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Este ensaio explora as interrelações entre religião e ética, abordando a natureza e cultura da experiência religiosa, a função da religião como linguagem simbólica e sistema de comunicação, e a relação entre valores éticos e religiosos. Também discute a percepção de kant sobre a ética e a religião, e a importância da liberdade e bondade na vida humana.
Tipologia: Notas de estudo
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Social Sciences Institute - University of Minho, Portugal
Abstract: Religious experience is peculiar among all other experiences and it is eminently functional, because it presupposes forms of living and being, which have direct and immediate implications in human relations. Connoted with certain concepts and values (e.g. freedom of choice or goodness) religious experience tries to improve human relations. This is a recognizable role of religion either as a natural or cultural manifestation. Along with Ethics, human being has guidelines to choose forms of life, to think, to say or to do what it is convenient. There is a heteronomy of symbolic representation forms and human relations that are guided through them either by religion or Ethics. Therefore, the accurate use of freedom is always convenient. The purpose of this essay is to trace a path of mutual subjectivity, i.e. a desirable and ideal transition from an “individual I” provided by religious experience to a “social I” of what I call the mutual subjective ethicism. Religion and Ethics are a condition sine qua non to understand the heteronomy of ways through which there is a mutual subjectivity, allowing to operate the production and consumption ofsocial meanings and values.
Key Words: Ethics, heteronomy, inter-subjectivity, religion, secularism
1. Introdução: Existem diversos tipos de experiências quotidianas. Todas possuem valores sociais, ético-morais, políticos, estéticos, etc. Estes valores dependem da cultura e dos interesses predominantes na sociedade. O modo como se vive (as experiências e os valores) suscita juízos críticos ou, pelo menos, reflexões espontâneas. São, in toto, experiências imanentes que exigem participação e envolvência, porque são integrantes e transformadoras, até ao ponto de determinarem os modos de pensar, sentir e agir. São também, por isso, experiências construtoras da pessoa, enquanto ser social e cultural, na medida em que não existem experiências puras ou simples apreensões e assimilações objectivas da realidade. Por exemplo, experiências estéticas, experiências éticas, experiências políticas ou, nomeadamente, experiências religiosas. Estas experiências são próprias da vida humana. Ser humano pressupõe ser social, gregário, participante numa dada cultura interiorizada e expressa nos mais diversos modos de agir, regras de conduta, formas de falar e de pensar, enfim, maneiras de ser e de estar. As experiências são heterogéneas mesmo quando são do mesmo tipo. Segundo Jesús Casás Otero (2003: 91) “o facto de nos encontrarmos com tanta variedade de religiões pode ser explicado não apenas pela diversidade de experiências pessoais no encontro com o fundamento sagrado como, sobretudo, pelos condicionalismos culturais dos distintos povos”. Apesar de partilharem elementos comuns, todas as religiões possuem a sua própria história, tradição e cultura que permitem mudanças estruturais, como o ganho ou perda de popularidade de um santo; mudanças doutrinais e novas visões sobre uma realidade mais ou menos moderna e secular. A experiência religiosa é necessariamente subjectiva e, por conseguinte, também é, de certo modo, intraduzível e incomunicável, individualizando o crente num mundo empírico, porque qualquer experiência consiste num fluxo contínuo de vivências singulares (Rodrigues, 2011: 65-66). Trata-se de uma maneira própria de ver o mundo e este dado afigura-se, por conseguinte, o maior desafio do presente ensaio, pois pretendese fundamentar a experiência religiosa como objecto de estudo ou de reflexão crítica e dialéctica, sendo esta mesma experiência caracterizada, como se disse, por uma maneira própria de ver o mundo. Se a experiência é imanente, subjectiva e heterogénea, edificada sobre determinados valores, como relacioná-la, conforme o título e o propósito deste ensaio, com uma ética da intersubjectividade? Como pensar sobre estes dois conceitos (“experiência” e “ética”) sem os remeter
para uma relação de correspondência e de oposição? De correspondência (unilateral, todavia), porque ambos não se implicam mutuamente: não existe ética sem (bases na) experiência (do mundo); mas existem experiências que não são objecto de reflexão da ética; de oposição, porque quer a experiência quer a ética encerram-se em domínios distintos: a experiência, no âmbito do pathos (paixões, sentimentos e emoções); a ética, no do éthos (traços de “carácter”; e/ou êthos, “residência ou morada própria do ser”). A experiência, composta por estados interiores (pensamentos, percepções, sensações, sentimentos, etc.), pertence ao mundo vivido e indizível, individual, inalienável e inadiável, i.e. mundo da diferença não partilhável. A ética, como capacidade cognitiva e prática inerente ao ser humano consciente e com responsabilidade sobre os seus actos e na base do que lhe é permitido na sua relação com os outros, pertence ao mundo racionalizável, dizível, social, public e alienável, i.e. mundo da identidade partilhável. Ora, como falar do pathos através do éthos? Como tornar ética a experiência e, nomeadamente, a experiência religiosa? Estamos perante um paradoxo: se a experiência é singular, subjectiva e idiossincrática e a ética é normativa ou descritiva, coerente e sistemática, como se podem complementar? O paradoxo da ética é contribuir para a heteronomia1 da intersubjectividade nas experiências religiosas, i.e. tornar-se uma eticidade objectiva e universal da experiência religiosa e da experiência ética, uma hibridez de moralidade religiosa. Associar a experiência religiosa a uma ética universal parece, prima facie, um exagero conceptual, mesmo que o propósito seja, como é neste ensaio, o de traçar um percurso da intersubjectividade, i.e. um trajecto desejável de um “Eu individual” da experiência religiosa para um “Eu social” da eticidade. Este percurso, da pessoalidade à alteridade, é o da heteronomia, o das multiformes possibilidades de inter-relação, independentemente da religião, crença, cultura, valor moral e ético,2 etc. Relativamente audaz per se, esta proposta conduz a um profícuo campo de problematização: 1) O que pode e deve fazer a religião para a integração e intersubjectividade das heteronomias sociais e culturais? 2) Como alargar a vivência pessoal, a partir de uma experiência religiosa, para uma prática social, ética e universal? 3) Considerando a diversidade dos modos de interacção e intersubjectividade, bem como a heteronomia das sociedades e culturas, quais são os benefícios da religião numa época actual marcada por traços seculares ou pós-seculares? 4) De que modo os valores morais e éticos, associados a uma vivência pessoal da religião, podem contribuir para um projecto mais alargado de uma ética universal da intersubjectividade? 5) Quais são as inter- relações profícuas entre a religião e a ética? Todas estas questões têm a ver com o modo de universalizar a religião. Não uma religião universal, mas a prática de religiosidade, necessariamente subjectiva, imanente e heterogénea. Considerando uma moralidade religiosa, uma forma de ética da intersubjectividade ou ética da heteronomia, contrapõe-se a ética da subjectividade de Kant, que é essencialmente uma ética da autonomia, sendo a primeira um percurso de integração das diferenças e da heteronomia cultural. O título “Da experiência religiosa à heteronomia da ética da intersubjectividade” deduz o traço desse percurso heteronómico e intersubjectivo da ética, que começa na experiência religiosa pessoal (particular) e se estende a um campo de aplicação impessoal e geral da ética (universal). Como se depreende, o objecto de estudo insere-se no campo interdisciplinar da religião e da ética, sendo esta a perspectiva de abordagem da religião a partir da sua concepção como variante cultural, i.e. “artefacto” susceptível de ser intervencionado pela ética.
1 No âmbito da ética, pressupõe-se uma proveniência multiforme e exterior (à razão) do significado, compreensão e assimilação da realidade, e.g. por mediação das formas de representação simbólica como a linguagem, com consequências determinantes nos modos de agir para a prática do “bem”. 2 Considere-se a diferença entre moral e ética. A moral consiste num saber vivencial, grupal e não necessariamente científico, pela qual as acções são exteriores à pessoa, porque são praticadas por hábito.
entre a religião e a ética, numa época propensa à formação de sociedades e culturas modernas ou tendencialmente seculares. O ser humano possui, essencialmente, uma tripla dimensão: a) é ser social e estabelece relações sociais com os outros; b) é ser moral e toma consciência de si (e do sentido último da sua existência), do outro e do mundo; c) é ser político e intervém ou se relaciona harmoniosamente com o meio social organizado). Sobre a alínea b), a estrutura moral da pessoa, atua mais incisivamente a religião e a ética. Por conseguinte, o objectivo principal deste ensaio é compreender a heteronomia de modos pelos quais se verifica a intersubjectividade e se operam a produção e consumo social de significados e valores a partir da experiência religiosa, por um lado, e traçar o quadro conceptual de uma análise crítica e compreensiva sobre as formas de construção social, cultural e simbólica da ética na orientação de acções e comportamentos sociais. Para o aludido objectivo atendeu-se ao âmbito teórico deste ensaio e às exigências conceptuais do tema, pelo que a metodologia mais apropriada ao estudo da experiência religiosa enquadra-se numa análise crítica e dialéctica. Considerando que é essencialmente aporético o âmbito das investigações sobre religião e a ética, como acontece com outros domínios das ciências sociais e das ciências humanas, seguiu-se uma metodologia que partiu da identificação ou formulação de um problema central. Este problema é: Os conceitos (e.g. “liberdade”, “bondade”, “bem”, etc.) e os respectivos valores são conceitos ético-morais absolutos ou são simples concepções sociais e culturais propostas pela religião como forma de vida? O fenómeno religioso pode ser estudado por uma variedade de áreas científicas e respectivos objectivos, métodos e instrumentos de abordagem, quadros teóricos e conceptuais, modelos de análise, etc. São os casos da Antropologia (designadamente da Antropologia da Religião, Antropologia Cultural e Antropologia Social); Etnografia; Etnologia; Sociologia da Religião; Teologia; Ciências da Religião; e Filosofia da Religião. Estas disciplinas desenvolveram-se com o tempo e adquiriram um dado grau de singularidade, mesmo se convergirem na abordagem (não no tipo de abordagem nem no método de abordagem) de um mesmo objecto: a religião. Podem até se influenciar mutuamente ao ponto de justificarem a interdisciplinaridade. É esta interdisciplinaridade que importa referir para fundamentar o presente ensaio, na medida em que o mesmo incide sobre um objecto de estudo cruzado por várias disciplinas sociais e humanas que, não sendo próprias desta abordagem, a sua complementaridade interessa para a compreensão do tema-problema exposto. Ao contrário da Antropologia ou Etnologia (ciências supostamente mais indutivas), não se privilegiam neste ensaio filosófico técnicas de investigação através de uma experiência directa e comparativa. Sobrevaloriza-se a inscrição de dados recolhidos e seleccionados através da pesquisa, numa teorização em quadros conceptuais de interpretação, método próprio de ciências supostamente mais dedutivas.
2. Natureza e cultura da experiência religiosa: Os conceitos de “religião” e de “cultura” estão associados pelo entendimento comum de religião como fenómeno social, quer devido à vivência, prática e expressão colectiva das manifestações religiosas quer devido à integração de crenças, valores, atitudes, padrões culturais e rituais com um enfoque sobrenatural. Entende-se que “religião” é um conceito cultural, cujo alcance e delimitação conceptual associa os indivíduos às respectivas culturas. A religião é uma dimensão inerente à vida humana e, por conseguinte, constitui uma forma de sentido. Mas uma forma relativa de sentido, porque é um sentido cultural e existem inúmeras e diferentes culturas. A religião, enquanto sistema simbólico e autónomo de comunicação, insere-se na sociedade, incluindo as mais complexas, como as atuais sociedades ocidentais, tecnológicas, globalizadas e seculares. O que é parte de uma dada cultura também é parte de uma dada religião vivida que, por conseguinte, determina padrões e modos de viver o conjunto de actividades e interesses característicos de um povo. Desde sempre que o sagrado funciona para as pessoas como um instrumento de compreensão da condição humana. No entanto, como admitiu Émile Durkheim (2002: 11), “não existe um instante radical em que a religião tenha começado a existir”. As religiões “correspondem às
mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas”, pelo que podem server do mesmo modo para “manifestar a natureza da vida religiosa” (Durkheim, 2002: 7). A religião é eminentemente social. Enquanto sistema de representação, a religião é colectiva e exprime uma certa realidade colectiva (Durkheim, 2002: 19; Aron, 2007:350). É provável que, conforme acrescentou Durkheim (2002: 12), os primeiros sistemas de representações do mundo e da condição humana sejam de origem religiosa (in primis, o totemismo). Durkheim descreveu a religião como um eminente facto moral e social, uma relação estreita e acentuada entre o sistema simbólico de crenças e representações (a religião) e o sistema social e político de organização colectiva (a sociedade). Esta perspectiva social, cultural e moral sobre a religião demonstra a sua relatividade, mas fundamenta uma ética universal propulsora de intersubjectividade face à heteronomia. A questão da origem da religião, que é uma outra questão, funde-se na questão mais importante de compreender as experiências religiosas próprias da natureza humana, na medida em que esta natureza humana já justifica, de certo modo, a origem religiosa do ser humano, das culturas e sociedades humanas. Assim se justifica porque não existe ser humano, cultura ou sociedade humana sem práticas sociais ou formas colectivas de prestação de culto. Por isso, As Formas Elementares da Vida Religiosa registam a presença da religião na natureza e cultura humana. Neste sentido, é particular a distinção de Régis Debray entre a experiência espiritual e a experiência religiosa, considerando que ambos os domínios da realidade, o espiritual e o religioso, podem intersectar-se, mas não se sobrepõem. Enquanto a experiência espiritual diz respeito ao sujeito e à sua vida interior ou às “operações de Deus na alma”, cujos exemplos são João da Cruz e Teresa de Ávila, a “experiência religiosa orienta-se para o colectivo; ela extroverte o íntimo e revela o invisível, ligando as colinas inspiradas à planície, e o mais relevante ao mais trivial” (Debray, 2005: 27). Para Debray, a experiência espiritual fomenta a associação entre a alma e Deus, enquanto a experiência religiosa fomenta a união entre o indivíduo e o meio envolvente de templos, calvários, mesquitas e sinagogas. O espiritual preenche a esfera íntima da consciência individual; o religioso preenche a esfera pública e quotidiana, reforçando a coesão do grupo através de várias práticas devocionais de unificação social (ortopraxias ou regulação de condutas). A parábola hindu do cego e do elefante é demonstrativa da diversidade de experiências religiosas que se pode obter e entender de uma mesma realidade: Deus seria como um grande elefante rodeado por vários cegos, cada um tocando em partes do elefante (cauda, tromba, perna, barriga) pensando que estaria a tocar em algo muito diferente (corda, cobra, árvore, parede) respectivamente (Meister, 2009: 31; Schmaltz, 2003: 1-2). Todos os cegos estariam a experienciar o mesmo elefante, mas Segundo maneiras muito distintas, tal como acontece com a diversidade religiosa. Esta analogia popular revela que todas as experiências religiosas são válidas para descrever um dado Deus e a aceitá-lo de uma determinada maneira, i.e. a maneira como esse Deus é visto e se torna objecto de crença e culto. Segundo a mencionada parabola hindu, todas as religiões são iguais na necessidade de algo para adorarem Segundo vários tipos de cegueiras sobre a mesma realidade, independentemente das distintas descrições que a fé cega permite traçar. O pluralismo religioso subjacente ao sentido da parábola sustenta que uma verdade sobre o que constitui a realidade depende, de igual modo, de cada concepção religiosa, que a torna percebida e sugestionável para os respectivos crentes. Os padrões conceptuais sobre a religião condicionam a percepção e o entendimento que as pessoas fazem de uma mesma realidade, contribuindo para que cada comunidade de crentes interprete e retire os sentidos que “precisa” para continuar a considerar uma dada realidade no âmbito da sua religiosidade.
2.1. O conceito de experiência religiosa: A questão sobre a natureza da experiência religiosa visa indagar a conveniência em se considerar uma essência dessa mesma experiência e, por conseguinte, a identificação e caracterização da mesma. As crenças e práticas religiosas das diversas religiões ou credos terão elementos em comum? Os participantes partilharão sentimentos idênticos enquanto participam nas práticas devocionais? A natureza humana proporciona uma diversidade de experiências religiosas. Todas as pessoas possuem experiências. Cada uma destas experiências é única para quem a vive. Por conseguinte, todas as experiências são subjectivas, i.e. diferentes.
2.2. Mediação simbólica e cultural da experiência religiosa: Ser humano implica criar e manter relações com os outros, adoptar e adaptar, como condição sine qua non, hábitos colectivos de pensar, sentir e agir, consoante uma estrutura de valores. Ser humano pressupõe sempre, conforme salientou Wilhelm Dilthey (2000: 21) a compreensão dos outros. Esta compreensão incide sobre uma individualidade ou subjectividade que é objectivada com a exteriorização ou expressão religiosa e ética dos aludidos valores. É neste quadro relacional e valorativo que se integram as experiências religiosas como sistema cultural, segundo a perspectiva de Clifford Geertz (2000: 20, 87), na medida em que definem os modos como queremos ser tratados enquanto seres humanos, i.e. modos resultantes do que queremos uns dos outros para nos formamos colectivamente como seres sociais, culturais, religiosos, éticos, morais, enfim, seres com linguagem que significam e comunicam uns com os outros todas as experiências estéticas, éticas, políticas e religiosas (Savater, 2009: 99-112; Schellekens, 2007: 13). A definição que Clifford Geertz (2000: 89) apresentou de “religião” como sistema cultural justifica a pertinência, o interesse e a importância da compreensão, interpretação e discussão crítica da experiência religiosa enquanto objecto de estudo, porque relaciona a religião e a cultura. Fá-lo mediante a exploração do sistema de símbolos que estabelece, por seu turno, interacções de mensagens, estados de espírito e de concepções sobre o mundo. A cultura é um sistema ordenado de significações, símbolos, crenças e valores que permitem a interacção e a integração social (Cassirer, 1995: 33). A cultura forma e define uma realidade e permite que as pessoas expressem os seus sentimentos e ideias. Na subjectividade (da vivência religiosa) reside a possibilidade de intersubjectividade (dos valores morais e crenças religiosas) proporcionada pela mediação de estruturas de significação social (como a cultura e a linguagem). As diversas formas de linguagem, simbolismo ou estruturas de significação e de cultura demonstram que, por um lado, existe uma heteronomia de possibilidades para a intersubjectividade, por outro lado, que a vida quotidiana é necessariamente social. Tomando a concepção de “religião” proposta por Durkheim (2002: 50) como factor de unidade social, as afinidades entre a religião e a cultura prendem-se com formas de satisfação das necessidades humanas. Para Bronislaw Malinowski (1997: 37), “a cultura consiste no conjunto integral dos instrumentos e bens de consumo, nos códigos constitucionais dos vários grupos da sociedade, nas ideias e artes, nas crenças e costumes humanos”. Esta definição clássica significa que a cultura é um vasto dispositivo material e espiritual de produção de artefactos extraídos do meio ambiente em que o homem vive e que lhe possibilita fazer face aos problemas e necessidades que se lhe deparam. O meio ambiente natural é transformado, pela produção de cultura, num meio ambiente secundário e organizado, onde o relacionamento e o comportamento se realizam através da concórdia,
cooperação e respeito. Paralelamente, é este também o campo de intervenção da religião e da ética que transformam o meio de modo mais habitável e comportável para a intersubjectividade. A religião e a cultura funcionam como um mesmo sistema de representação. Os símbolos religiosos implicam sentimentos. Segundo Geertz (2000: 119), a força do símbolo “radica claramente na sua capacidade de abarcar muitas coisas e na sua eficácia para ordenar a experiência”. Por ordenar a experiência, designadamente a experiência religiosa, o símbolo medeia todos os campos da vida quotidiana e justifica a “concepção de homem como animal capaz de simbolizar, conceptualizar, procurar significações” (Geertz, 2000: 129), bem como justifica a alteridade essencial da religião; a forma, conteúdo e sentido da experiência religiosa; e as relações intersubjectivas entre a religião e os valores. A religião é, para Geertz (2000: 129) uma actividade simbólica que visa orientar um organismo que não pode viver num mundo incompreendido. A linguagem constitui, deste modo, o fundamento lógico do ser humano como ser eminentemente social, cultural, ético, moral, político e religioso. Segundo Hans- Georg Gadamer (1996: 467) “ter um mundo significa referir-se ao mundo”, no sentido em que só se pode referir-se ao mundo se pensarmos, sentirmos e agirmos nesse mundo, sendo que a posse de um mundo é a posse de uma linguagem. A relação com o mundo caracteriza-se pela liberdade face ao ambiente e “uma tal liberdade implica a constituição linguística do mundo” (Gadamer, 1996: 468). Se não é possível, como também admitiu Roland Barthes (1979: 9) falar da linguagem sem, de certo modo, reconhecer que se está dentro dela, então as próprias experiências simbólicas, como as religiosas, pertencem a uma lexologia, seguindo o verdadeiro sentido etimológico grego de lexis, i.e. “enunciação”. A associação entre as experiências religiosas e a lexologia justifica-se, porque o campo desta é o da fala intersubjectiva ou “fala social”, aquela na qual o falante “é um sujeito dialecticamente livre e coagido” porque não preexiste à linguagem e se constitui como sujeito à medida que fala; e porque só pode fazer-se reconhecer em determinado lugar como parte de um sistema já constituído (Barthes, 1979: 9-10). O conceito de “sociedade” remete para a ideia de concepção de um mundo simbolicamente estruturado de formas de vida e de intersubjectividades sociais que são, por seu turno, reguladas através de mecanismos de poder e de disposições da interacção das formas simbólicas, como a linguagem, a cultura, a religião, etc. Considerando a religião constitutiva do ser humano ou, pelo menos, inerente ao ser e estar num mundo complexo e em constante transformação (i.e. a religião como produto cultural do ser humano e em função dos seus interesses, desejos e necessidades) afigura-se importante descortinar a função da religião como forma de linguagem e de pensamento simbólico ou sistema de significação e comunicação de uma dada sociedade ou cultura. Para Martin Buber (2012: 95), o conceito de “experiência” significa um meio de aquisição de algo quando se viaja, “quando se atravessa o mundo” ou “quando se passa por coisas”. Esta concepção pressupõe que a experiência que se tem ou se adquire não pertence necessariamente ao mundo exterior mas, pelo contrário, consiste num processo interior, como acrescentou Buber (2012: 95-96). Como a vida humana não se restringe a impressões ou a ter processos interiores, i.e. a passar por experiências, o ser humano também tem expressões, processos de inter-relação e interacção, designadamente da experiência religiosa e através das formas simbólicas. A experiência religiosa é um processo de incorporação de modos de ser, estar, falar, compreender, agir, reagir e interagir com sentido. Pela aquisição de esquemas operatórios e estruturas de significação criados e transmitidos por uma dada cultura, a experiência fornece também competências para a actividade simbolizante. A linguagem medeia a compreensão e a interpretação dos outros e da realidade. A mediação da experiência religiosa pelas formas simbólicas ou veículos de significação, desperta a atenção para a língua como lugar onde a experiência do homem se diz (Ricoeur, 1995: 12). O ser humano é um ser mediado pelos signos e apenas alcança a compreensão de si e dos outros através da compreensão dos signos. O símbolo associa o mito e o rito, reporta-se ao sagrado e caracteriza uma forma de ver o mundo do homo religious (Ricoeur, 1995: 108). É, por conseguinte, através da intersubjectividade das formas simbólicas que a experiência religiosa se sustenta, se reproduz e se funda na lógica da sociabilidade. Não fazem sentido experiências sem mediação, pois não fazem sentido sem o outro, i.e. sem relações intersubjectivas. Assim acontece com a experiência religiosa que é, no domínio simbólico, ambiguamente subjectiva e intersubjectiva: subjectiva, porque se traduz numa exclusiva e singular relação dialógica entre um
2.3. Religião natural e religião cultural: Entre a natureza e a cultura existe uma clara distinção. Estes dois conceitos relacionam-se como um binómio, que pode ser traduzido da seguinte forma: a natureza constitui tudo o que cresce e se desenvolve sem a intervenção humana ou sem a vontade do ser humano, enquanto a cultura corresponde a tudo o que é construído ou desenvolvido com a intenção (não com o acaso ou determinismo da natureza) de satisfazer necessidades humanas. O apuramento conceptual destes dois conceitos é importante para compreender o sentido da questão relativa às concepções de “religião natural” e “religião cultural”. A questão suscitada pela confrontação entre “religião natural” e “religião cultural” está comprometida com a ideia de que ninguém seguirá uma crença ou terá certos comportamentos de modo puramente livre, i.e. sem acreditar nos valores subjacentes às ditas crenças ou comportamentos. Enquanto a ideia de “religião natural” subjaz à concepção de uma dimensão humana assente na predisposição para a religião, a ideia de “religião cultural” subjaz à concepção de uma dimensão humana assente na cultura (no sentido de produção) da religião, i.e. subjaz à tese da religião como variante cultural. Apesar de partilhada por vários autores, como Marcel Gauchet na sua emblemática obra The Disenchantment of the World: A Political History of Religion (1997: passim) a ideia de que a religião terá existido sempre (em todos os tempos e lugares) é discutível e não é seguida por outros autores, como Daniel Dennett (2008: 91), que a refuta no seu livro Quebrar o Feitiço – A Religião como Fenómeno Natural. Segundo Dennett (2008: 91) “existiu um tempo antes das crenças e práticas religiosas terem ocorrido a alguém”, tal como também existiu um tempo “antes de existirem quaisquer crentes no planeta, antes de existirem quaisquer crenças sobre fosse o que fosse”. Dennett explorou a possibilidade de a religião ser governada por forças naturais da evolução e da selecção natural. Além desta polémica questão, a discussão crítica recai na atribuição de responsabilidade à religião ao desempenhar um papel benéfico na vida humana e, ao mesmo tempo, ao representar um perigo ou ameaça de conflito entre povos. A perenidade da religião na vida humana é igualmente considerada por Mircea Eliade, ao reconhecer o regresso do religioso e a defender que esse regresso se deve à inquietação e insatisfação humana na procura de sentido ou de benesses para a vida. Conforme referiu Eliade (1999: 211) em O Sagrado e o Profano, o ser humano puramente a-religioso (ou unicamente racional) é um fenómeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas, porque descende do homo religiosus e dispõe, até inconscientemente, de uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos. Também segundo Malinowski (1988: 19) “não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia”. Esta mesma ideia foi sustentada por Jostein Gaarder (2007: 13), ao defender que “não há registo de nenhuma raça ou tribo que não tenha tido uma religião de qualquer espécie”. Esta ideia é ainda mais tradicional pelos argumentos dos autores latinos clássicos, como Santo Agostinho ou Tertuliano, no desenvolvimento da tese da crença natural do homem em Deus e nas verdades fundamentais do cristianismo. Neste sentido, Tertuliano (apud Otero, 2003: 91) recorreu à ideia de que a religião estava já presente no homem primitivo e inculto, porque a alma é cristã por natureza. Segundo Anselmo Borges (2010: 20) “não é ousado afirmar que todo o ser humano é religioso”. Todos temos uma consciência construtora de mitos e somos constituídos simultaneamente pelas actividades racionais conscientes e pelas experiências irracionais ou emotivas. Os mitos, resultantes de ambiguidades e de leituras interpretativas da realidade, surgem para suportarem a fé que se nutre por algo ou alguém mitificado. Independentemente desta controvérsia, a religião é vivida colectivamente e manifestada socialmente através de crenças e práticas multiformes, consoante os locais e as épocas, as culturas e as sociedades mais ou menos primitivas ou complexas. As crenças e práticas religiosas, apesar de multiformes, seguem três propósitos preferidos, segundo Dennett: a) reconfortar no sofrimento e aplacar os anseios, temores, medos e angústias inerentes à condição humana; b) explicar coisas que não se consegue nem compreender nem explicar de outra forma; c) encorajar a cooperação entre as pessoas face às dificuldades e problemas peculiares da vida. Os fenómenos religiosos possuem vivências características e são experimentados consoante a cultura em que se inserem. A cultura e a religião são, por um lado, aspectos de uma mesma unidade,
i.e. estão inter-relacionadas, mas, por outro lado, são duas coisas diferentes. Segundo T. S. Eliot (2002: 16) “nunca houve uma cultura que se desenvolvesse sem uma religião a acompanhá-la”, pelo que a cultura aparece sempre como um produto da religião ou a religião como um produto da cultura. A cultura é visível nos modos de manifestação colectiva da fé. As formas de vida ou modos culturais e simbólicos de viver em sociedade nunca podem ser atingidas deliberadamente, porque são constituídos por produtos de uma variedade de actividades mais ou menos harmoniosas (Eliot, 2002: 20). Regressando à indagação de Dennett acerca da “religião natural”, i.e. o produto de um instinto evolucionário cego, e da “religião cultural”, i.e. o produto de uma escolha racional, a religião é vivida, quer numa situação quer na outra, sempre como a procura de uma melhor ou mais ideal forma de vida moral, i.e. pela prática do bem nas relações interpessoais. É neste preciso aspecto que se introduz com pertinência a ideia de uma ética universal como acção social universal, i.e. um modo reflexive (racionalizado) de procurar uma sempre melhor ou mais ideal forma de vida intersubjectiva, tendo por base a experiência religiosa e as respectivas crenças e práticas. O desejo de se ser uma pessoa mais virtuosa, de se sentir melhor inserido num certo contexto social e cultural, representa, porventura, um dos principais benefícios da prática religiosa, justificando o facto de a religião se impor na vida humana com uma certa naturalidade. Independentemente das concepções sobre a religião, esta constitui uma dimensão igualmente natural na vida das pessoas. Segundo Dennett (2008: 36) as religiões são transmitidas e adquiridas consoante uma dada herança cultural e educativa. Independentemente da perspectiva (natural ou cultural), a religião corresponde, por um lado, a uma natureza humana crédula, auto-reguladora e intersubjectiva, por outro lado, a uma cultura profusamente simbólica, criativa e adaptativa, ambas em permanente e necessária transformação pela esperança de salvação. É a partir da consciência sobre a sua própria condição que o ser humano encontra formas de transcendência dos seus limites e articula um sistema simbólico, criado por si, ao sentimento de esperança e à percepção de sentido de vida num desígnio último: a salvação. Neste sentido se compreende que a concepção cultural (social) e natural (biológica) do ser humano sobre a religião é sustentada por Anselmo Borges, em Religião e Diálogo Inter-religioso: “frágil segundo a natureza e sem especialização [o homem] tem de criar uma espécie de segunda natureza ou habitat, precisamente a cultura” (Borges, 2010: 9). Numa obra recente, paradoxal e provocante, intitulada Religião para Ateus, Alain de Botton reconheceu duas vantagens do que designou “a invenção das religiões” servir outras duas necessidades humanas fundamentais: “primeira, a necessidade de vivermos harmoniosamente juntos em comunidades, apesar dos nossos impulsos egoístas e violentos profundamente enraizados; e, segunda, a necessidade de lidarmos com os aterradores níveis de dor originados na nossa vulnerabilidade ao fracasso profissional, a relações complicadas, à morte de entes queridos e à nossa decadência e morte” (Botton, 2012: 14). Estas necessidades continuam a existir até hoje, numa porventura modernidade (pós-)secular. A concepção cultural (social) e natural (biológica) do ser humano sobre a religião influencia a formação e manutenção de uma certa identidade. Em sociedades abertas e complexas, cada vez mais multiculturais e politeístas, a identidade será mais heterogénea e planetária, mas sensível ou um pouco intolerante face à heteronomia. A construção da identidade consistirá, neste caso, num processo ideológico de representação social dos valores de liberdade ou tolerância religiosa. Em sociedades mais fechadas, simples e tradicionais (nomeadamente monoteístas), a matéria-prima do fenómeno religioso é o elemento sagrado ou santificado e este elemento constitui um factor determinante para a definição de crenças e práticas religiosas, contribuindo também para a criação e definição da identidade (Neves, 2006: 7). No seu conjunto e nas suas múltiplas dimensões, o fenómeno religioso integra uma panóplia de relações intersubjectivas (do indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o sagrado); representações simbólicas; práticas sociais e culturais; instituições (a Igreja institucional), etc., que regulam os cultos e rituais religiosos.
Ad primum, reduz-se a distinção entre bem e mal, porque tudo o que os deuses ordenam é correto. Aceitar que existe uma distinção é não aceitar tudo o que os deuses ordenam. As ordens divinas são arbitrárias e os mandamentos poderiam ser outros. Ad secundum, coloca-se em causa a bondade dos deuses, pois o que é bom 3 Por contraposição a uma “moralidade subjectiva”, enquanto vontade subjectiva que preside ao bem ou à ideia de “bem”, exigindo-se autodeterminismo da própria vontade, ao contrário da “moralidade objectiva” ou eticidade que não depende apenas e exclusivamente do sujeito. seguir existe prévia e independente dos mandamentos dos deuses. Esta situação provoca um dilema da concepção teológica entre o bem e o mal moral: ou encaramos os mandamentos de Deus como arbitrários e abandonamos a doutrina da bondade de Deus ou admitimos que há um padrão de bem e de mal moral independente da vontade de Deus e abandonamos a concepção teológica de bem e de mal moral. O dilema de Êutifron é comparável à questão de Abraão que, pela sua fé desmedida, segue o mandamento divino e quase tira a vida ao seu filho Isaac. Esta atitude traz implicações para a prioridade de Deus sobre a ética humana, na medida em que Abraão está preparado para suspender a ética do “Não matarás” (valor ético de bondade) face à ordem de Deus para matar Isaac (ordem que consistirá, para Abraão, a bondade compreendida como a vontade de Deus). Em Temor e Tremor, Kierkegaard discutiu este caso, considerando que o mesmo revela que Abraão é um grande homem de fé e que a situação se traduz numa suspensão teológica do ético. Efectivamente, tratase de um caso complexo, pois a vontade de Deus é considerada mais importante do que a preservação da vida humana. Este mesmo caso é moralmente interpretado de modo diferente por Kant, em A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão. Consistindo a prática religiosa no exercício do dever moral, Kant reclamou a prioridade do papel da moralidade nas acções de Abraão (ou até sobre as crenças religiosas). Para Kant, a ideia de uma suspensão religiosa da ética é inaceitável, pois, enquanto a norma que estipula não matar é certamente considerada verdadeira, a sensação ou percepção de que Deus ordenou que Abraão matasse Isaac é incerta (Clack & Clack, 2010: 176). Na perspectiva moral de Kant, segundo Miguel de Unamuno (2007: 59) “a religião depende da moral, e não esta daquela, como no catolicismo”, estando o pensamento kantiano muito mais próximo do protestantismo, por este ser essencialmente ético. À perspectiva de Kant contrapõe-se a ideia de Santo Agostinho da fides proccedit rationem, que garante conforto, segurança, certeza e sinais, i.e. motivos de 4 Do latim, “a fé precede a razão”. credibilidade para compreender. Todavia, ambas, a racionalista de Kant e a religiosa de Santo Agostinho seriam impossíveis numa forma pura, segundo Miguel de Unamuno, i.e. “uma tradição puramente racionalista é tão impossível como uma tradição puramente religiosa” (Unamuno, 2007: 91). Abraão poderia matar Isaac, mas já não poderia, certamente, deixar de se aperceber que a sua acção seria moralmente condenável. Será que Abraão ficaria de consciência tranquila mesmo se encontrasse justificações para o seu acto, se alegasse liberdade de indiferença ou se soubesse que a sua acção não seria conhecida? Matar Isaac seria moralmente inaceitável, pois o valor da vida (do próprio Abraão e de Isaac) é intemporal e é também um imperativo de consciência de Abraão como agente moral, possuindo um carácter obrigatório, na medida em que se constitui como um princípio que transcende qualquer circunstância. Poder-se-ia concluir este caso de Abraão afirmando que a religião atribui expressão aos medos e desejos essenciais do ser humano, pois a preocupação com o pecado é exacerbada ao ponto de se tornar angustiosa entre os católicos, conforme admitiu Miguel de Unamuno (2007: 59). Por isso, “foi preciso fazer da religião, para benefício da ordem social, uma polícia” (Unamuno, 2007: 61), i.e. a concepção e difusão da ideia de inferno. Segundo Unamuno (2007: 108): “O homem aspira a ser amado, ou, o que significa o mesmo, aspira a ser compreendido. O homem procura quem lhe sinta e compartilhe as penas e as dores.”. As religiões não separam o campo da ética do campo próprio da religião. Os costumes sociais, as regras de convivência ou os preceitos morais fazem parte do campo religioso, tal como outros aspectos eminentemente religiosos, como as crenças e as práticas rituais que sustentam o culto devocional (e.g. a oração ou o sacrifício). Nos dez mandamentos que Moisés entregou aos judeus,
tanto figuram os que dizem respeito ao próprio campo da religião (e.g. “Não terás outro deus para colocar contra mim”) como os que possuem implicações éticas (e.g. “Não matarás”). Assim pressuposta, a ética beneficia as escolhas, as tomadas de decisão, as “boas” acções ou as condutas quotidianas e intersubjectivas, porque visa sempre o mais conveniente, i.e. o mais respeitador dos interesses pessoais e colectivos. Paralelamente, a religião também assume este papel útil e funcional, ao orientar o que as pessoas pensam, dizem ou fazem com repercussão nas outras. Os códigos morais constituem uma parte essencial das religiões. Todavia, ao contrário da ética, os códigos morais religiosos não resultam do puro uso da razão e a sua fonte é a respectiva revelação. É o caso das chamadas religiões do livro, que registam o que fazer para alcançar a “salvação”.
5 O mesmo acontece no Islamismo, em que a oração a Deus contempla a dádiva de esmolas aos pobres enquanto preocupação ética e não essencialmente religiosa. Constituindo a liberdade a questão fundamental e o próprio objecto da ética, a religião também propõe critérios para o usufruto dessa liberdade. Não é possível ser livre no lugar de outra pessoa nem se dispensar de fazer escolhas na vida, i.e. é impossível não agir. A liberdade determina tudo o que somos, pensamos, dizemos ou fazemos. As virtudes e os vícios advêm da mesma fonte, a liberdade. Depois da sua aplicação, a liberdade suscita inexoravelmente sentimentos de orgulho justificado ou de remorso. Atentas a esta circunstância, a religião e a ética apresentam possibilidades para a liberdade humana, i.e. maneiras de pautar a vida quotidiana. A predisposição ou prerrogativa humana para a liberdade torna esta última, por conseguinte, uma questão importante quer para a ética quer para a religião. O ser humano é um ser moral porque a sua acção, para ser moral, deve estar conforme critérios, valores, regras e prescrições. Só assim a moral caracteriza a acção do homem (Renaud & Renaud, 1999: 956). Neste sentido religioso e ético sobre a acção e a liberdade, estas são limitadas dentro de um quadro de possibilidades. Quando o ser humano se torna consciente das suas limitações, tem a oportunidade de demonstrar dignidade, na medida em que esta dignidade não reside no que é adquirido pela sua natureza, mas no que se pode alcançar através da liberdade e da acção. As escolhas que se fazem, em função dos valores que se considera prioritários, moldam o modo de ser. A este propósito falou Paul Ricoeur (1988: 391) de “liberdade do ato de fé”, i.e. liberdade de crença ou poder geral de escolher e produzir uma opinião, uma convicção subjectiva. A liberdade tem limites e um destes reside numa outra liberdade, a liberdade religiosa de professar uma crença determinada ou expressar publicamente a fé na forma da opinião aludida por Ricoeur. Pressupõe-se a grandeza moral e cultural de reconhecer o outro como sujeito de vontade livre no seio de uma mesma comunidade organizada de direito público. Esta forma de liberdade confina-se no conteúdo da crença religiosa que a alimenta e que, paradoxalmente, assenta na esperança. Paradoxalmente, porque a esperança aprisiona a fé de quem tem esperança, em vez de libertar totalmente o crente. A liberdade da esperança é o sentido de uma existência humana dependente da ressurreição ou de uma resposta do futuro. Para Kierkegaard (apud Ricoeur, 1988: 427), a liberdade segundo a esperança é a paixão pelo possível.
3.2. Da ética da subjectividade à ética da intersubjectividade: Em 1793, Kant publicou A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão, tendo continuado a sua abordagem sobre a natureza humana de uma forma crítica, ao ponto de reconhecer o que denomina como “fraqueza” da natureza humana, i.e. a dificuldade em fazer o que se sabe que se deve fazer, associando esta “fraqueza” a uma dada “impureza” ou tendência para confundir ou adulterar as razões morais a partir de outras motivações. Uma questão subsequente é: O mal resulta da própria opção do ser humano, do seu uso errado da liberdade de que é dotado, ou existe uma espécie de pecado original em que o mal é radical ou inato ao ser humano, uma característica universal e inevitável da condição de um ser racional, mas com necessidades? Segundo Kant, as pessoas têm uma propensão natural para o mal que é, ela mesma, moralmente má, porque deriva de um livre poder de escolha imputável (Kant, 2008: 43). Kant sustentou a existência de um mal radical, inflexível face a todas as máximas. A natureza humana
designou de “mal radical”: o conflito entre a lei do dever moral e a lei do prazer e da satisfação sensível; entre a lei moral universal e a lei particular do prazer dos sentidos; entre razão e sensibilidade; entre causalidade física e causalidade livre. Entre estes dois mundos, qual é o lugar de Deus? As inclinações naturais obedecem às leis da natureza sensível e, por isso, estão fora do campo moral. “O mal radical está em converter a sensibilidade em norma da moralidade e fazer do desejo um absoluto” (Pegoraro, 2006: 103). De acordo com Kant, o campo da moralidade começa em mim, no meu livre uso da minha razão prática. Enquanto ser dual (i.e. composto de sensibilidade e de razão) possuo liberdade que se traduz na possibilidade de escolha entre seguir a sensibilidade nos meus impulsos naturais ou os apelos da racionalidade. Esta possibilidade de escolha faz de nós seres morais, porque nos submetemos à causalidade da liberdade. Assim é, porque a ética kantiana gira em torno da vontade que submete a sua liberdade à soberania da razão, conforme atesta o início apologético da boa vontade da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Kant, 1992: 21-2). O cumprimento do dever moral resulta na boa vontade. Para Kant, o ideal é sempre a decisão da razão e da vontade de cumprir o dever moral exclusivamente por dever. Como a razão prática apenas tem cabimento no campo racional (porque neste campo a opção depende dos apelos da racionalidade e não das inclinações naturais), é neste campo que se introduz a ética sobre a tomada de decisões resultantes de vontades subjectivas. O problema da ética kantiana reside na concepção de princípios imperativos de moralidade, de cariz objectivo e absoluto, aplicáveis às experiências religiosas de cariz necessariamente subjectivo e relativo. Ora, como aplicar princípios objectivos (na forma de leis morais universais) que se estendem a todos os seres humanos em domínios fenomenológicos de vivência, crença e expressão de experiências religiosas? A resposta de Kant sustentaria que estes princípios imperativos de moralidade são necessários, mas não tanto como as leis da física e da biologia, que são determinadas pela natureza e, por conseguinte, não podem ser transgredidas. Apesar de necessários, os princípios imperativos de moralidade são morais e, por isso, podem ser desobedecidos porque a vontade, subordinada à razão, está também sujeita às inclinações da sensibilidade. As leis da física e da biologia são inevitavelmente realizáveis, enquanto as leis morais são necessárias, mas não anulam a liberdade de as transgredir. Ser livre é ser autónomo, é poder escolher ser submetido à lei moral, ao dever (i.e. ao “eu devo”). Então, a submissão à norma da moralidade é um ato de liberdade; uma vontade livre (liberdade) é uma vontade submissa à lei moral. Esta vontade livre serve de fundamento à moralidade e, por isso, não se restringe ao ser humano e à sua conduta subjectiva, mas é também partilhada com os outros e é extensível à sociedade. A resposta de Kant à última pergunta também passaria pela alegação da materialidade da lei, própria das leis materiais, mas não das leis morais. Estas não possuem conteúdo empírico, sendo apenas forma. Por exemplo, as leis religiosas que ordenam fazer o bem, realizando determinadas acções justas, recorrem a promessas de recompensas ou de castigos. Esta é, para Kant, a materialidade da lei que ordena alcançar determinadas finalidades, como a felicidade. A lei moral de Kant só pode ser uma pura formalidade sem materialidade, na medida em que enuncia um princípio que ordena o cumprimento moral por ser, em si mesmo, moral, sem contrapartidas (recompensas, graças, milagres) para quem cumpre (Pegoraro, 2006: 106). Tem de ser um imperativo vazio de conteúdo material, porque uma forma não ordena fazer seja o que for; apenas ordena “agir de tal modo que…”. Se a religião se define por um conjunto de prescrições e proibições, i.e. um conjunto de deveres para realizar determinadas acções e deveres para não realizar outras acções, a ética da subjectividade define que o dever é um elemento fundamental e, por conseguinte, caracterizador da própria natureza humana para um suposto bem ou mal. Mas não os deveres morais em relação às entidades sobrenaturais, como Deus. Segundo Kant, o ser humano não tem propriamente deveres morais religiosos, pois Kant afirmou que “‘a doutrina da religião, como doutrina dos deveres para com Deus, se situa além dos limites da filosofia moral’”, pelo que o dever religioso consiste em reconhecer todos os deveres como “ordens divinas que transcendem a ordem da ética e devem ser acatadas por motivações de fé” (Pegoraro, 2006: 110). Compreende-se que a ética de Kant seja uma ética da subjectividade, da autonomia, na medida em que nasce na razão e aplica-se com racionalidade. Distinguese da ética da heteronomia,
que é emanada de fora e é dirigida para fora do sujeito, encaminhando-o a fazer acções tidas como “boas”, i.e. justas, almejando a felicidade. À heteronomia ética baseada no cumprimento virtuoso opõe-se a autonomia ética do simples cumprimento da lei moral. A ética kantiana é, por isso, solipsista, por ter retirado a predominância da teologia sobre a ética e acentuando o papel do ser humano. Por ser assim, autónoma, subjectiva, solipsista e monológica, em que a pessoa impõe a si mesma a norma de conduta como norma universal, a ética kantiana foi criticada por Jürgen Habermas que, em contraponto, propôs uma ética do discurso que é, necessariamente interactiva, contextual e mediatizada pela linguagem. Entre as teses de Kant e Habermas verifica-se um deslocamento: o cerne deixa de ser o que cada um quer fazer valer como sendo uma lei universal, sem ser contrariado, para o que todos podem receber com unanimidade e como norma universal (Pegoraro, 2006: 146). Segundo Keith Ward (2007: 111), a grande contribuição de Kant para a ética “foi argumentar que existem verdades morais necessárias e universais inatas à mente humana”. Verdades não concebidas por uma qualquer autoridade exterior, como Deus. Estas verdades são determinadas pelo imperativo categórico ou aplicação sofisticada e necessária de uma espécie de “Regra de Ouro”, na medida em que prescreve a necessidade de se encontrar princípios morais universais com que todos concordem efectiva e racionalmente. Kant defendeu que é possível desenvolver uma moralidade racional sem o recurso à religião ou à revelação, mas através de um procedimento puramente racional. Todavia, Kant advertiu para as inevitáveis contradições ou antinomias, na sua própria terminologia, quando a razão é conduzida aos seus limites. Kant desenvolveu, por conseguinte, um género de moralismo secular, segundo o qual é perfeitamente possível possuir um sentido de responsabilidade e de dever que conduz as pessoas a fazerem o que está certo sem a influência ou determinação de quaisquer crenças religiosas (Ward, 2007: 118). Se a realidade é, em si, completamente incognoscível para o sujeito do conhecimento, segundo Kant, temos de viver, em determinadas circunstâncias, consoante ou conforme a fé nessa dada realidade, sendo esta possibilidade pura e essencialmente da natureza humana. Associar a ética e a moral e fazê-las depender da religião pressuporia a transcendentalidade quer da manifestação ou expressão de fé quer da prática social. Essa conotação implicaria as formas de interacção e intersubjectividade, pois resultaria em imperativos morais na forma de mandamentos divinos; apelos afectivos; sobreposição da vontade; relação transcendente e mediatizada (i.e. revelada, transmitida e conservada) institucionalmente por pessoas ou comunidades autorizadas (e.g. sacerdotes ou igrejas); preocupações com a dignidade humana através de prescrições morais, etc. A religião e a ética partilham um elemento fundamental que também se encontra presente, de modo crucial, em qualquer linguagem ou forma de representação simbólica ou sistema de significação e/ou comunicação: a interacção. Esta pressupõe o reconhecimento da alteridade como condição sine qua non para a funcionalidade das aludidas religião, ética, linguagem ou forma de representação simbólica ou sistema de significação e/ou comunicação. Todas estas só fazem sentido se consistirem em princípios sociais reguladores do pensamento, da linguagem e da acção ou comportamento. A vida quotidiana não é rectilínea. Através da inteligência e da liberdade, aderese ou não aos valores propostos pela fé ou pela ética, tal como se faz algo para o bem ou para o mal. A humanidade faz o ser humano procurar e possuir virtudes comuns, o que forma uma base de convivência. A fé e a ética permitem praticar e cultivar virtudes, humanizar o ser humano em comunidade, por forma a viver com justiça e felicidade quer na transcendência quer na imanência. Colocar-se no lugar do outro, segundo a sugestão da “Regra de Ouro”, é um princípio ético que conduz ao respeito pelo outro como a nós mesmos. É, por conseguinte, um imperativo ético e um produto cultural e social. Este sentido é, efectivamente, uma demonstração da utilidade pública da religião, da ética e da moral, estando todas estas expressas e representadas por este princípio de reciprocidade, como se tratasse do que Kant designou como uma ética universal, geral e do bem comum ou “comunidade ética”. A importância deste requisito para a acção correta e para a prática do bem (numa linha de orientação ética) é tão determinante nas relações humanas ao ponto de ser sobrelevado e se constituir máxima, regra de acção ou imperativo categórico, segundo Kant (1992: 59). Imperativo que possui
como expressões próprias de uma dimensão universal e ética. Propor a reciprocidade implica, por um lado, o reconhecimento e respeito da alteridade e, por outro lado, a universalidade e racionalidade da ética, que imprime um character universal e racional às colectivas formas de pensar, sentir e agir. É neste ponto que surge a pertinência da ética e da religião como dimensões para as mais convenientes, justas e colectivas formas de pensar, sentir e agir, segundo critérios baseados no respeito e conciliação entre a liberdade da vontade individual e a vontade dos outros, i.e. critérios subjacentes à harmonia ou solução de compromisso racional entre as escolhas do que convém individualmente na procura de bem-estar e o que as outras pessoas querem para si, porque consideram mais conveniente (Savater, 2009: 32, 78). A ética e a religião contribuem, deste modo, para a coexistência baseada no respeito mútuo, balizando as ditas formas de pensar, sentir e agir através de valores, princípios e regras. A ética e a religião (a moral religiosa, stricto senso) têm em comum a incidência sobre o comportamento e a acção, com a diferença que a primeira constitui uma reflexão sobre os valores e parâmetros de avaliação das condições para actos morais. É próprio do ser humano possuir determinados valores, uma vez que se encontra num contexto moral ou ético, i.e. num ambiente circundante de ideias respeitantes a modos de vida. Este contexto ou ambiente determinam como se vive e o que se considera aceitável ou inaceitável, admirável ou reprovável. Determinam, por conseguinte, as concepções e modos de reacção relativamente à forma positiva ou negativa como as coisas acontecem. Enfim, determinam como se vê e se encara as coisas que são devidas e como relacionar com as outras pessoas, moldando as respostas emocionais, e.g. definindo as causas para se sentir orgulho, ira ou perdão e respectivos contrários. Este contexto ou ambiente fornece padrões, onde se situam os valores morais e pelos quais se define a identidade colectiva e a autoconsciência formada relativamente à consideração pelas outras pessoas. Neste sentido, a ética, a moral e a religião aproximam-se, porque todas definem a natureza humana, i.e. são partilhas colectivas como os mitos, por se constituírem em função do cuidado da relação com as outras pessoas. A religião fornece uma roupagem e autoridade mítica e simbólica à moral. Esta relação entre a ética e a religião ou simples cruzamento dos respectivos campos é sublinhado por Jostein Gaarder (2007: 33), segundo o qual não existe diferenças entre ética e religião. Esta proximidade entre o domínio da ética e o da religião é característica da experiência religiosa, pois esta preocupa-se com uma concepção de ser humano enquanto criação divina que implica responsabilidade humana pelos seus actos sociais ou morais e perante o criador. Demonstra-o os sermões e homilias nas eucaristias, que são momentos propícios para se apresentarem e se reflectirem assuntos especificamente éticos com os quais as culturas e sociedades, mais ou menos tendencialmente seculares ou pós-seculares, se debatem (Gaarder, 2007: 33). O campo da ética cruza-se ou imiscui-se com o da religião devido à questão da liberdade. É por possuir um “dom”, o do livre-arbítrio, que o ser humano possui, também, problemas igualmente éticos e religiosos. Estes problemas surgem quando o “dom do livre-arbítrio” proporciona abusos de liberdade ou actos errantes, fruto de uma incompetência ou errada distinção entre o bem e o mal. Por conseguinte, a questão da liberdade provoca problemas éticos e religiosos, porque o ser humano possui livre-arbítrio, a competência para distinguir o bem do mal e a responsabilidade pelos seus actos. Estes problemas assumem uma gravidade superior quando o ser humano, ao abusar do “dom do livre-arbítrio” e ao possuir a capacidade de ir contra a vontade e os mandamentos divinos, fá-lo abusivamente, cometendo o que, nestes casos, se designa por pecado. A ideia de pecado é, efectivamente, performativa, na medida em que não apenas descreve o que viola a vontade de Deus como inibe pensamentos, palavras, actos e comportamentos que encaixam no estado errante e na acção de “fazer algo errado”. O pecado, sendo um conceito eminentemente religioso, não pressupõe automaticamente a imoralidade, pois, pode-se ser uma pessoa íntegra em termos morais e éticos e, no entanto, cometer pecado. Neste sentido, o conceito de pecado dissocia o que anteriormente se considerou como o cruzamento natural dos campos da ética e da religião. Dissociar a possibilidade simultânea em ser moral, na perspectiva humana, e ser pecador, na perspectiva divina, representa a possibilidade de se orientar a vida por valores ético-morais ou por valores religiosos, sem que uns anulem os outros por incompatibilidade. Na perspectiva divina, o
pecado é evitável, por constituir o desejo humano de auto-suficiência ou “ânsia de se desenvencilhar sem Deus” (Gaarder, 2007: 161). O pecado representa, por conseguinte, o que separa os seres humanos de Deus, o profano do sagrado. O papel da ética é o de permitir reflectir sobre os valores éticos, morais e religiosos peculiares à condição humana. Esta reflexão tem utilidade, porque evita problemas decorrentes da falta de sentido sobre a culpa ou o pecado. Mesmo quando se trata do pecado original, com o qual todo o ser humano nasce, pois a sua reflexão permite interiorizar uma condição humana humilde e promove a autoconsciência para fazer algo de sentido positivo, afastando-se deste desejo inato de ir contra os desígnios de Deus. A ética já seria útil se permitisse reconhecer (mas não desculpar) que a tendência inata do ser humano para pecar advém do próprio pecado original, suscitando vontade nos crentes em contrariar este determinismo. No famigerado Sermão da Montanha (Mateus, 5: 38-42) encontram-se exigências de valores éticos absolutos e de valores religiosos absolutos. As exigencies de valores éticos absolutos residem na resposta ao mal com o bem, no amor ao próximo e até no amor aos nossos inimigos; as exigências de valores religiosos absolutos reside no apelo à caridade, e.g. expressa no mandamento “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus, 22: 39) e ao amor a Deus. Se nos limitarmos ao campo da ética e das respectivas exigências de valores éticos, poder-se-á questionar a razoabilidade de alguém conseguir viver conforme essas exigências éticas propostas pelo Sermão da Montanha. O mandamento-chave presente neste sermão é um desígnio ético de Deus, denominado a “Regra de Ouro”. Para a sociologia da religião de Max Weber, segundo Raymond Aron (2007: 504), este sermão é uma moral da convicção que exprime uma atitude religiosa. A importância da ética e da religião, enquanto conjunto de exigências de valores absolutos, é reconhecida pelo facto de o ser humano não se poder salvar a si mesmo, apesar de possuir livre- arbítrio, competência para distinguir o bem do mal e responsabilidade. O ser humano não se pode salvar a si mesmo porque é falível, errante e limitado, indo contra a vontade e os mandamentos divinos, i.e. cometendo pecados. Aos actos para a salvação junta-se a fé e as respectivas e necessárias obras (Tiago, 2: 26), i.e. “boas acções” na forma de dádiva divina e mais emocionais do que racionais. A salvação é a libertação do poder do pecado sobre o ser humano, o que demonstra a concepção trágica do cristianismo sobre o ser humano marcado pelo sentimento de culpa. Neste sentido, afigura-se relevante o papel da consciência ética sobre o que se faz e sobre os valores em causa nas acções. A consciência é a capacidade de reagir ao certo e ao errado, i.e. é uma “sentinela normativa”, segundo Jostein Gaarder (2007: 283). Uma sentinela, tribunal interior ou comando inato que nos alerta (sem ditar) quando nos desviamos do que é tido como certo e que, todavia, pode e deve ser treinado diferentemente com a ética e/ou a religião. Se é inato no ser humano, é também universal, pois nascemos, supostamente, com a capacidade de viver como seres humanos responsáveis e respeitadores, apesar da heteronomia cultural e religiosa. Mesmo assim, todas as culturas e sociedades se baseiam numa determinada ética que se manifesta quer nas leis quer nas acções do quotidiano. As acções oscilam entre a proximidade ou afastamento ao que é considerado certo ou errado que, por seu turno, também não são estanques nas culturas e sociedades. Se a base das culturas e sociedades é a ética, a base desta ética é um sentido de responsabilidade sobre a liberdade da acção, quer individual (quando nos sentimos responsáveis por nós próprios e pelo meio que nos circunda) quer colectiva (quando a sociedade se responsabiliza por aquilo que não conseguimos realizar sozinhos). Se somos capazes de identificar e escolher o bem relativamente ao mal, o certo ao errado, é porque possuímos uma orientação ética natural e responsável. E essas identificações e escolhas do bem ou do certo em detrimento do mal e do errado devem-se à liberdade da acção humana num mundo indeterminado ou, pelo menos, não determinado totalmente por Deus e pelos seus desígnios. Perante o uso dessa liberdade, assumimos a nossa responsabilidade pelo que pensamos, dizemos ou fazemos. Todavia, o que se faz pode estar errado e o erro ser causado por uma escolha ou por uma percepção precipitada sobre a realidade. Contrariando o determinismo, as escolhas não são determinadas por quem ou por aquilo que se é, mas o ser humano se torna aquilo que escolhe pensar, dizer ou fazer. Condicionam-se comportamentos e acções em função de certos valores sociais, morais, éticos e religiosos. A ética e a religião permitem-no. Todavia, existe uma diferença radical entre a ética e a