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Após 1989, o capitalismo se apresentou com sucesso como o único sistema político-econômico aparentemente viável no mundo – uma situação que só começou a ser questionada para fora dos círculos mais duros da esquerda a partir da crise bancária de 2008, quando começa-se a entender a urgência de se desmontar a ideia de que “não existe alternativa”. Este livro, escrito pelo filósofo e crítico cultural britânico Mark Fisher, desnuda o desenvolvimento e as principais características do “realismo capitalista”, conceito que delineia a estrutura ideológica em que estamos vivendo. Usando exemplos de política, filmes, ficção, trabalho e educação, argumenta que o “realismo capitalista” captura todas as áreas da experiência contemporânea. Mas também mostra que, devido a uma série de inconsistências e falhas internas ao programa de realidade do Capital, o capitalismo é, de fato, tudo ― menos realista. “Realismo capitalista” revela que a ideologia está hoje assentada positiva e diretamente na crueza m
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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É mais fácil imaginar o fim
do mundo do que o fim
do capitalismo
Em uma das principais cenas de Filhos da Esperança , filme de Alfonso Cuarón, o personagem de Clive Owen, Theo, visita um amigo na termelétrica de Battersea, agora um misto de edifício governamental e coleção de arte particular. Tesouros culturais como Davi , de Michelangelo, Guernica , de Picasso, ou o porco inflável do Pink Floyd são preservados nesse prédio que é, ele mesmo, um patrimônio cultural restaurado. Essa é a vaga ideia da vida da elite, afastada dos efeitos de uma catástrofe que causou uma esterilidade em massa: nenhuma criança nasceu no mundo há pelo menos uma geração. Theo pergunta: “por que tudo isso importa se não vai ter mais ninguém pra ver?”. As futuras gerações já não servem mais como um álibi, já que não haverá nenhuma. A resposta é a expressão de um hedonismo niilista: “eu tento não pensar nisso”. O que é único na distopia de Filhos da Esperança não é o familiar cenário totalitário, que vemos retratados rotineiramente nas distopias cinematográficas (como em V de Vingança , filme de James McTeigue, de 2005 ), mas o fato de ela ser específica do capitalismo tardio. No romance de P.D. James, no qual o filme é baseado, a democracia foi interrompida e o país é governado por um autonomeado Guardião, mas, sabiamente, tudo isso fica em segundo plano. As medidas autoritárias, que estão em todo lugar, poderiam ter sido implementadas por uma estrutura política que permaneceria, ao menos nominalmente, democrática. A Guerra ao Terror já tinha nos preparado para esse desenlace: a normalização da crise produz uma situação em que repelir as medidas trazidas para lidar com uma emergência se torna algo inimaginável (quando a guerra vai a acabar?). Ao assistir Filhos da Esperança , é inevitável lembrar da frase atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Žižek, de que é mais fácil
imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Esse slogan captura precisamente o que quero dizer por “realismo capitalista”: o sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa à ele. Houve um tempo em que filmes e romances distópicos eram exercícios semelhantes ao ato de imaginação – os desastres que descreviam serviam de pretexto para a emergência de diferentes formas de vida. Não é assim em Filhos da Esperança. O mundo ali exibido parece mais com uma extrapolação ou exacerbação da nossa própria realidade do que com uma alternativa a ela. Neste mundo, tal como no nosso, o ultra-autoritarismo e o capital não são de modo algum incompatíveis: campos de concentração e franquias de cafeterias famosas coexistem lado a lado. Em Filhos da Esperança , o espaço público foi abandonado, dando lugar a amontoados de lixo e animais selvagens (em uma cena especialmente marcante vemos um veado atravessar correndo uma escola abandonada). Os neoliberais, realistas capitalistas por excelência, celebram a destruição do espaço público, mas, contrariando suas expectativas oficiais, o Estado, em Filhos da Esperança , não é dissolvido, mas apenas reduzido às suas dimensões básicas: militares e policiais. (Falo em expectativas “oficiais” porque, em sua profundidade, o neoliberalismo sempre se apoiou no Estado, apesar de tê-lo difamado ideologicamente. Isso ficou absolutamente claro durante a crise dos bancos, em 2008 , quando, a convite dos ideólogos neoliberais, o Estado correu para salvar o sistema bancário). Em Filhos da Esperança , a catástrofe não é iminente e tampouco já aconteceu. Ao invés disso, está sendo vivida. Não há um momento pontual do desastre. O mundo não termina com uma explosão, ele vai se apagando, se desfazendo, desmoronando lentamente. Quem causou a catástrofe por vir? Não se sabe. Sua causa está distante, em algum lugar do passado, tão desconectada do presente que parece o capricho de algum ser maligno: um milagre negativo, uma maldição que penitência alguma é capaz de afastar. Tal praga só poderia ser encerrada por uma intervenção externa, tão imprevisível quanto a maldição que a iniciou. Qualquer
função ou contexto possíveis. Nenhum objeto cultural pode preservar seu poder quando não existem mais olhos novos para vê- lo. Não precisamos esperar o futuro próximo de Filhos da Esperança chegar para testemunhar essa transformação da cultura em um museu de antiguidades. O poder do realismo capitalista deriva, em parte, da maneira pela qual ele resume e consome toda a história anterior. Trata-se de um efeito de seu “sistema de equivalência geral”, capaz de transformar todos os objetos da cultura – quer sejam iconografia religiosa, pornografia ou O capital de Karl Marx – em valor monetário. Ande pelo Museu Britânico, no qual se podem ver objetos tirados de seu lugar de origem e reunidos como se estivessem dispostos sobre o balcão de uma nave de O Predador , e você terá uma imagem poderosa do processo em curso. Na conversão de práticas e rituais em meros objetos estéticos, as crenças das culturas anteriores são objetivamente ironizadas, transformadas em artefatos. O realismo capitalista não é, portanto, um tipo particular de realismo; é o realismo em si. Como Marx e Engels observaram no Manifesto Comunista :
[O capital]^2 afogou os sagrados calafrios do êxtase devoto, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca e substituiu as inúmeras liberdades conquistadas e garantidas por uma única: a inescrupulosa liberdade de comércio. Em resumo, a burguesia trocou a exploração envolta em ilusões religiosas e políticas pela exploração pura e simples, aberta, desavergonhada e direta.^3
O capitalismo é o que sobra quando as crenças colapsam ao nível da elaboração ritual e simbólica, e tudo o que resta é o consumidor- espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias. Ainda assim, essa guinada da crença para a estética, do engajamento para o voyeurismo , é tida como uma das virtudes do realismo capitalista. Ao vangloriar-se de ter – como coloca Badiou – “nos libertado das ‘abstrações fatais’ inspiradas pelas ‘ideologias do passado’”, o realismo capitalista apresenta a si mesmo como um escudo que nos protege dos perigos resultantes de acreditar
demais. A atitude de ironia distante, própria do capitalismo pós- moderno, supostamente nos imuniza contra as seduções do fanatismo. Rebaixar nossas expectativas – somos ensinados – é só um pequeno preço a pagar para estarmos a salvo do terror e do totalitarismo. “Nós vivemos em uma contradição”, Badiou observa:
o brutal estado de coisas, profundamente desigual, onde toda existência é avaliada em termos apenas de dinheiro, é apresentada a nós como ideal. Para justificar seu conservadorismo, partidários da ordem estabelecida não podem chamar esse estado de ideal ou maravilhoso. Então, em vez disso, decidiram dizer que todo o resto é horrível. Claro, eles dizem, podemos não viver num paraíso. Mas temos sorte de não vivermos em uma condição infernal. Nossa democracia não é perfeita. Mas é melhor que as ditaduras sangrentas. O capitalismo é injusto, mas não é criminoso como o stalinismo. Nós deixamos milhões de africanos morrerem de AIDS, mas não fazemos declarações racistas e nacionalistas, como Milosevič. Nós matamos iraquianos com nossos bombardeios, mas não cortamos suas gargantas com facões como fazem lá em Ruanda etc.^4
O “realismo” aqui é análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão. Em sua interpretação do capitalismo – certamente a mais impressionante desde Marx – Deleuze e Guattari descrevem-no como uma espécie de potencialidade sombria que assombrou todos os sistemas sociais anteriores. O capital, dizem, é uma “coisa inominável”, a abominação que as sociedades primitivas e feudais procuraram evitar antecipadamente. Quando enfim chega, o capitalismo traz consigo uma dessacralização massiva da cultura. É um sistema que não mais governa por meio de uma lei transcendente. Ao contrário: desmantela todos os códigos desse tipo, apenas para reinstalá-los ad hoc. Os limites do capitalismo não são fixados de uma vez por todas, mas definidos (e redefinidos) de maneira pragmática e improvisada. Isso faz do capitalismo algo muito parecido com A Coisa no filme homônimo de John Carpenter: uma entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver qualquer coisa com a qual entre em contato. O capital, de acordo com Deleuze e Guattari, é “uma bricolagem de tudo o que já foi”; um estranho híbrido do ultramoderno com o arcaico. Na época em que Deleuze e Guattari escreveram os dois
isso é verdade. O que estou chamando de realismo capitalista pode ser integrado à rubrica do pós-modernismo teorizado por Jameson. No entanto, apesar do esforço heroico de elucidação feito por Jameson, “pós-modernismo” continua sendo um termo fortemente contestado, cujos sentidos – de maneira tão apropriada quanto irritante – seguem flutuantes e múltiplos. Além disso, quero demonstrar que alguns dos processos descritos e analisados por Jameson se tornaram crônicos e se agravaram tanto a ponto de sofrerem uma mudança de natureza. Há três razões que me levam a preferir o termo realismo capitalista e não pós-modernismo. Em primeiro lugar, nos anos 1980 , quando Jameson desenvolveu pela primeira vez sua tese sobre o pós-modernismo, ainda existiam – pelo menos em nome – alternativas ao capitalismo. Hoje, contudo, estamos lidando com um senso de exaustão e esterilidade política muito mais profundos e mais generalizados. Nos anos 1980 , o “socialismo real” ainda persistia, mesmo que na fase final de seu colapso. Na Inglaterra, as linhas de fratura do antagonismo de classes estavam completamente expostas, em razão de conflitos como a Greve dos Mineiros de 1984 - 1985. A derrota desse movimento foi um momento importante no desenvolvimento do realismo capitalista [no Reino Unido], tão ou mais significante em sua dimensão simbólica quanto em seus efeitos práticos. O fechamento das minas foi defendido precisamente com base no argumento de que mantê-las abertas não era “economicamente realista”, e os mineiros foram retratados como os últimos atores de um romance proletário fracassado. Os anos 1980 foram o período no qual o realismo capitalista se estabeleceu, com muita luta, e criou raízes. Foi a época em que a
doutrina de Margaret Thatcher de que “não há alternativa”^5 – um slogan tão sucinto para o realismo capitalista quanto se poderia querer – se transformou em uma profecia autorrealizável brutal. Em segundo lugar, pós-modernismo envolve uma relação com o modernismo. O trabalho de Jameson sobre o pós-modernismo começa com uma interrogação sobre a ideia, defendida por gente como Adorno, de que o modernismo, só por suas inovações formais,
possuía desde já um potencial revolucionário. Ao invés disso, o que Jameson viu acontecer foi a incorporação dos motes modernistas pela cultura popular (de repente, por exemplo, as técnicas surrealistas apareceram na publicidade). Ao mesmo tempo que formas particulares do modernismo foram absorvidas e mercantilizadas, o credo modernista – sua atribuída fé no elitismo e modelo monológico e verticalizado e de cultura – foi desafiado e rejeitado em nome da “diferença”, da “diversidade” e da “multiplicidade”. O realismo capitalista não mais encena esse tipo de confronto com o modernismo. Ao contrário, a derrota do modernismo é simplesmente aceita como dada: o modernismo agora é algo que até pode ressurgir, periodicamente, mas apenas como um estilo estético cristalizado, mas não mais como um ideal de vida. Em terceiro lugar, mais de uma geração já nos separa do colapso do Muro de Berlim. Nas décadas de 1960 e 1970 , o capitalismo ainda tinha que enfrentar o problema de como conter e absorver as energias externas. Agora, enfrenta o problema oposto: tendo incorporado tudo que lhe era exterior tão completamente, como pode funcionar sem um exterior para colonizar ou do qual se apropriar? Para a maior parte das pessoas com menos de 20 anos, na Europa e na América do Norte, a falta de alternativas ao capitalismo não é nem sequer uma questão. Jameson costumava se referir, horrorizado, aos caminhos pelos quais o capitalismo se infiltrava no próprio inconsciente; agora, o fato de o capitalismo ter colonizado até os sonhos da população é tão amplamente aceito que nem vale a pena comentar. Seria perigoso e enganador imaginar que o passado próximo foi uma espécie de idílio, repleto de potencial político. É sempre bom lembrar o papel que a mercantilização desempenhou na produção da cultura no século XX.
De todo modo, a velha batalha entre apropriação^6 e recuperação, entre subversão e incorporação, parece coisa do passado. Não estamos lidando agora, como antes, com a incorporação de materiais dotados de potencial subversivo, mas sim com sua “ precorporação ”: a formatação e a moldagem prévia dos desejos,
“realidade”. “No hip hop”, apontou Simon Reynolds em um ensaio publicado pela Wire Magazine em 1996 ,
“real” tem dois significados. Primeiro, significa autêntico, a música sem compromissos, que se recusa a se vender para a indústria caso tenha que suavizar sua mensagem. “Real” também significa que a música reflete a “realidade” constituída pela instabilidade econômica do capitalismo tardio, da institucionalização do racismo, da vigilância crescente e do assédio da juventude pela polícia. “Real” significa a morte do social: significa corporações cujos lucros crescentes não refletem em aumentos de salário ou melhorias nos benefícios, mas em downsizing (a demissão da força de trabalho permanente para a criação de uma massa flutuante de trabalhadores contratados em regimes de meio-expediente e “freelas” que não gozam de benefício ou segurança alguma no emprego).^8
No fim, era precisamente por encenar essa primeira versão do “real”
vencedor ou perdedor, e onde a maioria vai perder”.^9 O mesmo acontece na visão de mundo neo noir que encontramos nos quadrinhos de Frank Miller e nas narrativas de James Ellroy. Há um tipo de desmitologização a partir de um prisma machista nos trabalhos de Miller e Ellroy. Eles posam de observadores implacáveis, que se recusam a embelezar o mundo para encaixá-lo em uma ética binária, supostamente simplista, dos super-heróis de quadrinhos e dos romances de crime clássicos. O “realismo” aqui,
em vez de ser obsoleto, é realçado pelo foco no furiosamente venal
ou, sequer, interesse”.^10 Essa dessensibilização, no entanto, cumpre uma função no realismo capitalista: Davis levanta a hipótese de que “o papel pós-moderno do noir de LA pode ser precisamente o de endossar a emergência do homo reaganus ”.^11
(^1) N. da E.: os Upanixades são parte das escrituras Shruti hindus que trazem argumentos sobre a religião, sendo consideradas por muitas das escolas do hinduísmo como instruções religiosas. (^2) N. da E.: inserção do autor. (^3) Marx, Karl. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Companhia das letras, 2012. (^4) Cox, Christoph; Whalen, Molly; Badiou, Alain. “On evil: an interview with Alain Badiou” em Cabinet Magazine , 2001-2002. Disponível em: http://www.cabinetmagazine.org/issues/5/alainbadiou.php (^5) N. da E.: there is no alternative , ou TINA, no acrônimo em inglês, foi o slogan usado por Margaret Tatcher em defesa da economia de mercado como o único sistema possível. (^6) N. da E.: no original détournement. (^7) Jameson, Fredric. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. (^8) Reynolds, Simon. “Slipping into darkness” em The Wire , 1996. (^9) Idem. (^10) Davis, Mike. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. (^11) Idem.
consumindo impunemente. O papel da ideologia capitalista não é o de fazer a defesa explícita de nada, como a propaganda faz, mas ocultar o fato de que as operações do capital não dependem de nenhum tipo de subjetividade ou crença. Era impossível conceber o fascismo ou o stalinismo sem propaganda – mas o capitalismo pode funcionar perfeitamente bem, em certos sentidos até melhor, sem ninguém para defendê-lo abertamente. Aqui o conselho de Žižek permanece válido: “se o conceito de ideologia que está em jogo é o clássico, no qual a ilusão se situa no âmbito do conhecimento”, argumenta,
então a sociedade atual aparece como pós-ideológica: a ideologia dominante é a do cinismo; as pessoas não mais acreditam em uma verdade ideológica; não levam mais as proposições ideológicas a sério. O nível fundamental da ideologia, no entanto, não é o de uma ilusão que mascara o real estado de coisas, mas aquele de uma fantasia (inconsciente) que estrutura nossa realidade enquanto tal. E nesse nível, estamos claramente bem longe de uma sociedade pós-ideológica. O distanciamento cínico é só uma maneira… de fechar os olhos para o poder estrutural da fantasia ideológica: mesmo quando não levamos as coisas a sério, mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, nós as continuamos fazendo.^12
A ideologia capitalista em geral, sustenta Žižek, consiste precisamente em supervalorizar a crença – no sentido de atitude subjetiva interior – a despeito das crenças que exibimos e exteriorizamos em nossos comportamentos. Contanto que acreditemos (em nossos corações) que o capitalismo é mau, somos livres para continuar participando da troca capitalista. De acordo com Žižek, o capitalismo em geral se apoia em uma estrutura de denegação. Acreditamos que o dinheiro é apenas uma convenção sem sentido, desprovido de valor intrínseco, no entanto, agimos como se possuísse um valor sagrado. Pior, esse comportamento depende da negação inicial – só somos capazes de fetichizar o dinheiro em nossas ações porque já tomamos uma distância irônica em relação a ele em nossas cabeças. O anticapitalismo corporativo não seria importante caso pudéssemos diferenciá-lo de um movimento anticapitalista autêntico. No entanto, mesmo antes do seu impulso ter sido refreado com os ataques ao World Trade Center no 11 de setembro, o assim chamado movimento anticapitalista (movimento
antiglobalização/altermundialista) parecia já ter cedido terreno demais ao realismo capitalista. Tendo se mostrado incapaz de apresentar uma alternativa de modelo político-econômico coerente ao capitalismo, cresceu a suspeita de que talvez o objetivo não fosse mais superar o capitalismo, mas apenas mitigar seus excessos. E, uma vez que a forma de suas atividades privilegiava o protesto, em detrimento da organização política, havia a sensação de que o movimento antiglobalização consistia meramente em uma série de demandas histéricas que ninguém esperava que fossem atendidas realmente. Os protestos produziam uma espécie de ruído de fundo carnavalesco para o realismo capitalista, e tinham muito em comum com mega eventos corporativos como o Live 8,^13 de 2005 , com suas cobranças exorbitantes para que os políticos decretassem por lei o fim da pobreza. O Live 8 era um estranho tipo de protesto: um protesto com o qual todo mundo podia concordar – afinal, quem seria a favor da pobreza? Não é que o Live 8 fosse uma forma “degenerada” de protesto. Pelo contrário, foi no Live 8 que a lógica dos protestos se revelou em sua forma mais pura. A onda de protestos desencadeados dos anos 1960 postulava a existência de um “Pai maligno”, o anunciador de um princípio de realidade que (supostamente) negava de maneira cruel e arbitrária o “direito” ao gozo total. Esse Pai tinha acesso a recursos ilimitados, mas de forma egoísta e insensível, guardava-os para si. No entanto, não é o capitalismo, mas o próprio protesto que depende dessa figuração do Pai; e um dos trunfos da atual elite global tem sido evitar a identificação com essa figura do Pai avarento, mesmo que a “realidade” imposta à juventude atual seja substancialmente mais severa do que as condições contra as quais os jovens protestaram nos anos 1960. De fato, foi a própria elite global – na figura de celebridades como Richard Curtis e Bono – que organizou o Live 8. Recuperar uma agência política efetiva significa, em primeiro lugar, aceitar, no nível do desejo , a nossa participação no impiedoso moedor de carne do capital. O que está sendo denegado nesse repúdio ao mal e à ignorância, projetados nesse Outro fantasmático,
pobres do mundo, e promover um comércio que respeitasse os interesses das nações africanas. (^14) N. da E.: festival de rock realizado em 1985 com o objetivo de angariar fundos para combater a fome na Etiópia.
O capitalismo
e o Real
A expressão “realismo capitalista” não é original. Já foi usada, na
década de 1960 , por um grupo de pop art alemã^15 e por Michael Schudson em seu livro de 1984 Advertising: the uneasy persuasion [Propaganda: a persuasão inquieta] – ambos fazendo referência paródica ao realismo socialista. O que é novo no uso que faço do termo é o significado mais expansivo – e até exorbitante – que atribuo a ele. O realismo capitalista, como o entendo, não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação. Se o realismo capitalista é tão fluido, e se as formas atuais de resistência são tão desesperançosas e impotentes, de onde poderia vir um desafio efetivo? Uma crítica moral ao capitalismo, enfatizando as maneiras pelas quais ele gera miséria e dor, apenas reforça o realismo capitalista. Pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade, ao passo que a esperança de um dia eliminar tais formas de sofrimento pode ser facilmente representada como mero utopismo ingênuo. O realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo “realismo” do “capitalismo” na verdade não tem nada de realista. Não é preciso dizer que o que conta como “realista”, o que parece possível em qualquer ponto do campo social, é definido por uma série de determinações políticas. Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato. Não por acaso, o neoliberalismo tem procurado acabar com