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psicopedagogia aspecto do desenvolvimento da aprendizagem leitura
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
PARTE 1 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM Antes de entrarem para a escola, os alunos já vinham realizando, no seu dia-a-dia, aprendizagens diversas, referentes à sobrevivência e ao desenvolvimento biológico dos primeiros anos de vida, como os movimentos e a percepção; ao desenvolvimento dos sistemas simbólicos, como a linguagem, os gestos, os desenhos, as brincadeiras. Eles aprenderam observando e imitando os outros com os quais conviveram, com os quais construíram práticas sociais que demandaram o desenvolvimento de habilidades relacionadas com as funções psicológicas superiores – percepção, memória, atenção, imaginação – , que estão presentes na vida cotidiana. Na perspectiva sócio histórica, que consideramos a mais adequada, essa compreensão dos mecanismos de aprendizagem na vida cotidiana é a que deve orientar a ação educativa, sobretudo no que se refere à leitura e à escrita, porque pode alterar positivamente a prática pedagógica do professor.
Pode-se entender o conceito de funções psicológicas superiores elaborado por Vygotsky (A formação social da mente, 1 9 8 9 p. 5 9 -6 5 ) como as funções que possibilitam às pessoas realizarem operações mentais (“psicológicas”) articulando gestos, movimentos e/ ou instrumentos culturais (brinquedos, lápis, caderno, computador, etc.) com signos (símbolos que constituem linguagem, seja essa linguagem verbal – falada ou escrita – , gestual, musical, etc.), para resolverem problemas como lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc. As funções psicológicas superiores decorrem da internalização dos processos culturais, ou seja, da reconstrução interna de operações externas. As crianças desenvolvem a capacidade de controlar e dirigir seu próprio comportamento e essa habilidade se torna possível pelo desenvolvimento de novas funções psicológicas, que lhes possibilitam o uso de signos verbais e não-verbais e de instrumentos, como, por exemplo, contar nos dedos, amarrar um barbante no dedo para s e lembrar de algo (p.1 4 2 -1 4 3). Nas ações e operações mentais das pessoas, os instrumentos e os signos – que são sociais, culturais – fazem a mediação entre o sujeito, o mundo (os objetos) e os outros sujeitos. Por isso, instrumentos e signos são constitutivos de funções psicológicas de origem cultural, internalizadas por meio das relações intersubjetivas, que, para Vygotsky, constituem o plano “da relação do sujeito com o outro” (Góes, 1 9 9 1, p. 9).
De acordo com Lima (1997, p. 2), todas as experiências vividas na escola ganharão significado quando articuladas ao processo global de desenvolvimento do indivíduo e não concebidas como um aglomerado de experiências independentes, vividas exclusivamente no âmbito escolar.
Neste Caderno, vez por outra vamos citar as palavras ou as ideias dos autores em que nos baseamos. Nas citações, indicaremos o sobrenome do autor ou autora, a data de publicação da obra consultada e, quando for o caso, a página onde está o trecho citado. Para identificar o autor ou autora, basta localizar o sobrenome na lista bibliográfica no final do Caderno; para identificar a obra, é só conferir a data de publicação.
A escola é uma das possibilidades de desenvolvimento para o ser humano, seja em que idade for. Sendo assim, os professores precisam prestar atenção ao período de formação e ao contexto de desenvolvimento de seus alunos.
Sabemos que a escola tem sua especificidade e que o processo de escolarização transforma as experiências cotidianas, se pensarmos de forma dinâmica essas relações. As aprendizagens na vida cotidiana têm significados inerentes, isto é, elas são significativas em si mesmas, uma vez que decorrem das práticas sociais e culturais, das condições de vida e da organização de cada grupo humano. Já as aprendizagens na escola encontram seu significado na história das ideias e no complexo desenvolvimento da consciência humana, aspectos bem menos evidentes que os das aprendizagens na vida cotidiana. O conhecimento aprendido na escola pode não ter uma aplicabilidade imediata na vida cotidiana, mas a importância de aprender a ler e escrever vai ser percebida pelos alunos se eles sentirem que os conceitos escolares e o processo de construção desses conceitos são pertinentes para o seu desenvolvimento global. E será por essa via – a do desenvolvimento do sujeito – que o aprendizado da leitura e da escrita poderá atingir a vida prática do aluno, na medida em que a forma pela qual ele percebe o cotidiano vai sendo afetada pelo desenvolvimento promovido pelas aprendizagens escolares (LIMA, 1997). Afinal, o que estamos entendendo por desenvolvimento? O que estamos entendendo por aprendizagem?
interno de seu desenvolvimento. O desenvolvimento proximal pressupõe compartilhamento de saberes e ações para que os alunos aprendam e se desenvolvam como sujeitos sociais. Mais do que um suporte, a zona de desenvolvimento proximal é uma possibilidade de construção compartilhada de conhecimento. Ao aprenderem, por exemplo, a escrita, os alunos desenvolvem a “capacidade de participarem em atividades colaborativas qualitativamente novas” (BAQUERO, 1998, p. 115). Nessa perspectiva, o sujeito é um sujeito interativo, social, que se faz indivíduo na sua relação com o outro, intersubjetivamente.
A partir dos pressupostos explicitados nesta Introdução, esta primeira parte do Caderno está estruturada em três seções, cada uma em torno de um foco relacionado aos conceitos de desenvolvimento e de aprendizagem. A primeira busca articular os conceitos de desenvolvimento, de aprendizagem e de cultura, considerados centrais para se pensar os processos de ensinoaprendizagem da leitura e da escrita. A segunda trata da aprendizagem da linguagem escrita, refletindo sobre diferentes formas de se ensinar e de se aprender a ler e a escrever de acordo com três abordagens psicológicas: a associacionista behaviorista, a construtivista piagetiana e a sócio histórica vygotskyana. Essas abordagens são articuladas, ainda, com a concepção de ensino-aprendizagem da Etnografia Interacional, adotada pelo Grupo de Estudo do Discurso em Sala de Aula da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos, de acordo com os trabalhos de Castanheira (2004) e Kelly e Green (1998). A terceira e última seção procura retomar e integrar os focos anteriormente discutidos, sempre com ênfase no ensino da linguagem escrita, no contexto da aprendizagem e do desenvolvimento cultural das crianças.
O Grupo de Estudo do Discurso em S ala de Aula da Universidade de S anta Bárbara (Em inglês, S anta Barbara Classroom Discourse Group), em funcionamento desde 1990, é composto por professores universitários e da escola elementar e secundária, pesquisadores e alunos de pós-graduação, que compartilham um referencial teórico comum no estudo da linguagem e da escrita como processos sociais. Esse grupo vem explorando conhecimentos etnográficos e sociolinguísticos no estudo das práticas de letramento em salas de aula. Ver, a respeito, Castanheira (2004, p. 83 -84).
A partir da reflexão inicial sobre suas experiências de ensino, podemos desenvolver nossa discussão sobre as relações entre aprendizagem, desenvolvimento e processos culturais no aprendizado da leitura e da escrita de uma determinada língua, que, no nosso caso, é o português.
Neste espaço, vamos nos deter nos processos de desenvolvimento e de aprendizagem das crianças de escolas públicas que iniciam seu processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita basicamente aos seis anos ou sete anos de idade.
Antes que tenha início esse aprendizado específico, tais crianças já aprenderam o português falado e fazem uso de suas regras e estruturas – mesmo que não saibam denominar os conhecimentos linguísticos, culturais e psicológicos dos quais se apropriaram ao longo de seus poucos anos. Ao se apropriarem desse conhecimento, se apropriam também de uma cultura, ou de culturas – pois os alunos que chegam às nossas escolas provêm de grupos étnicos e sociais diferentes, com costumes e valores diferentes, e é fundamentalmente pela linguagem falada que se fazem membros desses grupos e aprendem seus modos de fazer, de agir, de pensar, de sentir. Desse modo, respeitar os diferentes dialetos de nossos alunos e tomá-los como instrumento de reflexão, focalizando as diferenças e semelhanças entre a linguagem falada e a linguagem escrita, torna-se tarefa importante na prática de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita.
Aprender a ler e escrever diz respeito à aprendizagem de uma determinada linguagem escrita e, portanto, de uma determinada cultura ou de diversas culturas, que podem ser bastante diferentes das que são aprendidas via linguagem falada, no grupo familiar. Isso não quer significar que quando se aprendem diferentes dialetos, aprendem-se, necessariamente, outras culturas; mas significa, sim, que se podem aprender variações da mesma cultura.
com os outros, conhecemos a realidade que nos cerca, formulamos e reformulamos nossa maneira de entender o mundo, a sociedade, nós mesmos. Mulheres e homens mudam a si mesmos, por meio das palavras, porque são capazes de discernir, refletir, criar, inventar, eleger, decidir, organizar e agir, ou seja, é pela interação e ação que o ser humano se constrói, se transforma, cria e recria a si mesmo, dialogando e criando significações para os seus atos e falas.
Para saber mais a res peito da concepção de linguagem e de língua, consulte o Caderno “Língua, texto e interação” dos Módulos 1 e 2 deste Programa de Formação Continuada, que desenvolve essas noções com mais profundidade.
Especialmente na escola, as palavras funcionam como meio de comunicação, como modo de organizar as ações e interações, como portadoras de novos conhecimentos e, também, como objeto de estudo. A reflexão sobre o que se leu e se escreveu, como e sob que condições se aprendeu esse bem cultural, para que ele serve, promove a tomada de consciência dos alunos quanto ao funcionamento da linguagem escrita, quanto às suas diferenças com relação à linguagem falada e, ainda, quanto aos seus usos e funções na cultura.
Estamos tratando da linguagem como “linguagem em uso, que é empregada para fazer alguma coisa e para significar alguma coisa, linguagem que é produzida e interpretada no contexto do mundo real” (CAMERON, 2001, p. 13), ou seja, no contexto de salas de aulas, de culturas.
É com base nesses conceitos de cultura e de linguagem que analisaremos um evento, relatado por Smolka (1999), ocorrido em uma sala de aula de alfabetização considerada a mais fraca da 1ª série, em 1989, numa cidade do Estado de São Paulo. A autora nos apresenta uma vivência de leitura nessa sala de aula, em que uma aluna lê uma frase corretamente, mas a interpreta a partir da sua experiência pessoal, de sua vivência sociocultural:
A professora escreve na lousa: “A mamãe afia a faca”. 0 E pede para uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à criança:
_- Quem é a mamãe?
- E o que é que é “afia”? _A Criança hesita, pensa e responde:
Ao analisar esse evento, Smolka (1999, p. 59) considera que ele suscita polêmicas de natureza linguística, psicológica e social.
Do ponto de vista linguístico, podemos começar ressaltando o aspecto semântico, isto é, relativo ao significado das palavras. Além da dubiedade da significação atribuída à sequência /afia/ pela professora e pela aluna, valeria lembrar, por exemplo, as múltiplas possibilidades de interpretação da palavra amola , passível de ser entendida como substantivo (a mola) ou como verbo, com duas acepções (amola = afia; amola = chateia, aborrece). Há também questões gramaticais envolvidas, relativas à fonologia, à morfologia e à sintaxe. Na dimensão fonético-fonológica, há um conflito de “pronúncia”, que tem a ver com a variação social da língua – na variedade padrão, pronuncia-se /filha/ ; em muitas variedades regionais não-padrão do português do Brasil, pronuncia-se /fia/. A diferença de pronúncia vai provocar dupla possibilidade de interpretação morfológica, concernente à classe gramatical das palavras: afia = verbo; a fia = artigo mais substantivo. As dimensões fonético-fonológica e morfológica vão repercutir na sintaxe: na interpretação da professora, há ali uma oração, composta de sujeito, verbo e complemento do verbo (a mamãe afia a faca) ; na interpretação da aluna, há uma sequência de palavras, uma lista, sem estrutura oracional (a mamãe, a fia, a faca).
Do ponto de vista social e cultural, deve-se avaliar que a criança (da qual não se tem indicadores sócio - culturais) decifra corretamente, mas interpreta o que decifrou tendo como base sua vivência sociocultural. Isso lhe possibilita construir sentidos para as palavras decifradas e não apenas decodificá-las. Ela faz uso da palavra “afia” no contexto escolar de decifração de uma frase solta, isolada (retirada de uma cartilha), demonstrando diferenças de linguagem que revelam diferenças sócio - culturais.
Para Vygotsky (1982 e 1989), é o aprendizado escolar e social que pode proporcionar às crianças esse desenvolvimento cultural, transformando o ser humano de ser biológico em ser histórico-cultural.
A data de 1982 corresponde à edição da tradução espanhola consultada. A obra original é de 1934.
A aprendizagem, então, é vista como um processo construído através da linguagem nas interações e ações entre professores e alunos, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Por meio da linguagem, os conceitos cotidianos vão dando lugar à elaboração de conceitos científicos: novas palavras são aprendidas e os significados das palavras corriqueiras vão sendo ampliados com novas acepções. Por isso, pode-se considerar a aprendizagem como um processo discursivo que implica a elaboração conceitual da palavra, que, por sua vez, só pode acontecer quando as pessoas se encontram e fazem uso da linguagem em seus grupos culturais.
O processo discursivo a que nos referimos diz res peito àquilo que as pessoas falam e fazem dentro da sala de aula. Os discursos são criados, por todos os participantes, por meio da linguagem falada e escrita e das ações realizadas no contexto das oportunidades de aprendizagem; eles não estão prontos antes de alunos e professores entrarem nas suas salas de aula.
Vale retomar aqui o evento da aluna que necessitava reelaborar conceitualmente a palavra “afia” e a expressão usada por sua mãe, “a fia”. Para isto, ela precisa aprender a completar os vazios, a articular e relacionar termos.
O fato de existir a possibilidade da interpretação que ela atribuiu à frase “A mamãe afia a faca” revela que, no funcionamento da língua, não há uma lógica única e obrigatória explicitada pela gramática, mas há, sempre, necessidade de atividade mental das pessoas, produzindo compreensão, articulando sentido à sequência de sons ouvidos ou de palavras lidas. É o que a menina faz, reelaborando conceitualmente a sequência escrita e explicando sua interpretação à professora: “A fia sou eu, porque ela (a mãe) diz: vem cá minha fia, (traz) a faca” (SMOLKA, 1999, p. 59 e 61).
Para que os processos de reelaboração ocorram com sucesso, é importante o estabelecimento de zonas de desenvolvimento proximal nas interações sociais entre colegas e professor, pela criação de oportunidades de aprendizagem por meio de brincadeiras, jogos, práticas de leitura e escrita, atividades colaborativas de reflexão sobre a língua, enfim, situações em que os alunos, coletiva e individualmente, reconstruam e reelaborem conceitos.
Esse processo de aprendizagem e desenvolvimento envolve tanto aspectos sociais, históricos, culturais, linguísticos, como aspectos cognitivos e afetivos. Todos esses aspectos são processos construídos e não são inerentes à condição étnica, de gênero ou de classe social (GOMES, 2004) – o que torna injustificável toda e qualquer atitude preconceituosa ou discriminatória. Assim, é fundamental levar em conta o contexto sociocultural de nossos alunos ao se ensinar a ler e a escrever. Do ponto de vista da psicologia sócio histórica, mostrase essencial saber quem são as crianças, seus interesses, seu cotidiano, seus gostos culturais, suas práticas de leitura e de escrita. O que eles já sabem sobre leitura e sobre escrita também são saberes fundamentais a serem considerados nesse processo. Vivemos num mundo de escrita e nossos alunos já chegam com alguns conhecimentos sobre a língua que vivenciam em seu cotidiano. Esses conhecimentos precisam ser valorizados e considerados ao se ensinar a ler e a escrever, tendo em vista os grupos socioculturais aos quais os alunos pertencem.
A necessidade de estarmos atentos e sensíveis a essas questões já havia sido apontada nos trabalhos construtivistas de Ferreiro e Teberosky (1985), que se basearam nos estudos psicogenéticos de Piaget sobre o desenvolvimento infantil. Essas pesquisadoras entendem que as crianças, ao se apropriarem da escrita como um sistema de representação, isto é, ao aprenderem a ler e a escrever, lidam com esse sistema como objeto conceitual, como objeto de conhecimento. A partir desse pressuposto, as autoras, examinando as hipóteses que os alunos levantam e as operações que realizam ao praticarem a escrita, demonstraram como eles aprendem a ler e a escrever determinada língua. Para essas autoras, é necessário que os estudantes compreendam como funciona e como se estrutura a linguagem escrita, é necessário que se possibilite aos alunos
associacionista. A teoria da associação defende que ideias simples podem ser vinculadas para formar ideias complexas. Propõe duas leis da associação: a semelhança ou similaridade, e a contiguidade no tempo e no espaço. Quanto mais semelhantes e contíguas duas ideias, tanto mais prontamente elas se associam. As ideias complexas são construídas mecanicamente, por meio de um amálgama de ideias simples (SCHULTZ e SCHULTZ, 1981, p. 50). Nessa perspectiva, institui-se um trabalho que vai das partes para o todo (letras, sílabas, palavras, frases e pseudotextos) e do simples para o complexo (de sílabas simples para sílabas complexas), com o objetivo de ensinar a decifrar palavras escritas por meio da repetição mecânica de partes e consequente memorização, supondo-se que, somadas, as partes vão formar o todo que é o texto.
Nesse contexto, a cópia mecânica de algo que não se entende e sobre o qual não se faz nenhuma reflexão torna-se uma prática diária. O associacionismo mantém a concepção de que os elementos da atividade mental são isolados, ou seja, de que as funções psicológicas (atenção, percepção, memória) atuam independentemente umas das outras. E, além disso, estende as leis de funcionamento da memória para todas as outras funções psicológicas. A memória vem associada à retenção (a conhecida “decoreba” de sílabas, por exemplo), estocagem, conservação e recuperação de dados no cérebro (SMOLKA, 1997, p. 70). Ela é vista, por essa corrente psicológica, como sinônimo de aprendizagem. A palavra memória , então, equivale a “aprender de cor” e é substituída pelo termo aprendizagem. 6 A abordagem sociocultural procura romper com essa visão limitadora do funcionamento mental:
Não se pode ensinar às crianças através de explicações artificiais, por memorização compulsiva e repetição apenas. O que uma criança necessita é de adquirir novos conceitos e palavras para atribuir sentido ao que aprende. E um conceito não é apenas a soma de certas ligações associativas formadas pela memória, assim como não é, também, apenas um simples hábito mental; é um complexo e genuíno ato de pensamento, um ato de generalização que envolve a atenção deliberada, a lógica, a abstração e a capacidade de comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos não são adquiridos por simples repetição ou rotina pedagógica, mas por um longo esforço
mental por parte da criança, em interação com adultos e outras crianças (VYGOTSKY, 1989, p. 58).
Dessa forma, aprender a ler e a escrever é muito mais do que adquirir habilidades básicas de decifração e escrita de palavras e pseudotextos. É, principalmente, construir, obter e atribuir sentido para o que se aprende, por meio de usos funcionais da linguagem, que sejam relevantes e significativos para os aprendizes. Sendo assim, no processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, deve-se enfatizar a criação de contextos sociais que estimulem a produção de zonas de desenvolvimento proximal, entendidas como espaços de possibilidades que se estabelecem com base nas capacidades ou competências já consolidadas pela criança, em direção a outras que estão em vias de se tornar desenvolvimento efetivo, graças à ajuda ou mediação de outro mais experiente – como é o caso do professor. Nesses contextos, as crianças aprendem interativamente a usar, provar e manipular a linguagem, colocando-a a serviço da atribuição de sentido para o que leem e escrevem (GOMES, 1997, p. 47).
Vygotsky focaliza a escrita como uma atividade simbólica que, tal como outras atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo, etc.), envolve a representação de uma coisa por outra, a utilização de signos auxiliares para representar significados (FONTANA e CRUZ, 1997). Um trabalho didático baseado no associacionismo, ao contrário, tende a ignorar os significados e ensina as crianças a desenhar letras e com elas construir palavras, mas não ensina a linguagem escrita. O associacionismo enfatiza de tal forma a mecânica de ler o que está escrito, que acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal, isto é, como um sistema particular de símbolos e signos. Já para Vygotsky ( e 1989), a compreensão e o domínio da escrita como linguagem constitui um ponto crítico, um momento decisivo, no desenvolvimento cultural da criança.
O autor se interessa pela gênese do aprendizado da escrita, que ele chama de “pré-história da linguagem escrita”, para compreender o que leva a criança a aprender a escrever , o que cria condições para que esse aprendizado ocorra. Nesse sentido, ele interpreta o gesto como manifestação simbólica preliminar, como escrita no ar, como signo visual que contém a futura escrita da criança. Os rabiscos e os desenhos das crianças são vistos como outros domínios que unem
histórias (GOMES, 2004). Antes de alunos e professores entrarem para a sala de aula, o que vai contar, o que vai ser estudado e compreendido como leitura e escrita, não está definido, mas deve e pode ser construído pelos participantes da sala de aula.
Pensando dessa forma, considera-se que já não basta se perguntar como as crianças aprendem a ler e a escrever, focalizando as fases de construção individual desse conhecimento do ponto de vista psicogenético, considerando o erro como construtivo e analisando o conflito cognitivo, conforme os postulados de Ferreiro e Teberosky (1985). Torna-se importante explicitar o contexto de produção dessa aprendizagem e o processo de construção desse contexto nas salas de alfabetização, como propõe a perspectiva sociocultural, porque isso possibilita contemplar e buscar compreender tanto a dimensão individual quanto a coletiva do processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita.
Conflito cognitivo, do ponto de vista piagetiano, refere-se ao desequilíbrio cognitivo provocado na forma de pensar e de agir das crianças pelas intervenções de um adulto. Por exemplo, quando as crianças estão aprendendo a escrever, elas elaboram hipóteses sobre como se escreve uma palavra. Essas hipóteses podem estar distantes da escrita oficial, mas revelam a compreensão das crianças sobre a linguagem escrita, naquele momento, revelando também o processo cognitivo que estão construindo. Quando um adulto interfere e faz perguntas que provocam outras reflexões e entendimentos por parte dos alunos, instaura-se um conflito no modo como eles pensam, escrevem e agem. É esse conflito que a psicogênese chama de conflito cognitivo. No caso da alfabetização, provocar esse conflito tem a intenção de fazer com que as crianças, individualmente, internamente, avancem em seu processo de compreensão da linguagem escrita. Quando se procura responder à pergunta o que conta como leitura e escrita numa determinada sala de aula, tem-se a chance de entender a natureza socialmente construída da aprendizagem e o fato de que instituições sociais como escola, por exemplo, se mantenham em contínuo processo de (re)estruturação (CASTANHEIRA, 2004, p. 39): estruturam e reestruturam suas regras de funcionamento, seus currículos, seus métodos de ensinoaprendizagem, trocam seus professores, por exemplo. Cada escola é única, assim como cada sala, entretanto isto não quer dizer que não apresentem universalidades. Quer dizer, sim, que em cada escola e em cada sala de aula acontecem experiências únicas, particulares, e que necessitamos enxergar não
só as semelhanças, mas também as diferenças entre as escolas e as salas de aula.
Essas diferenças são produzidas no contexto interacional local e estabelecem o que se entende por ensinar/aprender leitura e escrita naquele contexto, naquela sala de aula. A aprendizagem da leitura e da escrita é um processo cuja essência se constitui não só pelo que os alunos e professores fazem, mas também pelo que eles pensam e falam sobre essa aprendizagem e sobre o que fazem com ela. Portanto, é necessário compreender “o significado da leitura para os participantes envolvidos na situação da leitura por meio do exame dos critérios e procedimentos usados por eles na definição do que é e do que não é considerado como ato de leitura, nos diferentes contextos em que ela é utilizada”, como propõe Castanheira (2004, p. 40).
Como o processo é tanto individual quanto coletivo, a construção de oportunidades de aprendizagem para todos requer que se considerem as diferenças de entendimento e de produção de cada um e as diferenças sócioculturais, pois as práticas sociais de leitura e de escrita desenvolvidas pelos alunos fora da escola influenciam sua aprendizagem dentro da escola.
Há estudos recentes, como os de Bloome e Bayley (1992), Kelly e Green (1998), Castanheira (2000), Castanheira (2004) e Gomes (2004), demonstrando 0 que, quando o trabalho de ensino-aprendizagem se faz numa perspectiva contextualizada, isto é, quando atenta para os critérios e procedimentos estabelecidos pelo grupo e para as diferenças individuais que ocorrem no contexto de cada sala de aula, os resultados são diferenciados de uma turma para outra, ainda que o conteúdo tratado seja o mesmo e que os professores tenham estabelecido o mesmo objetivo e desenvolvido as mesmas atividades, sob a orientação pedagógica de um mesmo livro didático, por exemplo. Os padrões de comunicação estabelecidos dentro das salas de aula diferenciam-se em razão das diferenças entre as pessoas, que têm demandas sociais e individuais diferentes. Nessa perspectiva, como observaram Collins e Green (1992) e Castanheira ( e 2004), a sala de aula funciona como uma cultura, em que os membros constroem formas padronizadas de interações sociais dia após dia, momento após momento.