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Autonomia e Dependência de Direitos Reais e Pessoais de Gozo no Direito Civil PT, Slides de Direito

Este documento discute a relação entre direitos reais e direitos pessoais de gozo no direito civil português, particularmente em relação à autonomia e dependência de cada tipo de direito. O texto aborda a interpretação da lei civil portuguesa sobre a preferência do titular em relação a terceiros, a dimensão de autonomia compartilhada por direitos absolutos e relativos, e a extinção de direitos pessoais por não uso. Além disso, o texto discute a justificação da preferência de direitos reais sobre direitos pessoais de gozo e a relação entre direitos reais e obrigações.

O que você vai aprender

  • Em que sentido a direção do direito pessoal de gozo renova a origem desse direito nas suas vicissitudes?
  • Qual é a diferença entre direitos reais e direitos pessoais de gozo no direito civil português?
  • Quais são as obrigações que acompanham a transferência de direitos reais?
  • Qual é a justificação da preferência de direitos reais sobre direitos pessoais de gozo?

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Amazonas
Amazonas 🇧🇷

4.4

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Revisitando o princípio da tipicidade
dos direitos reais*
heNrique SouSA ANtuNeS**
Numa qualquer exposição clássica sobre os direitos reais, o princípio
da tipicidade é convocado para o enquadramento das suas normas e res-
pectivos efeitos. No direito português, o artigo 1306.º do Código Civil1
prevê o numerus clausus das restrições ao direito de propriedade ou das
figuras parcelares deste direito.
A interpretação tradicional da disposição vincula os particulares ao
catálogo dos direitos reais que a lei prevê, incluindo, naquela categoria,
as suas diversas modalidades, de gozo, de garantia e de aquisição. São
argumentos ponderosos as razões que justificam a previsão exaustiva dos
direitos reais. A eles regressamos. E, no entanto, o contexto socioeco-
nómico presente, a dinâmica jurídica actual e as experiências de direito
comparado legitimam uma reflexão sobre a manutenção dos pressupostos
que orientam a doutrina e a jurisprudência.
* Ao Senhor Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, agradecendo o exemplo
académico de profundo sentido Humanista que, enquanto aluno, docente e Director da
Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, sempre
admirei. Cresci com a excelência do seu ensino e com a generosidade dos seus conse-
lhos, das suas palavras e dos seus gestos. Marcam-me, em especial, a lealdade aos seus
princípios e valores e a coragem de os defender. E a Amizade. Por tanto mais, obrigado
Senhor Professor.
** Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
1 Sempre que não se apure indicação diversa, os preceitos citados são do Código
Civil português.
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Revisitando o princípio da tipicidade

dos direitos reais*

heNrique S ouSA ANtuNeS**

Numa qualquer exposição clássica sobre os direitos reais, o princípio

da tipicidade é convocado para o enquadramento das suas normas e res-

pectivos efeitos. No direito português, o artigo 1306.º do Código Civil^1

prevê o numerus clausus das restrições ao direito de propriedade ou das

figuras parcelares deste direito.

A interpretação tradicional da disposição vincula os particulares ao

catálogo dos direitos reais que a lei prevê, incluindo, naquela categoria,

as suas diversas modalidades, de gozo, de garantia e de aquisição. São

argumentos ponderosos as razões que justificam a previsão exaustiva dos

direitos reais. A eles regressamos. E, no entanto, o contexto socioeco-

nómico presente, a dinâmica jurídica actual e as experiências de direito

comparado legitimam uma reflexão sobre a manutenção dos pressupostos

que orientam a doutrina e a jurisprudência.

  • Ao Senhor Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, agradecendo o exemplo académico de profundo sentido Humanista que, enquanto aluno, docente e Director da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, sempre admirei. Cresci com a excelência do seu ensino e com a generosidade dos seus conse- lhos, das suas palavras e dos seus gestos. Marcam-me, em especial, a lealdade aos seus princípios e valores e a coragem de os defender. E a Amizade. Por tanto mais, obrigado Senhor Professor. ** Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. (^1) Sempre que não se apure indicação diversa, os preceitos citados são do Código

Civil português.

166 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

1. O objecto do princípio da tipicidade (I): os direitos

Em nosso entender, o princípio da tipicidade parece vocacionado para

os direitos reais de garantia e os direitos reais de aquisição 2. O artigo

1306.º veda a constituição voluntária, com eficácia real, de restrições

ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito sem cor-

respondência na lei. Independentemente do âmbito da conversão legal a

que o legislador submete o efeito jurídico criado pelas partes, um direito

real de gozo atípico (pense-se, por exemplo, numa superfície irregular

ou numa servidão pessoal) tem natureza obrigacional^3. O direito e o

correspectivo dever restringir-se-iam às partes, sem reflexo na posição

(^2) Considerando, aliás, que a tipicidade regula a atribuição de um direito a terceiro:

«Para se falar de direitos teria de se pressupor sempre um beneficiário destas situações, um titular duma posição activa que seria contrapartida da restrição. Mas esta posição activa pode faltar. Efectivamente, o titular de um direito real (determinado, portanto, propter rem ) pode ser atingido por uma vinculação, sem que se encontre o correlativo beneficiário, pelo menos actualmente. Assim aconteceria se se estabelecesse simplesmente que certos bens ficavam sujeitos ao regime da impenhorabilidade, ou se tornavam inalie- náveis. Da mesma forma, pode o testador limitar a propriedade a determinado prazo de duração – por trinta, por setenta anos… Desde que não se preveja a reversão para terceira pessoa no fim desse prazo, não haveria um sujeito activo a beneficiar da contrapartida da restrição; e todavia essa restrição não pode deixar de se considerar proibida. Essa distinção traz a chave do regime legal. As restrições em que tanto se pode encontrar como não um beneficiário activo foram afastadas, pelo legislador, do art. 1306.º, 1. O sistema da lei parece claro: só as restrições que são a necessária contrapartida da constituição de direitos reais, como o penhor e o usufruto, estão incluídas naquele preceito» (joSé de oliVeirA ASceNSão, A Tipicidade dos Direitos Reais , Lisboa, 1968, pág. 316). Na ausência de um sujeito activo, a ilegitimidade é fundada em «preceitos especiais da lei, dos quais podemos extrair um princípio. Temos desde logo o art. 1307.º/2, determinando que a propriedade temporária só é admitida nos casos especialmente previstos na lei. Estabelece-se pois uma tipicidade, mas que a própria colocação do preceito demonstra que é diversa da tipicidade dos direitos reais. Se por exemplo alguém, em testamento, estabelecer que a propriedade do herdeiro durará apenas 20 anos, findos os quais a coisa fica nullius , teríamos uma situação desta índole, uma vez que não há sujeito activo, mas que é ilícita porque não é normativamente prevista» (joSé de oliVeirA ASceNSão, Direito Civil – Reais , 5.ª ed., Coimbra, 2000, pág. 245). (^3) Em sentido crítico à opção do legislador e ao alcance da conversão legal, ver joSé

de oliVeirA ASceNSão, Direito Civil – Reais , cit., págs. 159 e segs. Consideram que a referência normativa limita a conversão legal às restrições, excluindo da aplicação desse regime a criação de figuras parcelares do direito de propriedade, PireS de liMA/ANtuNeS VArelA, Código Civil Anotado , vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, págs. 98 e segs. (admitem, no entanto, a prova em contrário acerca das restrições e a conversão comum, na hipótese do parcelamento da propriedade) e luíS A. cArVAlho ferNANdeS, Lições de Direitos Reais , 6.ª ed., Lisboa, 2009, págs. 86 e segs. (afasta a demonstração de uma vontade contrária à

168 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

temporal^5. E essa prioridade afirma-se mesmo que de um conflito com

estes direitos reais de trate.

A oponibilidade e a prioridade dos direitos pessoais de gozo têm o

mesmo fundamento que atribui aos direitos reais a natureza absoluta

e a prevalência: o gozo de uma coisa certa e determinada. O direito é

exercido sem a intermediação de uma prestação e a conduta da outra

parte é, tão-só, uma vicissitude modificativa ou extintiva da situação

jurídica. A acessoriedade do vínculo contratual é insuficiente para des-

caracterizar o direito como um feixe de poderes de uso e/ou de fruição

de uma coisa corpórea.

A natureza dos direitos pessoais de gozo e a aplicabilidade, nesse

âmbito, dos meios de defesa possessórios permite interpretar o artigo

407.º em sentido análogo à leitura do artigo 1057.º e do princípio emptio

non tollit locatum , isto é, da subsistência da relação locativa na hipótese

de transmissão da posição do locador.

É outra a orientação dominante no direito português. Prevalece a

dimensão relativa dos direitos pessoais de gozo e, consequentemente, ao

seu exercício é oposta a liberdade do terceiro, pois em relação a este «o

contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos

na lei» (artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil). Considerando que o direito

subsiste na órbita do contrato que o atribuiu e que esse acordo tão-só às

partes respeita, o direito permanece, pois, disponível pelo devedor, sem

prejuízo da sua responsabilidade^6.

(^5) Concede-se, pois, que a entrega da coisa constitua um pressuposto da norma. O

artigo 407.º não tem aplicação na fase creditícia, ou seja, em que tão-só se apura a facul- dade de exigir aquela entrega. Assim se pronuncia joSé ANdrAde M eSquitA, Direitos Pessoais de Gozo , cit., págs. 191 e segs. (^6) Ver, entre outros, orlANdo de cArVAlho, Direito das Coisas , coord. Francisco

Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães, Maria Regina Redinha, Coimbra, 2012, págs. 227 e segs. Escreve o Autor: «Ainda que implique a atribuição de poderes sobre uma res […] o direito de crédito não grava dominialmente essa res , sendo esses pode- res […] mediatados ou propiciados pela actuação do concedente. Vindo um terceiro, estranho a essa relação, a ter direito real de algum modo conflituante com esse direito de crédito – e sê-lo-á sempre que o direito de crédito atribua qualquer daqueles poderes sobre a coisa –, o vínculo estabelecido com o anterior sujeito do domínio não subsiste em confronto do novo, salvo se este pessoalmente o reafirma. É o que classicamente se exprime no célebre aforismo «emptio tollit locatum», com vista ao contrato de locação, que era aquele em que mais o problema se punha» (pág. 227).

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 169

Refutamos este entendimento^7. Várias razões nos acompanham:

a ) Desde logo, é equívoco identificar o contrato com o direito que

ele constitui ou transmite. É esta construção que permite objectar à

utilização do artigo 406.º, n.º 2, como ponderoso argumento adverso

ao reconhecimento da eficácia externa das obrigações. Ou seja, há

uma dimensão de autonomia dos direitos que, mesmo em graus

diferentes, é partilhada por direitos absolutos e direitos relativos.

Assim, aos direitos de crédito em geral, vem reconhecendo a dou-

trina a adequação de um dever geral de respeito, fundamentando o

dever de um terceiro indemnizar os danos causados pela violação

consciente do crédito alheio. O vínculo obrigacional testemunha a

ampliação da sua eficácia, mesmo que o comportamento do lesante

não constitua um abuso do direito^8. Entretanto, se a necessidade

de eticização dos comportamentos negociais justifica a vinculação

(^7) Escreve A. M eNezeS cordeiro: «Sabemos que provocaria grande escândalo a

proclamação de todos os direitos de gozo como reais. […] De qualquer forma, cha- mamos já a atenção para o facto seguinte: havendo gozo de uma coisa, há o efectivo aproveitamento das suas qualidades próprias; sendo o gozo lícito, esse aproveitamento é permitido e protegido pelo direito. Há uma afectação de uma coisa corpórea! Se essa afectação não for jurídica, então é casual e cabe perguntar porque lhe consagra o Código Civil tantos artigos. Pelo menos pensamos que quem entender não existirem aqui alguns elementos reais terá de o demonstrar» [ Direitos Reais , Lisboa, 1993 (reimpressão), págs. 361 e seg.]. No sentido da qualificação dos direitos pessoais como reais, ver o texto de A. M eNezeS cordeiro, Da Natureza do Direito do Locatário , separata da Revista da Ordem dos Advogados , Lisboa, 1980. Aceitando, posteriormente, a distinção das cate- gorias, embora por razões histórico-culturais, em A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais , Coimbra, 1997, págs. 72 e seg., lê-se: «Os direitos pessoais de gozo serão, assim, direitos de gozo, estruturalmente reais, mas que, por provirem de situações jurídicas defendidas, no Direito romano, por actiones in personam , não são, hoje, reconhecidos como reais. Sendo puramente sistemática, esta clivagem tem consequências a nível do regime: bloqueia, no tocante à aplicação de certos institutos reais, as normas que não sejam predispostas, pela lei, como aplicáveis. Tal o caso da usucapião, viável, por via do artigo 1287.º, implicitamente e dos artigos 1316.º (propriedade), 1440.º (usufruto), 1528.º (superfície) e 1547.º, n.º 1 (servidão), apenas, perante o elenco mais tradicional dos direitos reais de gozo. Não há razões racionais que o expliquem: apenas a tradição jurídico-cultural, decisiva, no Direito civil» (pág. 73). A oponibilidade erga omnes dos direitos pessoais de gozo parece admitida, porque não excluída pela lei. (^8) Ver a este respeito, e por todos, a evolução do pensamento de A. M eNezeS cor-

deiro, restringindo, agora, a responsabilidade do terceiro pela violação de um direito de crédito ao abuso do direito [a título ilustrativo, Direitos Reais , cit., págs. 307 e segs., e Eficácia externa dos créditos e abuso do direito , in «O Direito», ano 141.º (2009), I, págs. 29 e segs.] e, em defesa da aplicação do princípio da responsabilidade civil previsto

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 171

usuário e do titular do direito de habitação pelo título constitutivo

(artigos 1445.º e 1485.º); a extinção do direito de superfície se o

superficiário não concluir a obra ou não fizer a plantação dentro

do prazo acordado com o fundeiro [artigo 1536.º, n.º 1, al. a )]; a

extinção das servidões legais, incluindo as tituladas por um contrato,

se o proprietário do prédio serviente provar a desnecessidade do

encargo para o prédio dominante (artigo 1569.º, n.os^ 2 e 3).

c ) Com manifesta adesão da doutrina, têm justificado a preferência

dos direitos reais sobre os direitos pessoais de gozo as normas

que estabelecem a extinção dos direitos pessoais com fundamento

na cessação dos direitos que lhes servem de base^10. Trata-se, no

entanto, de uma cessação objectiva e não de uma transmissão, à

semelhança do que acontece, aliás, com os direitos reais. A nosso

ver, a orientação maioritária interpreta a cessação do direito anterior

à luz de uma compreensão apriorística da relatividade do direito de

crédito, concluindo que a transmissão daquele implica a extinção

deste. Julgamos tratar-se de uma petição de princípio, pois, em

bom rigor, tomando como exemplo o contrato de locação, embora

este caduque «quando cesse o direito» [artigo 1051.º, c )], o artigo

1057.º, já citado, prevê a transmissão da posição do locador, ou

seja, a subsistência da locação, apesar da transmissão do direito

que lhe serviu de fundamento. A cessação não pode ser interpretada

diversamente de uma extinção do direito. A este respeito, veja-se,

por exemplo, o disposto no artigo 1539.º, n.º 1: «A extinção do

direito de superfície pelo decurso do prazo fixado importa a extinção

dos direitos reais de gozo ou de garantia constituídos pelo superfi-

ciário em benefício de terceiro.» Esta interpretação está, também,

em linha com a equiparação da constituição de direitos pessoais

de gozo à disposição da coisa no regime dos efeitos do casamento

quanto aos bens dos cônjuges (artigo 1682.º-A).

É significativo, no contexto referido, o disposto no artigo 1130.º

a respeito do contrato de comodato. A remissão do n.º 2 para as

(^10) Ver, neste sentido, joSé ANdrAde M eSquitA: «[…] os direitos pessoais de gozo,

devido à sua relatividade estrutural, caracterizam-se, em regra, por falta de inerência. Assim, o comodato, as servidões irregulares, a parceria pecuária, etc., cessam caso o direito com base no qual foram constituídos seja transferido para um terceiro. Quando o direito pessoal de gozo assenta num subcontrato, caduca se caducar o contrato principal» ( Direitos Pessoais de Gozo , cit., pág. 165).

172 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

alíneas a ) e b ) do artigo 1052.º, sobre as excepções à caducidade

do contrato de locação, aclara o objecto da norma e reconhece a

preferência do direito pessoal de gozo em razão da sua prioridade

temporal. Vejamos. O artigo 1130.º, n.º 1, e conjugadamente com

o artigo 1141.º (norma que identifica a caducidade do contrato com

a morte do comodatário), esclarece o significado de cessação do

direito. Lê-se: «Se o comodante emprestar a coisa com base num

direito de duração limitada, não pode o contrato ser celebrado por

tempo superior; e, quando o seja, reduzir-se-á ao limite de duração

desse direito.» Escrevem P ireS de liMA e ANtuNeS VArelA: «O

disposto no artigo 1130.º aproxima-se do disposto na alínea c ) do

artigo 1051.º e no artigo 1123.º Tanto no comodato, como na loca-

ção ou na parceria pecuária, se cessarem os poderes com base nos

quais foi celebrado o contrato, cessa a situação dele resultante. Não

faria, realmente, sentido que este princípio de caducidade vigorasse

[…] em relação à locação (relação jurídica cuja consistência a lei

visa especialmente fortalecer) e não fosse aplicável a uma relação

bastante mais precária, na sua consistência, fundada em razões

de mera cortesia, como é o comodato. O caso mais vulgar é o do

contrato celebrado pelo usufrutuário. Se o usufruto é vitalício, o

comodato cessa pela morte do comodante; se o usufruto é a prazo,

cessa pelo decurso deste.» 11 Ora, segundo o artigo 1052.º, b ), o

direito do comodatário acompanha a transmissão do direito real

que lhe serve de fundamento: «o contrato de locação não caduca

se o usufrutuário alienar ou renunciar a ele, pois nestes casos o

contrato só caduca pelo termo normal do usufruto».

No mesmo sentido, o comentário de P ireS de liMA e de ANtuNeS

VArelA sobre o âmbito do artigo 1130.º é claro a respeito da

prevalência do direito pessoal de gozo: «É doutrina assente que o

proprietário, quando sobre a coisa incida um direito de usufruto,

não a pode dar em comodato, pois não tem sobre ela o direito de

uso e fruição […]. Se, porém, o comodato tiver sido celebrado pelo

proprietário, e só posteriormente este perder o usufruto, mantendo

a raiz, o contrato mantém-se. É que o direito de propriedade, com

base no qual o contrato foi celebrado, não é um direito de duração

limitada, e só a estes faz referência o artigo 1130.º» (itálico nosso) 12.

(^11) Código Civil Anotado , vol. II, cit., pág. 744. (^12) Código Civil Anotado , vol. II, cit., pág. 744.

174 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

talmente atípicos e dotados da visibilidade que a posse permite.

Veja-se como, segundo o artigo 1.º do Código do Registo Predial,

a certeza jurídica tem assento na publicidade. O respeito pelo

princípio da tipicidade só garante a prevalência de um direito não

registado em relação a terceiros que não apresentem uma melhor

posição. De outro modo, aquele direito é paralisado ou, noutra

perspectiva, extingue-se. O conhecimento do direito anterior é, a

este respeito, relevante. São palavras de E. SANtoS júNior: «[…]

a tipicidade dos direitos reais facilita um sistema de publicidade

legal dos mesmos, mas não só a atipicidade dos direitos reais não

impede a adopção de soluções publicitárias que se imponham,

como a questão da publicidade dos direitos não é o mesmo que

a oponibilidade deles. A cognoscibilidade dos direitos, através de

publicidade legal – que, aliás, não é o único meio de publicidade

dos direitos, como sabemos –, desempenha ou pode desempenhar

um papel na efectivação da sua oponibilidade, na passagem da

oponibilidade in potentia a oponibilidade in actu , mas desempenhar

um papel na efectivação da oponibilidade não é ser esta mesma.»^16

No conflito entre direitos pessoais e direitos reais de gozo prevalece

a regra da prioridade temporal, temperada pela boa fé do terceiro,

como aliás a aplicação dos meios de defesa possessórios dispõe.

Só tem legitimidade passiva numa acção de restituição quem tem

conhecimento da ofensa do direito alheio^17.

As partes podem, pois, constituir direitos de gozo atípicos, que, com

autonomia da sua natureza real ou pessoal, são absolutos. A esse respeito

(^16) Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito , cit.,

pág. 547. (^17) Escreve MANuel heNrique M eSquitA, a respeito da locação: «[…] no respeitante

aos subadquirentes da coisa, também só é razoável impor-lhes o respeito da relação locativa quando eles, à data da celebração do negócio aquisitivo, tenham possibilidade de conhecer a sua existência, precisamente através da relação de gozo que a exterioriza ou lhe confere publicidade. Deve, pois, fazer-se uma interpretação restritiva do art. 1057.º, limitando a aplicação da regra que nele se contém aos casos em que, à data da alienação do direito do locador sobre a coisa locada, o locatário tenha iniciado já o gozo desta. De resto, na resolução de um problema paralelo – o da defesa da relação locativa contra actos de terceiro –, o art. 1037.º, n.º 1, só permite que o locatário actue autonomamente (isto é, sem necessidade de intervenção do locador) quando se encontre já no uso ou fruição da coisa locada» ( Obrigações Reais e Ónus Reais , Coimbra, 1990, pág. 141, nota 19 da página anterior).

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 175

a tipicidade terá finalidade diversa da pretendida pelo legislador. Não se

traça uma linha divisória entre os direitos relativos e os direitos absolu-

tos, embora se conserve para os direitos reais os aspectos de regime que

restringem as faculdades do proprietário acerca do modo de exercício

e das vicissitudes constitutivas, modificativas ou extintivas dos direitos

menores^18.

O princípio da tipicidade não tolhe a natureza absoluta dos direitos de

gozo, embora conserve para os direitos reais algumas especificidades de

regime que procedem de um sentido especial da inerência. Na verdade,

a eficácia real de um contrato que constituiu ou transmitiu um direito

converte-se, em geral, numa pós-eficácia obrigacional a respeito do

exercício das faculdades respectivas sobre a coisa. Em sentido diferente,

o titular do direito pessoal de gozo renova a origem desse direito nas

suas vicissitudes. Assim, percebe-se que a usucapião seja restringida

aos direitos reais^19.

Há, enfim, um núcleo comum intangível que equipara os direitos

pessoais aos direitos reais de gozo. São excluídas prestações positivas

do conteúdo relacional do direito. As obrigações são admitidas quando,

previstas pelas partes ou pela lei, se revelam secundárias ou acessórias do

gozo da coisa. Escreve José Andrade Mesquita: «O titular de um direito

de gozo pode satisfazer o seu interesse mediante o simples exercício dos

poderes que lhe assistem, atingindo directamente a coisa que constitui

objecto do direito. A característica da imediação, ao contrário do que

entende a generalidade da doutrina, que apenas a reconhece aos direitos

reais, é imanente a todos os direitos de gozo (sejam reais ou pessoais).»^20

Deste modo, é possível distinguir uma estrutura complexa: «A zona

(^18) Ver, a este último respeito, N uNo MANuel P iNto oliVeirA, Direito das Obriga-

ções , vol. I, Coimbra, 2005, págs. 246 e segs. (^19) Neste sentido, joSé ANdrAde M eSquitA, Direitos Pessoais de Gozo, cit., págs.

155 e seg., e elSA S equeirA SANtoS, Analogia e Tipicidade em Direitos Reais , in «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles» (organizados pelos Professores Doutores António Menezes Cordeiro, Luís Menezes Leitão e Januário da Costa Gomes), IV volume (Novos Estudos de Direito Privado) , Coimbra, 2003, pág. 491. Aceita a solução, apenas por razões histórico-culturais, M eNezeS cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais , pág. 73. Em sentido diferente, admitem a usucapião em relação à locação, por exemplo, C. A. dA M otA P iNto (por Álvaro Moreira e Carlos Fraga), Direitos Reais , Coimbra, 1971, págs. 157 e segs., MANuel heNrique M eSquitA, Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 184, e NuNo MANuel PiNto oliVeirA, Direito das Obrigações , vol. I, cit., pág. 248. (^20) Direitos Pessoais de Gozo, cit., pág. 13.

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 177

da taxatividade do conteúdo dos iura in re , e, por conseguinte, só podem

revestir natureza propter rem as obrigações que têm a sua fonte no

regime legal dos direitos sobre as coisas e as que a lei, excepcionalmente,

permite constituir por via negocial, quando consente que os particulares

intervenham na modelação daquele regime e sujeitem o titular de um

ius in re a vinculações de conteúdo positivo»^23.

Ora, se o conhecimento por terceiros constitui um relevante fundamento

da tipicidade, é o próprio Autor a reconhecer que «devem […] considerar-

-se ambulatórias […] as obrigações propter rem que imponham a prática

de actos materiais na coisa sobre que o direito real incide, como ainda

todas aquelas cuja existência seja denunciada ou indiciada pela situação

em que a coisa ostensivamente se encontre»^24. Enfim, «do confronto entre

a situação ostensiva ou objectiva da coisa e o regime do direito que sobre

ela incide logo ressalta ou transluz, de modo inequívoco, a carga passiva

que o titular da soberania tem de suportar. Os pressupostos da obrigação,

por outras palavras, como que estão materializados ou radicados na própria

coisa»^25. Os demais deveres de prestar não acompanham a transmissão

do direito real, excepto no contexto da tipicidade e onde a cessação da

relação de soberania impeça o cumprimento da prestação debitória^26.

Ou seja, porque a publicidade é um instrumento eficaz da segurança

no comércio jurídico imobiliário, as obrigações que se revelem ao terceiro

são a este transmissíveis. E tão-só quem funda a tipicidade na «conve-

niência em não sujeitar o estatuto dos bens a vinculações desmotivadoras

do seu pleno aproveitamento económico» 27 , vinculações restringidas, no

entanto, a deveres de prestar constituídos após a transmissão do direito

real, pode a ela subordinar as obrigações reais não ambulatórias^28. Afir-

(^23) Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 290 e 348. (^24) Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 342 e seg. Seguindo o ensinamento

de MANuel heNrique M eSquitA, nestes casos, a dívida acompanha a transferência do direito real, distinguindo-se das obrigações propter rem não ambulatórias em que o dever de prestar, inerente à titularidade do direito real, nasce após a transmissão do direito real ( Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 299 e segs.). (^25) MANuel heNrique M eSquitA, Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., pág. 332. (^26) MANuel heNrique M eSquitA, Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 332 e

segs. (com exemplos). (^27) MANuel heNrique M eSquitA, Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., pág. 288. (^28) MANuel heNrique M eSquitA, Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 348 e

segs. Escreve: «Relativamente a estas últimas (obrigações reais não ambulatórias), […] muito embora o subadquirente do direito real não tenha de cumprir as que se autono- mizaram antes da data em que o negócio aquisitivo produziu os seus efeitos, ele ficará

178 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

mada fica a nossa divergência em relação a essa extensão. Como veremos,

alarga-se o número daqueles que identificam a previsão do princípio da

tipicidade como causa de limitação ao desenvolvimento das relações

económico-sociais e a publicidade, onde exista, retira um amplo espaço

argumentativo aos defensores desse princípio29/30.

vinculado a todas as que se constituam posteriormente, precisamente porque promanam do estatuto a que o seu direito se encontra subordinado. Caso se admitisse, portanto, a livre estipulação de obrigações não ambulatórias […], estaria aberta a porta para a introdução de todas aquelas vinculações ou encargos que a lei quer evitar quando sujeita o conteúdo dos direitos reais ao princípio ou regra da taxatividade» ( Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., págs. 348 e seg.). joSé A lberto V ieirA subordina ao princípio da tipicidade todas as obrigações reais, pois, integrando o conteúdo do direito real, vinculam o adquirente, sem publicidade autónoma ( Direitos Reais , Coimbra, 2008, págs. 110 e segs.). Assim, «os particulares podem prever negocialmente obrigações propter rem sempre que se trate de regime supletivo legal e no âmbito deste. Fora das hipóteses em que a lei contemple a conformação do exercício do direito real pelos particulares, as obrigações propter rem não serão válidas como tal, podendo valer somente como obrigações gerais, sujeitas ao regime do Direito das Obrigações e não fazendo parte do conteúdo do direito real» (joSé A lberto V ieirA, Direitos Reais , cit., pág. 112). (^29) Num exemplo de MANuel heNrique MeSquitA, como o próprio Autor reconhece,

a obrigação atípica assumida estimula o aproveitamento económico do bem. Aprecia-se a vinculação do dono de um prédio a indemnizar os danos causados a prédios vizinhos em acréscimo às limitações de interesse particular que a lei estabelece: «Tal vinculação […] pode funcionar como correspectivo de determinadas vantagens que, de outro modo, o sujeito que a assume não conseguiria alcançar. A, por exemplo, propõe a B que lhe venda parte de um terreno para a instalação de uma fábrica, ou que lhe ceda a água necessária ao funcionamento desta, mas B só aceita fazê-lo se o proponente se obrigar, na qualidade de proprietário, a indemnizá-lo de todos os danos que venham a ser-lhe causados por quaisquer emissões provindas da futura exploração fabril, mesmo que, à luz do critério enunciado na lei, não sejam qualificáveis como ilícitas» ( Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., pág. 349, nota 79). Considerando o último proveito citado, e em nossa opinião, a venda da fábrica vincula o terceiro à obrigação anterior, como garantia da continuidade do proveito associado a uma eventual servidão de utilização da água do prédio vizinho [o registo permitirá a publicidade que fundamenta a vinculação atípica do beneficiário, nos termos do artigo 95.º, n.º 1, alínea c ), do Código do Registo Predial]. (^30) A publicidade a que nos referimos respeita às declarações contratuais no acto de

transmissão, a uma situação possessória anterior e, também, ao registo predial. MANuel heNrique M eSquitA pressupõe que «se se convencionar que o titular de determinado ius in re fica adstrito, nessa qualidade, a realizar prestações de conteúdo positivo fora dos casos em que a lei o permite, a cláusula negocial onde se estabeleçam tais obrigações não poderá fazer parte do estatuto real do direito e, por conseguinte, não será eficaz em relação aos subadquirentes deste» ( Obrigações Reais e Ónus Reais , cit., pág. 349). Salvo o devido respeito, falta demonstrar este pressuposto, que condiciona a conclusão subsequente («não fazendo parte do estatuto do direito, também não poderá, obviamente,

180 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

pois desacompanhada da sujeição do transmitente a um dever oculto de

prestar^34.

Julga-se relevante o lugar paralelo que a teoria e a prática dos direi-

tos reais em Portugal vêm reconhecendo na constituição da propriedade

horizontal em direito de superfície. Embora o direito de superfície possa

tornar temporário o direito perpétuo de propriedade horizontal e prive

os condóminos da titularidade do solo, o que significaria, em bom rigor,

restringir o direito de propriedade sem previsão expressa na lei, a con-

jugação dos direitos tem sido admitida^35. O que, a nosso ver, justifica

essa prática é a circunstância de a constituição do novo direito de gozo

ser desacompanhada de qualquer novo dever principal de prestação do

proprietário do solo, do superficiário ou do condómino^36.

Em suma, a publicidade vincula o titular de um direito real a obrigações

propter rem , típicas ou atípicas. A lei presta um relevante argumento

a este entendimento ao prever a atipicidade do conteúdo das servidões.

São direitos de gozo que as partes podem moldar no preenchimento da

condição de um encargo num prédio em benefício de outro prédio. As

obrigações são registáveis e, de qualquer forma, podem revelar-se por

sinais visíveis e permanentes.

3. O objecto do princípio da tipicidade (III): a analogia

É, ainda, na restrição da tipicidade aos elementos caracterizadores

do direito que encontramos espaço para a defesa da aplicação analógica,

(^34) Sobre a natureza jurídica desse negócio, ver cláudio M oNteiro, O Domínio

da Cidade. A Propriedade à Prova no Direito do Urbanismo , Lisboa, 2013, pág. 616, nota 1540. (^35) A este respeito, luíS A. cArVAlho ferNANdeS, Lições de Direitos Reais , cit.,

págs. 435 e seg. (^36) Veja-se, no entanto, a opinião diversa de José de Oliveira Ascensão, acerca da

compatibilidade da combinação de direitos reais com o princípio da tipicidade: «[…] o direito real complexo não é a soma dos direitos reais simples que possam concorrer em dada situação: é antes uma entidade autónoma que funciona como a fonte desses direitos mas não está dependente deles, nem deles se esgota. Quer dizer, o direito real complexo é uma unidade nova: não é uma figura colectiva, é antes um composto. Como tal, esse novo tipo de direito real ou está incluído na tipologia normativa, ou não pode ser admitido. Assim seria se se quisesse suprir uma eventual falta de previsão da anti- crese pela elaboração de um direito complexo, em que se combinassem a hipoteca e o usufruto, aglutinados de modo a estarem sujeitos às mesmas vicissitudes e receberem um regime comum, diverso do de cada figura tomada por si» ( A Tipicidade dos Direitos Reais , cit., pág. 200).

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 181

entre os direitos reais, de normas que respeitem às suas vicissitudes 37. O

artigo 1306.º estabelece uma tipologia dos direitos reais, delimitando o

alcance dos direitos afins. O espaço da categoria real é impermeável, nos

termos assinalados, à autonomia dos particulares, no desempenho da sua

vontade constitutiva38/39. Os interessados podem, no entanto, modelar o

conteúdo das suas relações em virtude das permissões legais^40. É, tam-

(^37) Escreve joSé de oliVeirA ASceNSão: «Todas as disposições respeitantes a factos

jurídicos com efeitos reais devem pois ser consideradas normalmente como supletivas, mesmo que respeitem a vicissitudes diferentes da constituição ou da transmissão. São portanto susceptíveis de ser alteradas em concreto, enquanto razões particulares não levarem a considerá-las injuntivas. Mesmo não tendo havido qualquer manifestação da autonomia privada, as causas previstas por lei podem ser estendidas de umas a outras situações na base de considerações de analogia; e muito frequentemente se tem de proceder assim, pois o legislador nunca prevê em geral os factos jurídicos com efeitos reais, antes se limita a referi-los ou não, ao sabor das contingências próprias da regulamentação de cada direito real» ( A Tipicidade dos Direitos Reais , cit., pág. 163). (^38) Observa joSé de oliVeirA ASceNSão: «A primeira categoria de regras injuntivas

resulta com carácter de evidência do próprio princípio do numerus clausus : não se podem alterar os elementos que pertencem à própria definição do tipo de cada direito real […]. Porque a não ser assim, através da porta travessa da modificação do conteúdo, viríamos a liquidar a tipicidade taxativa dos direitos reais. Por isso, não se pode dar de penhor um imóvel, ou estabelecer uma superfície em que a propriedade da obra implantada pertença ao dono do chão» ( A Tipicidade dos Direitos Reais , cit., pág. 328). (^39) Salientando o papel da analogia na classificação de um direito como um direito

real, desde que beneficie de regulamentação legal, Elsa Sequeira Santos: «Entendemos, assim, que a existência da tipicidade não tem qualquer consequência a nível do recurso à analogia na descoberta de novos tipos reais, de entre os direitos que o legislador apresenta. […] A liberdade de qualificação pelo intérprete de figuras como reais reporta-se apenas às figuras resultantes da lei, não às nascidas de negócio jurídico. Quanto a estas, apenas pode o intérprete ajuizar da sua correspondência a um dos direitos reais tipificados» ( Analogia e Tipicidade em Direitos Reais , cit., pág. 490). (^40) Nas palavras de joSé de oliVeirA ASceNSão: «Portanto, a tipologia taxativa não

impede que se admitam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito real tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente moldável pelas partes, mediante a substituição de disposições supletivas. Esse conteúdo é estranho à descrição fundamental em que consiste o tipo; faz parte do direito real, mas escapa ao objectivo que ditou o art. 1306.º, 1» ( A Tipicidade dos Direitos Reais , cit., pág. 332). Eis um exemplo do Autor, a respeito do direito de superfície: «E se as partes convencionarem no título constitutivo que o dono do chão pode usar a “superfície” mesmo que torne mais onerosa a obra? Ou se, pelo contrário, se convencionar que o superficiário pode desde logo utilizar o terreno para depósito dos materiais, por exemplo? Não são válidas estas estipulações? Não lhes pode ser atribuída eficácia real, como modificação do direito a que respeitam? A solução depende exclusivamente de se saber se o art. 1532.º tem carácter supletivo. Mas esta dúvida resolve-se pelos critérios gerais. Tanto aqui como no sector das obrigações rege

REVISITANDO O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS 183

direito de propriedade justificaria, segundo o artigo 1340.º, n.º 1;

no caso de alienação de uma exploração agrícola, mantendo o

vendedor a titularidade do hotel ecológico que daquela beneficiava

em plenitude, a analogia não fundamentará a constituição de um

direito de usufruto por destinação do pai de família.

b ) Outro é o entendimento em relação aos factos extintivos dos direitos

reais menores. Serve de exemplo a extinção das servidões prediais

constituídas por usucapião se houver desnecessidade para o prédio

dominante. Paralelamente, a extinção por usucapio libertatis^42.

A natureza da servidão predial, enquanto encargo imposto num

prédio em benefício exclusivo de outro prédio pertencente a titular

diferente, é um espelho das restrições estabelecidas ao direito real

maior em proveito de um direito real menor. A desnecessidade

dessa restrição, se tiver sido constituída por usucapião, ou uma

posse de efeito extintivo têm vocação expansiva para a generalidade

dos direitos reais menores.

c ) Entretanto, a renúncia abdicativa ao direito de propriedade sobre

coisas imóveis é um acto voluntário que a analogia acompanha e

que se manifesta congruente com a função social reclamada por

lei^43. Na generalidade dos casos, a renúncia é a libertação do imóvel

para um mercado produtivo, assim o queira o Estado, beneficiá-

rio da renúncia. Nas hipóteses em que a conduta do proprietário

pareça ilegítima, é o abuso do direito que justifica a invalidade do

negócio.

d ) Uma nota final para a usucapião de má fé. O sistema jurídico

português parece justificar a causa de aquisição, desonerando o

adquirente do pagamento de uma indemnização correspondente ao

valor da coisa. E, no entanto, lugares paralelos reclamam solução

diversa.

É possível distinguir o efeito real de um efeito obrigacional da

usucapião. A exigência do pagamento de uma indemnização não

perturba as razões que fundamentam a atribuição do direito real ao

(^42) Neste sentido, por exemplo, joSé de oliVeirA ASceNSão, Direito Civil – Reais ,

cit., pág. 413, e elSA S equeirA SANtoS, Analogia e Tipicidade em Direitos Reais , cit., pág. 493. (^43) Pronunciam-se favoravelmente à renúncia, entre outros, joSé de oliVeirA ASceN-

São, Direito Civil – Reais , cit., págs. 406 e seg., e M eNezeS cordeiro, Direitos Reais , cit., págs. 546 e segs.

184 HENRIQUE SOUSA ANTUNES

possuidor 44. O exercício de uma posse efectiva, pública e pacífica

tem o efeito aquisitivo do direito real correspondente, sem que a

solução implique, necessariamente, a gratuitidade dessa aquisição.

A lei, aliás, nega, em geral, efeitos reais à actuação de má fé.

É paradigmático o regime da acessão.

A posse é qualificada de má fé em razão do momento da aquisi-

ção. Veja-se que nem a má fé ulterior interfere com os prazos de

aquisição por usucapião. Ou seja, o interesse em salvaguardar a

aparência criada pela posse prevalece sobre a censurabilidade da

conduta do agente, pelo menos se a posse não é violenta. Tal serve

para justificar a aquisição do direito real possuído. É, porém, sem

causa a omissão de uma sanção negativa, de natureza creditícia,

ao possuidor.

Há razão para a aplicação analógica do artigo 1269.º do Código

Civil. Segundo o legislador, a perda da coisa constitui o possuidor

de má fé na obrigação de indemnizar o titular do direito. Nesse

caso, a lei estabelece, perfeitamente, a distinção entre as conse-

quências da perda para a esfera jurídica do possuidor, ou seja, se

ele tirou proveito desse facto, e a desvantagem para o esbulhado.

É indiferente o benefício do primeiro, considerando o prejuízo do

segundo. O estado subjectivo do possuidor fundamenta a indemni-

zação da perda, mesmo se ao facto aquele não associou qualquer

vantagem. Enfim, o dever de compensar é autónomo dos efeitos

jurídicos da perda.

E não se diga que a inércia do proprietário justifica a perda, sem

retribuição, do direito, mesmo se o possuidor está de má fé 45.

A mesma inércia, porventura também estendida no tempo, é intocada

pela perda do direito real nos casos de acessão. E, depois, constitui

argumento adverso a tutela da propriedade na Convenção Europeia

dos Direitos do Homem, na Carta dos Direitos Fundamentais da

União Europeia e na Constituição portuguesa. Escreve A bílio

VASSAlo de A breu, sem prejuízo da revisão futura das suas con-

(^44) Sobre estas, ver em síntese, e por todos, A bílio VASSAlo de A breu, Titularidade

Registral do Direito de Propriedade Imobiliária versus Usucapião (“Adverse Posses- sion”) , Coimbra, 2013, págs. 102 e segs. (^45) Em sentido diverso à sanção da inércia do proprietário e ao critério concorrente

do uso produtivo dos bens por referência à função social da propriedade, ver A bílio VASSAlo de Abreu, Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária versus Usucapião (“Adverse Possession”) , cit., págs. 116 e segs.