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Uma reflexão crítica sobre o livro infantojuvenil 'segredo de estado' de antonieta dias de moraes, escrita durante a ditadura militar brasileira. O texto discute a carreira da escritora, a influência da ditadura na obra e a importância de 'segredo de estado' no contexto literário brasileiro. O documento também inclui informações sobre a publicação do livro e as repercussões recebidas.
Tipologia: Resumos
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revista de crítica genética
Ivanildes Regina Menezes^1 Júlia Tereza Abrão Vieira Lourenço Wilmers^2 Luzia Sigoli Fernandes Costa^3
O LIVRO INFANTOJUVENIL Segredo de Estado (1998), da escritora contemporânea Antonieta Dias de Moraes (1915-1999), é uma obra escrita à luz da ditadura militar brasileira (1964-1985), período este que deixou cicatrizes em toda a população devido aos assassinatos e atos de torturas, ainda sem justiça plena. No cenário das produções culturais da época, a imposição da censura acirrada cerceou a liberdade de expressão, por outro lado abriu o horizonte das subversões artísticas à ordem imposta, porém com consequências para artistas e público unidos na resistência ao regime. Após mais de 30 anos do encerramento da ditadura militar no Brasil, cujo marco é a Abertura Política iniciada em 1985, torna-se um desafio discorrer sobre uma escritora consciente das consequências desse período à sociedade, transcriando elementos que remetem ao militarismo da ditadura em sua obra, direcionada à crianças e jovens. Este trabalho adquire uma responsabilidade hercúlea de resgate por se tratar de uma escritora ainda pouco conhecida no seu país de origem. Contribui ainda para a divulgação de seu nome e obra, “esquecidos” e somados ao silêncio imputado a tantos outros artistas brasileiros que tiverem a possibilidade de seu sucesso sufocada pelo regime militar. Antonieta começou sua carreira como escritora no ano de 1948 com a publicação de livros de poesia, mas foi no exterior, já fortemente influenciada por Monteiro Lobato, que sua obra alcançou maior sucesso. Um dos livros mais importantes e de maior reverberação no meio literário é a obra infanto juvenil Tonico e o Segredo de Estado (1975), ganhador do prêmio Nacional da Espanha no ano de 1982, publicado posteriormente com dois outros nomes: Tonico e o Segredo (1980) e Segredo de Estado (1998). Muito embora tenha a escritora sido laureada com outros prêmios por suas obras no exterior, no Brasil houve pouco reconhecimento da sua contribuição para a literatura nacional.
Antonieta Dias de Moraes nasceu em Santos/SP, em 1915. Casou-se em 1932 e teve três filhos com Alberico Marques da Silva, de quem se divorciou posteriormente. Viajou para a Europa, onde consolidou sua carreira como escritora. Atualmente, seus netos Marcelo de Paula Santos Filho e Heloisa de Paula Santos são proprietários de seu
(^1) Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). (^2) Graduanda no curso de Biblioteconomia e Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). (^3) Professora Doutora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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acervo pessoal que, a pedido da escritora, encontra-se na fazenda Santa Eudóxia, em São Carlos/SP. O acervo é composto por uma diversidade de documentos como manuscritos, cartas, recortes de jornais, receitas culinárias, livros da escritora, versões de revisão de obras, fitas cassete contendo entrevistas, entre outros. Apreendida no período da repressão ditatorial, a obra Segredo de Estado narra a história de um grupo de crianças durante a Revolta Paulista no ano de 1924, que buscam condições sociais mais justas. Em suas entrelinhas, é possível identificar o contexto histórico representado ao período de dura repressão militar, censura e incansável resistência popular vivido pelo país nas décadas de 1960 a 1980. Reflete-se sobre o contexto de produção desta obra quando observada a sua inscrição nos anos de 1970, momento em que o aparato opressor do regime militar, fortalecido após o decreto do AI-5, em 1968, fazia-se sentir como nunca até então. Neste ínterim, Antonieta prosseguiu e efetivou o empreendimento literário de composição do livro agora em foco. Assim, buscou-se apontar as primeiras reflexões sobre o processo de criação desta obra, passível de resgate a partir dos documentos do acervo do Fundo Antonieta Dias de Moraes (Fundo ADM) da Fazenda Santa Eudóxia, trazendo a público as condições encontradas e o trajeto percorrido pela escritora para publicar seu livro. Para atingir este intento, o aporte na Crítica Genética mostra-se incontornável, uma vez que se tem o pressuposto de que um trabalho concluído passou por profundas transformações ao longo de seu processo de concepção. A obra acabada conta, em sua gênese, com investimento de tempo, disciplina, pesquisa, esboços, rascunhos, correções, anotações e outros elementos que desde o início evidenciam que nenhuma obra “nasce pronta”. Desse modo, trata-se de um campo de estudo que analisa o processo criativo do autor levando em consideração o caminho percorrido e os registros por ele deixados ao longo de seu trajeto. Para Márcia Ivana de Lima e Silva^4 , o ponto de partida da Crítica Genética reside em uma constatação: o texto definitivo de uma obra literária é, com raras exceções, o resultado de um trabalho, ou melhor, de uma elaboração progressiva e uma transformação traduzida por um período produtivo durante o qual o autor se lança à pesquisa de documentos ou de informações, à preparação e, posteriormente, à redação de seu texto simultânea às diversas operações de correção. Todo esse processo deixa “rastros” que, segundo a autora, se configuram como o material de trabalho por excelência do geneticista que, por seu turno, se apropria dos documentos de processo para alinhavar as nuances do caminho percorrido pelo escritor desde a primeira ideia até a obra terminada. No momento em que se lança na aventura de construção de uma obra, o escritor inevitavelmente dialoga com todas as obras que a precedem e elabora o seu texto de acordo com as suas percepções pessoais, pressionado pela tradição literária ainda que inconscientemente. Atividade eminentemente verbal e, portanto, que tem como sua principal ferramenta o uso mais ou menos artificioso da linguagem, a escolha vocabular, por exemplo, expressa a visão de mundo do autor ainda que rasure termos que constantemente passam pelo seu crivo estético. Nessas rasuras é possível enxergar a sua intencionalidade deixada em uma variedade de documentos de processo. Juntamente com a teoria da Crítica Genética e para maior completude à análise, apoia-se também nas teorias complementares com as reflexões bakhtinianas que propiciam mecanismos de análise dos objetos de uso cada vez mais satisfatório. Pois, para Bakhtin^5 , a palavra é o material privilegiado da consciência, pois é através dela que o homem elabora sua concepção de mundo, seu entendimento de si mesmo e dos outros. Dessa forma, qualquer elaboração discursiva é ao mesmo tempo individual e social, ou seja, para que se dê a criação literária é necessário que se operem os mecanismos pessoais e coletivos com os quais o autor cria um discurso em que emergem necessariamente a palavra do eu e a do outro como dados que evidenciam as relações sociais mediadas pelas marcas linguísticas^6. O discurso, portanto, é o elemento central porque a própria sociedade
(^4) SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPURS, 2001. (^5) BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Hucitec, 1988. (^6) SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPURS, 2001.
revista de crítica genética O espaço reduzido deste artigo levou-nos a delimitar os materiais apresentados, todos referentes aos documentos de processo do dossiê genético da obra Segredo de Estado. As dimensões das figuras abaixo não representam as dos documentos originais. O depoimento, enquanto documento de processo inicial, apresenta-se datilografado em folha A4, com aparência amarelada devido ao envelhecimento do papel e à forma de armazenamento em caixas que podem ter contribuído para o processo de oxidação dos clipes e grampos fixados nos papéis.
Fig. 1: Depoimento de Antonieta Dias de Moraes, 10/01/1998 – Parte 1 de 2 (fac-símile). Fonte: Fundo ADM, UFSCar.
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Quadro 1 – Transcrição diplomática de Depoimento de Antonieta Dias de Moraes, 10/01/1998 – Parte 1 de 2.
Fonte: Fundo ADM, UFSCar; por Ivanildes Menezes. 1 Antonieta Dias de Moraes 2 SEGREDO DE ESTADO DEPOIMENTO 3 Após o sucesso obtido na França com a publicação de meu livro “Trois Gar- 4 çons em Amazonie” – “Três Garotos na Amazônia”, a editora Fernand Nathan pediu- 5 me outro livro para a coleção internacional, na ocasião, dirigida por Isabelle 6 Jan, intelectual muito conhecida. 7 Eu não tinha nenhum texto para jovens, pronto para publicação, mas falei-lhe 8 de um tema cuja lembrança ocorria-me periodicamente: o da revolução de 1924. 9 Era tema difícil de tratar literariamente. Primeiro, porque o tema revolução 10 já era algo temerário de [tratar] < escrever > para os jovens, principalmente quando no Bra- 11 sil se havia instalado a ditadura militar. Segundo: porque <[escrever]> um romance com 12 muitas personagens requer grande habilidade do escritor para não confundi-las. Mas, Isabel-
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le se interessou < pela idéia > e pediu-me para escrever o livro, < embora eu lhe apontasse as dificuldades. > 14 Eu ouvira meus pais falarem muitas vezes do temor que todos tinham de que 15 a cidade de São Paulo fosse bombardeada durante a revolução de 24. Meu irmão 16 mais velho havia recolhido balas e cápsulas de balas no quintal da casa em que 17 morávamos, na Rua Augusta, perto da rua Caio Prado. Atrás, situa-< se > a Rua Frei 18 Caneca e à dire< i >ta, distante, ficava o “Morro dos Ingleses”, um morro de terra 19 vermelha, na ocasião [ ] desabilitado, porém, ocupado por tropas que des- 20 de ali atiravam para todos os lados. 21 Viéramos de Santos para tratamento médico de um irmão pequeno, cuja perna 22 paralisada em consequência de grave doença contagiada por sua pagem, necessi- 23 tava de tratamento especial. 24 Meu pai era médico. Ele viajava diariamente, de trem, de Santos para S< ã >o Pau- 25 lo. Às vezes, minha mãe ia de Santos fazer-lhe companhia. Ao declarar-se revo- 26 lução de 24 ela estava em Santos. 27 Meus pais, preocupados com o seis filhos, que haviam permanecido <[na capital]>, 28 alugaram um carro enorme, daq< ueles > que tinham cadeirinhas extras e capota de 29 lona. Minha mãe juntou rapidamente algumas roupas dos filhos e fomos levados 30 à pressa para o grande automóvel, que tomou o rumo da estrada de Santos. A desci- 31 da da serra era perigosa, devido à famosa “Curva da norte”, onde se lia num 32 placar com desenho de um crânio entre duas tíbias: “Cemitério embaixo da 33 Serra para automobilistas imprudentes”. 34 O relato de meus pais e de meu irmão sobre a revolução de 24 e os fatos 35 sucedidos ficaram gravados em minha memória. Quando Isabelle Jan pediu-me o 36 segundo livro para sua coleção, ocorreu-me, pois, a idéia de escrever sobre a 37 revolução de 24. Mas eu estava na França e não dispunha de material de consul<[ta]>.
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Quadro 2 – Transcrição diplomática de Depoimento de Antonieta Dias de Moraes, 10/01/1998 – Parte 2 de 2.
Fonte: Fundo ADM, UFSCar; por Ivanildes Menezes. 1 Escrevi a um amigo historiador pedindo-lhe as informações de que necessita- 2 va. A resposta foi irônica: “<[Q]>ual o seu interesse por um fato insignificante 3 de nossa história, quando há [ ] outros de maior importância? ”. 4 Naquele momento eu já escrevera as primeiras páginas do romance, cujas per- 5 sonagens adquiriam vida e me estimulavam a explorar o assunto. 6 Eu morava no “Quartier Latin”, num apartamento em que havia três escadas para 7 subir. Conheci um casal que morava na Rue Mouffetard, num prédio melhor e com 8 telefone. Eles iam viajar e deixariam o apartamento. Fiando-me da data <[>]da via- 9 gem deles, entreguei à proprietária o apartamento em que vivia. No interim, fui 10 para um hotel. Eu já pagava o aluguel, mas o casal não desocupava o aparta- 11 mento. No hotel eu não podia trabalhar bem. 12 O escritor Miguel Angel Asturias e sua esposa Blanca viajariam à Suécia. 13 Convidaram-me a ficar no apartamento deles enquanto < eu > esperava a entrega do “meu”. 14 Aceitei o oferecimento, pois poderia trabalhar com mais sossego. O meu li- 15 vro avançava, e Isabelle Jan estava animada. Ela queria o livro pronto o 16 mais depressa possível. 17 Eu não parava de escrever, porque, sem saber, já estava tudo organizado em 18 minha mente. Compus o livro em relativamente pouco tempo. Não é um livro his- 19 tórico, < é > ficção, cuja idéia partiu da realidade. As personagens foram deter- 20 minando a ação e comp[ ]ondo o ambiente em que desejam atuar. O livro fez mui- 21 to sucesso nos países de língua francesa. Mais tarde, foi publicado na Espa- 22 nha. Ali, obteve o “Prêmio Nacional” e um segundo prêmio “Barco de Vapor” da 23 própria Editora S. M., pelo grande núm< e >ro de exemplares vendidos. 24 Antonieta Dias de Moraes 25 São Paulo, 10 de janeiro de 1998.
As Figuras 1 e 2 compreendem o depoimento da escritora Antonieta Dias de Moraes sobre Segredo de Estado (1998) , livro que é o final da nossa trajetória genética, que inclui os livros Tonico e o Segredo de Estado^10 e Tonico e o
Segredo (1980). Trata-se de um depoimento escrito pela escritora no ano 1998, pouco depois de ter publicado no Brasil a sua última versão sobre a história de Tonico pela editora Saraiva. Antonieta narra em seu depoimento a experiência de escrever Segredo de Estado , tendo cumprido em poucos meses a preparação da primeira versão ( Tonico e o Segredo de Estado ) após a editora francesa Fernand Nathan pedir que escrevesse outro texto para a coleção internacional. Sem ideias para contar uma história para jovens, a escritora recorda os relatos de seus pais sobre a Revolução de 1924. Em consulta a um amigo historiador, foi aconselhada a trabalhar com um tema de maior importância para a história do país, o que lhe intriga e estimula a dar prosseguimento ao projeto que tratou sobre sérios problemas da sua época e instigou reflexões profundas. Sabiamente, a escritora manteve ambíguo o cenário dos acontecimentos narrados no livro, apresentando aos leitores a massa marginalizada da sociedade com seus problemas cotidianos, sem revelar a qual contexto se referia.
(^10) MORAES, Antonieta Dias de. Tonico e o Segredo de Estado. São Paulo: Livros Hdv,1975.
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Em depoimentos e entrevistas posteriores, revelou que se referiu à história da revolução que ouvira de seus pais (a Revolta Paulista de 1924), mas não levou essa informação explicitamente ao livro. Tal opção cria efeitos de sentido que fazem com que seus personagens se comportem como crianças, mantenham a alegria da infância e da juventude, porém executem tarefas com comprometimento e seriedade, como se fossem adultos. Mesmo que a escritora tenha dito que sua inspiração se baseou na Revolução de 1924, o livro lido em 1975 continuava extremamente atual, sobretudo pela expressão “Segredo de Estado” no título em um momento histórico em que a ditadura militar ocultava o que acontecia em seus porões.
Fig. 3: Contracapa do livro Segredo de Estado em sua 5ª edição. Fonte: Fundo ADM, UFSCar.
Conforme supracitado, o livro Segredo de Estado foi publicado com outros dois nomes. A primeira versão recebeu o nome de Tonico e o Segredo de Estado (1975). No início da década de 1980, a nova edição intitulou-se Tonico e o Segredo e, finalmente, em 1998 o livro foi editado com o nome Segredo de Estado. A Figura 3 ilustra a contracapa da primeira versão do livro, publicada em 1975. O documento encontrava-se sem a capa, com sinais amarelos e marcas de ferrugem removidas com um processo de higienização. Na imagem, no canto inferior direito, a escritora anota que “esta foi a 5ª edição” e, no canto superior esquerdo, menciona que “a próxima será a 6ª edição”. As duas anotações revelam o hábito de Antonieta de revisar seus livros no próprio suporte, ou seja, utilizava a versão recente para planejar as modificações futuras. No canto superior esquerdo, a escritora anotou a data da revisão: “revisto em 3-7-94 ADM”. Percebemos, então, que um livro publicado em 1975 foi utilizado para a revisão em 1994, na qual Antonieta deixou traços do seu desejo de alterar o título para Segredo de Estado , riscando a lápis as palavras “TONICO E O”. Somente em 1998 o livro foi lançado com o nome que traduzia a vontade da escritora, além das ilustrações sugeridas nessa revisão com a frase “Precisa de algumas ilustrações”. Portanto, utilizando a contracapa de um livro publicado em 1975, Antonieta esboçou vontades suprimidas por mais de 20 anos, quais sejam: alterar
revista de crítica genética 9 Que é isso? Vocês estão mudando os fatos; assim, 10 onde é que vai parar a História? 11 As personagens, então, mostraram a força que têm; 12 Foram teimosas e ainda por cima atrevidas. [Responderam:] 13 Você não manda na gente. Escreva do jeito que nós 14 queremos ou não sai livro nenhum. História é história e 15 romance é Literatura. Quem quiser saber exatamente o que 16 aconteceu em <19>24, faça suas pesquisas... 17 Eu não tive outro jeito senão ceder; escrevi o roman- 18 ce [delas] < que elas > [< quiseram >] < queriam >. 19 ANTONIETA DIAS DE MORAES
Na página 5 do livro Segredo de Est ado (Figura 4), Antonieta traz uma nota assinada a qual intitula “Fofoca”, um diálogo com o leitor em uma espécie de prefácio, no qual a escritora conta a sua proposta de texto. Nesse diálogo, é dito que a proposta inicial do livro era contar uma história passada durante a Revolução de 1924, mas que as personagens “mudaram tudo”. É possível identificar portanto que, para a escritora, as personagens não são unicamente o discurso do autor, mas vozes autônomas que trazem para o texto suas preferências, além de serem vozes sociais que evocam o contexto em questão. A escritora revela ainda que existe no livro um mundo objetivo em que não prevalece a consciência única do autor, havendo vozes outras – a das personagens – que alteram o seu discurso, tal como fora concebido, em um movimento que não pode ser interrompido porque, como afirma a teoria bakhtiniana, é essencialmente dialógico. São essas outras vozes que relatam os acontecimentos no nível da ficção por intenção própria, pois, segundo a escritora:
Isso acontece com todos os escritores; pretende-se escrever uma coisa e as personagens não estão de acordo. As deste livro inventaram episódios, ruas e até um bairro onde queriam morar [...] Eu não tive outro jeito se não ceder; escrevi o romance que eles queriam (linhas 5 a 7 e 17 a 18).
Portanto, as vozes sociais do contexto em que Segredo de Estado foi escrito eram carregadas de sentimentos advindos da repressão devido ao cenário brasileiro militarizado na década de 1970. São essas outras vozes que relatam os acontecimentos no nível da ficção, vozes de personagens autônomos que assumiram o controle do discurso e relataram o contexto de sua época.
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Fig. 5: Convite para o lançamento do livro Tonico e o Segredo pela editora Salamandra, 30/09/1980. Fonte: Fundo ADM, UFSCar.
Quadro 4 – Transcrição diplomática de convite para o lançamento do livro Tonico e o Segredo pela editora
Salamandra, 30/09/1980. Fonte: Fundo ADM, UFSCar; por Ivanildes Menezes.
2 convidam as crianças de 8 aos 80 anos para o lançamento de um livro 3 divertido e provocador, destinado aos que conservam a alegria de viver e 4 nem por isso deixam de exercitar sua reflexão crítica. 5 TONICO E O SEGREDO 6 De 7 Antonieta Dias de Moraes 8 Dia 30/09/ 9 das 13 às 18 horas 10 Rua Maria Angélica, 37 11 Jardim Botânico 12 RJ-RJ
Em seu acervo, Antonieta guardou o convite (Figura 5) de lançamento do livro Tonico e o Segredo , uma das versões da obra Tonico e o Segredo de Estado. De uma versão para outra, não houve alteração no enredo, mas mudanças ocorreram nas ilustrações, na capa e no título. Acredita-se que a palavra “Estado” tenha sido retirada como estratégia para desvincular a obra de qualquer suspeita de denúncia política. O convite foi impresso em papel cartão, com tinta azul e trouxe como imagem a capa do livro. O texto convida “crianças de 8 a 80 anos” para o lançamento do livro (linha 2) e para a aventura de uma leitura crítica e alegre. Antonieta se preocupou com a idade mínima de seus leitores. Em muitos de seus relatos, afirmou que essa não se tratava de uma obra para crianças pequenas, que não conseguiriam compreender a essência do livro.
Para os estudos sobre os documentos de processo do livro Segredo de Estado , de Antonieta Dias de Moraes, optou-se por reflexões que colocam em diálogo elementos de Crítica Genética e o pensamento de Mikhail Bakhtin sobre a linguagem. Para a teoria bakhtiniana, tanto a fala quanto a escrita resultam de apropriações da linguagem sem que haja qualquer perspectiva de olhar algo diretamente, pois sempre olhamos e interpretamos o mundo pela lente da linguagem. No contexto da ditadura militar brasileira, considerando a teoria bakhtiniana, é possível identificar a ideologia oficial nos dizeres dos militares e dos cidadãos de concepções tradicionais que os apoiavam. Para a classe dominada, vozes do cotidiano, restava somente tentar se infiltrar na ideologia oficial por meio da palavra, muitas vezes da palavra cifrada, fragmentada, para que a censura não as calasse em meio à insatisfação generalizada com as condições de vida da década de 1970. A ideologia oficial alimenta sua posição de privilégios por meio de discursos que contaminam o cotidiano, enfraquecendo-o, embora – ainda que pouco frequente na história do país – a defesa do discurso da resistência possa abalar a ideologia oficial.
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SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPURS, 2001.
Recebido em: 11 ago. 2016. Aceito em: 02 nov. 2016.