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Este texto narra a história de um fidalgo que fugiu de veneza, evitando a prisão e a morte, e o impacto que teve na cidade e nas pessoas que conheceu durante sua fuga. O texto descreve as aventuras do fidalgo, as pessoas que encontrou e as reações que causou em cada lugar que passou.
O que você vai aprender
Tipologia: Exercícios
Compartilhado em 07/11/2022
4.6
(158)172 documentos
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Não perca as partes importantes!
Romance
Tradução de Miguel Serras Pereira
8.a^ edição
Despediu-se dos gondoleiros em Mestre; uma vez mais, Balbi, o frade renegado, por pouco o não fazia cair nas mãos da polícia porque, no momento em que a mala-posta ia partir, tivera que se pôr à procura dele e acabara por descobri-lo num café onde, enquanto beberricava alegremente uma chávena de chocolate, se deixara ficar a namorar a criada com os olhos. Gastou todo o dinheiro que tinha em Treviso; puseram-se a caminho pelo meio dos campos atravessando a porta de São Tomé e, contornando com cautelas de lobo os hortos e florestas, alcançaram pelo cre- púsculo as primeiras casas de Valdobbiadene. Aí, ele puxou do punhal, ameaçou com a lâmina o seu pouco cómodo companheiro de viagem, a seguir ao que marcaram um encontro para Bolzano e se separaram. De mau humor, o padre Balbi ia-se arrastando por entre os troncos nus das oliveiras; era um homem magro e deslei- xado. Enquanto corria virava-se para trás a todo o instante, com a cabeça metida entre os ombros, lançando olhares sombrios e dis- simulados como um cão tinhoso corrido a pontapé pelo dono. Quando o frade desapareceu, ele entrou na vila e, com um ins- tinto cego e seguro, foi pedir pousada a casa do capitão dos esbir- ros. Uma senhora amena, mulher do capitão, apresentou-se para o receber, jantou, lavaram-lhe as feridas – tinha os joelhos e os
Balbi ficava instalado ao fundo do corredor, junto às escadas estreitas e íngremes que conduziam aos sótãos das criadas. E tal localização dos aposentos enchia -o de satisfação.
A Conversa de Bolzano
lúgrube. Por instantes adormecia, murmurava, soltava gritos. Balbi, o estalajadeiro e as criadas rodopiavam à volta dele, boquia- bertos: fizeram-lhe a cama na alcova, correram as cortinas e sopra- ram quase todas as velas. À hora do jantar, tiveram que ficar a bater-lhe à porta durante muito tempo. Depois de comer, muito em breve voltou a cair no sono; no dia seguinte, dormiu até ao meio-dia, com um rosto liso e despreocupado, indiferente, como o dos mortos de um dia. Um figaldo, diziam as raparigas, e tratavam das duas ocupa- ções cantando, rindo e segredando, na cozinha e na cave, lavavam os carros e enxugavam os pratos, partiam lenha miúda, serviam bebidas, baixavam a voz, punham um dedo diante dos lábios, vol- tavam a rir, depois retomavam um ar sério e faziam circular a notí- cia, com afetação e entre gargalhadas: um figalgo, sim, um fidalgo, de Veneza. À noitinha, entraram em cena dois espiões; o nome dele, o seu nome suspeito e fascinante, o seu nome interessante e perigoso a que a grande aventura, a notícia da evasão, recente- mente concedera novo brilho, atraía os polícias de todas as cida- des. E queriam saber tudo. Estava a dormir?… Não tinha bagagens?
Sándor Márai
Sándor Márai
Tiveram um sono cheio de pavores, de roncos, de arquejos, de fungares e, enquanto dormiam, tinham a impressão de que alguma coisa estava a acontecer-lhes. Tinham a impressão de que havia alguém a andar à volta da casa, tinham a impressão de que alguém os chamava e de que teriam de responder como ainda nunca haviam respondido. A pergunta que o estrangeiro lhes fazia era insolente, descarada, opressiva e, acima de tudo, aterra- dora e triste. Mas de manhã, ao despertar, já de nada se lembravam. Enquanto dormiam, difundira-se a notícia de que ele chegara, de que se evadira dos Piombi, navegara em pleno dia para fora da cidade-natal, deixara com um nariz de palmo e meio Suas Exce- lências, os terríveis senhores da Inquisição, ludibriara Lorenzo o carcereiro, libertara o frade renegado, abandonara tranquila- mente a cidadela dos doges, tinham-no visto em Mestre a dormir na mala-posta, em Treviso a beber vermute numa taberna, e um camponês jurou tê-lo avistado na fronteira a lançar um feitiço às vacas. A notícia difundira-se nos palácios de Veneza, nas casas de comensais dos arrabaldes, e os bispos e os senadores, os algozes e os guardas, os espiões e os jogadores, os amantes e os maridos, as jovens na missa e as senhoras nas suas camas quentes rebenta- ram de riso e exclamaram: «Ho ho!» Ou exclamaram a plenos pul-
quartéis de polícia as pastas abriam-se e fechavam-se ruidosa- mente, os capitães berravam, os juízes com as orelhas vermelhas ouviam os acusados e distribuíam colericamente por eles prisões, exílios, galeras e patíbulos. Falava-se dele nas igrejas, era alvo de condenações no fim da missa, porque reunira os sete pecados capitais no seu corpo maldito, o qual, segundo o sacerdote, seria posto a cozer num caldeirão especial e a assar num fogo especial, no inferno e até ao fim dos tempos. Mas até mesmo no confes- sionário o seu nome era evocado; senhoras de joelhos, com a cabeça profundamente inclinada, balbuciavam o nome dele por trás do livro de orações, batiam no peito e juravam penitências. E toda a gente se regozijava como se uma coisa boa tivesse suce- dido em Veneza e em todas as cidades e aldeias da República que ele atravessara. Dormiam as pessoas e sorriam no sono. Por toda a parte onde ele passava, fechavam-se para a noite as janelas e as portas com mais zelo, e, por trás dos taipais corridos, homens discutiam demoradamente com as mulheres. Como se todos os sentimentos que, na véspera ainda, não passavam de brasas e cinzas, começas- sem a fumegar, a arder. Não enfeitiçara as vacas, mas os campo- neses juraram que nesse ano os bezerros eram mais numerosos e mais bonitos. As mulheres acordavam, traziam a água do poço em grandes baldes de madeira, acendiam o lume na cozinha, aque- ciam o leite e punham peças de fruta na travessa esmaltada, davam o peito aos filhos, davam de comer aos homens, varriam o quarto e faziam a cama, e durante todo esse tempo não paravam de sorrir. Durante muito tempo o sorriso não deixou os rostos, em Veneza, no Tirol e na Lombardia. O sorriso propagava-se como uma espécie de epidemia dulcíssima e leve, propagava-se para além -fronteiras, até mesmo em Munique as pessoas estavam já a par do acontecido e esperavam a chegada dele a sorrir, e a notícia chegou a Paris, houve no Parque dos Veados quem contasse ao
A Conversa de Bolzano
rei a história da evasão, e também o rei se rira. E soube-se em Parma e em Turim, em Viena e em Moscovo. E por toda a parte se sorria. E os polícias e os juízes, os esbirros e os espiões e todos os que tinham por ofício manter os homens sob o jugo do poder e do medo se atiraram então ao trabalho com cólera e desconfiança. Porque não há nada mais perigoso do que um homem que não é capaz de se submeter à tirania. Sabiam que tudo o que ele tinha era um punhal, e só um punhal; mas durante algumas semanas, os corpos de guarda foram reforçados nas fronteiras. Sabiam que não tinha cúmplices e não se interessava por política; mas o secretário da Inquisição urdiu um plano de batalha completo para o prender de novo, o fechar na sua jaula, morto ou vivo, servindo-se tanto do ouro como do punhal, custasse o que custasse. Foi comunicada ao doge a sua evasão, e o senhor encorpado, de olhos penetrantes, bateu na mesa com a mão carregada de anéis e ameaçou os carcereiros com as galeras. Os senadores, com as suas mãos finas e amarelas, aper- taram com mais força os forros das capas de seda contra o peito, sentados sem uma palavra na grande sala, nas suas poltronas, aspi- raram o ar fungando com os seus narizes amarelecidos de diabé- ticos e, examinando por trás das pálpebras semicerradas com um olhar indiferente os frescos do teto e as traves mestras da Sala do Conselho, votaram leis mais severas, encolheram os ombros, e calaram-se. Mas por trás do sorriso propagava-se como que uma febre que contaminou a mulher do padeiro, a irmã do ourives e até a própria filha do doge. As pessoas, sozinhas nos seus quartos, davam pal- madas de alegria na barriga e riam a bandeiras despregadas. Era tremendamente reconfortante saber que alguém conseguira esca- par aos muros com um metro de espessura, à vigilância dos guar- das armados de lanças e chuços, ao abraço das cadeias com o diâmetro de braços de criança. Depois as pessoas entravam nas
Sándor Márai
enchera de ternura. À noite, assomavam às janelas e varandas que dominavam as lagunas, tendo na cabeça um véu preso por uma travessa em forma de lira e um lenço de seda por cima dos ombros, e olhavam a água suja e engordurada que calma e indi- ferente fazia flutuar as embarcações, e respondiam com olhares que na véspera ainda não teriam consentido em conceder, deixa- vam cair um lenço de seda que lá em baixo, por cima do espelho de água, uma ágil mão morena agarrava, levavam uma flor aos lábios e sorriam. Depois fechavam as janelas e apagavam as luzes nas salas. Mas nos seus corações e nos seus gestos, nos olhos das mulheres e nos olhares dos homens, havia qualquer coisa que esplendia. Como se tivessem sido levados a compreender em segredo que a vida não era somente lei, interdição e cadeias, mas podia ser também uma emoção mais livre, mais insensata e mais improvisada do que até então tinham acreditado. Compreende- ram -no num instante, e sorriam -se. Esta cumplicidade foi de pouca dura: os livros da lei, as regras da vida, escritas ou não, asseguraram que o fugitivo se dissipasse nos seus corações. Algumas semanas mais tarde, haviam-no já esquecido em Veneza. Só o lembravam ainda o senhor de Bragadin, seu brando e generoso protetor, algumas mulheres a quem ele jurara eterna fidelidade, e alguns usurários e donos de tavolagens a quem ele ficara a dever dinheiro.
Sándor Márai