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Marcuse e a Destruição da Natureza: Pulsões, Capitalismo e Ecologia, Provas de Ecologia

Herbert marcuse discute a destruição da natureza na sociedade industrial avançada, onde as forças de thanatos se sobrepõem às forças de eros. Utilizando conceitos psicanalíticos de freud, marcuse propõe a politização da energia erótica e a restauração do meio ambiente.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Nazario185
Nazario185 🇧🇷

4.7

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Pulsões, capitalismo destrutivo e ecologia:
Perspectivas marcusianas
Gabriel Dias
Resumo: Herbert Marcuse se debruçou sobre a questão da ecologia e sobre a destruição da
natureza especialmente em seus escritos da década de 70. Conforme o frankfurtiano, o
problema da crise ecológica estaria diretamente ligado à sua leitura da subjetividade que
corresponde, em grande parte, ao roteiro da metapsicologia freudiana, principalmente a
teoria das pulsões. A hipótese de Marcuse é que na sociedade moderna, sobretudo em sua
forma industrial avançada, há um predomínio em seus membros de uma estrutura de caráter
destrutiva, ou seja, as forças de Thanatos estariam se sobrepondo às forças de Eros e sendo
exteriorizadas, por exemplo, no processo de destruição do meio ambiente. Diante deste
contexto, a argumentação marcusiana vai novamente na direção da necessidade de uma
politização da energia erótica que, por conseguinte, contribuiria para com o cuidado e a
proteção dos seres e das coisas vivas. O movimento ecológico, por sua vez, revelando-se
como um movimento político e psicológico, é tido como um indício dessa politização capaz
de provocar poderosas revoltas existenciais contra a realidade estabelecida e de projetar uma
mudança radical na sociedade.
Palavras-chave: Marcuse, Pulsões, Capitalismo, Ecologia.
Abstract: Herbert Marcuse focused on the issue of ecology and the destruction of nature
especially in his writings from the 70s. According to the Frankfurtian, the problem of the
ecological crisis would be directly linked to his reading of subjectivity, which corresponds,
in large part, to the script of Freudian metapsychology, mainly the theory of drives.
Marcuse's hypothesis is that in modern society, especially in its advanced industrial form,
there is a predominance in its members of a destructive character structure, that is, the forces
of Thanatos would be overlapping the forces of Eros and being externalized, for example, in
the process of destroying the environment. In this context, the Marcusian argument goes
again towards the need for a politicization of erotic energy, which, therefore, would
contribute to the care and protection of beings and living things. The ecological movement,
in turn, revealing itself as a political and psychological movement, is seen as an indication
of this politicization capable of provoking powerful existential revolts against established
reality and of projecting a radical change in society.
Keywords: Marcuse, Drives, Capitalism, Ecology.
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Pulsões, capitalismo destrutivo e ecologia:

Perspectivas marcusianas

Gabriel Dias Resumo: Herbert Marcuse se debruçou sobre a questão da ecologia e sobre a destruição da natureza especialmente em seus escritos da década de 70. Conforme o frankfurtiano, o problema da crise ecológica estaria diretamente ligado à sua leitura da subjetividade que corresponde, em grande parte, ao roteiro da metapsicologia freudiana, principalmente a teoria das pulsões. A hipótese de Marcuse é que na sociedade moderna, sobretudo em sua forma industrial avançada, há um predomínio em seus membros de uma estrutura de caráter destrutiva, ou seja, as forças de Thanatos estariam se sobrepondo às forças de Eros e sendo exteriorizadas, por exemplo, no processo de destruição do meio ambiente. Diante deste contexto, a argumentação marcusiana vai novamente na direção da necessidade de uma politização da energia erótica que, por conseguinte, contribuiria para com o cuidado e a proteção dos seres e das coisas vivas. O movimento ecológico, por sua vez, revelando-se como um movimento político e psicológico, é tido como um indício dessa politização capaz de provocar poderosas revoltas existenciais contra a realidade estabelecida e de projetar uma mudança radical na sociedade. Palavras-chave : Marcuse, Pulsões, Capitalismo, Ecologia. Abstract: Herbert Marcuse focused on the issue of ecology and the destruction of nature especially in his writings from the 70s. According to the Frankfurtian, the problem of the ecological crisis would be directly linked to his reading of subjectivity, which corresponds, in large part, to the script of Freudian metapsychology, mainly the theory of drives. Marcuse's hypothesis is that in modern society, especially in its advanced industrial form, there is a predominance in its members of a destructive character structure, that is, the forces of Thanatos would be overlapping the forces of Eros and being externalized, for example, in the process of destroying the environment. In this context, the Marcusian argument goes again towards the need for a politicization of erotic energy, which, therefore, would contribute to the care and protection of beings and living things. The ecological movement, in turn, revealing itself as a political and psychological movement, is seen as an indication of this politicization capable of provoking powerful existential revolts against established reality and of projecting a radical change in society. Keywords: Marcuse, Drives, Capitalism, Ecology.

Introdução A lógica ecológica é pura e simplesmente a negação da lógica capitalista; a Terra não pode ser salva dentro da estrutura do capitalismo. – Herbert Marcuse, “Ecologia e revolução”. Em “Ecologia e crítica da sociedade moderna”, conferência proferida em 1979 para estudantes ligados ao movimento ecológico, Herbert Marcuse se utiliza de conceitos psicanalíticos de Sigmund Freud para discutir a destruição da natureza dentro do contexto de destrutibilidade geral que caracteriza a sociedade moderna, principalmente em sua forma industrial avançada. Marcuse recorre a esses conceitos freudianos, já abordados e desenvolvidos de modo mais aprofundado em Eros e civilização , tendo em vista sua concepção de que essa destrutibilidade encontra raízes nos próprios indivíduos, detentores de uma destrutibilidade psicológica em seu interior. Ao final do texto, entretanto, especulando novamente além de Freud, Marcuse propõe uma politização da energia erótica, ou seja, propõe que o esforço por um estado de libertação da dor pertença a Eros, às pulsões de vida, ao invés de estar fadado ao “longo desvio para a morte”, como na concepção freudiana. O movimento ecológico, por conseguinte, revelando-se como um movimento político e psicológico, é tido como um indício dessa politização capaz de provocar poderosas revoltas existenciais contra a realidade estabelecida, projetando a libertação e uma mudança radical da sociedade. Expor a argumentação marcusiana na conferência citada, agregando à discussão outros textos do autor sobre os temas aqui presentes, é o objetivo deste ensaio.

1. Alicerces psicanalíticos Marcuse recorre a Freud, assim como em Eros e civilização , para explicar também o contexto de destruição da natureza na conferência “Ecologia e crítica da sociedade moderna”. Segundo Timothy Lukes, “a compreensão de Marcuse da crise ecológica está intimamente ligada à sua leitura da subjetividade, que se assemelha aos roteiros básicos da metapsicologia freudiana” (1994, p.194). Logo no início da conferência, Marcuse afirma que sua discussão se apoia, pois, nos conceitos psicanalíticos básicos desenvolvidos por Freud: “Em primeiro lugar, há a hipótese de Freud segundo a qual o organismo vivo é moldado por dois impulsos primários, ou pulsões [...] O outro conceito psicanalítico que quero explicar

a vida. Thanatos, o impulso de morte, empenha-se em alcançar uma negação da vida através de sua exteriorização e, assim, é então direcionado “para a destruição de outras coisas, de outros seres vivos, e da natureza” (MARCUSE, 1999, p.152). Eros, por sua vez, ao introduzir novas tensões e desejos, é definido como a grande força que preserva a vida, ganhando ascendência sobre o impulso de morte e retardando o caminho para uma paz pré-orgânica. Segundo Kangussu, nessa introdução de novos desejos, “o prazer sexual desvia o impulso de seu papel procriador original, modifica a natureza das necessidades naturais e rompe o círculo de retorno do orgânico ao inorgânico” (2021, p.224-225). Não obstante, é necessário apontar ainda que em Eros e civilização , Marcuse reconhece que o trabalho destrutivo do impulso de morte é também útil e necessário à autopreservação, por meio da agressão socialmente permitida. “A relação última entre Eros e Thanatos permanece obscura” (MARCUSE, 1966, p.27), conclui o frankfurtiano. No que diz respeito ao princípio de realidade, na conferência de 79, Marcuse considera que ele pode ser simplesmente definido como as normas e valores que supostamente governam o comportamento numa sociedade estabelecida. Tal princípio decorre da interpretação freudiana de que a contenção das pulsões é a pré-condição da civilização. Dito de outro modo, a história dos seres humanos é a história de sua repressão. Segundo Marcuse, novamente em Eros e civilização , se tivessem liberdade para perseguir seus objetivos, os impulsos básicos dos seres humanos seriam incompatíveis com toda e qualquer associação e preservação duradoura (1966, p.11). A civilização, deste modo, só tem início com a renúncia ao objetivo humano primário, a saber, a satisfação e gratificação integrais a todo momento. Essa renúncia, por conseguinte, é equivalente à transformação dos instintos animais em impulsos humanos: uma transformação fundamental na natureza humana que altera o sistema de valores governantes, de satisfação imediata para adiada, de prazer para contenção, alegria (brincar) para labutar (trabalhar), receptividade para produtividade e, por fim, da ausência de repressão para a segurança. Essa transformação fora definida por Freud como a transformação do princípio de prazer em princípio de realidade, que corresponde em grande parte, mas não inteiramente, à distinção entre os processos inconscientes e conscientes. Na leitura de Marcuse, o indivíduo coexiste nessas duas diferentes dimensões caracterizadas cada uma por diferentes dinamismos e princípios psíquicos.

Segundo Freud em “Formulations Regarding Two Principles of Mental Function”, o inconsciente, conduzido pelo princípio de prazer, compreende “os processos primários mais antigos, os resíduos de uma fase de desenvolvimento na qual eram o único tipo de processos psíquicos” (FREUD apud MARCUSE, 1966, p.13). Nesse princípio, a luta dos processos primários é guiada unicamente pelo prazer, evitando qualquer operação que possa gerar sensações de dor ou desprazer. Contudo, quando esse princípio de prazer irrestrito é confrontado com o meio natural e humano, leva o indivíduo à compreensão traumática de que uma gratificação indolor não é possível. Conforme essa experiência ocorre, um novo princípio de funcionamento psíquico ganha ascendência: o princípio de realidade. Este último, supera o princípio de prazer e faz com que o ser humano aprenda a renunciar o prazer imediato e momentâneo, substituindo-o pelo prazer adiado, porém garantido. De acordo com Marcuse, retomando termos freudianos, “por causa desse ganho duradouro por meio da renúncia e da contenção, de acordo com Freud, o princípio de realidade ‘salvaguarda’ mais do que ‘destrona’, ‘modifica’ mais do que nega o princípio de prazer” (MARCUSE, 1966, p.13). Não obstante, ressalta Marcuse, a interpretação psicanalítica mostra que o princípio de realidade opera não apenas na forma e no tempo estipulado ao prazer, como também na própria substância do prazer. “A adaptação do prazer ao princípio de realidade implica subjugação e desvio da força destrutiva da gratificação pulsional, de sua incompatibilidade com as normas e relações sociais estabelecidas e, por isso, implica a transubstanciação do próprio prazer” (MARCUSE, 1966, p.13). Com o estabelecimento do princípio de realidade, portanto, o ser humano converte-se num ego organizado, esforçando- se para a obtenção do que é considerado útil e do que pode ser realizado sem prejuízo para si. Esses são os conceitos básicos freudianos com os quais Marcuse tecerá sua interpretação e crítica ao aspecto destrutivo presente nas sociedades modernas. Passemos, pois, as suas considerações que envolvem tanto estas circunstâncias psicológicas quanto outras circunstâncias econômicas e políticas, conforme será exposto.

2. Capitalismo, introjeção e destruição Na conferência proferida ao movimento ecológico, Marcuse se propõe a discutir a destruição da natureza dentro do contexto da destrutibilidade geral que caracteriza a

Bem, Marcuse nos põe um problema para nossa reflexão. Como os impulsos primários são impulsos individuais, uma pretensa teoria da mudança social pode parecer, num primeiro momento, uma questão de psicologia individual. Ao questionar-se como fazer o trânsito desta última à psicologia social, Marcuse sugere a não distinção entre ambas as esferas. Ele sugere que a oposição entre as duas é equivocada. Isso porque, mesmo que em diferentes níveis, todos os indivíduos são seres humanos socializados. Além disso, o princípio de realidade predomina até mesmo nas manifestações dos impulsos primários dos indivíduos, tanto quanto aqueles do ego e do subconsciente. O que há, verdadeiramente, na visão do frankfurtiano e que explica a noção de destrutibilidade institucionalizada é uma introjeção nos indivíduos de valores e objetivos que estão presentes e incorporados nas instituições, na divisão social do trabalho, na estrutura de poder estabelecida, e assim por diante. Inversamente, essas instituições sociais e políticas refletem, tanto na afirmação quanto na negação, as necessidades socializadas dos indivíduos. Neste processo, as necessidades oferecidas e também as impostas, tornam-se as próprias necessidades e carências dos indivíduos, contribuindo para a afirmação e conformidade para com o sistema estabelecido. Mais ainda: no desenvolvimento da civilização ocidental e das sociedades democráticas, conforme Marcuse, essa introjeção foi sendo refinada e ampliada de modo que a estrutura de caráter afirmativo decorrente dela não precisou mais ser imposta brutalmente. A eficácia dessa introjeção pode ser, inclusive, medida. O nível de aderência e apoio à sociedade é latente nos resultados eleitorais, nas pesquisas de opinião, mas também na aceitação da agressão e da corrupção como procedimentos normais na organização desta sociedade. Sob o peso da satisfação compensatória oferecida ao indivíduo, a introjeção estabelece raízes sobre ele, lhe concedendo uma liberdade considerável, mas co- determinada. Neste cenário, observa Marcuse, “as pessoas, por boas razões, apoiarão ou pelo menos tolerarão seus líderes, até mesmo quando há ameaça de autodestruição” (1999, p.148). Na sociedade industrial avançada, por seu turno, a introjeção é ainda facilitada por ocorrer em bases racionais e ter um fundamento material. Marcuse se refere aqui ao alto padrão de vida da maioria da população privilegiada e de uma moralidade social e sexual frouxas que, em sua concepção, compensam a alienação intensificada no trabalho e no lazer. Deste modo, a compensação fornecida pela consciência conformista não é apenas uma

compensação imaginária, mas uma compensação real, material. Além disso, segundo Marcuse, sob as condições desta sociedade, a satisfação está sempre ligada a destruição: A dominação da natureza está ligada à violação da natureza. A procura por novas fontes de energia está ligada ao envenenamento do meio ambiente. A segurança está ligada à servidão, o interesse nacional à expansão global. O progresso técnico está ligado ao controle e à manipulação progressivos do ser humano. (MARCUSE, 1999, p.148). Com isso, Marcuse pretende evidenciar a ligação íntima entre a destruição, referente principalmente à sociedade industrial avançada, e a produtividade desta mesma sociedade. O consumo e a destruição dos recursos naturais são, neste contexto, proporcionais ao aumento das satisfações materiais e culturais disponíveis para a maioria da população. A violência, por sua vez, encontra ensejo na cultura popular, no uso do poder das máquinas e no crescimento e investimento na indústria bélica. O que essa sociedade proporciona, consequentemente, é uma racionalização e compensação apropriadas da destruição. Em verdade, esta relação entre a destruição da natureza e a economia já havia sido realçada pelo filósofo numa conferência de 1972, intitulada “Ecologia e revolução”. Nela, conforme Charles Reitz (2019, p.4), Marcuse vinculou suas críticas antiguerra às suas críticas ao que ele chamou de “ecocídio”: o ataque às fontes e recursos da própria vida. Marcuse estava se referindo principalmente aos bombardeios norte-americanos na Indochina realizados no contexto da Guerra do Vietnã. Segundo o frankfurtiano, num sentido muito específico, esse genocídio era a resposta capitalista à tentativa de uma libertação ecológica revolucionária, já que as bombas tinham como objetivo impedir o povo do Vietnã do Norte de reabilitar econômica e socialmente suas terras. Porém, num sentido mais amplo, o capitalismo monopolista estaria travando uma guerra contra toda a natureza - a humana e também a externa. Isso devido a uma contradição interna do próprio capitalismo: conforme aumentam as demandas de exploração, reduzem e se esgotam progressivamente os recursos naturais. O capitalismo se torna cada vez mais destrutivo a medida em que aumenta sua produtividade. Consequentemente, conclui Marcuse (2005, p.174), o processo pelo qual a natureza é submetida à violência da exploração e da poluição é um processo político, mas primariamente, é um processo econômico, um aspecto do modo de produção capitalista. A argumentação marcusiana, portanto, vai no sentido de afirmar o consumismo, prevalecente

3. Ecologia e mudança radical Frente o diagnóstico marcusiano de que a destruição da natureza é um processo tanto objetivo quanto subjetivo, na conferência de 79, o filósofo definirá a mudança radical como uma transformação tanto nas instituições e relações de uma dada sociedade, quanto na consciência e no inconsciente dos indivíduos que a constituem. Com isso, Marcuse pretende argumentar que essa mudança deve implicar também numa transformação da estrutura psíquica predominante entre os indivíduos. Não apenas, mas principalmente no caso da sociedade industrial avançada conforme vimos, essa estrutura está fortemente associada ao impulso de destruição. Essa argumentação marcusiana, por conseguinte, visa identificar a mudança radical como um todo de mudanças no interior do sistema social. Em termos freudianos, Marcuse define uma estrutura de caráter radical como “a preponderância, na vida individual, da pulsão de vida sobre a pulsão de morte, a preponderância da energia erótica sobre o impulso destrutivo” (1999, p.147). Para que uma mudança radical se concretize, não obstante, é necessário que essa estrutura seja incorporada por toda a sociedade, de modo que, nos indivíduos, as necessidades emancipatórias suplantem as necessidades compensatórias. As primeiras, conforme Marcuse, “não são necessidades novas, nem são simplesmente questão de especulação ou predição. Estas necessidades estão presentes, aqui e agora. Permeiam a vida dos indivíduos [...] Porém estão presentes somente numa forma que é mais ou menos eficazmente reprimida e distorcida” (1999, p.150). Estas necessidades emancipatórias incluem, respectivamente, a necessidade de redução drástica do trabalho necessário, substituindo-o pelo trabalho criativo; a necessidade do tempo livre e autônomo no lugar do lazer dirigido; a necessidade de pôr fim a “representação dos papéis”; e, por último, a necessidade de tranquilidade e alegria, ao invés da poluição e do barulho constante da produção. Como evidenciado por Marcuse, a realização destas necessidades emancipatórias não é compatível nem com as sociedades capitalistas nem com as socialistas de Estado. Não é, em verdade, compatível com nenhum sistema reproduzido através do trabalho alienado e dos desempenhos auto impulsionados. O filósofo argumenta, portanto, que a obsolescência da alienação em tempo integral é o “espectro que assombra a sociedade industrial avançada” (MARCUSE, 1999, p.151). Apenas através desta obsolescência, se torna possível a noção de utopia concreta de Ernst Bloch, onde os seres humanos não viveriam mais suas vidas como um meio para se manter através de desempenhos alienados.

“Utopia concreta: ‘utopia’ porque tal sociedade ainda não existe em lugar nenhum; ‘concreta’ porque tal sociedade é uma possibilidade histórica real” (MARCUSE, 1999, p.148), assinala Marcuse. Dada estas possibilidades, Marcuse pretende na conferência de 79 especular além, mais especificamente, contra Freud. O frankfurtiano propõe uma subversão da teoria das pulsões, isto é, propõe que o esforço por um estado de satisfação e de libertação da dor pertença a Eros, às pulsões de vida, ao invés de pertencer ao impulso de morte. O desejo de satisfação, neste caso, serviria não como um desejo de regredir à paz pré-orgânica, mas sim de progredir, fortalecendo e protegendo a própria vida. Este desejo alcançaria sua meta, portanto, não no período uterino, mas sim na flor da idade e na maturidade da vida. Os impulsos condizentes com a pacificação da existência, antes ligados à exteriorização da destrutividade, procurariam, neste contexto, satisfação na preservação e proteção das coisas vivas. Tal satisfação seria encontrada “na retomada e na restauração do meio ambiente, e na restauração da natureza, tanto interna quanto externa aos seres humanos” (MARCUSE, 1999, p.152). Esta foi a fala que Marcuse usou para se referir ao movimento ambiental e ecológico de seu tempo. De acordo com ele, por conseguinte, “o próprio movimento ecológico revela-se em última análise como um movimento político e psicológico de libertação” (1999, p.152). É político porque promove a recusa e o confronto a interesses vitais do grande capital. É psicológico porque a pacificação e proteção do meio ambiente servirá também para pacificar a natureza interior dos seres humanos. Uma ecologia e um ambientalismo prósperos, neste sentido, subordinarão dentro dos indivíduos, a energia destrutiva à energia erótica. Deste modo, estes e outros movimentos – como o movimento feminista, os movimentos sociais, populares, estudantis – apresentam para Marcuse uma rebelião, ainda que primária, do corpo e do espírito, da consciência e do inconsciente. Uma rebelião contra a produtividade destrutiva da sociedade capitalista, tal como contra a repressão e frustração intensificadas, vinculadas a esta produtividade. Não obstante, nosso autor observa que a intensidade desta força transcendente de Eros voltada à satisfação é constantemente reduzida pela organização social em que predomina Thanatos. Virtualmente impotente para fomentar uma revolta contra o princípio de realidade predominante, o que a força de Eros é suficientemente capaz de fazer é “impulsionar um grupo não-conformista, juntamente com outros grupos de cidadãos não-

redefinir a meta humana da mudança radical. Se arriscando a defini-la de modo breve, e se aproveitando para citar um tema caro à Escola de Frankfurt, Marcuse afirma que a meta da mudança radical “é a emergência de seres humanos fisicamente e mentalmente incapazes de inventar outro Auschwitz” (1999, p.154). Se esta meta é por vezes alvejada, ela testemunha o conformismo ideológico prevalecente nas sociedades existentes que converge para um continuum histórico em que a repressão e a agressão são tidas como leis naturais. Contra esta ideologia, é preciso pensar um ser humano mutável, maleável em seu corpo e mente e, portanto, também em sua estrutura pulsional. O argumento latente na conferência marcusiana é o de que somente uma transformação da subjetividade, contra as forças de Thanatos e em prol das forças de Eros, poderá salvar a Terra de seu processo de destruição em curso. Acerca da importância do pensamento de Marcuse sobre o meio-ambiente e a ecologia, Reitz (2019, p.6) afirma que as análises do frankfurtiano se concentram nas estruturas básicas e complexas de opressão e exploração econômica que são hoje, na maioria das vezes, esquecidas ou ativamente suprimidas por analistas, políticos, comentaristas e educadores, quando examinam as causas e os impactos da globalização corporativa imperial. Lukes (1994, p.204-205), por sua vez, afirma que Marcuse antecipou virtualmente todas as críticas feitas por grupos de ecologia radical da década de 90. Segundo ele, a discussão sobre uma nova ciência, uma nova tecnologia e uma nova estética como base para realizar uma transformação ecológica da sociedade ainda não foi abordada de forma tão aguda quanto a feita por Marcuse. Ademais, acerca da extensão da discussão sobre a ecologia na filosofia marcusiana, gostaríamos de citar o trabalho de Marília Pisani (2019) que expõe o encontro entre o movimento feminista e o movimento ecológico na visão do frankfurtiano; o trabalho de Vivian Baroni, Fernando Santa e Angelo Cenci (2018) que visa abordar o conceito de educação ambiental crítica segundo Marcuse; e, novamente, o trabalho de Malcolm Miles (2016) que associa a perspectiva marcusiana da ecologia à perspectiva marcusiana da estética para refletir sobre dimensões eco-estéticas ( eco-aesthetic dimensions ). Todos esses foram textos que influenciaram direta ou indiretamente o presente trabalho.

4. Considerações finais: Brasil, julho de 2021

Nas circunstâncias em que vivemos, uma última digressão se faz necessária. Gostaríamos de propor um exercício de interpretação de nossa sociedade brasileira à luz da abordagem marcusiana aqui apresentada. Reconhecemos, entretanto, a dificuldade histórica de atrelar a teoria de Marcuse à nossa realidade. Não queremos proceder uma reflexão que ignora as diferenças espaço-temporais e sociais entre as conferências proferidas por Marcuse na década de 70 sobre ecologia e o contexto histórico no qual estamos inseridos. Reconhecemos esse hiato. Por outro lado, nos parece igualmente inadequado ignorar a força e a ressonância de alguns dos conceitos e concepções marcusianas que certamente podem nos auxiliar em nossa compreensão, interpretação e nossas ações para com a realidade. No contexto ambiental, o Brasil encerrou 2020 com o maior número de focos de queimadas em uma década (INPE). O desmatamento saltou para 14% a mais em relação ao ano de 2019 (Mapbiomas). Além disso, outro estudo (Mapbiomas) concluiu que o governo agiu em apenas 2% dos alertas de desmatamento em 2020, sendo que em 99,8% dos casos esse desmatamento foi ilegal. É necessário citar também que o número de agrotóxicos registrados em 2020 foi o maior da série histórica, bem como que a caça de animais silvestres no Brasil está em constante expansão. Tudo isso sob os olhos e a responsabilidade de um ministério comandado por Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, atualmente um dos investigados por facilitar a exportação de madeira ilegal do Brasil para outros países - a maior apreensão de madeira ilegal do Brasil. Esses são dados atuais, porém, é sabido que há alguns anos esse processo de destruição da natureza vem sendo constantemente acelerado e intensificado. No contexto pandêmico, são conhecidas as diversas declarações do presidente Jair Bolsonaro minimizando a doença, contrariando as medidas de distanciamento e o uso de máscaras, bem como defendendo o uso de medicamentos ineficazes contra a covid-19 (e danosos à saúde, dependendo de seu uso). Em menos de um mês - junho de 2021 - foram suscitados ao menos três casos de corrupção envolvendo o governo e a compra de vacinas para a doença. Já são mais de 550 mil mortos tendo a pandemia como causa. Ademais, é condizente citar também o apoio incondicional do governo ao porte de armas e ao incentivo de violência policial nas favelas e comunidades pobres, que leva a morte de inúmeros inocentes – a maioria deles, corpos negros. Ailton Krenak, numa entrevista de 2021 sobre o capital e as sociedades de consumo, definiu assim nossa situação, trazendo à baila outros de nossos problemas:

apresenta conteúdos que são mentiras para o mundo estabelecido, mas que, no domínio da dimensão estética, se tornam conteúdos verdadeiros e, deste modo, podem apontar possibilidades para a nossa realidade. Marcuse, por sua vez, reconheceu nesta expressão a capacidade da arte de permanecer antagônica à realidade e, ao mesmo tempo, ser também o reservatório de desejos e faculdades humanas reprimidas. Deste modo, mais do que um significado estético, a Grande Recusa adquiriu na teoria marcusiana também um significado político, dada sua característica herdada do contexto estético de se opor ao mundo estabelecido. Em Eros e civilização , por exemplo, a Grande Recusa aparece como “o protesto contra a repressão desnecessária, a luta pela forma suprema de liberdade - ‘viver sem ansiedade’” (1966, p.149- 150). Em O homem unidimensional , para citar outro exemplo, de acordo com Kellner, “a Grande Recusa é fundamentalmente política, uma recusa de repressão e injustiça, um dizer não, um elemento de oposição para um sistema de opressão, um descumprimento com as regras de um jogo fraudado, uma forma de resistência radical e luta” (2005, p.8). Em ambas as ocorrências, o conceito aparece, pois, baseado numa subjetividade radical que oferece resistência à dominação política e pulsional exercida pelas sociedades. Tendo em vista que essa dominação parece ter se intensificado ao invés de diminuído, a Grande Recusa permanece um conceito válido para pensar as questões políticas de nosso tempo. Enquanto houver injustiça e repressão desnecessária, a Grande Recusa terá um papel político de resistência a exercer.^2 Não apenas no Brasil, como em todo o mundo, temos de reaprender a recusar. Temos de recusar a destruição institucionalizada da natureza. Temos de recusar as promessas do populismo autoritário. Temos de recusar o racismo, o machismo, a homofobia, os crimes de ódio. Temos de recusar as chacinas nas favelas e em comunidades originárias. Temos de recusar o negacionismo científico e a intolerância religiosa. Temos de recusar a extrema desigualdade acentuada pelo capitalismo. Essas e outras recusas nos levarão a mudanças de valores, de comportamentos, de linguagem, mas também de nossos sonhos, quero dizer, de nossa subjetividade. Essas são recusas em favor da vida, são recusas em favor de Eros. (^2) A importância do conceito de Grande Recusa para os movimentos sociais contemporâneos, por exemplo, foi abordada por uma série de estudiosos e estudiosas de Marcuse no livro The great refusal: Herbert Marcuse and contemporary social movements , de 2017, organizado por Andrew Lamas, Todd Wolfson e Peter Funke.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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