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Este texto explora as considerações sobre o julgamento de beckert, o assassino de crianças em m - o vampiro de düsseldorf (1931), de fritz lang. Baseado nas ideias de derrida sobre direito e justiça, e a imaginação empática defendida por martha nussbaum, o texto reflete sobre o diálogo entre o direito e o filme, e como ele nos oferece uma oportunidade para refletir sobre a justiça. O texto também discute a representação da modernidade e os temas de justiça, direito e alteridade no filme.
Tipologia: Slides
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Marília Corrêa Parecis de Oliveira (UNESP- IBILCE)^1
Resumo : Este trabalho tem como objetivo propor algumas reflexões sobre o julgamento da personagem Beckert no filme M - o vampiro de Dusseldof (1931), filme de Fritz Lang. O filme de Fritz Lang, clássico do cinema expressionista alemão, tem como personagem principal Beckert, um assassino de crianças. Pretendemos, neste trabalho, tecer algumas considerações sobre o julgamento de Beckert, que mas rejeita o método por meio do qual é julgado - por uma justiça não-autorizada - e invoca a sua liberdade alegando não ter culpa de seus crimes: de acordo com o assassino, ele age apenas seguindo um instinto incontrolável. Tendo como base as concepções de direito e justiça de Derrida em A força da lei (2003) , e o conceito de imaginação empática defendido por Martha Nussbaum em Poetic Justice (1997), compreende-se que o filme de Fritz Lang estabelece um diálogo com o direito, sobre o qual é possível dizer que o cinema e a obras de arte, em geral, e o filme M , em particular, podem fornecer-nos uma possibilidade de refletir sobre a justiça.
Palavras-Chave : Cinema. Direito. Justiça.
1 Introdução
Quando fazemos uma aproximação entre campos que, a princípio, soam como muito distantes, como o cinema e o direito, deparamo-nos com uma tarefa complexa, uma vez que o primeiro insere-se no campo artístico, da contemplação, e o segundo, no campo da regulamentação das relações sociais, de modo que sua finalidade é um finalidade prática - diferentemente do que ocorre quando estamos no campo das artes. No entanto, se pensarmos melhor sobre a questão, notamos que ambas as áreas, direito e cinema, são lugares de linguagem e, portanto, passíveis de interpretação. O filósofo Dworkin (2001) em “De que maneira o Direito se assemelha à Literatura?” sustenta que a prática jurídica é um exercício de interpretação, não só quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de maneira geral, uma vez que o direito é profunda e inteiramente político. Dessa forma, o autor propõe melhorar nossa compreensão acerca do direito comparando a interpretação jurídica com outras formas de interpretação, como a literária, de modo a compreender melhor o que é a interpretação em geral. Se
(^1) Graduanda no 4º ano de Licenciatura em Letras (Habilitação Português/Inglês) da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP-IBILCE, campus de São José do Rio Preto. E-mail: marilia.parecis@gmail.com
podemos, portanto, aproximar a interpretação jurídica da interpretação literária, igualmente podemos estender essa aproximação também à interpretação cinematográfica, uma vez que o cinema também é um lugar de linguagem que também pode proporcionar-nos uma reflexão sobre o humano. Interessa-nos aqui, dessa forma, lançar uma olhar sobre o direito por meio de uma reflexão sobre o cinema, tendo em vista as possibilidades de diálogos entre as duas áreas como lugares de interpretação. Logo, esta análise propõe algumas reflexões sobre o julgamento do personagem Beckert no filme M - o vampiro de Dusseldof (1931), de Fritz Lang. O filme de Fritz Lang, clássico do cinema expressionista alemão, tem como personagem principal Beckert, um assassino de crianças. Em dado momento da narrativa, seus crimes são investigados e ele acaba por ser pego, mas não pela polícia convencional, e sim por um grupo de criminosos que pretendem fazer justiça com as próprias mãos. É, portanto, levado a uma espécie de julgamento popular. Dado esse panorama geral do filme, pretendemos, neste trabalho, tecer algumas considerações sobre o julgamento de Beckert, que mas rejeita o método por meio do qual é julgado - por uma justiça não-autorizada - e invoca a sua liberdade alegando não ter culpa de seus crimes: de acordo com o assassino, ele age apenas seguindo um instinto incontrolável. Tendo como base, portanto, as concepções de direito e justiça de Derrida em A força da lei (2003) , e o conceito de imaginação empática defendido por Martha Nussbaum em Poetic Justice (1997), compreende-se que o filme de Fritz Lang estabelece um diálogo com o direito, sobre o qual é possível dizer que o cinema e a obras de arte, em geral, e o filme M , em particular, podem fornecer-nos uma possibilidade de refletir sobre a justiça.
2 Cinema: Emblema da Sociedade Moderna
No século XIX, concomitante ao desenvolvimento acadêmico de disciplinas como Antropologia e Sociologia, temos, também, o desenvolvimento de recursos tecnológicos que culminaram no surgimento da fotografia e do cinema. Entretanto, esses fatos não são mera coincidência: se temos nesse século o desenvolvimento das ciências humanas, isso dá porque, conforme propõem Charney e Schwartz (2004), temos uma reorganização do olhar delineada pela modernidade:
tudo o que pudesse ser dito fosse dito" (BALAZ, 1983, p. 78). Dessa mesma forma, Maurice Merleau-Ponty irá dizer-nos que um filme não é pensado, e sim percebido:
Eis porque a expressão humana pode ser tão arrebatadora no cinema: não nos proporciona os pensamentos do homem, como fez o romance por muito tempo; dá- nos sua conduta ou comportamento, e nos oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de lidar com as coisas e com os seus semelhantes, que permanece, para nós, visível nos gestos, no olhar, na mímica, definindo com clareza cada pessoa que conhecemos. (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115-116)
A expressão humana no cinema, conforme propõe Merleau-Ponty, coloca-se ao expectador sem a intermediação da palavra, o que colaborará para configurar o cinema como essa arte em escala global: como vivemos agora em uma cultura de imagens, em uma organização social nomeadamente visual, o gesto e o olhar tornam-se essenciais para a compreensão da natureza e comportamento humanos, sendo um aspecto fundamental para que o cinema torne-se expressão não só desse novo tipo de sociedade delineada pela modernidade, mas também expressão de temas estritamente vinculados a esse novo momento socio- histórico. Se o cinema marca, então, esse novo momento histórico que constitui a modernidade, ele também irá tratar, conforme dito, de temas que são fundamentalmente modernos, como, por exemplo, a representação da cidade, sobretudo como espaço do caos, do medo e do mal. Nessa representação, encontram-se presentes em muitas obras do cinema reflexões sobre temas como justiça, direito e alteridade, como é o caso de M - O Vampiro de Düsseldof (1931), de Fritz Lang, sobre o qual serão tecidas agora algumas considerações.
3 Reflexões sobre o Julgamento de Beckert em M - O Vampiro De Düsseldorf , de Fritz Lang
M - O vampiro de Düsseldorf (M - Eine Stadt sucht einen Mörder), de Fritz Lang, realiza-se na década de trinta, mas especificamente em 1931, num momento em que a Alemanha enfrenta grande crise econômica, desmantelada após a 1ª Guerra Mundial, o que culminará num conturbado período político, nomeadamente, a ascensão da ideologia nazista, da xenofobia e de ondas anti-semitas, desembocando na tomada do poder por Hitler em 1933, e, posteriormente, na 2ª Guerra Mundial e no Holocausto. Surge, portanto, como marca da representação estética do período, o movimento conhecido como expressionismo alemão (ao qual M figura como pertencente). Para os
expressionistas, "arte liga-se à ação muitas vezes violenta, através da qual a imagem é criada,
com o auxílio de cores fortes - que rejeitam a verossimilhança - e de formas distorcidas."^2
Walter Benjamin (1985), em seu ensaio "Experiência e Pobreza", afirma que depois de ter passado pela experiência da guerra, a humanidade não foi mais capaz de contar suas experiências da maneira convencional, isso porque elas foram tão traumáticas que não seriam possíveis de serem reproduzidas: os homens passaram a viver, segundo o teórico, uma pobreza de experiências. Desse modo, em decorrência do declínio da experiência e da incapacidade de contar, temos o surgimento de novas maneiras por meio das quais se é possível expressar o presente. Nesse contexto surge, então, o expressionismo alemão e o filme de Fritz Lang, M - O vampiro de Düsseldorf (1931), que tem como personagem central Beckert, um assassino de crianças, baseado em uma história real de um serial killer. O protagonista é um homem com boa aparência: bem vestido, bem comportado e simpático - sobretudo com as crianças, suas vítimas, já que é justamente por meio da simpatia que ele as cativa e consegue lubridiá-las. Os crimes de Beckert são investigados e ele acaba por ser pego, mas não pela polícia convencional, e sim por um grupo de criminosos que pretendem fazer justiça com as próprias mãos. É, portanto, levado a uma espécie de julgamento popular. No início do filme, logo em seu primeiro plano, temos um grupo de crianças fazendo uma brincadeira de roda, na qual uma menina encontra-se no centro do círculo, cantando e apontando a cada uma das crianças: "Vem aí o homem de negro com a machadinha, pra te fazer em carne picadinha!'. A última criança apontada é a eliminada, o que simboliza que essa criança teria sido pega pelo "homem da machadinha". A brincadeira é interrompida pelo grito de uma mãe na janela, pedindo às crianças que parem com ela. Isso se dá porque, de fato, está à solta na cidade um assassino de crianças: trata-se de Beckert, que nesse momento, no entanto, ainda não foi identificado. Só conseguimos ver efetivamente a aparência do assassino de crianças depois de 40 minutos de filme (antes disso, ele era basicamente uma sombra e um assobio). Cria-se, dessa forma, um suspense em torno dessa figura do assassino, e a sua fabulação constrói um personagem amedrontador, um monstro, de modo que quando ele finalmente aparece em tela,
(^2) "Expressionismo". Verbete in: Enciclopédia Itaú Cultura. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3784/expressionismo. Acesso em 20.10.2015.
multidão parada a encará-lo. A câmera faz, então, um travelling^3 horizontal, de modo a demonstrar a quantidade de pessoas que compunha aquela multidão. Ele pede que o deixem sair, pois o que se sucede ali seria um grande engano, até que entra um cego, personagem que o reconhece pela voz e pelo assobio no dia em que comprou um balão para a criança Elsie Beckmann - mais uma de suas vítimas. Beckert alega que os membros daquele tribunal não têm o direito de o tratarem assim, enquanto os personagens que compõem o tribunal gritam por vingança: "matem-no", "temos que tratá-lo como um cão danado". Eles afirmam: "Somos os experientes em leis aqui. Desde seis semanas na prisão de Tegel até quinze anos em Brandenburg". Vê-se que o tribunal é composto por criminosos, desejosos de reparar o mal causado pelo assassino por um processo de retaliação: eles não desejam entregar Beckert à justiça legalizada, mas antes puni-lo por seus próprios meios. Nessa cena do julgamento de Beckert, notamos que os personagens, mormente os assassinos, não são reconhecidos como seres individuais; são apenas parte de um grupo composto por seres genéricos, não importando suas particularidades, mas a função que ali exercem, tornando-se iguais uns aos outros pelo isolamento naquela coletividade governada pela força. Logo, são simplesmente criminosos, que compõem esse julgamento movidos pelo desejo de retaliação e reparação, uma vez que se valem da exploração do medo e do ressentimento para exercerem o que, ao fim e ao cabo, é um desejo de vingança. Nesse sentido, é possível identificar, no composição do júri, um mecanismo regular de coisificação e instrumentalização das personagens: elas deixam de ser movidas por suas próprias vontades e tornam-se meros objetos e instrumentos num processo impessoal. Nessa lógica de raciocínio, os criminosos que compõem o júri de Beckert são personagens-tipo: perdem suas características de subjetividade e agregam em si todos os traços de uma função social. Beckert conhece os seus direitos; sabe o que faz ali naquele julgamento, tem consciência de seus crimes, mas rejeita o método por meio do qual é julgado - por uma justiça não-autorizada - e invoca a sua liberdade alegando não ter culpa de seus crimes: ele age apenas seguindo um instinto incontrolável. Na cena do julgamento, temos o momento em que o protagonista se manifesta e procura justificar ao júri o seu comportamento:
(^3) “O travelling consiste num deslocamento da câmera durante o qual permanecem constantes o ângulo entre o eixo óptico e a trajetória do deslocamento” (MARTIN, 2003, p. 47).
"Mas a culpa não é minha. A culpa não é minha [...] O que sabe sobre isto? Quem é você afinal? Quem são vocês? Criminosos, todos criminosos? Arrobam cofres, assaltam casas, batem carteiras, mas poderiam ter sido outras coisas, se alguém lhes tivessem ensinado a trabalhar, e se vocês não fossem um bando de bastardos preguiçosos. Mas...Não posso ajudar a mim mesmo! Não tenho controle sobre isto, esta coisa diabólica entrou em mim, o fogo, as vozes, o tormento! [...] Esta lá o tempo todo, controlando os meus desejos pelas ruas, seguindo-me, silenciosamente, mas não posso parar. Isto me possui. Quero escapar, quero fugir de mim mesmo, mas é impossível. Não consigo escapar. Tenho que obedecer. E saio pelas ruas perdido. Quero fugir, mas como? Sou possuído por fantasmas. Fantasmas de mães. E de crianças... Sempre, exceto quando faço isso. Não consigo lembrar de nada. Depois leio os cartazes e leio o que fiz. Como fiz isso? Mas não consigo me lembrar de nada. Mas quem irá acreditar? Quem sabe o que é isto para mim? Como sou forçado a fazer. Como? Como? Eu não quero, mas preciso! E, então, as vozes gritam. Eu não posso ouvi-las. Socorro! Não posso! Não posso!"
Deparamo-nos, nesse momento, com a ilustração de uma situação em que o indivíduo vê-se dominado pela total falta de controle sobre seus instintos e seus impulsos, de modo que sua liberdade é condicionada pelo seu desejo de matar, ou seja, Beckert vê-se cerceado em suas ações por forças interiores que escapam ao arbítrio. É o próprio personagem que diz: "Esta lá o tempo todo, controlando os meus desejos pelas ruas, seguindo-me, silenciosamente, mas não posso parar". Temos, então, nessa cena de seu julgamento, o protesto do acusado, em desespero, alegando que aqueles indivíduos não possuem o direito de julgá-lo, uma vez que aqueles criminosos cometem ações ilegais de maneira voluntária, tendo o arbítrio e a deliberação própria para fazerem-no, ao passo que ele não possui escolha, e sim é forçado a agir como age, e encerra a sua encenação, dizendo: "Quem sabe o que é ser como eu?". Essa afirmação dramática de Beckert conduz-nos a um processo de identificação com o protagonista - embora seja ele um assassino de crianças, o que talvez se configure como um dos crimes tidos como mais terríveis e perversos, já que as vítimas são seres indefesos, considerados incapazes por nossa legislação moderna. Isso porque, se naturalmente somos condicionados a pensar que o "louco" é sempre o outro, aqui a distância entre a atitude do outro, o "louco", e a nossa é reduzida, pois se não sabemos "o que é ser como ele", para o qual o livre arbítrio aparentemente não existe, somos levados a repensar o nosso julgamento e o que tradicionalmente se figura na dualidade razão x loucura. Apesar da tentativa de os criminosos fazerem justiça com suas próprias mãos, Beckert acaba por não ser julgado efetivamente por eles: na sequência final do filme, temos uma mão
adequado e sem sequer a compreensão do que se sucede, é sugado pelo seu processo e esmagado por ele, acabando morto, em suas palavras, “como um cão”. Talvez seja possível supor que Kafka não acredite na justiça, ou ao menos não com a mesma concepção de Fritz Lang na cena em que a mão da justiça é posta sobre o ombro de Beckert a dizer “em nome da lei”. A passagem alegórica em O Processo em que o homem espera à porta da lei uma autorização para acessá-la, tendo morrido sem fazê-lo, quiçá por receio de exercer o direito que era seu, já que a entrada só pertencia a ele e, por isso, após sua morte, seria fechada, parece dizer-nos que Kafka, se nos fala sobre a justiça em seu romance, possivelmente fala num sentido semelhante ao que parece crer o filósofo Jacques Derrida (2003) em A força da lei : a justiça não como lei, mas como um conceito abstrato, uma busca que nem sempre encontra um destino final. Tendo em vista os elementos postos no filme de Fritz Lang, temos que o final se trata da imagem do homem considerado civilizado, alguém que não se encaixa perfeitamente em nenhuma das instituições sociais, estando perdido entre elas, inclusive entre aquelas criadas para garantir seus direitos e sua segurança. Nessa cena do julgamento de M, a justiça não é capaz de repor o que foi perdido, ou seja, a vida das crianças assassinadas, nem sequer salvar o assassino que se perdeu. A cidade caçou e encontrou o psicopata, mas isso não impede que outras surjam nas mesmas condições. Logo, nota-se o quanto a ordem social é frágil, bem como o indivíduo que busca nessa mesma ordem o seu amparo e a seu segurança. Com isso, o filme tira-nos o desejo tão recorrente de encontrar um único culpado, uma vez que nos confronta com uma pluralidade de pontos de vista na narrativa: por um lado, temos o sofrimento das mães que perdem suas crianças, por outro, os criminosos desejosos de vingança e, por fim, temos o desespero do protagonista em confessar que seu comportamento é movido por um instinto incontrolável, ou seja, temos que a culpa não se limita a um indivíduo isolado, mas sim a uma certa lógica social em que o caos urbano e os espaços vazios da modernidade delineiam uma atmosfera constante de medo, solidão e desamparo. Temos, ainda, uma racionalidade como insuficiente nas mãos da inteligência investigativa de um Estado para investigar um assassino que é assumidamente incompatível com ser governado pela sensatez. Dessa forma, a condenação de Beckert no tribunal por uma justiça não-autorizado soa-nos, na verdade, como a condenação de uma postura que se recusa a se submeter a um novo olhar para as coisas, isto é, que se recusa a colocar-se no lugar de
outro e pretende encaixar tudo e todos no binarismo loucura x normalidade e na racionalidade dogmática que apenas implica em obter respostas prontas.
Considerações Finais
Após as considerações que foram aqui tecidas, conclui-se que o que o filme de Fritz Lang pode nos fornecer com relação a refletir sobre os conceitos de direito e justiça diz respeito, entre outras coisas, à imaginação empática – conceito defendido por Martha Nussbaum em Poetic Justice (1997) – , isto é, a capacidade de suscitar ao leitor/expectador o envolvimento com as personagens e as situações descritas nas obras ficcionais. Enquanto expectadores, somos condicionados a colocarmo-nos no lugar do outro por entrarmos em contato com um ponto de vista que não é necessariamente o nosso, portanto, se tradicionalmente nos comportaríamos como os acusadores de Beckert por ter ele assassinado crianças, somos postos agora no lugar deste, e ainda que continuemos a achar monstruoso e injustificável o seu comportamento, ao menos olhamos para ele com um olhar que busca compreendê-lo, haja vista que compreender não significa necessariamente aceitar ou justificar, mas sim colocar-se empaticamente no lugar do outro, uma vez que pensar sobre justiça possivelmente implica pensar sobre o outro. Recorrendo mais uma vez aos dizeres de Derrida (2003, p. 46), temos que:
A justiça permanece sempre por vir, ela tem que vir, está por-vir [...]. Talvez seja por isso que a justiça, na medida em que não é apenas um conceito jurídico ou político, abra ao porvir a transformação, a reforma ou a refundação do direito e da política.
Diante do exposto, percebe-se que arte, em geral, e o cinema, em particular, exploram o fato de a justiça não ser apenas um conceito jurídico ou político, mas sim um nome a ser inspirado, signo da busca incansável, de modo que ela permanece, conforme os dizeres de Derrida, como algo que nunca se alcança por completo, como possível de ser verificado no desfecho do filme: não há final conciliatório possível entre o desejo de reparação das mães que perderam seus filhos assassinados e as contradições existentes na figura do assassino psicopata, que também não consegue ser resgatado de sua loucura. É nesse sentido que refletir sobre o julgamento de Beckert em M pode indicar ao direito uma possibilidade de reflexão sobre a justiça: tendo em mente o conceito de
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