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Este artigo examina a noção de recursividade na teoria gerativa da linguagem e relata os resultados de um experimento que investiga um possível efeito de priming estrutural no processamento de estruturas recursivas associadas à cognição linguística e numérica. O documento discute a relação entre o processamento de recursividade em domínios cognitivos diferentes, como a linguística e a numeração, e aponta para a importância de uma definição clara e unívoca do conceito de recursividade. O artigo também discute a memória verbal de trabalho e sua possível relação com o processamento de recursividade em diferentes domínios.
Tipologia: Provas
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Letrônica , Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 250-277, jan./jun., 2014
Mercedes Marcilese* Letícia Maria Sicuro Corrêa** Marina Rosa Ana Augusto***
Resumo : A capacidade de computar estruturas hierárquicas recursivas, tais como as encontradas nas gramáticas naturais, tem sido apontada como um dos principais aspectos que separa os humanos de outros primatas (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002). Esse tipo de estrutura, no entanto, não parece ser exclusivo do domínio das línguas naturais humanas. Em termos estritamente estruturais, um paralelo pode ser traçado entre determinadas sentenças linguísticas e expressões numéricas. Especificamente, em ambos os casos, podem ocorrer estruturas envolvendo center-embedding. No presente artigo, a noção de recursividade linguística – tal e como concebida no âmbito da Teoria Gerativa – é examinada e são reportados os resultados de um experimento concebido com o objetivo de explorar um possível efeito de priming estrutural no processamento de estruturas recursivas associadas a domínios cognitivos diferentes, quais sejam, a cognição linguística e numérica. Os dados obtidos não sustentam a ideia de que o processamento de estruturas semelhantes associadas a domínios diferentes seja afetado por um efeito de priming de natureza estrutural. Esses resultados são discutidos à luz do
(^1) A pesquisa aqui relatada foi desenvolvida no âmbito da tese de doutorado na primeira autora, então bolsista CNPq, sob orientação e coorientação das segunda e terceira autoras, respectivamente. A investigação é parte do Projeto FAPERJ Edital Humanidades – (Processo E-26/ 112.273/2008-2010), desenvolvido no âmbito das atividades do GPPAL (Grupo de Pesquisa em Processamento Linguístico e Aquisição da Linguagem/CNPq), no LAPAL (Laboratório de Psicolinguística e Aquisição da Linguagem) da PUC-Rio. A redação do artigo foi feita na vigência do projeto CNPq * - PQ 308874/2011-0. Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora, atuando na Graduação, na Pós-Graduação em Linguística e no Núcleo de Estudos em Aquisição da Linguagem e Psicolinguística (NEALP), e participante do GPPAL/LAPAL. ** PhD pela University of London, Professora Associada Sênior do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde atua na Graduação e na Pós-Graduação, na área de Psicolinguística, e como coordenadora do LAPAL. *** Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) onde atua na Graduação e na Pós-Graduação, e membro do GPPAL/LAPAL.
conceito de interface em um modelo de computação linguística on-line e de evidências da neurociência da linguagem. Palavras-chave: Recursividade; Língua; Cognição Numérica; Priming Estrutural. Abstract : The ability to compute hierarchical recursive structures, such as those found in natural grammars, has been identified as a key feature for distinguishing humans from other primates (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002). This kind of structure, however, does not seem to be exclusive to the domain of natural language. In strictly structural terms, a parallel can be drawn between linguistic sentences and numerical expressions. Specifically, in both cases there may be structures with center-embedding. This paper aims to address the notion of linguistic recursion, within the framework of Generative Theory, and to report experimental results. A self-paced reading experiment was designed to explore a priming effect in the processing of recursive structures associated with different cognitive domains, namely, language and numerical cognition. The data do not support the idea that the processing of similar structures is affected by cross-domain syntactic priming. The results are discussed in the light of a concept of an interface between an on-line model of linguistic computation and of current evidence from the field of neuroscience. Keywords : Recursion; Language; Numerical Cognition; Syntactic Priming_._
Introdução
A natureza recursiva da sintaxe tem sido destacada, no âmbito da Teoria Gerativa desde os anos 1950, como uma das propriedades fundamentais das línguas naturais. As analogias entre os sistemas numérico e linguístico baseadas nessa propriedade não são raras na literatura (CHOMSKY, 1998; 2007). Crucialmente, línguas humanas e sistemas numéricos compartilham a propriedade da infinitude discreta (CHOMSKY, 1998; HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002; CORVER et al., 2007). Em outras palavras, assim como séries de números podem ser indefinidamente continuadas – na medida em que sempre é possível adicionar “mais um”– também é possível criar novas estruturas sintáticas pela adição de material linguístico a uma estrutura dada (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002). Nesses termos, a propriedade da infinitude discreta permite explicar o fato de que não há limites previamente estabelecidos para o número de elementos que uma sentença da língua ou uma sequência numérica possa conter. Cabe destacar que, apesar de ser um termo de uso comum no âmbito do gerativismo, o conceito de recursividade, aplicado tanto ao domínio da língua quanto a outros campos, não tem recebido uma definição clara e unívoca. Observa-se ainda que, até relativamente pouco tempo atrás, não havia na literatura uma preocupação por esclarecer os pontos
pouco conhecidas.^2 O presente trabalho se propõe a examinar alguns aspectos relativos ao tratamento dado ao conceito de recursividade na linguística gerativista e avaliar – de forma ainda bastante exploratória, por meio de metodologia experimental – a possibilidade de a recursividade – tal e como caracterizada quando associada ao domínio da língua – poder ser considerada uma propriedade compartilhada por outros domínios da cognição, sendo a cognição numérica o foco do nosso interesse atual. A possibilidade de compartilhamento de estruturas recursivas em diferentes domínios tem sido recentemente explorada (PESETSKY; KATZ, submetido; BARTLET; KAZAKOV, 2004; KAZAKOV; BARTLET, 2005; ARSENIJEVIC, 2008; dentre outros). Enquanto há argumentos que sustentam a hipótese de que operações comuns atuam sobre bases de dados distintas (PESETSKY; KATZ, submetido; SCHNEIDER et al., 2011), evidências obtidas em estudos a base de imagem cerebral são interpretadas como compatíveis com a hipótese de haver recursos neuronais distintos para processos semelhantes em diferentes domínios (FRIEDRICH; FRIEDERICI, 2009), no que diz respeito à computação de estruturas hierarquicamente organizadas. No entanto, independentemente dos circuitos neuronais que implementem procedimentos recursivos em diferentes domínios, sua realização pode depender de recursos de memória compartilhados. O trabalho conduzido por Fedorenko, Gibson e Rohde (2007), por exemplo, sugere que a memória verbal de trabalho estaria envolvida tanto no processamento de sentenças da língua, quanto de expressões numéricas, sugerindo certo grau de compartilhamento de recursos entre ambos os domínios. O presente artigo se insere nessa discussão ao verificar em que medida tal tipo de compartilhamento poderia provocar interferência entre domínios. Este está organizado da seguinte forma: em primeiro lugar, os sentidos atribuídos ao termo recursividade no âmbito da Linguística Gerativa são considerados, com vista a uma definição que possibilite a comparação de processos recursivos entre domínios cognitivos. Em seguida, é avaliada a possibilidade de haver um compartilhamento de recursos entre sistemas cognitivos diferentes, envolvendo a recursividade como propriedade comum. Na seção 3, são reportados os resultados de um experimento conduzido com o objetivo de explorar uma
(^2) Cf. Trabalhos apresentados no evento Recursion in Brazilian Languages and Beyond , realizado em 2013 na UFRJ (cf. http://www.letras.ufrj.br/poslinguistica/recursion/#event-program).
possível relação mais direta entre o processamento de estruturas recursivas nos domínios linguístico e numérico. Esses resultados são discutidos à luz do conceito de informação das interfaces entre a língua e sistemas de desempenho, na computação on-line e diante de resultados da neurociência cognitiva da linguagem, ao que se seguem as considerações finais.
1 Recursividade na Teoria Linguística
As definições de recursividade encontradas na Teoria Linguística são muitas vezes opacas, sendo que esse não constitui um problema exclusivo da Linguística já que também na Ciência da Computação – campo do qual a noção foi herdada – as definições não apresentam um fio condutor único (PARKER, 2006a, 2006b). Também na Matemática, âmbito no qual o termo tem sua origem, registra-se uma situação similar (SOARE, 1996). Recursividade apresenta-se assim como um termo potencialmente problemático (PARKER, 2006a, 2006b; LOBINA; GARCÍA-ALBEA, 2009; dentre outros). Embora a Matemática e a Ciência da Computação compartilhem uma caracterização mais geral de recursividade, é possível estabelecer algumas distinções em cada caso. Primeiramente, a noção de recursividade surge no campo da Matemática associada à ideia de um método para definir funções (e outros objetos ou relações). A recursividade, nesse contexto, é caracterizada como uma propriedade de certos objetos, relações ou mecanismos (Ex. “conjuntos recursivos”, “algoritmos recursivos”, “funções recursivas”, “problemas com soluções recursivas”, “relações recursivas”, “definições recursivas”, etc.). O conceito aparece, nesse contexto, definido de forma bastante geral:
A method of defining functions studied in the theory of algorithms and other branches of mathematical logic. This method has been used for a long time in arithmetic to define sequences of numbers (progressions, Fibonacci numbers, etc.). Recursion plays an important role in computational mathematics (recursive methods). Finally, in set theory transfinite recursion is often used. For a long time the term ‘recursion’ was used by mathematicians without being accurately defined (VINOGRADOV, 1992, p. 15). No âmbito da Ciência da Computação, recursividade constitui uma ferramenta ou uma técnica de programação. Parker (2006a, 2006b) chama atenção para o fato de que na
Structure Component ) é apresentado em termos de uma sequência de regras do tipo X→Y aplicadas iterativamente, como meio de expressar o caráter recursivo das línguas (cf. TOMALIN, 2007). Em Chomsky (1957), transformações generalizadas apresentam-se como um possível recurso para o encaixamento de orações. Já em (1965), a recursividade no procedimento gerativo é diretamente expressa em regras de reescritura (i.e. do tipo X →Y), nas quais um elemento inicialmente apresentado à esquerda do símbolo de reescritura “→” pode reaparecer, em outra regra ou na mesma, à direita deste (Ex.: S → NP VP; NP → D N S...), ficando, portanto, o potencial de infinitude discreta das sentenças da língua formalmente expresso no nível representacional anterior à aplicação de regras transformacionais (isto é, as regras de reescritura são codificadas no nível da Estrutura Profunda). Com a eliminação desse nível de representação, na fase minimalista do gerativismo chomskyano, soluções que retomam a ideia de aplicação iterativa de regras (no caso Merge ) ou uma releitura das transformações generalizadas (cf. Lighfoot em Chomsky, 2002 [1957]) são buscadas na simplificação da formalização da gramática. A principal diferença com relação ao modo como recursividade se apresenta em um dado modelo de gramática diz respeito basicamente ao formalismo utilizado. Em outras palavras, quando se diz atualmente que os traços de um núcleo são projetados quando este se combina ( Merge ) com outro elemento, tem-se uma expressão equivalente à reintrodução de um símbolo numa regra de reescritura. Cumpre salientar que a direcionalidade da derivação foi afetada com essa mudança, em relação aos primeiros modelos derivacionais propostos, passando de top-down a bottom-up (direcionalidade esta que incorpora o sentido ascendente das regras sintagmáticas que expressam a projeção dos traços de categorias do léxico a níveis hierarquicamente mais altos (X-barra) nas versões representacionais do modelo de gramática concebidas nos anos 1980). A noção de recursividade apresentada no contexto da TL veicula os seguintes aspectos: (i) a propriedade de infinitude discreta das sentenças geradas ou do conjunto de sentenças gerado pela gramática; (ii) a representação formal da estrutura frasal das gramáticas cujas sentenças possuem a propriedade explicitada em (iii); (iii) a possibilidade de encaixamento de constituintes do mesmo tipo; (iv) a aplicação iterativa de um regra ou operação. Pode-se encontrar, por exemplo, uma definição semelhante à fornecida na Ciência
da Computação, contextualizada em termos de estrutura frasal, como a que se encontra em Pinker e Jackendoff (2005, p. 3): “Recursion refers to a procedure that calls itself, or to a constituent that contains a constituent of the same kind”. De forma análoga, em Chomsky (1965), o procedimento que chama a si mesmo fica explícito no formalismo em (ii), do qual uma possível realização é ilustrada em (i). Outras caracterizações de recursividade agregam todos os aspectos anteriormente mencionados (cf. PARISI, 1981).
From the point of view of linguistic theory, the concept of recursion could be defined in both a narrow sense and in a broader sense. In the narrow sense, recursion implies subordination. (i) I think/hope/promise that John will come tomorrow S → [.... V S] In a broad sense, recursion as a computational system could be defined in logical terms as follows: (ii) X→ [....X....] (CHOMSKY, 1965, p. 211). La ricorsività sintattica significa che una determinata categoria compare come elemento all’interno di un sintagma appartenente a questa stessa categoria. L’esempio più tipico di questo fenomeno sono le frasi che compaiono all’interno di altre frasi. [...] La ricorsività sintattica significa che le stesse regole sintattiche possono venir riapplicate ciclicamente all’interno di una stessa frase. In questo modo si riesce a chiarire come la sintassi del linguaggio umano sia uno dei principali fattori che spiegano il carattere aperto di questo particolare sistema di comunicazione, cioè la sua capacità di generare frasi sempre nuove (PARISI, 1981, p. 25-26).
É importante lembrar que é com base na propriedade da infinitude discreta que mais frequentemente é estabelecido um paralelo entre língua e o sistema dos números naturais:
Human language is based on an elementary property that also seems to be biologically isolated: the property of discrete infinity, which is exhibited in its purest form by the system of natural numbers 1, 2, 3… Children do not learn this property of the number system. Unless the mind already possesses the basic principles, no amount of evidence could provide them, and they are completely beyond the intellectual range of other organisms. (CHOMSKY, 2000, p. 3 - 4).
Embora as noções mencionadas aparentemente estabeleçam uma relação de quase sinonímia no seio da teoria, sendo intercambiáveis em determinados contextos, algumas distinções relevantes podem ser estabelecidas. A primeira diz respeito à diferença entre
fenômeno linguístico – vinculada assim a propriedades específicas das línguas humanas – ora como mecanismo ou recurso computacional, abrangendo também outros possíveis domínios. A questão de a recursividade ser ou não uma propriedade presente em outros domínios cognitivos, e ainda, a possibilidade de ser compartilhada por outras espécies tem sido, como mencionado anteriormente, discutida na literatura recente (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002, 2005). Vários espaços nos quais essa propriedade poderia estar presente têm sido apontados (CORBALLIS, 2007), quais sejam: a cognição numérica, o domínio da visão, a música, a cognição espacial e a teoria da mente. A capacidade de lidar com o conceito de número natural e com operações numéricas, vinculada à cognição numérica é um dos candidatos plausíveis. Não é claro, contudo, se linguagem e capacidade de lidar com número são habilidades que evoluíram de maneira interligada (CHOMSKY, 1998; HURFORD, 1987). O domínio da visão, responsável pela decomposição de elementos e cenas complexas por sua vez, também parece atuar de forma recursiva (um tipo de recursividade procedural). A música, considerada como um tipo de linguagem especial, possui a característica de ser hierarquicamente organizada (cf. LERDAHL; JACKENDOFF, 1983; PESETSKY; KATZ, submetido). Recentemente, Pesetsky e Katz (submetido) tem defendido a denominada “tese da identidade para a música e a linguagem”. Segundo os autores, todas as diferenças formais entre ambos os sistemas derivam das diferenças entre seus blocos de construção fundamentais: sons e significados arbitrariamente pareados no caso da língua natural e classes de tons e classes de combinações de tons, no caso da música (o que, contudo, parece ser difícil de conciliar com a existência seletiva de amusia e afasias, a menos que os déficits se restrinjam às bases de dados correspondentes (léxico e inventário de sons musicais, sobre os quais operações recursivas operam)). A cognição espacial, que envolve habilidades de navegação e localização, é outro dos domínios que têm sido relacionados à recursividade (BARTLET; KAZAKOV, 2004; KAZAKOV; BARTLET, 2005; ARSENIJEVIC, 2008). Uma série de semelhanças entre a cognição espacial e a língua, dentre as quais o tipo de computações presentes em cada domínio – recursiva e categorial – tem sido salientada (ARSENIJEVIC, 2008). Por último, a teoria da mente – caracterizada como a capacidade que permite
representar os conhecimentos, pensamentos e sentimentos próprios e dos outros indivíduos – parece ser um domínio no qual a recursividade teria um papel crucial. Tem sido argumentado (DE VILLIERS; DE VILLIERS, 2000) que o desenvolvimento da Teoria da Mente depende crucialmente do suporte de estruturas recursivas (sentenças completivas de verbos de estado mental expressando uma crença falsa em particular). Essa visão pode ser, no entanto, relativizada (CORRÊA et al., a sair; VILLARINHO, 2014). Retornando à cognição numérica, foco do presente trabalho, além da propriedade da infinitude discreta compartilhada pelos sistemas linguístico e numérico, estruturas recursivas podem ser encontradas em ambos os domínios. Essa ideia é aprofundada a seguir.
2 Estruturas recursivas na língua e na aritmética
A computação de expressões numéricas e sentenças da língua parece envolver certos recursos compartilhados; em particular, têm sido apontadas evidências no que diz respeito ao uso, em ambos os casos, da memória verbal de trabalho. Fedorenko, Gibson e Rohde (2007) investigaram a especificidade de domínio dos recursos de memória verbal de trabalho utilizados na integração linguística. Para isso, foram conduzidos experimentos baseados no paradigma de tarefa dual nos quais os participantes deviam executar uma tarefa de compreensão linguística juntamente com uma tarefa secundária envolvendo (i) processos de integração na realização de cálculos aritméticos, ou (ii) processos de integração de informação espacial. Durante os experimentos, ambos os tipos de informação a serem processados foram apresentados simultaneamente na tela de um computador. A depender do experimento, os participantes deviam ler sentenças apresentadas segmento por segmento e, ao mesmo tempo: (i) executar adições simples, também apresentadas por segmentos na condição de processamento aritmético; (ii) realizar tarefas de rotação ou de integração espacial na condição de processamento espacial (cf. a seguir exemplos de cada uma dessas tarefas).
não necessariamente seguem os mesmos princípios em cada caso, pelas óbvias diferenças entre os domínios, mas mutatis mutandis , o paralelismo em termos estruturais se mantém. Assim sendo, é possível salientar dois aspectos fundamentais que aproximam ambos os tipos de expressões (linguísticas e numéricas): (i) o fato de haver uma distribuição hierárquica que determina a necessidade de manter um elemento na memória até que outras informações sejam computadas; (ii) o fato de, num segundo momento, haver a necessidade de integrar as diferentes informações previamente computadas. No caso específico das expressões numéricas aqui consideradas, as operações de multiplicação/divisão tem prioridade sobre a adição/subtração e, dessa forma, podemos estabelecer um paralelismo com as orações relativas, no sentido de que – em ambos os casos – temos estruturas com center-embedding. Levando em consideração esses aspectos, haveria alguma relação, em termos de processamento, entre estruturas equivalentes, ainda que associadas a domínios cognitivos diferentes? Nesse caso, a possibilidade de o processamento de um desses tipos de estruturas afetar, em algum grau, o processamento do outro pode ser considerada. O fato de um procedimento recursivo ser utilizado em um dado domínio poderia induzir ou facilitar o uso de um procedimento semelhante em outro domínio?
3 Recursividade na língua e no processamento de expressões numéricas: evidências experimentais
Nos âmbitos da Psicologia Cognitiva e da Psicolinguística, o fato de o processamento de um determinado item afetar em algum grau o processamento subsequente tem sido explicado com base na noção de priming e a possibilidade de um efeito desse tipo ser obtido vem sendo explorada por meio de técnicas que gerem um efeito de priming. Tal efeito está associado à memória implícita e diz respeito à influência que um evento antecedente ( prime ) tem sobre o desempenho de um evento posterior (alvo). Esse efeito pode ser tanto de tipo positivo (isto é, quando as pessoas apresentam uma tendência a responder mais depressa a um item precedido de outro item semelhante) ou negativo (quando o prime faz com que o tempo de reação frente ao alvo seja mais lento, gerando assim um efeito
inibidor). Embora os efeitos de priming semântico e fonológico sejam os mais explorados, há também um bom número de estudos que visa a captar experimentalmente o efeito da chamada persistência sintática ou priming sintático/estrutural, comumente observado na língua em uso (cf. Pickering e Branigan, 1999 para uma revisão). O priming sintático pode ser caracterizado como a facilitação do processamento que ocorre quando uma dada sentença apresenta a mesma forma sintática que a sentença precedente, o que sugere que a representação decorrente do processamento sintático de uma dada oração pode ser mantida por algum tempo na memória de trabalho, interferindo no processamento sintático subsequente. Resultados experimentais sugerem que existe uma tendência à repetição de estruturas sintáticas em situações de diálogo (SCHENKEIN, 1980; LEVELT; KELTER, 1982; ESTIVAL, 1985; TANNEN, 1989), na produção de sentenças isoladas em contexto experimental (BOCK, 1986; BOCK; LOEBELL, 1990; POTTER; LOMBARDI, 1998) e também na escrita, embora o efeito de priming pareça ser menos duradouro nessa última modalidade (BRANIGAN; PICKERING, 1999). Bock (1986) mostrou que o tipo de estrutura utilizada na descrição verbal de imagens é afetado pela estrutura das sentenças previamente apresentadas. Estudos recentes têm apontado ainda para efeitos de priming estrutural na compreensão (LEDOUX et al., 2007). Assim sendo, ainda que diferentes áreas cerebrais pareçam estar envolvidas na condução das operações vinculadas a diferentes domínios cognitivos (FRIEDERICH; FRIEDERICI, 2009), a possibilidade de um efeito de priming entre domínios não pode ser, em princípio, descartada. Diante disso, um experimento foi concebido com o intuito de explorar um possível efeito de facilitação no processamento de estruturas envolvendo recursividade independentemente do domínio específico. Para tais fins, foi concebida uma tarefa experimental inspirada na técnica da leitura auto-monitorada ( self-paced reading ) e na noção de priming sintático. O paradigma da leitura auto-monitorada permite que o próprio participante controle o tempo de exposição de cada item (palavra, segmento ou frase inteira) durante sua leitura. Assume-se que o tempo levado para apertar o botão que controla a apresentação dos estímulos depende das propriedades daquilo que está sendo lido e se relaciona com o curso
3.1 Metodologia
Participantes
37 adultos, estudantes universitários falantes nativos de português brasileiro, foram avaliados, dos quais foram excluídos três porque não seguiram a instrução de realizar a tarefa o mais rápido possível ou porque apresentaram um número muito elevado de erros na interpretação das expressões numéricas. Esse último fato foi tomado como indicativo de que não dominavam as regras a serem aplicadas. Assim sendo, na análise dos resultados foram considerados os dados correspondentes a 34 participantes (17 em cada grupo. Idade média 29 anos/ intervalo 18-61 anos de idade^3 , 10 homens e 23 mulheres).
Materiais
Foram utilizados dois blocos com 20 sentenças experimentais em cada condição (orações relativas/ expressões numéricas). A seguir oferecemos alguns exemplos:
(12) Oração relativa: O jogador que a torcedora abraçou escorregou. Tarefa de compreensão: A torcedora abraçou o jogador. Expressão: (8 – 2 x 2) – 1 Tarefa de compreensão: = 3 O número de respostas SIM/NÃO foi contrabalançado (metade dos trials em cada condição para cada tipo de resposta correta). Nas orações relativas, a informação apresentada no segundo momento coincidia com a frase inicial ao combinar N + V da matriz (13) ou N + V da relativa (14):
(13) O menino que a médica examinou emagreceu – O menino emagreceu (informação SIM combina). (14) A tartaruga que a pesquisadora protegeu sumiu – A pesquisadora protegeu a tartaruga (informação SIM combina).
(^3) O desempenho de participantes com idade acima dos 50 anos não diferiu do de participantes jovens.
Nas expressões numéricas os trials cuja resposta na tarefa de compreensão era SIM apresentavam a equivalência correta (15):
(15) (5 + 2 x 3) x 2 = 22 ( SIM combina).
No que diz respeito aos estímulos com resposta correta NÃO também foram utilizados dois tipos. Nas orações relativas, N da matriz + V da relativa (16) ou N da relativa
(16) A celebridade que o fotógrafo perseguiu fugiu – A celebridade perseguiu o fotógrafo ( NÃO combina) (17) O passageiro que a aeromoça serviu acordou – A aeromoça acordou ( NÃO combina) (18) (2 + 3 x 2) x 2 = 20 ( NÃO combina) (19) (7 – 6 : 3) x 4 = 5 ( NÃO combina)
Aparato
Para a apresentação do material foi utilizado um laptop Apple MacBook A1181, e o experimento foi programado e implementado utilizando o software PsyScope X B53, que permite projetar e monitorar experimentos psicolinguísticos, registrando as respostas dos participantes e o tempo de reação em milésimos de segundos.
Procedimento
A tarefa utilizada foi concebida, como já mencionado, com base na técnica da leitura auto-monitorada e na noção de priming. O participante devia ler as frases que apareciam na tela do computador (orações relativas/expressões numéricas), sendo o próprio sujeito quem controlava a entrada e saída das frases na tela, apertando a barra de espaços num teclado. Após cada frase, era apresentada uma tarefa de compreensão que consistia em decidir se a nova informação recebida combinava ou não com a anterior. A resposta
Gráfico 1: Tempo médio de leitura em função de tipo de expressão
4043.
6282.
0
1000
2000
3000
4000
5000
6000
7000
Orações relativas Expressões numéricas
Milésimos de segundo
Não foi registrado efeito principal de ordem de apresentação (F(1,32) = 0.001 p=.97) nem da interação entre as duas variáveis consideradas (F(1,32) = 0.153 p=.7). Independentemente de ordem de apresentação , foram registrados tempos de reação maiores para a leitura das expressões numéricas. A análise das respostas-alvo na tarefa de compreensão revelou um efeito marginalmente significativo de ordem de apresentação (t(16)=2.5 p=.05) , com mais respostas-alvo para as orações relativas na ordem de apresentação 2, isto é, quando o primeiro bloco de estímulos apresentado foi o das expressões numéricas (cf. Gráfico 2). No entanto, esse efeito só foi observado no caso das sentenças relativas que tinham como resposta-alvo SIM. Em outras palavras, quando o participante devia responder positivamente na tarefa de compreensão (Ex. O menino que a médica examinou emagreceu
9.
9.
9.
9.
9
10
Ordem 1 Ordem 2 SIM NÃO
Gráfico 2: Média de respostas-alvo para as orações relativas na tarefa de compreensão em função de ordem de apresentação e tipo de resposta (SIM/NÃO)
Não foram obtidos outros efeitos quando considerado o número de respostas-alvo na tarefa de compreensão como variável dependente.
3.3 Discussão
Os resultados obtidos não sustentam a ideia de que o processamento de estruturas semelhantes – no que diz respeito ao encaixamento recursivo de constituintes – vinculadas a domínios cognitivos diferentes acarrete um efeito de priming estrutural. Assim sendo, apesar de a memória verbal de trabalho (ou loop fonológico, no modelo de Baddeley e Hitch, 1974 e Baddeley, 1986) parecer estar envolvida tanto no processamento de sentenças da língua, quanto de expressões numéricas, sugerindo certo grau de compartilhamento de recursos entre ambos os domínios (FEDORENKO; GIBSON; ROHDE, 2007), tal compartilhamento não sustenta a possibilidade de um efeito de priming a partir do acionamento de um procedimento recursivo no processamento de sentenças e expressões numéricas. Nossos resultados sugerem que o fato de a informação que desencadeia o uso de procedimentos recursivos de análise ( parsing no caso da língua; cálculo, no caso de expressões matemáticas) ser específica de domínio (o pronome relativo, um elemento funcional no caso de expressões linguísticas; sinais de operações e símbolos que indicam os