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Quem eram os gregos: A formação da identidade grega, Notas de estudo de Arqueologia

Este texto discute a origem e evolução da identidade grega, baseada na obra de john myres. Myres argumenta que os gregos não surgiram de forma pura, mas resultaram de uma mistura de diferentes culturas e imigrações. O texto aborda as teorias de myres sobre a estrutura tripartite dos mitos e religião indo-europeia, a presença de grupos étnicos como dórios e jônios, e a importância dos jogos olímpicos na formação da identidade grega.

O que você vai aprender

  • Quais teorias Myres apresentou sobre a estrutura tripartite dos mitos e da religião indo-europeia?
  • Quais outras obras históricas discutem a definição de helenidade mais voltada para o lado cultural?
  • Quais evidências históricas sugerem que os gregos estavam sempre em processo de se tornarem gregos?
  • Como os jogos Olímpicos contribuíram para a formação da identidade grega?
  • Quais grupos étnicos existiam na Grécia antes do século VI a.C.?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Romar_88 🇧🇷

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Rev. do Mus eu d e Ar que olo gia e Et nolo gia , S ão P aulo, 11: 2 13- 225 , 2 001.
QUEM ERAM OS GREGOS*
Jon athan Mark Hall**
HAL L, J. Quem er am os gre gos. Rev. do Mus eu de Ar queo logia e Etno logia . São
Pau lo, 11: 21 3-2 25 , 20 01.
RESUM O: Partindo do princípio de que o conceito de etnicidade envolve a
percepção interna que cada membro de um grupo tem de si e do grupo ao qual
pertence e não necessariamente o que os outros pensam do grupo; e que um
grupo étnico define-se não pela soma de diferenças objetivamente obser
váveis mas por apenas aquelas diferenças que os membros do grupo, eles
próprios, percebem como diferenças significantes, Jonathan Hall, neste artigo,
prete nde mostra r por quais caminhos os gregos antigos construíram a sua
própria identidade. O papel desempenhado por Heródoto nesta construção é
destacado pelo Autor.
UNITERMO S: Etnicidade grega - Identidade cultural - Heródoto -
Jônios - Dórios.
Estamos tão acostumados hoje em dia a
enxergar a Grécia antiga como o berço da
civilizaçã o Ocidental que, freq üentemente,
esquecem os como essa apropriação de um
ancestral cultu ral - p or vezes relutante - é
recente. Ap rendem os que os gregos criaram as
bases política s, artísticas , culturais, educacio
nais filosóficas e científicas em que se funda
menta a cultura ocidental. Como Paul Cartledge
(*) Pa lestra prof erida no D epar tame nto d e His tória
da FFL CH/US P, no d ia 19 de jun ho de 2 001 . Tradu
ção de M aria Be atriz Borba F loren zano.
(* *) Pro fesso r de Histó ria A nti ga do Depa rtam ento
de H istória da Univ ersida de de Ch icago - EUA .
Pr ofes sor v isita nte do P rograma de P ós-gr adua ção
em Arqu eolo gia do M AE /USP durante o m ês de junho
de 2 001 . A grad ecem os à FA PESP a o portuni dade da
esta da d este prof essor entre n ós e o ince ntiv o para a
pu blic ação dest a pales tra.
- historiador da Antigüidade na Universida de
de Cambridge - nota: Não provoca surpresa o
fato de que durante o século XIX e a primeira
parte do XX, europeus e americanos educad os
em uma tradição clássica achavam absoluta
mente natural cantar A glória que foi a
Grécia’, como o fez Edgar Alian Poe em sua
Ode a Helena . Em sua visita atribulada a
Atenas em novembro de 1999, o ex-presidente
Clinton modificou o famoso aforismo de Percy
Shelley ao proclamar : Somos todos gregos
não por causa dos monumentos e das memóri
as, mas porque o que começou aqui há dois mil
e quinhentos anos acabou por abraçar, depois
de todas as lutas sangrentas do século XX, o
mundo todo. Mas, afinal, quem foram os
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setenta e cinco anos por Sir John Linton
Myres em uma conferência sua da o presti-
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Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 11: 213-225, 2001.

QUEM ERAM OS GREGOS*

Jonathan Mark Hall**

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

RESUMO: Partindo do princípio de que o conceito de etnicidade envolve a percepção interna que cada membro de um grupo tem de si e do grupo ao qual pertence e não necessariamente o que os outros pensam do grupo; e que um grupo étnico define-se não pela soma de diferenças objetivamente obser váveis mas por apenas aquelas diferenças que os membros do grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes, Jonathan Hall, neste artigo, pretende mostrar por quais caminhos os gregos antigos construíram a sua própria identidade. O papel desempenhado por Heródoto nesta construção é destacado pelo Autor.

UNITERMOS: Etnicidade grega - Identidade cultural - Heródoto - Jônios - Dórios.

Estamos tão acostumados hoje em dia a enxergar a Grécia antiga como o berço da civilização Ocidental que, freqüentemente, esquecemos como essa apropriação de um ancestral cultural - por vezes relutante - é recente. Aprendemos que os gregos criaram as bases políticas, artísticas, culturais, educacio nais filosóficas e científicas em que se funda menta a cultura ocidental. Como Paul Cartledge

() Palestra proferida no Departamento de História da FFLCH/USP, no dia 19 de junho de 2001. Tradu ção de Maria Beatriz Borba Florenzano. () P rofessor de História Antiga do Departamento de História da Universidade de Chicago - EUA. Professor visitante do Programa de Pós-graduação em Arqueologia do M AE/USP durante o mês de junho de 2001. Agradecem os à FAPESP a oportunidade da estada deste professor entre nós e o incentivo para a publicação desta palestra.*

  • historiador da Antigüidade na Universidade de Cambridge - nota: “Não provoca surpresa o fato de que durante o século XIX e a primeira parte do XX, europeus e americanos educados em uma tradição clássica achavam absoluta mente natural cantar ‘A glória que foi a Grécia’, como o fez Edgar Alian Poe em sua Ode a Helena ”. Em sua visita atribulada a Atenas em novembro de 1999, o ex-presidente Clinton modificou o famoso aforismo de Percy Shelley ao proclamar : “Somos todos gregos não por causa dos monumentos e das memóri as, mas porque o que começou aqui há dois mil e quinhentos anos acabou por abraçar, depois de todas as lutas sangrentas do século XX, o mundo todo.” Mas, afinal, quem foram os gregos? Esta questão foi colocada há quase setenta e cinco anos por Sir John Linton Myres em uma conferência sua da tão presti-

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

giosa série Sather Lectures da Universidade da Califórnia em Berkeley, na primavera de

  1. Designado o primeiro Wykeham profes sor de História Grega da Universidade de Oxford em 1910, Myres não era um historiador de gabinete. Com efeito, por sugestão de Sir Arthur Evans, filiou-se em 1893 à British School o f Archaeology em Atenas e no ano seguinte iniciou uma escavação em Chipre. Durante a primeira guerra mundial, foi despa chado pela British Admiralty à Dodecanese onde suas incursões militares na costa da Anatólia valeram-lhe o apelido de ‘O Barba- negra do Egeu’ e, eventualmente, o comando em chefe da Inteligência Britânica em Atenas. Afora os seus interesses arqueológicos (Myres publicara a coleção de antigüidades do Museu Cipriota e a coleção Cesnola do Metropolitan Museum o f Art) Myres era igualmente fascinado por Geografia Histórica e por Antropologia, campos em que, com freqüência, reconhecia sua dívida intelectual ao classicista e antropólogo de Cambridge, Sir James Frazer. No início de suas conferências, que foram publicadas em 1930, Myres - como muitos estudiosos da História grega antes e depois dele - debruçou-se sobre uma das poucas definições de helenidade que os gregos nos deixaram. O historiador Heródoto relata que na primavera de 479 a.C. - depois de que os gregos puseram em fuga a marinha persa em Salamina mas antes de sua vitória final em Platéia - circularam rumores que os atenienses estavam considerando a possibilidade de abandonar a aliança grega e de passar para o lado dos persas. Heródoto conta que em uma tentativa de acalmar o ruído, os atenienses negaram que tivessem qualquer intenção de concluir um trato com o inimigo e ofereceram duas razões para isso. Em primeiro lugar, tinham sido forçados a procurar a vingança contra aqueles que haviam destruído suas estátuas e seus templos. Em segundo lugar, tratava-se de uma questão de helenidade - ‘isto é, nosso sangue comum, nossa língua comum, nossos lugares comuns de culto e de sacrifícios e outros costumes similares’. Diferentemente de outros historiadores, Myres questionava a veracidade histórica desta definição tão direta de helenidade em termos

de descendência, linguagem, religião e costu mes. Os classicistas, ele argumentava, aceita ram rapidamente a definição, porque “os testes propostos por Heródoto são aqueles aceitos pela moderna antropologia”, mas, de fato, para Myres, toda a documentação disponível sugeria que os gregos não eram uma popula ção única, homogênea, mas sim um povo todo misturado de origens muito disparatadas. De uma perspectiva moderna, um dos aspectos mais surpreendentes da tese de Myres é a sua fundamentação nos princípios da pseudo-ciência hoje completamente desacreditada, a crâniometria. Partindo da caracterização da paisagem grega, com suas pequenas e fragmentadas planícies costeiras e com sua dependência na comunicação maríti ma (o que implica em uma necessidade e também em uma facilidade para o movimento populacional), Myres argumentava que a Grécia tinha sido habitada, desde a Idade do Bronze, por uma população mista. Esta teria tido como origem os tipos mediterrânicos de cabeça alongada associados às costas meridi onais do Mediterrâneo do Marrocos à Pérsia e os tipos alpinos-armenóides de cabeça larga, principalmente distribuídos por todo o cintu rão montanhoso que vai dos Alpes ao Hindu- Kush. Com o passar do tempo, o elemento alpino-armenóide teria aumentado nesta mistura, mas não antes de ter ocorrido uma infiltração dos tipos de cabeças alongadas provenientes do norte, de além do cinturão das montanhas centrais da Europa, os quais teriam se misturado aos tipos alpinos-arme nóides. Esta diversidade física poderia ser identificada em outros tipos de evidências como a mistura de elementos indo-europeus e não indo-europeus no idioma grego, a fusão entre as divindades olímpicas ‘loiras’ com as divindades da natureza mais morenas, freqüen temente femininas. E, ainda, na interpenetração de diferentes tipos de cultura material tal como a que Myres chamava de cultura cretense neolítica da cestaria a qual ele, em última análise, fazia derivar da África do Norte ou como a cultura de vasilhame vermelho (red ware) da antiga Idade do Bronze das Cíclades e da Ásia Menor ou ainda como a cultura do vasilhame pintado (painted-ware culture) própria da Tessália, representada principal

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

dentro do grupo. Com efeito, considera-se um princípio cardinal do pensamento antropológi co desde pelo menos os anos 1960, que o conceito de etnicidade envolve muito mais a percepção interna de cada membro de um grupo. O grupo étnico é, assim, definido não pela soma de diferenças objetivamente obser váveis mas por apenas aquelas diferenças que os membros do grupo, eles próprios, percebem como diferenças significantes. E esta idéia não é uma invenção da era pós ‘melting pot’: já em 1912, o grande sociólogo alemão Max Weber definira os grupos étnicos como ‘os grupos humanos que mantêm uma crença subjetiva em sua descendência comum .... sem importar se uma relação objetiva de sangue existe ou não”. Assim, minha preocupação hoje, não é com o que nós pensamos que os gregos eram mas com o que eles pensavam que eram. Ao mesmo tempo que concordo com a conclusão de Myres de que os gregos estavam ‘sempre no processo de vir a ser’ eu proponho que este processo não havia sido concluído antes do período clássico e que os critérios em que os gregos fundamentavam sua auto-identificação transformaram-se de acordo com a época. Aparentemente, há poucos grupos étnicos através da História que não tenham expressado sua auto-consciência comum por meio de um nome coletivo. A razão disto não é difícil de determinar. A etnicidade depende de catego- rização, ou seja, da habilidade em dividir o mundo entre ‘nós’ e ‘eles’. E a categorização é muito melhor operacionalizada quando há nomes. É, portanto, surpreendente que os nomes que os gregos utilizaram para designa- rem-se a si mesmos - Helenos - e a terra que habitavam - Helas - aparecem relativamente tarde nas fontes textuais. As nossas mais antigas obras sobreviventes são provavelmente os poemas épicos homéricos: a Ilíada que se acredita tenha adquirido mais ou menos a forma que conhecemos hoje ao final do século VIII a.C. ou talvez no transcorrer do início do século VII a.C. e a Odisséia cuja composição é prova velmente de uma geração mais tarde. Nos dois poemas os gregos que sitiam a cidade de Tróia são coletivamente denominados aqueus, argivos, dânaos - aparentemente de modo intercambiável - mas não helenos. E sua terra de origem é referida não como Helas mas como

Argos ou Acaia. O nome Helas é encontrado na Ilíada, mas a área à qual este nome se refere é extremamente limitada. No livro IX, o velho Fênix relembra as proezas de sua juventude e reconta como havia fugido da casa de seus pais em Helas e havia se dirigido para a corte do rei Peleu na vizinha Ftiótida. Esta e outras passa gens tomam claro que Helas aqui define uma área relativamente pequena, ao redor do vale do rio Espérquio na Grécia central (Fig. 1). Na Odisséia, entretanto, Helas parece ter sido imaginada como uma área já muito maior. Menelau deplora o destino do filho de Ulisses, Telêmaco, enquanto este viaja ‘através da Hélade e do coração das terras argivas’. Enquanto isso, Penélope orgulha-se que a fama de seu marido, Ulisses, espalha-se também ‘através da Hélade e do coração das terras argivas’. Mas o destino de Telêmaco não seria tão terrível se ele tivesse tido intenção de visitar somente o vale do Espérquio e a cidade de Argos. Da mesma forma, o elogio de Penélope, se tomado no sentido literal, poderia ser uma forma de gabar-se da reputação do marido. Ao contrário, parece claro que esta fórmula foi empregada para abranger a Grécia em geral, onde Hélade é a Grécia central, ao norte do istmo de Corinto e o coração das terras argivas é o Peloponeso, uso atestado ainda muito posteriormente em Demóstenes e em Plínio, o Velho (Fig. 2). Uma ampliação da abrangência geográfica de ‘Helas’ aparece ao final do século VII a.C. quando o poeta espartano Alemão descreve o troiano Paris como ‘um mal para Helas, produtora de homens’. Mas, mesmo então, outros fragmentos poéticos do período sugerem que Helas pode ter indicado apenas uma porção principal da Grécia, com exclusão de muitas das ilhas do Egeu (Fig. 3). Teremos que esperar pela poesia de Xenófanes em meados do século VI a.C., para encontrar o primeiro emprego do termo Helas significando sem ambigüidades o que chamaríamos de Grécia

  • ou então para ser mais precisos - o Mundo grego. Encontraremos o mesmo padrão com relação ao termo ‘helenos’ que não é empregado para designar os gregos em um sentido abran gente e coletivo antes do século VI a.C.. Na poesia pós-homérica mais antiga, os gregos são chamados de pan-helenos; termo que implica em pluralidade muito mais do que em unidade.

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ou dórios. Isto, por sua vez, sugeriria que a genealogia apresentada no Catálogo de Mulheres constitui o produto final de um processo gradual por meio do qual populações originalmente independentes procuraram estabelecer laços étnicos entre si acrescentan do os nomes de seus ancestrais à mesma árvore familiar e eventualmente traçando uma descendência comum até Heleno. A identidade helénica foi construída de forma agregativa por meio da percepção de similaridades com grupos de pares. As evidências fragmentárias que possuí mos a respeito deste período provavelmente nunca revelarão com qualquer certeza os motivos e os agentes que estiveram por trás da criação da auto-consciência grega no século VI a.C., mas os tessálios do centro- oeste da Grécia são sem dúvida os suspeitos mais óbvios. Em primeiro lugar, a tradição derivava a descendência de Heleno do herói tessálio Deucalião. Em segundo lugar, os tessálios que se viam como eólios originais podiam derivar sua própria descendência do filho mais velho de Heleno. Os tessálios tinham desde o século VII a.C. sido o poder dominante no Conselho que administrava o

santuário oracular de Apoio em Delfos. Além disso, pode não ser acidental que as elites tessálias começaram a obter muitas vitórias nos Jogos Olímpicos em tomo da metade do século VI a.C.. No início do século V a.C ./a• participação nos jogos Olímpicos estava » restrita àqueles que podiam alegar descendên cia helénica e é, portanto, totalmente possível que foi na órbita trans-regional dos jogos que a identidade helénica surgiu, na medida em que as elites dórias, jônias e aquéias começa ram a forjar relações de parentesco fictícias com os eólios da Tessália. Este tipo de registro agregativo, não podia ser nunca inteiramente inclusivo: a associação em um clube apenas assume significância e kudos se para outros a entrada for negada. Uma outra razão para suspeitar o envolvimento dos tessálios é que alguns de seus vizinhos - como, por exemplo, os parrásios e os magnésios que parecem ter tido um relacionamento de dependência com relação aos tessálios - não eram considerados helenos porque seus ancestrais epônimos não estavam em uma linha direta de descendência de Heleno e, de fato, não há nenhum registro de vencedor nos Jogos Olímpicos nesse período que fosse parrásio ou magnésio (Fig. 4). Há,

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entretanto, outros grupos que hoje considera ríamos como gregos, aos quais não se atribuía

  • no século VI a.C. - uma descendência helénica, entre eles, os etólios da Grécia ocidental e os arcádios do Peloponeso central. Mais recentemente, os especialistas têm sugerido com freqüência que um sentimento de auto-consciência verdadeira, de helenidade, surgiu apenas depois da invasão dos persas e a sua derrota na Grécia nos anos 480-479. A evidência examinada até o momento parece refutar esta hipótese. Muitos gregos, ainda que nem todos, procuraram uma unidade comum em termos de parentesco compartilha do, pelo menos duas gerações antes da invasão dos persas. Entretanto, é verdade que a invasão persa teve um efeito na forma como os gregos se enxergavam. Tendo incorporado as cidades gregas da Ásia Menor em seu Império em meados do século VI a.C., no início do V a.C., os persas voltaram a sua atenção para a Grécia. O golpe na Ática, em 490 a.C., foi revertido por Atenas na Planície de Maratona, mas em apenas seis anos o Rei persa Xerxes já estava realizando preparativos para uma invasão em larga escala da Grécia tanto por terra quanto por mar. Conquistando a Trácia aos poucos e em seguida a Macedônia, Xerxes chegou à Tessália em 480 a.C.; depois de superar a resistência espartana no desfiladeiro das Termopilas, avançou para capturar a própria Atenas a qual os atenienses haviam optado por abandonar. O esforço de defesa, estruturado por uma coalizão de apenas uma meia dúzia de cidades sob a liderança de Esparta, ofereceu pouca esperança ou qual quer otimismo. Entretanto, a habilidade em escolher as táticas a serem empregadas e uma boa dose de sorte permitiram que a marinha grega obtivesse uma vitória decisiva sobre os persas em Salamina e, na primavera seguinte, as forças gregas venceram o enorme exército persa em Platéia. A libertação da ameaça de invasão persa parece ter desencadeado uma atitude completamente nova dos gregos em relação ao Oriente. Nos século VII e VI a.C., o Oriente era um objeto de fascinação exótica para os gregos, ou pelo menos nas elites gregas, mas a invasão persa e a ascensão concomitante da democracia em várias cidades gregas - prática que servia à marginalização de

muitas das práticas das elites - gerou uma visão negativa dessa região. A palavra ‘bárbaros’ - tanto o adjetivo quanto o subs tantivo - registrada apenas ocasionalmente antes da invasão, entra agora no uso comum para designar não apenas os persas mas todos os outros grupos de não-gregos, sem qualquer diferenciação. Na tragédia e na comédia grega, os personagens bárbaros assumem um papel mais central e são em geral representados como cruéis, sem moderação, covardes, servis e afeminados. Na Ática, os pintores de vasos também mostram uma nova fascinação em pintar guerrei ros bárbaros, e adaptam esquemas iconográficos anteriormente empregados para representar grupos não gregos como as Amazonas, adicio nando traços característicos gregos. Diante dos estereótipos no teatro e nas artes, os gregos começam a especular mais a respeito de sua própria identidade. Começam a perguntar-se o que, afinal, torna os bárbaros tão estranhos. O que quero dizer é que se a identidade grega foi construída de forma agregativa por meio das similaridades entre grupos de pares, ela era agora definida em termos das diferenças percebidas e em oposi ção a grupos externos de bárbaros. Esta mudança no mecanismo definidor da auto- consciência grega permitiu uma maior inclusão que agora podia abranger grupos como os arcádios ou os etólios, mas também requeria que a especificidade grega fosse imaginada em termos mais concretos que uma simples afinidade genealógica. Diferentemente dos autores de peças, seus contemporâneos, Heródoto não tinha idéias negativas em relação aos não-gregos - muito mais tarde, o próprio Plutarco viria a acusá-lo de ser amigo dos bárbaros - ao contrário, suas Histórias são muito mais do que uma simples narrativa a respeito das causas e dos eventos ligados à invasão persa. Na verdade, é possí vel afirmar que esta obra é uma meditação a respeito da natureza da própria identidade grega e por isso talvez valha a pena retomar à definição de identidade grega que Heródoto coloca na boca dos atenienses e com a qual dei início a esta palestra. Esta definição que tem quatro aspectos - descendência, língua, religião e costumes - é ainda aceita como a

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11. 213-225, 2001.

pequeno santuário próximo ao famoso teatro da cidade, aparenta ter um aspecto marcial muito diferente da deusa sensual cultuada pelas cortesãs de Corinto. Com efeito, Heródoto não faz qualquer menção em sua definição de helenidade às crenças comuns, apenas aos santuários e aos sacrifícios, mas aqui também a comunhão grega de culto não pode ter sido totalmente evidente. Os Mistérios eleusínios eram supostamente restritos àqueles que podiam entender a língua grega (o que poderia incluir os que falassem o grego correntemente, mas que de fato nem eram gregos) e a partici pação nos jogos olímpicos era, como já mencionamos, limitada àqueles que podiam alegar descendência helênica. Mas, este tipo de restrição não parece ter sido aplicada a Delfos, onde até o rei lídio, Creso, podia consultar o oráculo. No início do período arcaico, oitenta e cinco por cento das dedica ções em metal no santuário de Hera na ilha de Samos são de fabricação médio-oriental ou egípcia. No santuário de Hera em Peracora, nas proximidades de Corinto, três quartos do material metálico são de origem fenícia. A proveniência de um artefato não identifica necessariamente o seu doador, mas porcenta gens tão altas como estas não devem ser simplesmente explicadas como o resultado de comércio e de trocas ainda que estas ativida des sejam responsáveis por parte destas oferendas. De um outro lado, há evidências de que as comunidades de culto muitas vezes separavam os gregos ao invés de uni-los. Diz- se que a sacerdotisa de Atena Polias na acrópole ateniense tentou impedir que o rei espartano Cleômenes oferecesse sacrifícios, alegando que ele era um dório e uma inscrição do século V a.C. proveniente de um santuário da ilha jônica de Paros também proíbe o acesso aos estrangeiros dórios. Ao descrever os costumes dos persas e dos citas, Heródoto salienta o fato de que estes não erigiam estátuas, altares ou templos aos deuses. Parece querer dizer que as práticas religiosas persas e citas eram assim diametral mente opostas àquelas dos gregos e, com efeito, um dos propósitos das digressões etnográficas por vezes bastante longas de Heródoto - não apenas a respeito dos persas e citas como também a respeito dos lídios,

babilónicos, libios e, sobretudo, egípcios - é manter os hábitos dessas populações não gregas como um espelho, onde os gregos pudessem olhar e perceber aquilo que eles próprios tinham em comum entre si. Quando Heródoto descreve como os homens egípcios ficam em casa tecendo enquanto suas mulhe res vão ao mercado, ou como as mulheres egípcias urinavam em pé enquanto os homens o faziam de cócoras, sua intenção não é a de disseminar conhecimento científico a respeito dos hábitos egípcios, mas sim convidar a sua audiência e os seus leitores a contemplar o que finalmente dá uma coerência aos seus próprios hábitos e às suas próprias práticas coletivas. Mesmo assim, eu acredito que Heródoto faz mais do que simplesmente ampliar os critérios que definem a helenidade. Quando analisados à luz das Histórias em geral, salta à vista que a estes quatro ingredientes de helenidade não é dado o mesmo peso. De fato, eles são apresentados em ordem crescente de importância. Assim, são os costumes, segui dos das práticas religiosas e da linguagem os itens que mais atraem Heródoto quando ele descreve as populações que não são gregas. As noções de descendência é dada, compa rativamente, pouca atenção. Heródoto nos diz, por exemplo, que os cáunios da Ásia Menor, apesar de possuirem a mesma língua e de reconhecerem a mesma origem que seus vizinhos, os cários, são diferentes deles porque os seus costumes e modos de vida são diferentes. Ao contrário, os côlquios, do litoral leste do Mar Negro são, na realidade, egípcios: a esta conclusão ele chega não apenas com base na aparente similaridade física entre as duas populações, mas porque os côlquios praticam a circuncisão e trabalham o linho tal como os egípcios. O mesmo parece aplicar-se aos próprios gregos. Heródoto observa que apesar de reivindicar o nascimento puro, os jônios da Ásia Menor são todos misturados já que descendem não apenas de ancestrais jônios como também de dórios e de populações não gregas como os abantes, os minios, os dríopes e os pelasgos. É evidente que se os jônios possuem uma origem misturada, fica difícil sustentar que os próprios gregos, coletiva

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

mente, constituem um único grupo de descen dência e esta é a razão pela qual sempre se sugere que Heródoto está de alguma maneira ‘indeferindo’ as verdadeiras credenciais gregas dos jônios. O desprezo que Heródoto tem pelos jônios da Ásia Menor é bastante evidente em sua obra, entretanto, não são estes os únicos a terem a pureza de sua descendência questionada por este autor. Heródoto nos diz que os atenienses - que também se consideravam jônios quando lhes interessava - eram originalmente uma popula ção não grega de pelasgos que ‘aprenderam o grego quando se tornaram helenos’. Conside rando que, com toda a probabilidade, Históri as foi uma obra dirigida a uma audiência de atenienses, esta afirmativa dificilmente pode implicar um insulto étnico. Com efeito, a crença de que os atenienses eram pelasgos antes de serem gregos combina perfeitamente com outro mito de origens que os atenienses professavam - quando não se faziam passar por jônios - de que eram autóctones, de que nunca haviam deixado o seu território e que eram descendentes de Erecteu, aquele que havia nascido da terra. Para os atenienses, o mito de autoctonia era mais uma fonte de orgulho do que um motivo para vergonha: este mito os marcava como uma das populações mais antigas da Grécia e privilegiava a crença em uma igualdade primordial fazendo derivar a descendência mais do próprio território ático do que de progenitores humanos diferencia dos. As conclusões parecem, então, muito claras: para Heródoto, era a cultura comum que definia o que era ser grego, muito mais do que a descendência compartilhada. Sendo ou não Heródoto o primeiro a formular essa definição de helenidade mais voltada para o lado cultural, trata-se de uma concepção atestada com cada vez maior freqüência em outras obras do final do século V e do século IV. a.C.. Tucídides, por exemplo, questiona se os gregos estavam originalmente relacionados uns aos outros: segundo este autor, foram tribos originalmente independen tes que assumiram o nome de helenos por meio de contatos com os filhos de Heleno e não por descendência destes. Tucídides também apresenta um paralelo para o caso ateniense em sua descrição dos argivos anfílocos da

Grécia ocidental os quais, apesar de original mente bárbaros, haviam se helenizado por meio do contato com os gregos da vizinha Ambrácia. Se pensarmos que bárbaros podiam tornar-se gregos ao adotar os costumes gregos, então alguns gregos poderiam ser considerados ‘mais bárbaros’ por conta de seu modo de vida mais atrasado. Tucídides nos fala que mesmo em seus dias, os habitantes de Locris Ozólia, da Etólia e da Acamânia na Grécia ocidental ainda carregavam as armas em público, prática que havia sido comum entre todos os gregos, mas, que naquela época era encontrada apenas entre as populações bárbaras. Resta-nos perguntar porque os gregos começaram a ver-se mais em termos de costu mes e de cultura do que em termos de paren tesco. Até um certo ponto, as antigas explana ções genealógicas de helenidade tinham sobrevivido à sua utilidade funcional. Por um lado, elas não eram suficientemente inclusivas: os gregos sem dúvida haviam percebido que os arcádios que lutaram tão bravamente pela liberdade da Grécia na invasão persa não podiam reivindicar qualquer descendência de Heleno. Por outro lado, não havia nada que garantisse a exclusividade destas explanações genealógicas. Os cidadãos de Argos no Peloponeso mantiveram uma neutralidade bastante rigorosa durante o conflito com os persas e Heródoto nos diz que isto se deveu a uma missão diplomática que os persas envia ram a Argos na qual eles pleiteavam uma descendência comum já que Perses, o ances tral epônimo dos persas, era filho do herói argivo Perseus. A reivindicação pode nos parecer hoje ridícula, mas a verdade é que, na Grécia antiga, o parentesco fictício servia tipicamente como a linguagem da diplomacia. Também a crescente polarização do mundo grego - que resultou em última instância na guerra do Peloponeso - facilitou a crença em uma única comunidade de parentela. Há razões suficientes, no entanto, para se acreditar que Atenas tenha contribuído de maneira decisiva à formulação desta nova definição de heleni dade que se fundamentava em um critério mais cultural. Em primeiro lugar, o século V a.C. presen ciou a ascensão da democracia radical em Atenas. Mais do que uma simples extensão

HALL, J. Quem eram os gregos. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

tais como a subsistência e a defesa eram, provavelmente, muito mais importantes do que a preocupação em definir um sentido de identidade grega que, com freqüência, tinha pouca relevância prática no cotidiano. Entre as elites não atenienses, entretanto, suspeita- se que a definição de helenidade não era fundamentalmente questionada. A potência das capitais culturais é que em um período relativamente curto a sua propaganda consci ente torna-se auto-sustentada. Tais ‘centros culturais’ servem, assim, como protetores da autenticidade cultural cuja contestação é, por definição, não autêntica. Certamente, no mundo multi-cultural inaugurado pelas conquistas de Alexandre, o Grande, a descendência era um critério de helenidade sem sentido. Os gregos do período helenístico, eram aqueles que haviam se beneficiado de uma educação grega, que falavam o dialeto de Atenas (pelo menos no contexto formal) e participavam da vida do Ginásio, independentemente da origem de seus

ancestrais. Os papiros dos séculos III, II e I a.C. parecem indicar que os trácios foram gradual mente absorvidos à população grega do Egito ptolemaico e Diodoro, historiador do século I a.C., observa que, em seus dias, a população indígena da Sicilia aprendeu o grego, adotou os costumes gregos e tomou-se praticamente indistinguível do restante da população grega da ilha. O seu contemporâneo mais jovem, Dionisio de Halicamasso, definia a helenidade como o falar a língua grega, praticar o modo de vida grego, reconhecer os deuses gregos e empregar leis razoáveis. O que é notável nesta definição é não apenas a similaridade em relação à caracterização criada por Heródoto, mas também a omissão pouco discreta da lista da descendência. Sir John Myres estava certo: os gregos estavam sempre no processo de tornarem-se gregos, mas os estágios cruciais nesta evolução ocorreram não nas brumas escuras da proto-história, mas no próprio período que, para nós, define a glória da Grécia.

HALL, J. Who were the Greeks. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11: 213-225, 2001.

ABSTRACT: The main goal of this article is to trace the ways followed by the Greeks in building up their own identity. The Author assumes that ethnicity is very much a matter of internal perceptions and that the ethnic group is defined not by the sum of objectively observable differences but only by those differences that members themselves regard as significant. The role of Herodotus in this construct is stressed by the Author.

UNITERMS: Greek Ethnicity - Cultural Identity - Herodotos - Ionians - Dorians.

R ecebido para pu blicação em 15 de dezem bro de 2001.