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Deslizamentos entre Trilogia, Romance e Palavra em 'Safando a Mistida' de Silá, Provas de Literatura

Este artigo analisa a trilogia de silá, 'safando a mistida', explorando a interconexão entre as obras e a importância dos personagens femininos na estrutura narrativa. O autor discute a questão da trilogia, sua definição e aplicabilidade a este caso específico, além de abordar a intertextualidade e a importância da língua crioula na obra.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Safando a Mistida: deslizamentos entre
trilogia, romance e palavra
Juliana Cristina Salvadori*
Resumo
Este artigo propõe uma leitura de Mistida, romance do autor guineense
Abdulai Silá, baseada em algumas estratégias narrativas por ele empregadas.
Uma dessas estratégias é a intertextualidade com os romances anteriores –
A última tragédia e A eterna paixão aspecto que dá a Mistida papel
estruturador no arranjo arquitetônico da trilogia de mesmo nome. Outra
estratégia é aquela que Guatarri e Deleuze definiram como típica de uma
literatura menor, a de desterritorializar uma língua maior, neste caso uma
língua européia – a portuguesa –, oficial mas de pouca circulação entre a
população em geral, e reterritorializá-la a partir das referências de outras
culturas locais, sinalizando que algo sempre fica de fora do sistema dito
maior. Para compreender essa estratégia, detive-me principalmente na
palavra mistida, que nomeia a trilogia e o romance, palavra de uso
comum – safar a mistida –, que, como um riff, uma frase melódica, tema
ainda por ser resolvido, repete-se e nos desafia a decifrá-la.
Palavras-chave: Literaturas africanas; Literatura guineense; Literatura
menor; Mistida; Intertextualidade.
* Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-graduação em Letras da
PUC Minas.
Mistida: trilogia, romance, palavra – algumas considerações
Iniciarei minha análise de Mistida, o romance, a partir de algumas considerações
sobre a estrutura da trilogia de mesmo nome, composta pelas obras A última
tragédia, A eterna paixão e pelo romance já citado. O fato de este último livro
nomear a trilogia é, por si só, bastante significativo. Se nos remetermos à primeira
publicação dos romances, perceberemos que, curiosamente, o primeiro livro da
trilogia, A última tragédia, escrito em 1984, foi publicado somente em 1995 – um
ano após A eterna paixão (1994), segundo livro da trilogia. Mistida, por sua vez,
foi publicado em 1997, um ano antes do golpe que levaria à guerra civil de 1998-1999,
fato que acrescentou certo estigma profético à obra. Essas primeiras publicações
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Safando a Mistida : deslizamentos entre

trilogia, romance e palavra

Juliana Cristina Salvadori*

Resumo

Este artigo propõe uma leitura de Mistida , romance do autor guineense Abdulai Silá, baseada em algumas estratégias narrativas por ele empregadas. Uma dessas estratégias é a intertextualidade com os romances anteriores – A última tragédia e A eterna paixão – aspecto que dá a Mistida papel estruturador no arranjo arquitetônico da trilogia de mesmo nome. Outra estratégia é aquela que Guatarri e Deleuze definiram como típica de uma literatura menor, a de desterritorializar uma língua maior, neste caso uma língua européia – a portuguesa –, oficial mas de pouca circulação entre a população em geral, e reterritorializá-la a partir das referências de outras culturas locais, sinalizando que algo sempre fica de fora do sistema dito maior. Para compreender essa estratégia, detive-me principalmente na palavra mistida, que nomeia a trilogia e o romance, palavra de uso comum – safar a mistida –, que, como um riff , uma frase melódica, tema ainda por ser resolvido, repete-se e nos desafia a decifrá-la. Palavras-chave: Literaturas africanas; Literatura guineense; Literatura menor; Mistida; Intertextualidade.

  • Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas.

Mistida: trilogia, romance, palavra – algumas considerações

Iniciarei minha análise de Mistida , o romance, a partir de algumas considerações sobre a estrutura da trilogia de mesmo nome, composta pelas obras A última tragédia , A eterna paixão e pelo romance já citado. O fato de este último livro nomear a trilogia é, por si só, bastante significativo. Se nos remetermos à primeira publicação dos romances, perceberemos que, curiosamente, o primeiro livro da trilogia, A última tragédia , escrito em 1984, foi publicado somente em 1995 – um ano após A eterna paixão (1994), segundo livro da trilogia. Mistida , por sua vez, foi publicado em 1997, um ano antes do golpe que levaria à guerra civil de 1998-1999, fato que acrescentou certo estigma profético à obra. Essas primeiras publicações SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009 173

foram efetuadas pela editora KuSiMon, do autor, que, como nos diz Silá “é antes de tudo uma aposta. Uma aposta na independência reclamada pelo significado criol das três sílabas KuSiMon, ‘com as suas próprias mãos’” (SILÁ, 1997). Foi somente em 2002 que essas obras foram republicadas em conjunto, pela editora Praia-Mindelo, com apoio do Centro Cultural Português, como trilogia nomeada a partir do último romance. Ora, se formos adotar o critério de trilogia em sua acepção mais comum hoje, para além da sua origem nas tragédias gregas – a de um conjunto de obras, disposta em uma determinada sequência cronológica que, em linhas gerais, segue a trajetória, temporal e/ou espacial, de determinadas personagens, seus descendentes e/ou ascendentes – perceberemos que a definição se mostra pouco satisfatória em relação a Mistida. Um dos problemas que poderíamos levantar com relação à denominação da trilogia seria o de uma descontinuidade espacial, por assim dizer. A eterna paixão passa-se em um país africano imaginário – apesar de aqui e acolá se perceber a Guiné-Bissau – uma espécie de exotopia –, algum lugar na África, posteriormente transmudado em utopia –, ao passo que da escrita e das publicações dos romances, os dois primeiros mostram referências mais diretas à Guiné-Bissau. A questão da sequência cronológica é também problemática, como apontado. Podemos ainda levantar outros argumentos para questionar o aspecto de trilogia se nos concentrarmos mais detidamente em A eterna paixão. Em termos de técnica narrativa o parentesco entre A última tragédia e Mistida é claro. A tessitura narrativa de ambos remete a um projeto coeso de representação, ao nos mostrar como os destinos dos personagens estão interligados, mesmo que eles não tenham, a princípio, consciência disso. Parte deste artigo analisará a estrutura e os planos narrativos de Mistida de modo a elaborar melhor essa asserção. Quanto a A eterna paixão , podemos dizer que a técnica fica aquém dos demais. Se o livro ganha por ter sido escrito em certas condições e com determinadas intenções, conforme declaração do autor em entrevista, ele perde em termos técnicos/ estéticos. Talvez seu papel na grande narrativa da trilogia seja o de nos alertar para o fato de que projetos pessoais como busca pela identidade, relação amorosa, família nuclear etc, quando desligados de um projeto maior como de nação, por exemplo, podem nos levar à frustração. Um dos argumentos que gostaria de apresentar por ora é o de que, apesar do que foi apontado acima, o conceito de trilogia pode ser aplicado a essas obras pelo fato de Mistida , ao dialogar com as outras duas obras, estruturá-las em um arranjo que Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

mítico. Eles somente passam a fazer sentido, isto é, dão-se a conhecer como parte integrante de uma urdidura maior, quando chegamos ao capítulo final. A estratégia aponta para uma certa circularidade: o final que nos é dado no primeiro plano narrativo remete, retrospectivamente, para o início da narrativa que nos é dada no segundo plano, pondo às claras o seu caráter complementar/suplementar. O leitor experimenta uma sensação de desconcerto: ao final do livro, descobrimos que, de fato, a sequência dos eventos já havia nos sido apontada logo de saída. O terceiro plano é constituído pelas epígrafes. Todos os dez capítulos- episódios de Mistida apresentam epígrafes que, em sua maioria – sete para ser mais específica –, são escritas em crioulo, língua veicular em Guiné- Bissau. Outras duas estão em inglês e são trechos de músicas de Bob Marley e Jimmy Cliff, famosos representantes do reggae jamaicano, e uma epígrafe aparece em fula, uma das línguas étnicas à qual pertence o autor. As epígrafes são, predominantemente, trechos de músicas que se tornaram populares principalmente durante a década de 1970 e que, portanto, marcaram a descolonização do continente africano e o período que se seguiu a este processo. Elas resgatam uma memória afetiva compartilhada por aqueles que viveram esse período e apontam para a questão da oralidade e de seu registro, como observa Anderson (2008) a respeito do rádio e seu papel na formação de nações em que a palavra impressa tinha pouca circulação. Diz ele: Inventado apenas em 1895, o rádio foi uma alternativa à imprensa e conseguiu criar uma representação auditiva da comunidade imaginada nos locais onde a página impressa tinha parca penetração. O seu papel na revolução vietnamita e indonésia, e de modo geral “nos nacionalismos da metade do século XX”, tem sido muito subestimado e pouco estudado. (ANDERSON, 2008, p. 93, grifo nosso) Cada um dos planos pode ser lido à parte, sem contato com outro, pois eles nos contam, cada qual a seu modo, uma parte da estória/história. Mas, como a própria escrita de Silá indica, pela questão da trilogia, e da estrutura dos capítulos que se amarram no décimo, há que cruzar os três planos justamente porque cada um conta apenas uma parte da estória ou, talvez, a mesma, mas a partir de outra(s) perspectiva(s). Esquematicamente, os planos narrativos e sua relação podem ser representados da seguinte maneira: Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

Figura 1: Planos narrativos de Mistida Por ora, voltemos à questão da intertextualidade e analisemos as ocorrências em que ela é explicitada. Apesar de, como dito anteriormente, a maioria das referências às outras obras concentrarem-se nos capítulos V, VI e VII, que têm mulheres como protagonistas, a primeira ocorrência se dá no capítulo II, intitulado “O Tribunal da Redenção”. Woro^2 , quando instado pelos companheiros de cela a contar sua história, relembra-a e, pensando na absurdidade que a caracteriza, diz consigo mesmo: “Às vezes aquilo até lembrava a passada que alguém contou num livro, passada de um Embaixador, salvo erro, que tinha sido espancado até a morte, acusado de tentativa de golpe de estado” (SILÁ, 2002, p. 44)^3. Essa fala, ironicamente marcada por um “salvo erro” – ora, o autor sabe o que escreveu – remete-nos à prisão do embaixador que tanto havia encantado Daniel, protagonista de A eterna paixão que acaba preso, acusado de tentativa de golpe de estado, e, uma vez preso, é morto após ser torturado. Daniel, o protagonista, chega a ver a si mesmo na prisão antes de ser encarcerado. No capítulo V, “Mama Sabel” – título do capítulo, nome de uma das protagonistas e título de uma canção popular que lá está como epígrafe – conversa com sua, inicialmente, antagonista, “a menina que vendia mancarra no beco”. A menina, já no início da narrativa, não vende mais mancarra e frequenta o night club. Diz a menina: “Faz de conta que estamos numa outra terra, está bem? Numa terra onde haja um sistema mais ou menos justo de distribuição da pobreza nacional como 2 - Woro, como nos diz a nota de rodapé deste romance, quer dizer seis em mandinga, uma das línguas de etnias muçulmanas da Guiné-Bissau. Todos os presos são numerados e se referem uns aos outros desta maneira. Reparem que esta questão do nome é recorrente em todo o romance e retoma já a questão posta em A última tragédia , onde Ndani é rebatizada pela sua patroa como Daniela, feminino de Daniel, nome do protagonista de A eterna paixão. Voltaremos aos nomes e sua importância na narrativa posteriormente. 3 - Doravante todas as citações dessa obra serão seguidas apenas do número de página, uma vez que referem-se a esta mesma edição. Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

já uma dupla retomada – tanto do outro romance quanto do outro capítulo. Djiba é uma personagem muito intrigante, pois, entre outras coisas, ela experimenta o que conclui ser a felicidade verdadeira – o poder –, discute com sua colega como tê-lo – tornar-se juiz, dar um golpe de estado – e, ao final, decide mudar de nome e, ao renomear-se, torna-se outra pessoa: Quando entrou no night club disse a todas as amigas com quem sempre partilhava a mesma mesa que tinha mudado de nome.

  • Como é que te chamas agora?
  • Mary Jo.
  • John? Será que ouvi bem?
  • Mary Jo! É isso mesmo: Mary Jo.
  • Mas John é nome de homem. Agora viraste aquela gente? (...)– Estás bem com este rosto podre? Não me mintas, Mary.
  • Não me chames esse nome! – quase que gritou.
  • Ai não? E pode-se saber porquê?
  • A Mary... é uma mulher feliz.
  • Disseste ontem que és feliz, muito feliz...
  • Era, era... Já não sou. Ela foi-se, fugiu esta noite.
  • Ela, quem?
  • A felicidade. Ela fugiu sem me prevenir. (p. 136-138) Novamente temos a questão do nomear-se em foco. No primeiro capítulo, os protagonistas nos são apresentados como Comandante e Madjudho, que significa desnorteado, perdido. No segundo, os protagonistas nos são referidos pelos seus números-nomes. No terceiro, sabemos apenas a profissão do protagonista, guarda- noturno, e que era um ex-combatente assombrado pelos fantasmas de sua memória –, e fantasma aqui não é figura de linguagem. Mama Sabel nos é apresentada no quinto, juntamente com uma rapariga não-nomeada: essa rapariga perpassa a narrativa, é referida ora por um personagem, ora por outro. Mas mesmo a nomeação de Mama Sabel será posta em xeque no capítulo final. Os demais personagens também nos remetem à questão da nomeação, o que torna a leitura confusa. De certa maneira, somos levados a compartilhar dessa espécie de amnésia que acompanha os protagonistas: cada capítulo deixa entrever apenas parte da estória de cada um, isto é, de seu passado, de quem são. Essa arquitetura narrativa confirma aquilo que Silá nos diz sobre Mistida : A mistida nasceu de um roubo. É por isso que, nas introduções cada capítulo, se fala de um roubo que não é um roubo normal. Tratava-se de roubo especial que só uma classe diminuta consegue de facto praticar que é roubar o cérebro. Portanto, tratava-se de Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

roubar o cérebro a uma pessoa – e não se diz se é homem, mulher, velho, criança... É por isso que em cada capítulo essa pessoa, a quem a memória é roubada, aparece como um outro personagem. Um antigo combatente, uma criança, uma vendedeira, sei lá, um funcionário, uma jovem... tudo isso representa essa pessoa a quem roubaram, de facto, a memória. E ela esqueceu-se de quem é e em cada capítulo aparece como uma pessoa diferente e no fim todas elas se juntam. É essa a génese da Mistida .” (p. 10) Ao final do capítulo X, “Kambansa” – que significa transição – as protagonistas dos capítulos V e VI, Mama Sabel e uma mulher não-nomeada, encontram-se e conversam longamente. Essa conversa se dá após o primeiro desfecho, digamos assim, aquele que todos almejavam: o ataque de Amambarka e Yem-Yem. Nesse capítulo, os vários eventos que não são da ordem do natural ou do ordinário e que pontuaram o final de cada capítulo do livro, como a sinalizar que algo ainda mais fantástico estaria para acontecer, culminam na grande procissão dos mortos. Poderíamos ler esses eventos como fantásticos. Não me intenciono aprofundar nessa questão, por isso concentro-me em Todorov. O autor lista três condições para que possamos classificar uma obra como pertencente ao realismo fantástico, das quais duas nos são pertinentes: a hesitação na classificação do evento e a rejeição das leituras alegórica e poética. Bem, a hesitação sobre como ler os eventos em Silá é patente. A leitura alegórica, contrária ao que o próprio autor nos aponta sobre seu texto – diz-nos ele, “escrevo sobre o que vi nas ruas” (SILÁ, 1997) – é também outra opção. De acordo com Todorov, citado por Sá, se a alegoria não é categórica, explícita, poderia vir a tornar-se mais uma ferramenta para que se estabelecesse a dúvida. Além deste fato, muitos contos alegóricos por definição somente explicitam seu aspecto totalizador ao final do texto, durante o desenrolar da narração. Desta forma, podemos vivenciar momentos fantásticos, que somente seriam considerados como alegoria ao término da leitura. (SÁ, 2003, p. 42) Acredito que esta explicação estaria mais de acordo com a experiência que a leitura de Mistida nos oferece, pois é realmente no capítulo X que essa leitura, de certa maneira, resolve-se. No capítulo em questão, os três planos narrativos convergem e passam a fazer sentido. Bem, na conversa entre as protagonistas dos capítulos V e VI muitas coisas se revelam. Este é o capítulo no qual (re)descobrimos que Mama Sabel e aquela Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

Outra estratégia discursiva usada por Silá diz respeito ao uso do léxico pertencente às línguas étnicas entremeado à sintaxe de uma língua de origem europeia escolhida como língua oficial e literária. Esse recurso foi adotado por vários autores ditos pós-coloniais para romper a uniformidade do tecido narrativo e mostrar, por meio também da forma, que algo sempre fica de fora nesse processo. A estratégia, denominada de desterritorialização e reterritorialização da língua, foi apontada por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Kafka por uma literatura menor como um dos pontos-chave para definir o que os autores conceituam como literatura menor: “[a literatura] que uma minoria faz em uma língua maior” (1977, p. 25). Esse fazer em uma língua maior, Silá e demais autores mostram (DELEUZE; GUATTARI, 1977) é um entrelugar muito penoso, pois a consciência dessa língua outra, opressora, por vezes leva ao sentimento de inadequação, que fica patente neste trecho do capítulo III de Mistida :

  • Queres uma cerveja?
  • Não.
  • Ela está bem fresca, toma!
  • Obrigado. Eu não bebo.
  • Ah, és muçulmano? Então toma um café.
  • Não, obrigado.
  • Porque?
  • Café não deixa alguém dormir... Gargalhadas saíram de todas as bocas e ele ficou a olhar sem saber qual era o motivo. Afastou-se imediatamente e deixou os outros ainda a rirem-se dele. “Tinha falado mau português? Fez algum erro de gramática? Não, não parece. Mas mesmo que fosse isso, qual era o problema? Então não ouviam os discursos dos Altos Dignitários da Nação? Não viam como gaguejavam? E os outros que arregalam os olhos e ficavam com cara de foronta cada vez que tinham que dizer uma frase em português? E os outros ainda que se armavam em intelectuais, que falavam, falavam e não diziam nada?” Ele não era politiqueiro, era guarda nocturno. “O trabalho dele é lidar com os ladrões nocturnos, não com os outros...”. (p. 363 – grifos nossos) Cabe lembrar que o processo desterritorialização-reterritorialização implica sempre em deslocamento: retoma-se, mas a partir de outro ponto. Desse modo, podemos sintetizar o argumento daqueles que optaram por manter as línguas europeias, a exemplo da portuguesa, como línguas oficiais e literárias de seus países, da seguinte maneira: importa mais o uso do que a origem, pois o uso leva à apropriação desta outra língua que passa também a ser minha. Isso não implica que o sentimento de certa inadequação seja apagado: usa-se a língua, mas sempre Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

consciente deste (des)encontro. Abdulai Silá lança mão dessa estratégia em sua trilogia Mistida , que já em seu título nos confronta e desafia – decifra-me ou te devoro. Quem passa pela experiência de ler essa obra na primeira versão, lançada pela editora do autor para um público guineense que domina o crioulo, língua veicular da Guiné, por várias vezes sente o chão faltar sob seus pés. Sabemos que uma das estratégias de leitura é tentar apreender o sentido de uma palavra desconhecida por meio do contexto, isto é, pelas pistas que o próprio texto dá. Mistida não é somente uma dessas palavras que aqui e acolá irrompem e rompem a urdidura: ela também nomeia o livro e a trilogia. A dúvida se instaura, portanto, desde o começo da leitura. Outra estratégia, a de buscar no título a chave de leitura da obra, não pode ser aplicada, pois Silá subverte este processo e nos faz procurar no texto o sentido de seu título, ao mesmo tempo em que aponta para a sua indecidibilidade pelo constante deslizamento da palavra. A definição que o autor nos dá de mistida mostra bem esse aspecto: ‘Mistida’ significa amor, desejo, ambição, afazer, etc. No entanto deve-se salientar que, ultimamente, este termo tem adquirido outros significados, que não têm nada a ver com a sua origem etimológica, nomeadamente, negócio, compromisso, etc. De facto, o seu significado só pode ser determinado no contexto de uma frase específica, tantos são seus possíveis significados e/ou sentidos. Deste modo, safar uma mistida (esta é a expressão que se usa) pode significar tanto ir beber um copo de vinho de caju, como concretizar um negócio, participar numa reunião do partido ou ainda fazer amor com uma amante. (SILÁ apud HAMILTON, p. 20-21- grifos do autor) Deste modo, o sentido dicionarizado do termo mistida – “mistida é um substantivo que parece derivar do verbo mandinga misti , ‘querer, almejar, desejar muito intensamente’, mais o sufixo românico da ”^5 (GANHO; McGOVERN, 2004, p. 28) – pouco ou nada nos esclarece. Os usos que os personagens fazem desse termo, que aparece sempre ao final de cada “capítulo”, com exceção do IV e do VIII, mostram-nos o deslizar de Mistida , ora palavra, ora romance, ora trilogia. Vamos nos ater um momento à questão dos capítulos. Penso que o termo não consegue dar conta da estruturação da obra. Este aspecto, inclusive, é apontado logo no primeiro parágrafo do Prefácio da primeira edição, escrito por Teresa Montenegro: 5 - Mistida, a noun which seems to derive from the Maninka verb misti , ‘to want, wish, desire very intensily,’ plus the Romance suffix da. Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

em uma epopeia como a (his)(es)tória de um homem só (p. 88), Silá mostra, em sua tessitura narrativa, como estes outros muitos “intérpretes” urdem a trama que lhes dá sustentação, talvez a grande mistida de todos. Não por acaso, os episódios apresentam um padrão, ou melhor, compasso, bem marcado: temos três episódios protagonizados por homens; a eles se segue uma espécie de quebra, o capítulo IV, que tem como protagonistas Amambarka, o “Timba”, o que mente e come suas próprias fezes, e Nham-Nham, o rei do lixo; depois dessa quebra retornamos ao compasso ternário, com mais três capítulos, mas agora protagonizados por mulheres; a eles se segue outra quebra, o capítulo VIII, protagonizado por Yem-Yem, o carrasco. Como foi dito anteriormente, estes capítulos, IV e VIII, não terminam com o tema comum, “safar a mistida”: a quebra é evidente. O capítulo IX, “Marrio”, prepara o encontro final, que se dá no décimo. Aqui, pela primeira vez no romance, temos homem e mulher interagindo. Nos três primeiros capítulos-episódios os homens são os protagonistas: ex-combatentes, presos políticos. Nos outros três, protagonizados por mulheres, também não há homens: o marido de uma foi levado (VI); Mama Sabel (V), sobre a rapariga também protagonista deste capítulo-episódio, diz: “conhecera a mãe daquela rapariga quando ainda era pequenina, corria na tabanca sem calcinhas na rabada. Ela mesma não se lembrava dela, não sabia ao certo quando é que nasceu nem chegou a conhecer o pai dela.” (p. 106). O uso do dêitico “ela” seguido por outro dêitico “dela” cria ambiguidade nesta sentença: Mama Sabel não se lembrava de quem, da rapariga ou da mãe da rapariga? O pai de qual delas Mama Sabel não chegou a conhecer? Por que este pai é/está ausente/desconhecido? Djiba e suas colegas (VII), por sua vez, não interagem com homens, mas com machos. Algo está aí muito errado e faz com que nos perguntemos, sobre os primeiros, onde estão suas mães, esposas, filhas, irmãs? E sobre as últimas, onde estão seus pais, filhos, maridos, irmãos? Paira a sensação de que algo muito errado aconteceu para que estes laços tenham sido de tal modo desfeitos. Bhabha consegue apontar uma possível resposta para esses questionamentos ao abordar a questão da nação em seu artigo “Disseminação”. Diz ele: “a nação preenche o vazio deixado pelo desenraizamento de comunidades e famílias e transforma essa perda em linguagem metafórica. A metáfora, como a etimologia da palavra sugere, transfere o significado de lar e pertença...” (BHABHA, 2003, p. 234). É essa transferência da pertença de uma comunidade concreta – a tabanca, a tribo, a vila – para uma comunidade imaginada – a nação – que está em xeque em uma obra como a de Silá e que nos permite dizer que, de alguma maneira, algo deu errado neste processo de Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

construir uma nação que mais se assemelha a um “plebiscito diário”, como nos diz Ernest Renan (1995). O capítulo IX, no entanto, mostra esses dois protagonistas que se (re) encontram – tanto um ao outro quanto a si mesmos. Este reencontro entre homem e mulher, no capítulo que nos prepara para o décimo, lugar de convergência dos planos narrativos e dos protagonistas, centra-se, em parte, na questão do nome:

  • Ainda não me disseste o teu nome – disse suavemente o doente, olhando para sua anfitriã.
  • Tu também não.
  • Tenho a certeza que conheces o meu nome. Eu é que não tenho a mínima ideia do teu. Ela levantou-se e foi até a janela, onde ficou a ver o que se passava no exterior. Havia um brilho excessivo para o pôr de sol que já ia nos seus últimos momentos.
  • Tive muitos nomes no passado. Dei a mim mesma vários nomes, que queria que reflectissem o meu estado de espírito, o que vivia e sentia dentro de mim, os sentimentos que me movia. Portanto...
  • Diz-me um deles. Aqueles que achares ser mais... mais actual.
  • Os meus nomes não são nem mais nem menos actuais. Eles são o que sinto. E os meus sentimentos neste momento estão muito dispersos, muito distantes... (p. 180-181) Por essa conversa fica claro que a anfitriã, aquela que recebe, é Djiba, a que se deu vários nomes. Mas ela também questiona seu hóspede:
  • Qual é o teu nome? Quero dizer o teu verdadeiro nome.
  • Não tenho nem verdadeiro nem falso nome. A minha condição é que é o meu nome.
  • Mas como é que te chamaram... antes desta condição?
  • Estive em várias condições...
  • Um exemplo.
  • Madjudho.
  • E foste-o na realidade?
  • Encontraram-me sozinho na floresta... Depois de um bombardeamento.
  • Ah... E como é que te chamarias actualmente?
  • Actualmente? ... Não, não tenho nenhum hoje. Amanhã talvez.
  • E qual é? Podes dizer-me?
  • Amanhã... amanhã... – parecia meditar profundamente no que ia falar. Procurou a mão dela e levou-a de novo ao peito, acariciando-a com afecto. – Amanhã... amanhã o meu nome será talvez... Arthudo... Sim, só pode ser esse mesmo, porque amanhã será um dia diferente. Muito diferente... (p. 187) Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

O sol e a lua encontravam-se lado a lado, brilhando, enchendo a terra de luz e claridade que segundo aquele desconhecido nunca mais iriam desaparecer. Enquanto a maioria dos presentes se entretinha admirando o fenómeno, houve um grupo que se destacou dos demais, indo ter com o recém-chegado. Á frente de todos seguia Arthudo. Foi o primeiro a abraçar o Comandante. Sorridente, perguntou-lhe qual era o tamanho da esperança que tinha a criança que Worowula levava ao ombro. Mas quem lhe respondeu foi o Comissário Político, que fez um eloquente discurso sobre o futuro da sua pátria amada que, finalmente, se libertara das trevas. Garantiu que a construção de uma nação pacífica e próspera, livre dos fantasmas da escuridão e da ignorância, seria a partir daquele momento a maior e comum mistida de todos os cidadãos (...) No meio da misteriosa dança, ouviu-se um espirro. Em uníssono, todos desejaram:

  • Mistida! (p. 202) No entanto, essa ainda não é a última vez que o termo mistida é usado no texto. Ele aparece ainda na última página do livro. Quem faz uso dele agora é o narrador, que, após ser desmascarado por Mama Sabel/Mbubi e Ndani, abandona a perspectiva adotada durante a narrativa, de câmera cinematográfica, e se dirige a nós, “caro leitor ou leitora” (p. 212) ou “estimada leitora ou leitor” (p. 213). A espécie de crise na qual o narrador se precipita, desencadeada pela conversa entre as protagonistas citadas, põe em xeque o ato de escrever, a “ingrata profissão, essa de djidiu de caneta” (p. 212). Mas essa não é a primeira vez que o narrador, na trilogia, põe-se em questão. Em A última tragédia a tensão entre o real, o fato e a literatura é também evidenciada. Se em Mistida as próprias protagonistas apontam e criticam o artifício, em A eterna paixão é o narrador que enumera as outras possíveis versões para o final de sua estória. Este fazer carregado de dúvidas, já evidenciado nas questões que, desde a página inicial do livro, nos são postas, torna-se objeto central do diálogo, agora aberto, que o narrador enceta com os leitores. Após as críticas dos personagens, após repensar sobre seu trabalho, o narrador nos convida a fechar o livro: “Ponha-o de lado e vá ver qual é a cor do sol, que já começou a brilhar. Ou então vá passear ao ar livre, inspire fundo e procure depois descobrir o aroma do novo vento que está a soprar”. (p. 213). Parece-me que o próprio narrador – ou talvez a voz autoral – aponta para uma possível solução desta tensão, calcada na prática, na experiência: Juliana Cristina Salvadori SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

Por isso, o melhor mesmo é não dizer mais nada, pelo menos por agora. Mas talvez o que seja possível que o que não possa revelar- lhe agora venha a ser detectado no Sol e Suor ou, quem sabe, nas Memórias SOMânticas. Depende... Seja como for, para ser honesto, a única coisa de que estou plenamente convicto neste momento é de que quando a Djiba Mané e as suas companheiras resgatarem a esperança, alguém, que certamente não será um mero djidiu de caneta, terá que ouvir a passada da boca de Mama Sabel, aliás, perdão, Mbubi, e escrever uma outra Mistida , que não será como esta que acabou de ler. (p. 214) Nos parágrafos finais do romance novamente a referência à memória sonora, afetiva, já indicada pelas epígrafes, é retomada: as Memórias SOMânticas – estas esperanças e o otimismo compartilhados e expressos nas músicas populares durante o pós-independência – e o Sol e Suor, palavras iniciais do hino de Guiné-Bissau, sinalizam que é preciso, de certa forma, retomar o que lá está posto: o fazer-se nação a partir daqueles valores afirmativos. Seguindo o conselho do narrador, o próprio autor colocou de lado a literatura e foi, com suas próprias mãos, ocupar-se de construir esta ideia de nação, na esperança de uma nova mistida: somente dez anos após esse romance, Silá volta a publicar outra obra literária.

Outras considerações - finais

Apesar de partir de uma análise que privilegia o aspecto eminentemente literário de Mistida , também procurei ter em mente que é preciso mais do que apenas o estético, uma vez que textos literários são: artefatos culturais nos quais estão inscritas suas condições de produção, isto é, sua história, e que falam a partir daquele presente, o presente do autor, re-atualizado nas leituras que se dão em outro tempo, o do presente do leitor, como nos lembra Gusmão (2001); mercadorias que circulam a partir de rótulos fetichistas – gêneros, nacionalidades

  • os quais indicam que o mercado cada vez mais toma o lugar da academia e da crítica como instância de consagração, (de)limitando o alcance destes textos em termos de espaço e quantidade de leitores; e, principalmente, ajuntamentos de signos que desempenham um papel importante na formação e manutenção de uma imaginação coletiva, como já o apontaram diversos teóricos – Benedict Anderson (2008), Franco Moretti (2003) e Homi K. Bhabha (2003), entre outros. Podemos afirmar que Mistida traz inscrita em sua urdidura uma percepção do narrar como condição para o resgate da memória – e, deste modo, quem narra torna-se sujeito da sua his(es)tória e não objeto de um discurso pedagógico, como Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009

Referências ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas : reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BHABHA, Homi K. DissemiNação. o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: BHABHA, Homi K O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka : por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Tradução de Sérgio Alcides.

  1. ed. São Paulo: Globo, 2005. GANHO, Ana Sofia; McGOVERN, Timothy. Using portuguese : a guide to contemporary usage. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. GUSMÃO, Manuel. Da literatura enquanto construção histórica. In: BUESCU, Helena; DUARTE, João Ferreira (Org). Floresta encantada : Novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. HAMILTON, Russel. A literatura dos PALOP e a teoria pós-colonial. 1999. Via Atlântica , n. 3, dez. 1999. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br/site/ img/upload/665414.pdf>. Acesso em 29 mai 2008. MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. São Paulo: Boitempo,

RENAN, Ernest. What is a nation? In: BHABHA, Homi K. (Ed). Nation and narration. London and New York: Routledge, 1995. SÁ, Márcio Cícero de. Da literatura fantástica (teorias e contos). 2003. 141f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: <http://www.teses.usp. br/teses/disponiveis/8/8151/tde-23102003-190256/publico/TeseMarcioSa.pdf>. Acesso em 30 mai 2008. SILÁ, Abdulai. Mistida. Bissau: Kusimon, 1997. SILÁ, Abdulai. Mistida (triologia). Praia-Mindelo: Centro Cultural Português,

  1. Colecção Ficção Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 173-192, 2º sem. 2009