na moderna experiência legislativa dos prejulgados” (LEAL, V. N. In: MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1104). Continua o Ministro: “a ‘Súmula’ realizou o ideal do meio-termo, quanto à estabilidade da jurisprudência..., ela ficou entre a dureza implacável dos antigos assentos da Casa de Suplicação, ‘para a inteligência geral e perpétua da lei’, e a virtual inoperância dos prejulgados” (LEAL, V. N. Passado e futuro da 'Súmula do STF'. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 293). Nesse mesmo sentido, o ministro Sepúlveda Pertence, por ensejo da análise de 108 enunciados de jurisprudência do STF para serem transformados em súmula, fez em plenário uma breve explanação sobre a origem do instituto: “A Súmula, pode- se dizer, é um meio-termo entre os antigos assentos da Casa de Suplicação – excessivamente rígidas - e os prejulgados de uma de nossas leis processuais que se tem revelado quase completamente ineficaz. Na Súmula, o

Consignado esse registro histórico, tão importante de se salientar no tempo em que vivemos, observe-se que, em notas ditadas ao jornalista Edísio Gomes de Matos, em agosto de 1964, Victor Nunes já apontava dois problemas graves nos trabalhos do Supremo Tribunal Federal: o primeiro, o desconhecimento de suas decisões, causado pela divulgação falha de seus julgamentos; o segundo, o acúmulo de serviço, principalmente de processos com questões jurídicas repetitivas. Anote-se que na época os Ministros julgavam cerca de 7. processos por ano^23 – número que em 2018 chegou a 125.000^24. Interessante notar, segundo relatos do próprio jurista, que havia grande dificuldade na identificação das matérias que a jurisprudência da Corte já estava pacificada. Não obstante, Alexandre Câmara conta que o Ministro Victor Nunes Leal, quando de seu ingresso, ficou impressionado como os ministros mais velhos citavam de cabeça julgamentos antigos. Preocupado com sua assumida falta de memória, começou a levar um caderno para as sessões e a anotar todos os julgamentos que achava importantes. Fazia uma espécie de síntese dos julgamentos que achava relevante numa frase e as ia numerando. À medida que o tempo foi passando, a funcionalidade do caderninho, que só fazia crescer, chamou a atenção dos demais ministros – que sugeriram oficializar, dando publicidade àquilo como um pequeno resumo do que era a jurisprudência dominante da Corte^25. Daí a Súmula da Jurisprudência Predominante do STF, com enunciados sintéticos e capazes de consubstanciar a essência do entendimento anteriormente firmado – como rememorou o eminente Ministro em uma conferência realizada em Santa Catarina no ano de 1981, atribuindo a origem das súmulas à sua própria falta de memória: Por falta de técnicas mais sofisticadas, a Súmula nasceu – e colateralmente adquiriu efeitos de natureza processual – da dificuldade, para os Ministros, de identificar as matérias que já não convinha discutir de novo, salvo se sobreviesse algum motivo relevante. O hábito, então, era reportar-se cada (^23) DIAS, M. G. B. Controle de constitucionalidade e política judiciária: evolução histórica das súmulas no Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 173, janeiro/março de 2007. pp. 175-191. (^24) COELHO, G. “STF recebeu 100 mil processos em 2018 e julgou 125 mil, mostra balanço”. Conjur,

  1. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-19/stf-recebeu-100-mil-processos-2018-julgou-124- mil>. Acesso em: 15 de janeiro de 2020. (^25) Alexandre Câmara (2019) aponta que o substantivo suma aparece no inciso I do 489 do CPC, empregado no sentido de síntese, resumo. Recorda que diminutivo de suma é sumula – assim, um pequeno resumo. Nesse sentido, aliás, parece a acepção empregada no art. 158 do Regimento Interno do TJSP, ao dispor que “Do acórdão constarão [...] III - a súmula do que ficar decidido, inclusive em questão de ordem, preliminar e agravo retido”.

qual à sua memória, testemunhando, para os colegas mais modernos, que era tal ou qual a jurisprudência assente na Corte. Juiz calouro, com a agravante da falta de memória, tive que tomar, nos primeiros anos, numerosas notas, e bem assim sistematiza-las para pronta consulta durante as sessões e julgamento. Daí surgiu a ideia da Súmula [...] Por isso, mais de uma vez, tenho mencionado que a Súmula é subproduto de minha falta de memória, pois fui eu afinal o relator não só da respectiva emenda regimental, como dos seus primeiros 370 enunciados.^26 Assim, inspiradas nos assentos da casa de suplicação e nos prejulgados da justiça do trabalho, nascidas das anotações que fazia durante as sessões do pleno para remediar a falta de memória do saudoso Ministro – cujo caderno, aliás, encontra-se hoje em exposição na biblioteca do STF –, as súmulas se encontram hoje difundidas no Supremo Tribunal Federal e em todos os Tribunais do Brasil. Consubstanciadas em enunciados sintéticos a expressar o entendimento sedimentado do órgão juriferante a que se refere, têm por escopo sobretudo – em sua concepção original, tal como agora – trazer isonomia, segurança e celeridade à atividade jurisdicional. Note-se que a expressão súmula deriva de “Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal” – e que, na linguagem regimental, refere-se não a cada enunciado, mediante o qual o Tribunal expressa sua orientação dominante acerca de determinada questão, mas ao conjunto dos enunciados. Como explicou o Professor Alexandre Câmara, não se diz súmula x; mas enunciado x da súmula tal 27

. Súmula é o todo, enquanto cada enunciado é uma parte. Não obstante, como bem pontua Nelson Nery, sói empregarmos a parte pelo todo, uma sinédoque – o que não traduz qualquer problema, tratando-se de uma figura de linguagem plenamente admissível 28 . De todo modo, como vimos, primeiro tivemos os assentos, depois os prejulgados, e então as súmulas introduzidas por influência do Ministro Victor Nunes Leal, em meados da década de 60 29 . Até aqui, tem-se a súmula de uma Corte composta dos diversos verbetes que a integram, enunciados a representar a jurisprudência sedimentada, atuando no campo pedagógico e na aplicação mesma do direito. (^26) INSTITUTO VICTOR NUNES LEAL. A contemporaneidade do pensamento de Victor Nunes Leal. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 9. (^27) CÂMARA, 2019. (^28) NERY JR., 2019. (^29) Precisamente em 1963, por emenda regimental do Supremo Tribunal Federal, em 30 de agosto de 1963, sendo que os 370 primeiros enunciados foram publicados em 1º de março de 1964.