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Guias e Dicas
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Direito, Escassez e Escolhas: Análise Econômica dos Direitos Fundamentais, Trabalhos de Economia

Este documento discute a relação entre direitos fundamentais e escassez de recursos, enfatizando a necessidade de alocar recursos materiais para a efetivação de direitos. Os autores holmes e sunstein destacam que a necessidade de recursos materiais para a efetivação de direitos não se limita aos direitos sociais, mas também afeta direitos individuais. Amaral e galdino também contribuem para a discussão sobre os custos de direitos, questionando a distinção entre direitos negativos e positivos e enfatizando a importância de considerar custos em relação aos direitos. O documento também aborda a necessidade de responsabilidade dos aplicadores do direito e da sociedade em geral em relação aos recursos escassos.

O que você vai aprender

  • Qual é a contribuição de Amaral e Galdino para a discussão sobre os custos de direitos?
  • Os autores Holmes e Sunstein questionam a distinção entre direitos negativos e positivos. Por que isso é importante?
  • Qual é a relação entre direitos fundamentais e escassez de recursos?

Tipologia: Trabalhos

2021

Compartilhado em 11/08/2021

thiago-felipe-avanci
thiago-felipe-avanci 🇧🇷

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28/07/2021
RACIONALIDADE ECONÔMICA, ESCOLHAS TRÁGICAS E O CUSTO DOS DIREITOS NO ACESSO À SAÚDE41
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Dikè – 119 – Publicação Semestral – 2017 [ 120 ] Revista Jurídica do Curso de Direito da UESC
RACIONALIDADE ECONÔMICA,
ESCOLHAS TRÁGICAS E O CUSTO DOS
DIREITOS NO ACESSO À SAÚDE41
Osmir Antonio Globekner42
resUMo: o presente ArtIGo trAtA DA qUestão DA rACIonALIDADe eCo-
nôMICA nA ALoCAção Dos reCUrsos soCIAIs esCAssos eM sAúDe, o qUe é
feIto pArtInDo-se DA DIsCUssão soBre o teMA DAs esCoLHAs tráGICAs, De
ACorDo CoM A DoUtrInA expostA por GUIDo CALABresI e pHILIp BoBBItt,
e DA DIsCUssão soBre o CUsto Dos DIreItos enCetADA por stepHen HoL-
Mes e CAss sUnsteIn, nos estADos UnIDos DA AMérICA, e sUA ApLICA-
ção no Contexto BrAsILeIro, ConforMe ABorDAGeM De GUstAVo AMArAL
e fLáVIo GALDIno. ContrAstA-se A qUestão DA rACIonALIDADe pUrAMen-
te eConôMICA CoM A qUestão étICA e jUríDICA DA jUstIçA nA DIstrIBUIção
Dos reCUrsos esCAssos, qUe Há De ser InforMADA BAsICAMente por CrI-
térIos De IGUALDADe no ACesso.
pALAVrAs-CHAVe: ALoCAção De reCUrsos. ACesso à Atenção sAnItárIA.
eqUIDADe eM sAúDe.
ABAstrACt: tHIs pAper Is ConCerneD to tHe sUBjeCt of eConoMIC rA-
41 Recebido em 24/08/15, aprovado em 19/11/2015.
42 Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Fede-
ral da Bahia (FD/UFBA), Especialista em Direito Sanitário pela Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e em Direito Aplica-
do ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União
(ESMPU), possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Es-
tadual de Campinas (UNICAMP) e em Direito pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC). Atua na assessoria jurídica do Ministério Público Federal.
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Dikè – 119 – Publicação Semestral – 2017 [ 120 ] Revista Jurídica do Curso de Direito da UESC

RACIONALIDADE ECONÔMICA,

ESCOLHAS TRÁGICAS E O CUSTO DOS

DIREITOS NO ACESSO À SAÚDE 41

Osmir Antonio Globekner 42

resUMo: o presente ArtIGo trAtA DA qUestão DA rACIonALIDADe eCo- nôMICA nA ALoCAção Dos reCUrsos soCIAIs esCAssos eM sAúDe, o qUe é feIto pArtInDo-se DA DIsCUssão soBre o teMA DAs esCoLHAs tráGICAs, De ACorDo CoM A DoUtrInA expostA por GUIDo CALABresI e pHILIp BoBBItt, e DA DIsCUssão soBre o CUsto Dos DIreItos enCetADA por stepHen HoL- Mes e CAss sUnsteIn, nos estADos UnIDos DA AMérICA, e sUA ApLICA- ção no Contexto BrAsILeIro, ConforMe ABorDAGeM De GUstAVo AMArAL e fLáVIo GALDIno. ContrAstA-se A qUestão DA rACIonALIDADe pUrAMen- te eConôMICA CoM A qUestão étICA e jUríDICA DA jUstIçA nA DIstrIBUIção Dos reCUrsos esCAssos, qUe Há De ser InforMADA BAsICAMente por CrI- térIos De IGUALDADe no ACesso. pALAVrAs-CHAVe: ALoCAção De reCUrsos. ACesso à Atenção sAnItárIA. eqUIDADe eM sAúDe.

ABAstrACt: tHIs pAper Is ConCerneD to tHe sUBjeCt of eConoMIC rA-

41 Recebido em 24/08/15, aprovado em 19/11/2015. 42 Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Fede- ral da Bahia (FD/UFBA), Especialista em Direito Sanitário pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e em Direito Aplica- do ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Es- tadual de Campinas (UNICAMP) e em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Atua na assessoria jurídica do Ministério Público Federal.

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Dikè – XVI – Publicação Semestral – 2017 [ 121 ] Revista Jurídica do Curso de Direito da UESC

RACIONALIDADE ECONÔMICA, ESCOLHAS TRÁGICAS E O CUSTO DOS DIREITOS NO ACESSO À SAÚDE

tIonALIty In tHe ALLoCAtIon of sCArCe soCIAL resoUrCes In HeALtH, wHICH Is BAseD on tHe DIsCUssIon ABoUt tHe tHeMe of trAGIC CHoICes, ACCor- DInG to tHe DoCtrIne exposeD By GUIDo CALABresI AnD pHILIp BoBBItt, AnD on tHe DIsCUssIon ABoUt tHe Cost of rIGHts InItIAteD By stepHen HoLMes AnD CAss sUnsteIn, In tHe UnIteD stAtes, AnD Its AppLICAtIon In BrAzILIAn Context, As tHe ApproACH of GUstAVo AMArAL AnD fLáVIo GALDIno. It Is ContrAsteD tHe pUre eConoMIC rAtIonALIty wItH tHe etHI- CAL AnD jUrIDICAL sUBjeCt of tHe jUstICe In tHe DIstrIBUtIon of sCAr- Ce resoUrCes, tHAt MUst Be InforMeD BAsICALLy By CrIterIA of eqUALI- ty In tHe ACCess. keyworDs: resoUrCe ALLoCAtIon. HeALtH CAre ACCessIBILIty. eqUIty In HeALtH.

INTRODUÇÃO

O sentido de racionalidade que se quer significar neste tra- balho é o da busca e adoção dos meios mais eficientes 43 para a consecução de determinados fins e está ligado a um fato contun- dente, contingência incontornável da existência humana, indivi- dual e coletiva, que é a limitação dos recursos materiais postos à consecução dos projetos de vida e à satisfação das necessida- des humanas. No campo do Direito, a percepção dessa racionalidade levou

43 Sobre a eficiência, adverte Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998, que: “A igualdade não é a única responsabilidade social com a qual temos de nos preocupar; existem também as exigências de eficiência. Uma tentativa de realizar a igualdade de capacidades descuidando de fazer considerações agregativas pode resultar em severas diminuições das capacidades que as pessoas podem ter no todo. [...] o significado do conceito de igualdade nem mesmo pode ser mantido adequadamente se não se presta simultaneamente atenção à perspectiva agregativa também – ao ‘aspecto da eficiência’, para dizê-lo de modo mais amplo” (SEN, 2001, p. 37-38).

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a uma crítica bastante intensa da forma como, a partir da pro- mulgação da Constituição Federal de 1988, vinham sendo en- tendidos pelos tribunais brasileiros alguns direitos fundamen- tais de segunda dimensão, de forma especial, o direito à saúde, como um direito subjetivo público, de natureza absoluta, cuja pretensão pode ser exercitada, individual ou coletivamente, em face do poder público e das empresas privadas do setor da saú-

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escolhas sobre quais necessidades humanas serão atendidas e quais serão preteridas. A consciência de que o emprego de recursos socialmente pro- duzidos determinará não apenas quais necessidades humanas se- rão satisfeitas, senão que, sobretudo, quais deixarão de ser aten- didas, torna imperioso, como visto anteriormente, que tal emprego seja presidido pela racionalidade visando que este resulte na maior economia e na maior eficiência possível dos recursos escassos. O campo das decisões alocativas, que sempre caracterizou a seara política, passa a integrar as reflexões éticas e jurídicas, na mesma medida em que ocorre a emancipação do indivíduo e das sociedades e em que se passa a requerer critérios de justiça na alocação de recursos escassos.

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Lembre-se com David Hume que onde não há escassez não há necessidade de reflexões sobre a justiça alocativa, pois a jus- tiça entra em cena precisamente para determinar a propriedade na qual não há o suficiente para todos. A justiça seria inútil em situações de extrema abundância ou extrema penúria, ali por inexistir conflito, aqui por desaparecer o respeito à lei e ao Esta- do, porém refletir e deliberar sobre critérios de justiça será sem- pre necessário em contextos de escassez e de altruísmo limita- dos (HUME, 2004, p. 245). Decisão é ônus inseparável da emancipação. Enquanto a sa- tisfação das necessidades humanas encontre-se submetida às contingências da vida nua, do ser como ente biológico, ou, equi- valentemente, enquanto a satisfação dessas necessidades hu- manas esteja entregue ao acaso, quer por não haver opção dis- ponível, quer por ainda não se a ter percebido a opção como tal, não há que se tratar de escolhas racionais e éticas. Nessa situ- ação o homem encontra-se em estado de impotência ou desco- nhecimento diante de suas necessidades e das possibilidades de sua satisfação. Diversa é a situação quando o homem passa a deter alguma parcela de poder e de conhecimento que lhe permi- ta intervir sobre a satisfação de necessidades, exercitando a sua capacidade para realizar escolhas. E é essa a situação que surge no campo sanitário, em decor- rência, por um lado, do domínio sobre a técnica e ampliação de suas possibilidades de intervenção sobre a saúde e o bem-estar humano, por outro, em consequência da emancipação política do indivíduo e da sociedade, que passa a entender a saúde, con- comitantemente, como um direito social e como um campo par- ticularmente fértil para a exploração da atividade econômica pri- vada (CASTRO, 2003). A perplexidade diante da possibilidade de escolha aparece no

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campo que aqui interessa, isto é, o da efetivação do direito à aten-

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ção sanitária, precisamente no momento em que a evolução téc- nica permite influir, com largueza, sobre o estado de saúde dos indivíduos e das coletividades e a partir do momento em que pas- sa a haver, não apenas a possibilidade de escolha, senão que, também, a consciência dessa possibilidade de escolha. Calabre- si e Bobbitt, na obra clássica, “Escolhas trágicas”, publicada em 1977, expuseram suas ideias sobre os conflitos enfrentados pelas sociedades na alocação de recursos tragicamente escassos. Re- conhecem que a escassez é um fato fundamental da existência e abordam o tema de como as sociedades enfrentam as escolhas ao decidir como distribuirão seus recursos escassos, fixando-se, en- tretanto, no tema particular das escolhas por eles denominadas trágicas, por implicarem grande sofrimento, morte e destruição. De acordo com os autores, embora a escassez possa muitas ve- zes ser evitada para alguns bens, tornando-os disponíveis a todos, ela não pode ser evitada para todos os bens. O elemento trágico surge quando a escolha envolve o sacrifício de valores aceitos pela sociedade como fundamentais e não sacrificáveis. Nesses momen- tos é posto a nu o conflito entre os valores pelos quais a sociedade determina os beneficiários das distribuições, o perímetro natural da escassez e os valores morais humanísticos que privilegiam, por exemplo, a vida, a saúde e o bem-estar do ser humano. As sociedades devem buscar alocar seus recursos de modo a preservar os fundamentos morais da colaboração social nela existente. Quando é bem-sucedida nessa tarefa, a escolha trá- gica é evitada e transformada em uma alocação não-trágica, por, pelo menos, não aparentar contradição moral. Na hipó- tese contrária, aparecem as circunstâncias trágicas em torno das escolhas. Todavia, advertem os autores, uma característi- ca que anima as escolhas trágicas é o seu constante movimen- to; o equilíbrio é sempre precário e “o arco da tragédia nunca

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descansa” 45. Uma sociedade está constantemente confrontan- do e refazendo suas escolhas trágicas.

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cisões de primeira e de segunda ordem são feitas separadamente. Isso permite misturas mais complexas de abordagens de alocação para lidar com as escolhas trágicas e possibilita a uma sociedade aderir a diferentes misturas de valores em cada ordem de decisão. A aparente desconexão entre decisão de primeira ordem de uma escolha trágica e decisão de segunda ordem usualmente é il- usória, servindo apenas para obscurecer o fato da escolha trágica. Assim conforta a todos na crença de que não são as escolhas de primeira ordem as que determinam, por exemplo, um número acei- tável de mortes, mas que isto figura como resultado de milhares de ações independentes, atomísticas (CALABRESI; BOBBITT, 1978). Os autores fazem um questionamento que poderia ser re- produzido, mutatis mutandis , para qualquer sociedade ou cul- tura. Eles perguntam: por que os Estados Unidos gastam um milhão de dólares para resgatar um único balonista perdido, mas não alocam uma quantia similar para prover patrulhas de praia e evitar acidentes com os banhistas que ocorrem em

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maior número e que significam um risco potencial muito maior à integridade humana? (CALABRESI; BOBBITT, 1978). Explicam Calabresi e Bobbitt (1978) que a divisão entre pri- meira e segunda ordem e a interação entre elas ajudam a es- clarecer o comportamento em muitas dessas situações trágicas. Valora-se a vida em um nível um tanto baixo em algumas cir- cunstâncias na decisão de primeira ordem e, em um alto nível, em outras situações que envolvem as decisões de segunda ordem. Em assim o fazendo, o resultado trágico decorrente da decisão de primeira ordem parece necessário, inevitável, antes que escolhi- do. A eleição de primeira ordem mascara o que é escolhido tragi- camente como se fosse um fato produto de um infortúnio fatal. Uma sociedade busca justificar a escolha trágica de primei- ra ordem pelo que denomina “escassez natural”. Mas esta não é, normalmente, o real fator limitante. Com frequência a escas- sez é apenas pontualmente absoluta, por exemplo, o número de médicos aptos a fazer um determinado transplante em um dado momento. Não obstante, ao longo do tempo, deixam de ser absolutas e passam a ser relativas. Mais frequentemente ainda a escassez não é resultado de qualquer deficiência abso- luta de recurso, mas antes da decisão pela sociedade, que não está preparada para privar-se de outros bens e benefícios em quantidade suficiente para remover a escassez dita “natural” 46. O segundo padrão de movimento característico das escolhas trágicas, como mencionado, diz respeito à forma como a escolha

46 “Escassez em geral permanece um fato da vida, mas na situação trágica par- ticular, escassez e sofrimento não são apenas impostos: a sociedade neles

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incorre por sua própria decisão ou, pelo menos, a sociedade finalmente as aceitará como ‘pertencendo propriamente à natureza das coisas’ [...]”. (“Scar- city in general remains a fact of life, but in the particular tragic situation, scarcity and suffering are not merely imposed: the society incurs them by its own decision or, at the least, society finally wills to accept them as ‘properly pertaining to the nature of things’ […].”). (CALABRESI; BOBBITT, 1978, p.

  1. (tradução nossa).

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trágica é notada pela sociedade, determinando periodicamente uma nova racionalização, uma nova institucionalização da violência, a qual, ao ser percebida como tal, determina uma nova crise, uma nova racionalização, e assim por diante 47. Os critérios alocativos, de acordo com os autores, são cir- cunstanciais e culturalmente definidos. Há vários critérios pos- síveis para a orientação moral de escolhas alocativas; a eficiên- cia pode ser um deles, todavia não é o único nem um critério suficiente. Os autores citam também a “honestidade” e a igual- dade (CALABRESI; BOBBITT, 1978, p. 23). Esse último critério interessa mais de perto, pela natureza do presente estudo. A igualdade e seu antagonista, a hierarquia, são critérios vantajosos pela ampla aceitação de que gozam nas sociedades, porém são ambíguos, possuem um caráter ambivalente, poden- do ser usados tanto para defender como para atacar escolhas alocativas (CALABRESI; BOBBITT, 1978). No exemplo das máquinas de diálise, um resultado não será percebido como trágico se a decisão de segunda ordem for ba- seada no prognóstico de sucesso, isto é, se o acesso for concedi- do àqueles em que ela funciona e negado nos casos em que ela não funciona. O critério significa tratar igualmente quem é rele- vantemente igual e discriminar aqueles grupos que são relevan- temente desiguais. O objetivo da discriminação, aqui, é obter o máximo de êxito com um número limitado de rins artificiais, não

47 “Se a decisão trágica é justificada por uma explicação que não implica con- flito moral, então a violência que se segue não dará margem à tragédia, por um tempo. Mas, a menos que a sociedade mude seus valores, a sequência deve ser repetida sempre que a explicação for intensamente questionada ou quando decisões tirando vida nova forem feitas”. (“If tragic decision is jus- tified by an explanation which does not implicate moral conflict, then the violence which follows will not give rise to tragedy – for a time. But unless the society changes its values, the sequence must be repeated whenever the explanation is intensely questioned or when fresh life-taking decisions are made.”). (CALABRESI; BOBBITT, 1978, p. 23) (tradução nossa).

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Muito do que se considera uma limitação ditada pela “escas- sez natural” está na verdade travestindo uma escolha prévia re- alizada pela sociedade. Escolha essa que, por vezes, a sociedade não deseja ou não pode assumir moralmente. A reflexão ética e jurídica sobre tais escolhas pode colaborar para aplainar as di- ficuldades enfrentadas por toda a sociedade para assumi-las si- multaneamente de forma racional e eticamente aceitável.

2 CONEXÕES ENTRE DIREITO E RACIONALIDADE ECONÔMICA

A assunção dos direitos fundamentais de segunda dimensão, dado o seu conteúdo de caráter marcadamente prestacional, fez emergir de uma forma mais explícita a percepção de que efetivar direitos implica alocar e consumir recursos materiais. Holmes e Sunstein, parafraseando Ronald Dworkin, alertam: “Levar os di- reitos a sério é levar a sério a escassez” 48. Se Dworkin (DWORKIN,

48 “taking rights seriously is taking scarcity seriously” (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 94) (tradução nossa).

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  1. enfatizou a ideia de que há que se dar consequência e con- teúdo àquilo que os direitos declaram formalmente, realizan- do o Direito para além da mera previsão formal normativa. Hol- mes e Sunstein buscam ressaltar a ideia de que realizar direitos no mundo dos fatos concretos acarreta a necessidade de prever meios e alocar os recursos materiais fundamentais para tanto. A maior contribuição, entretanto, da obra de Holmes e Suns- tein (2000) talvez tenha sido a percepção de que a necessidade de provimento de recursos materiais para a efetivação de direitos não corresponde unicamente aos direitos fundamentais sociais, ou di- reitos de segunda dimensão, senão que, pelo contrário, correspon- de também aos direitos de primeira dimensão, pois, para utilizar a expressão dos autores: “o cão de guarda precisa ser pago” 49. A tese defendida em “O custo dos direitos” é a de que todos os direitos são positivos na medida em que exigem determinadas prestações concretas por parte do Estado. Os autores buscam demonstrar que não faz sentido, sob a perspectiva dos custos incorridos, a distinção normalmente estabelecida entre direitos negativos, aqueles que impõem abstenções, e direitos positivos, aqueles que impõem ações, pois, no mínimo, fazer observar um direito exige uma atuação estatal, também nas palavras dos au- tores: “Direitos custam porque remédios custam” 50. Todo direi- to implica a necessidade de que sejam tutelados através da atu- ação estatal, das vias administrativa ou judicial.

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A teoria dos custos dos direitos de Holmes e Sunstein (2000) é dependente de uma inafastável associação entre Direito e Es- tado, pois para esses autores não há direitos sem a presença do Estado como garantidor. Ousa-se aqui, entretanto, estender tal

49 “the watchdog must be paid”. (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 77) (tradução nossa). 50 “Rights are costly because remedies are costly”. (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 43) (tradução nossa).

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RACIONALIDADE ECONÔMICA, ESCOLHAS TRÁGICAS E O CUSTO DOS DIREITOS NO ACESSO À SAÚDE

teoria, para abranger também os custos para além da necessi- dade de sua garantia pelo Estado. Na verdade, pode-se pres- supor que a mera observância de direitos, inclusive através de uma abstenção, independentemente do aparato estatal requeri- do para sua garantia, é suficiente para acarretar custos ao par- ticular com repercussões para toda a sociedade. Exercitar di- reitos, ou, por outro ângulo, observar direitos, implica, quando menos, o custo da oportunidade (e da liberdade) de agir de modo diverso ao preconizado pelo direito que está sendo observado. Ademais, como não é apenas contra o Estado que os direi- tos são exercitados, também não é somente a ele que os cus- tos dos direitos são imputados. Para exemplificar: tome-se uma empresa que se submeta às normas de controle ambiental na instalação ou no funcionamento de sua atividade. Ao obser- var, ainda que voluntariamente, e independentemente de qual- quer ação estatal, o direito de todos ao meio ambiente ecologi- camente equilibrado; ela estará incorrendo nos custos que essa observância pressupõe. Por exemplo, com medidas protetoras que, na ausência de percepção desse direito, não adotaria. Não é menos certo que um empresário repassará tais custos aos seus consumidores, o que fará com que os custos da observân- cia do direito findem distribuídos por toda a sociedade. Pode-se notar, no setor sanitário, raciocínio similar. O Estado ou o ente privado, observando uma obrigação fundada no direito à saú- de de primeira ou segunda dimensão, ao agir ou abster-se, incorrerá em custos. Não é menos evidente, a propósito, que a obrigação impos- ta ao Estado irá onerar o orçamento fiscal do governo. Já a obrigação imposta ao ente privado, terminará refletindo no preço de seus pro- dutos e serviços. Isso significa em um e outro caso que o ônus da im- plementação do direito acabará repercutindo por toda a sociedade 51.

51 Ao se fazer aqui menção a uma “repercussão” de custos na sociedade, cons- tata-se um fato e não se pretende emitir qualquer julgamento sobre o valor

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Outra conclusão a que chegam os autores de “O custo dos direitos”, a qual de forma particular se afina com o escopo desta pesquisa no sentido de aproximar os discursos liberal e social, é a do caráter público das liberdades privadas:

Os direitos dos norte-americanos não são nem dons divi- nos, nem frutos da natureza; não são autoexecutáveis e não pode ser consistentemente protegido se o governo é insolvente ou incapacitado; não precisam constituir-se em uma receita para o egoísmo irresponsável; não implicam que indivíduos possam assegurar sua liberdade pessoal independentemente da cooperação social e não se consti- tuem em pretensões inegociáveis 53.

Dessa forma, os autores, reconhecendo o caráter público de qualquer liberdade privada, estabelecem também o necessário

52 “By their nature, in sum, rights impose responsabilities, just as responsabili- ties give birth to rights. To protect rights, a responsible state must responsi- bly expend resources collected from responsible citizens. Instead of lament- ing a fictional sacrifice of responsabilities to rights, one should ask wich concrete package of complementary rights and responsabilities is likely to confer the most benefits on the society that funds them” (HOLMES; SUN- STEIN, 2000, p. 171) (tradução nossa). 53 “The rights of Americans are neither divine gifts nor fruits of nature; they are not self-enforcing and cannot be reliably protected when government is insolvent or incapacitated; they need not be a recipe for irresponsible ego- ism; they do not imply that individuals can secure personal freedom without social cooperation; and they are not uncompromisable claims.” (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 220) (tradução nossa).

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compromisso entre liberdades civis e colaboração (ou solidarie- dade) social. O que se quer enfatizar, com base na ideia de Holmes e Suns- tein (2000), é que, em um sentido, implementar direitos signifi- ca alocar recursos. Mas, em sentido contrário, alocar recursos também significa eleger os direitos que serão privilegiados e os que serão preteridos. Essas decisões dizem respeito à concepção de justiça de uma sociedade e, portanto, devem ser nela ampla- mente debatidas, em todos os fóruns disponíveis para tanto, in- clusive o Judiciário.

3 A REPERCUSSÃO NO BRASIL DO TEMA DA RACIONALIDADE

ECONÔMICA DOS DIREITOS

Gustavo Amaral, assimilando a doutrina de Holmes e Suns- tein, aplica-a ao contexto brasileiro, segundo o panorama pin- tado pelo próprio autor, em que a “insinceridade normativa”,

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referida por Barroso, e a “constituição semântica”, da classifi- cação de Karl Lowenstein, com enunciados que não são “para valer”, davam lugar a uma “interpretação engajada”, a qual buscava ser realizadora dos direitos declarados na Constitui- ção, mas demandava por reconhecer limites que preservassem a Constituição da pretensão de dar eficácia a normas que pre- tendam o infactível (AMARAL, 2001, p. 17-18). Nesse contexto, à promulgação de uma Constituição com- promissária e ao ressurgimento da sociedade civil, seguiu-se o descrédito dos governos posteriores a 1988, marcados pelo des- controle econômico e pelos escândalos de corrupção, fazendo aparecer um crescente ativismo judicial, favorecido ainda pela

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doutrina da aplicação direta das normas constitucionais, sem condicioná-las ao legislador infraconstitucional 54. Nesse panorama, a questão da saúde ganhou repercussão com a proliferação de ações e de provimentos jurisdicionais relacionados ao direito à saúde. O autor analisa duas decisões judiciais, uma do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC) e uma do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que versam so- bre o mesmo pleito dirigido contra o Estado: o custeio de tratamen- to experimental para criança com distrofia muscular progressiva de Duchenne, identificando três posições distintas nas referidas deci- sões: 1) o direito à saúde é incontrastável e absoluto; 2) o direito à saúde limitar-se-ia à necessidade de o Estado desenvolver políticas públicas de saúde; 3) o direito à saúde é ditado por políticas públi- cas destinadas a gerenciar recursos escassos, sendo juridicamente impossível ao Judiciário imiscuir-se na questão (AMARAL, 2001); e aponta para o fato de que uma questão não enfrentada pelo Judici- ário era a confrontação da microjustiça, ou justiça do caso concreto posto à apreciação do judiciário, com a macrojustiça, ou a possibili- dade de estender tal provimento a todos os que estão ou possam vir a estar na mesma situação, ainda que não estejam com seus casos colocados sob a apreciação do judiciário (AMARAL, 2001). Para responder a esses questionamentos, ao longo da obra referida, Gustavo Amaral (2001) analisa o conteúdo da expres- são “direito”, sua exigibilidade, a distinção entre direito e preten- são, a teoria da colisão de direitos fundamentais, algumas teo- rias da justiça distributiva, o problema da alocação de recursos

54 Nas palavras do autor, nesse contexto: “Quem ocupa o cenário como cam- peão da cidadania é o Poder Judiciário, não por sua cúpula, mas por suas bases, que paulatinamente fizeram tábula rasa do bloqueio de recursos, dos expurgos das aplicações financeiras. Somou-se também a isso o ativismo do Ministério Público, que na percepção comum é visto como ligado ‘à justiça’ originando a sobrevalorização dos meios não judiciais de controle e subva- lorização dos meios não judiciais, como a opinião pública, as manifestações populares e, principalmente, o voto” (AMARAL, 2001, p. 21-22).

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único que permitisse apreciar cada caso concreto. Ante a di- mensão dos conflitos e seus reflexos, não caberia ao Judiciário fazer o controle fato-norma, mas sim controlar as escolhas fei- tas pelos demais poderes. Propõe então a seguinte fórmula para atuação do judiciário:

O Judiciário, ao apreciar demandas individuais ou coletivas relativas a pretensões positivas, deve ponderar o grau de es- sencialidade da pretensão, em função do mínimo existencial e a excepcionalidade da situação, que possa justificar a de- cisão alocativa tomada pelo Estado que tenha resultado no não atendimento da pretensão (AMARAL, 2001, p. 228).

Em parte, trata-se de critério de inegável importância para solucionar conflitos entre interesses individuais e interesses pú- blicos ou coletivos. A essencialidade da pretensão e a excepcio- nalidade da situação, a par de outros requisitos, como o da eco- nomicidade no provimento da demanda, devem constituir-se em pressupostos de qualquer decisão administrativa ou judicial. Por outro lado, percebe-se que o autor, acolhendo a tese da necessária intermediação do Legislativo e do Executivo para fins de concreção dos direitos fundamentais sociais que determinam pretensões positivas, adota uma posição restritiva em relação às possibilidades de pronunciamento judicial em face das decisões alocativas do Estado-administrador. Entende-se também artificial a distinção entre pretensões positivas e negativas propostas pelo autor, que no fundo nulifica seu ponto de partida na tese de Holmes e Sunstein. Outro aspecto da discussão, vincula-se à admissão da tu- tela individual de direitos fundamentais sociais. Não ocorre a

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quaisquer dos autores estudados restringir a tutela pelo Esta- do do direito individual de propriedade 56. Mas se esse direito é tão positivo e tão público quanto os direitos sociais, conforme defendido pelo autor, então por que a tutela individual estaria desimpedida no primeiro caso e interdita no segundo? Compreende-se que qualquer tentativa de distinguir logica- mente, quanto à exigibilidade, os direitos fundamentais de pri- meira dimensão dos de segunda dimensão resultaria insub- sistente perante a teoria da positividade de todos os direitos. Diferenças culturais justificariam com mais propriedade tal dis- tinção, haja vista que algumas sociedades privilegiam a proteção de uns direitos em relação a outros, conferindo a uma categoria de direitos a possibilidade de que sua tutela se dê concretamen- te e no plano individual, negando-a a outra categoria. No campo sanitário, é de fundamental importância a partici- pação da comunidade envolvida na definição do próprio conceito

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de saúde e por consequência na definição do que seja uma ade- quada atenção à saúde. Decorre então a relevância da participa- ção da comunidade nas decisões atinentes às escolhas alocati- vas correspondentes.

56 “David Hume, the Scottish philosopher, liked to point out that private prop- erty is a monopoly granted and maintained by public authority at the pub- lic's expense. […] In drawing attention to the relation between property and law – which is to say, between property and government – Bentham was making the very same point. The private sphere of property relations takes its present form thanks to the political organization of society. Private prop- erty depends for its very existence on the quality of public institutions and on state action, including credible threats of prosecution and civil action.” (“David Hume, o filósofo escocês, apreciava apontar que a propriedade priva- da é um monopólio garantido e mantido pela autoridade pública à custa do dispêndio público. Dirigindo sua atenção à relação entre propriedade e lei – o que implica dizer entre propriedade e governo – Bentham apontava o mesmo fato. A esfera privada das relações de propriedade assume sua forma presen- te graças à organização política da sociedade. A existência da propriedade privada depende da qualidade das instituições públicas e da ação estatal, incluindo ameaças confiáveis de persecução e ação civil.”). (HOLMES; SUNS- TEIN, 2000, p. 61) (tradução nossa).

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É esta decisão que deve ser respeitada pela própria socie- dade e pelo Estado em quaisquer de suas funções, legislativa, executiva ou judiciária. Dada mesmo a importância dessas de- cisões, nenhum fórum de sua apreciação deve ser excluído por meio de raciocínios apriorísticos. A posição neste trabalho assumida é a de que a questão funda- mental a ser resolvida não se refere ao lócus das decisões alocativas, e sim a sua natureza. Compreende-se existir, de fato, ao se tratar da alocação de recursos escassos, uma potencial colisão fundamental entre direitos favorecidos e preteridos na alocação. Há também um ponto relevante da questão na contraposição entre interesse ou direito individual e interesse ou direito coleti- vo. O critério fundamental da equidade pode e deve ser utilizado em vários momentos das decisões alocativas, por exemplo, ao se eleger dada trajetória tecnológica a ser institucionalmente ado- tada ou ao se eleger determinada política pública para receber maior ou menor aporte de recursos. O Brasil adotou, na Constituição de 1988, os princípios da universalidade e equidade no acesso. Só se entende justificada a restrição ao acesso individual às prestações positivas no cam- po da saúde se se puder contrapô-la de forma cabal, concreta e definitiva à igualdade no acesso desses recursos, segundo uma prudente ponderação dos direitos fundamentais envolvidos. Fri- sam-se as expressões “cabal”, “concreta” e “definitiva” para ex- tremá-las de situações hipotéticas, abstratas e transitórias que possam ser arguidas perante as pretensões concretas. Trata-se de critério que não pode ser afastado da aprecia- ção judicial 57. O Judiciário, como instituição democrática, há

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dos legítimos instrumentos democráticos. Também Flávio Galdino, em obra já referida, trata do tema dos custos dos direitos visando oferecer uma releitura das no- ções em torno dos direitos fundamentais. Com base na conside- ração de que todos os direitos públicos subjetivos são positivos (GALDINO, 2005), propõe, por meio da análise econômica, uma teoria pragmática do Direito (GALDINO, 2005, p. 331 e et seq.). Galdino (2005) repele, divergindo de Amaral (2001) neste ponto, qualquer distinção entre pretensão positiva e negativa, assumindo em sua integralidade a tese de Holmes e Sunstein sobre a positividade de todos os direitos fundamentais, inte- grando todos, por via de consequência, ao rol de direitos dados às escolhas públicas 58 , como o consectário lógico de que, ao se considerar a escassez de recursos, não apenas direitos sociais podem ser sacrificados em face de direitos individuais, mas tam- bém vice-versa, direitos individuais podem ser sacrificados em face de direitos sociais. Por um lado, alerta Galdino que ignorar custos a pretexto da existência de direitos absolutos não apenas cria expectativas ir- realizáveis como promove a irresponsabilidade e mesmo o abu- so dos direitos (GALDINO, 2005). Por outro, enfatiza a necessi- dade de que se concebam os custos não como um óbice, externo aos direitos, mas como um pressuposto, interno a estes, repelin- do a ideia da invocação da exaustão orçamentária para afastar a implementação de direitos fundamentais, quando na realida- de o que a afasta é a opção política sobre gastar ou não recur- sos públicos na implantação deste ou daquele direito fundamen- tal (GALDINO, 2005).

58 “Na medida em que tal direito, e seus congêneres tidos habitualmente como negativos ou de defesa, dependem tanto das prestações estatais positivas como todos os outros direitos sociais, não há que pensar estejam eles fora do rol das escolhas sociais” (GALDINO, 2005, p. 228).

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A proposta de Galdino, na esteira da doutrina de Holmes e Sunstein, é a de que os custos devam “integrar previamente a pró- pria concepção do direito (subjetivo) fundamental, isto é, os custos devem ser trazidos para dentro do respectivo conceito” (GALDINO, 2005, p. 235), propondo assim um conceito pragmático de direi- to subjetivo fundamental. Reconhece, entretanto, que a questão é complexa e demandaria maior atenção por parte dos estudiosos. Entende-se que o risco principal nesta concepção é idêntico ao risco da concepção de custos como um óbice externo e con- siste na possibilidade de raciocínios apriorísticos tentarem afas- tar a consideração de certos direitos, fundados na impossibilida- de fática de aportes dos recursos necessários à implementação.

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Um raciocínio apriorístico fatalmente vai ignorar o fato de quea definição e realização de direitos é um arranjo em permanen- te construção e reconstrução, fruto do dinamismo das escolhas sociais, quer as expressas, conscientes ou assumidas como tal, quer as veladas ou mascaradas como “escolhas naturais”. Galdino (2005) procura manter-se em posição equidistante en- tre duas posições extremas: a subordinação do Direito à análise econômica e a separação total entre a análise econômica e o Direi- to, ou, mais amplamente, as questões morais ou ético-sociais, con- cebendo, como é razoável conceber, que Economia e Direito são dois mecanismos da organização social (GALDINO, 2005). Isolada- mente ambos são limitados para a consecução desse fim. O homem ou a sociedade não podem ser reduzidos nem a objetivos como o de maximização de riqueza e bem-estar nem podem prescindir desses elementos para a consecução de outros objetivos. Com suporte em Amartya Sen 59 , que analisa dois enfoques

59 Na obra “Sobre ética e economia”, Sen defende uma (re)aproximação entre ética e economia, pois identifica a ética e a engenharia como os dois campos que inspiram a origem da Ciência Econômica. Uma forma de promover a reaproximação, segundo o autor, seria a introdução da discussão e estudo

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para a economia, o purista, que tenta abstrair valores éticos, morais ou de qualquer outra índole na análise econômica, e o ético, o qual inclui estas variáveis na análise econômica, Galdi- no também propõe a reaproximação entre ética e economia, de forma que não apenas a economia se sirva de racionalidades li- gadas ao campo moral e ético, mas também as ciências morais e jurídicas se sirvam da racionalidade e da análise econômica (GALDINO, 2005). Assim, a proposta de Galdino é de que o Direito seja um ca- nal para as relações entre ética e economia, indicando três fato- res que concorrem em favor desse papel:

1 ) [...] o Direito possui um modelo de análise orientado a va- lores, isto é, o Direito é fundamentalmente devotado a consi- derações éticas; 2) as análises jurídicas dirigem-se também, em boa medida, ao combate da escassez, através de variadas técnicas de (re)distribuições da riqueza e alocação de direitos e recursos; 3) os conceitos jurídicos, bem trabalhados, admi- tem sejam incluídos nas operações e ponderações os profícu- os resultados das análises econômicas (2005, p. 251-252).

Dessa forma, a análise econômica do Direito poderia ser ope- racionalizada em um meio-termo entre a preocupação exclusiva com critérios de eficiência, equívoco dos economistas, e a preocu- pação exclusiva com critérios abstratos e muitas vezes irreais de justiça, equívoco dos juristas, para agregar condições econômicas e considerações éticas, maximizando a eficiência das instituições