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Centenário da Psicologia Experimental: Reflexões Epistemológicas, Notas de aula de Psicologia

A documento aborda as crises da psicologia experimental, questionando suas fundações teóricas e metodológicas, além de suas implicações ideológicas. O texto reflete sobre a necessidade de uma análise epistemológica da psicologia positiva e a importância de estudar as experiências negativas e irracionais do homem. O autor propõe a ideia de uma 'psicologia negativa' que faz justiça a essas experiências.

O que você vai aprender

  • Como a psicologia positiva pode ser 'epistemologizada'?
  • Que questões epistemológicas são levantadas no documento em relação à psicologia experimental?
  • O que é a 'psicologia negativa' e por que ela é proposta?
  • Qual é a importância de estudar as experiências negativas e irracionais do homem?
  • Quais são as críticas feitas à psicologia positiva e experimental no documento?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

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PSICOLOGIA CIENTÍFICA: REALIDADE OU MITO?
Richard BUCHER - Departamento de Psicologia,
Uni¬
versidade de Brasília - 70910
Brasília/DF
RESUMO
Na ocasião do centenário da fundação do primei¬
ro laboratório de psicologia experimental, a psicolo¬
gia científica é questionada sob um ângulo epistemoló¬
gico,
no que diz respeito a suas fundamentações teóri¬
ca e metodológica e as suas implicações ideológicas ou
"míticas".
As repetidas crises desta psicologia teste¬
munham um mal-estar profundo, relacionado com a sua
en¬
tronização artificial, com a definição insuficiente e
unilateral do seu objeto e com a discrepância entre a
ciência e a experiência psicológicas. O contexto
histó¬
rico da implantação da psicologia como ciência é lem¬
brado,
com uma analise crítica de suas premissas
posi¬
tivistas de_ abstração, objetivação e quantificação.
Es¬
taso incapazes, quando transpostas das ciências
exa¬
tas ao estudo do homem concreto, de investigar as sig¬
nificações psicológicas e antropológicas das suas
expe¬
riências vividas. Uma "psicologia negativa" deveria
fa¬
zer justiça às experiências negativas e irracionais do
ser humano, sendo que o pensamento mítico ilustra a
tentativa do homem de dominar e representar esta irra¬
cionalidade e suas contradições, conjurada pelo cien¬
tista.
Finalizando, é enfatizada a necessidade de uma
* Versão revista e ampliada de uma palestra, pronun¬
ciada na sessão comemorativa do centenário da
psico¬
logia científica, em junho de 1979 na Universidade¬
de Brasília.
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PSICOLOGIA CIENTÍFICA: REALIDADE OU MITO?

Richard BUCHER - Departamento de Psicologia, Uni¬ versidade de Brasília - 70910 Brasília/DF

R E S U M O

Na ocasião do centenário da fundação do primei¬ ro laboratório de psicologia experimental, a psicolo¬ gia científica é questionada sob um ângulo epistemoló¬ gico, no que diz respeito a suas fundamentações teóri¬ ca e metodológica e as suas implicações ideológicas ou "míticas". As repetidas crises desta psicologia teste¬ munham um mal-estar profundo, relacionado com a sua en¬ tronização artificial, com a definição insuficiente e unilateral do seu objeto e com a discrepância entre a ciência e a experiência psicológicas. O contexto histó¬ rico da implantação da psicologia como ciência é lem¬ brado, com uma analise crítica de suas premissas posi¬ tivistas de_ abstração, objetivação e quantificação. Es¬ tas são incapazes, quando transpostas das ciências exa¬ tas ao estudo do homem concreto, de investigar as sig¬ nificações psicológicas e antropológicas das suas expe¬ riências vividas. Uma "psicologia negativa" deveria fa¬ zer justiça às experiências negativas e irracionais do ser humano, sendo que o pensamento mítico ilustra a tentativa do homem de dominar e representar esta irra¬ cionalidade e suas contradições, conjurada pelo cien¬ tista. Finalizando, é enfatizada a necessidade de uma

  • Versão revista e ampliada de uma palestra, pronun¬ ciada na sessão comemorativa do centenário da psico¬ logia científica, em junho de 1979 na Universidade¬ de Brasília.

epistemologizaçao da psicologia positiva e de uma rela¬ tivização das suas posições e pretensões de cientifici¬ dade.

S U M M A R Y

In the centennial year of the founding of the first psychological laboratory, cientific psychology is questioned from an epistemological perspective with respect to its theoretical and methodological founda¬ tions and its ideological or "mythical" implications. The repeated crises of this psychology are a testimony to its deep uneasiness which is related to artificial enthronement, its insufficient and unilateral defini¬ tions, and the discrepancy between psychological scien¬ ce and experience. The historical context of the esta¬ blishment of psychology as a science is reviewed in a critical analysis of its positivist premises of abs- traction, objectivity, and quantification. These, when transposed from the exact sciences to the study of man, are useless for investigating the psychological and an¬ thropological meanings of his experience. A "negative psychology" must explain man's negativ and irrational experiences, like mythical thought that illustrates his attempt to dominate and represent this irrationali¬ ty and its contradictions, denied by the scientist. Finally,the need for epistemologizing positivist psy¬ chology and for a reconsideration of its positions and scientific pretentions is emphasized.

R É S U M É

A 1' occasion du centénaire de la fondation du¬ premier laboratoire de psychologie expérimentale, la psychologie scientifique est mise en question sous un¬ angle épistemologique, en ce qui concerne ses fondemen¬ ts théorique et méthodologique et ses implications

tivación y cuantificación. Cuando transferidas de las ciencias exactas al estudio del hombre concreto, ellas son incapaces de investigar las significaciones psico¬ lógicas y antropológicas de sus experiencias vividas. Una "psicologia negativa" debería hacer justicia e las experiências negativas e irracionales dei hombre, pues to que el pensamiento mítico ilustra la tentativa del hombre de dominar y representar esta irracionalidad y sus contradicciones , conjurada por el cientismo. Final¬. mente , se insiste sobre la necesidad de un análisis epistemológico de la psicologia positiva y de relativi¬ zar sus posiciones y pretenciones de cientificidad.

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO

VOL. 1 No^ 1 - JANEIRO 1981

O título deste trabalho pode parecer polêmico, mas não o e necessariamente. Pelo menos não o é na mi¬ nha intenção, uma vez que, em meu conceito, "mito" em nada e uma noção pejorativa, mas representa, pelo con¬ trário, um fenômeno complexo e tipicamente humano, com características e funções próprias. Pretende-se anali¬ sar o "mito da cientificidade", da psicologia em parti¬ cular, aproveitando-se do transcurso centenário do pri¬ meiro laboratório de psicologia experimental. Conside¬ ro que este centenário, mais do que uma ocasião para comemorações triunfalistas, poderia e deveria ser uma oportunidade para uma reflexão de ordem epistemológica sobre as bases desta psicologia científica, sobre suas fundamentações teórica e metodológica e sobre suas im¬ plicações não-científicas, quer dizer, ideológicas.

Falar aqui de ideologia, também não é necessa¬ riamente polêmico, se entendemos por ideologia, o con¬ junto de representações sociais, politicas, econômi¬ cas, antropológicas, psicológicas e filosóficas que marcam a mentalidade de uma época e suas produções cul¬ turais. Um autor como Levi-Strauss (1958), alias, con¬ sidera as nossas ideologias (políticas) como equivalen¬ tes, ou melhor, como substitutos do pensamento mítico, chamadas a preencher um certo vazio deixado pela pro¬ fanação ou pela desmistificação das nossas representa¬ ções míticas, das nossas mitologias implícitas - atro¬ fiadas, sem dúvida, sob o impacto da nossa era tecnoló¬ gica.

AS "CRISES" DA PSICOLOGIA

Comemorações triunfalistas também não cabem, ao meu ver, porque a psicologia encontra-se numa crí¬ se, como nos foi lembrado recentemente por Ades(l978),

o que não permite, evidentemente, falar desta criação como de uma "revolução científica" no sentido que Kuhn (1970) atribuiu a este termo. No entanto, esta criação não "caiu do céu "mas situa-se num contexto específico, a saber, o contexto positivista do século passado, que teremos que examinar em suas implicações ideológicas ou ainda "mitológicas", uma vez que estas implicações têm pesado muito sobre os desenvolvimentos da psicolo¬ gia e suas repetidas crises. A concepção da ciência em vigor naquela época, determinou necessariamente a evolução da jovem disci¬ plina, impondo a ela um rumo unidirecional, pela refe¬ rência a um modelo emprestado de outros domínios do sa¬ ber. Desde o início, então, a psicologia como ciência foi construída sobre alicerces problemáticos, enviesa¬ dos e "críticos" (no sentido, precisamente, de provo¬ car facilmente crises) - e isto a partir, em primeiro lugar, da indefinição de seu objeto. Sabemos que uma das definições possíveis da atividade científica se re¬ fere à presença de um objeto específico, sobre o qual a ciência recolhe dados empíricos (experiências, des¬ crições, experimentos...), seguindo, nesta sua explora¬ ção, uma certa metodologia; a partir dos dados acumula¬ dos são elaboradas hipóteses verificadas novamente no contato empírico, no campo do objeto investigado e que, aos poucos, são articuladas em conjuntos teóricos. Acrescentamos que os conhecimentos empíricos e as teo¬ rias edificadas sobre estes podem (ou devem) ainda per¬ mitir uma prática sobre o objeto, prática esta que uti¬ lizará certas técnicas visando à transformação deste objeto. Pois bem, encontramos então sérias dificulda¬ des em definir o "objeto" da psicologia cientifica, dificuldades alias bem conhecidas. A psicologia racio¬_ nal, cartesiana, tomou como objeto a alma, oposta à ma¬ téria extensa, utilizou como método a introspecção e criou um conjunto de noções conhecidas como "mentalis¬ mo". A psicologia positiva (ou positivista) substituiu

este objeto pelo observável, pelas reações psico-fisio¬ lógicas e suas medidas e, finalmente, pelo comportamen¬ to. Este "objeto", quando referido ao homem, tem a par¬ ticularidade de não englobá-lo na sua totalidade vivida, mesmo se percebemos um certo consenso, hoje em dia-por falta de uma definição mais adequada - de não mais li¬ mitar este comportamento à "fachada" externa do ser hu¬ mano. Um experimentalista como Fraisse (1976) chega mes¬ mo a propor uma volta à psyché, como objeto da psicolo¬ gia, para que esta possa sair da crise... Mas um outro aspecto bem que poderia pesar mais ainda: o fato de o objeto "comportamento" nao ser próprio nem do ser huma¬ no, nem da psicologia, uma vez que a biologia, a fisio¬ logia, a etologia também estudam o comportamento, tanto animal quanto humano.

Porém, esta falta de especificidade do objeto da psicologia tem como corolário sua unilateralidade, mesmo quando aceito no sentido mais amplo. Definir o comportamento como objeto único da psicologia represen¬ ta, de fato, uma delimitação artificial e arbitrária, decorrente de um contexto cultural e ideológico preci¬ so e que comporta nada menos do que uma mutilação da experiência psíquica de cada um - experiência que nin¬ guém gostaria de perder, se pensarmos, por exemplo, na experiência do amor, da felicidade ou na fantasia, no desejo, no sonho - ou, ainda, na satisfação que o pes¬ quisador encontra no seu laboratório. Finalmente, todo comportamento nada mais é do que o aspecto observável de um portador necessariamente subjetivo.

Podemos nos perguntar, pois, se nao é esta muti¬ lação, esta discrepância entre o objeto da ciência psi¬ cológica e o objeto da experiência psicológica, que pro¬ duz esta crise permanente, bem como as discussões tan¬ tas vezes polêmicas e apaixonadas, "subjetivas", dos psicólogos. Parafraseando Freud, podemos falar de um "mal-estar na psicologia", devido a esta exclusão da di¬ mensão vivencial, da significação existencial, do campo da psicologia científica. A evolução desta ciência, ho¬

O CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA POSITIVISTA

Sabemos que o contexto cultural que presidiu à instituição da psicologia experimental era o contexto positivista, na sua forma cientista e sobretudo fisica¬ lista. Entretanto, não podemos abordar aqui a evolução do positivismo como filosofia (absolutista), apesar da influência incontestável que esta exerceu sobre a meto¬ dologia das ciências positivas. Limitar-me-ei a lembrar um pequeno fato, ligado à sistemática das ciências pro¬ posta por Auguste Comte. Nesta sua sistemática (que ele chamava de hierarquia natural, em oposição à hierarquia metafísica, reinando até ali), ele colocava em primeiro lugar a matemática, ciência a mais geral e a mais pura. Esta é seguida pelas ciências de complexidade crescente, a saber, a astronomia, a física, a química, a biologia e, finalmente, a sociologia, que teria como objeto a in¬ vestigação das regras ou leis das interações humanas. Comte, pois, não reservou lugar nenhum para a psicolo¬ gia, contestando mesmo, explicitamente, qualquer velei¬ dade que pretenda fundar a psicologia como uma ciência independente! Segundo os postulados positivistas por ele elaborados, podem ser observados e descritos (e ser objeto de uma ciência) somente os objetos percebidos co¬ mo partes do mundo físico; fatos psíquicos só se deixam examinar sob o ângulo social - dependente, pois, da so¬ ciologia - ou sob o aspecto de suas bases biológico-fi¬ siológicas. Ele nega, portanto, a possibilidade de uma pesquisa psicológica autônoma.

Esta classificação parece-me interessante no que diz respeito precisamente à criação da psicologia científica: de fato, até hoje ela não dispõe de um lu¬ gar reconhecido entre as ciências, o que certos psicólo¬ gos, inspirando-se nas mesmas premissas que Comte, ten¬ taram contornar pela limitação ao comportamento - ten¬ tando, deste modo, afastar-se das conclusões as quais ele tinha chegado com muita consequência. Mas uma psico¬ logia que assim se limita para fugir da tutela da filo¬

sofia, torna-se, necessariamente, ancila da biologia (se não das ciências exatas), uma vez que não é possí¬ vel aceitar as premissas metodológicas e filosóficas do positivismo e querer negar o que decorre logicamente de¬ las - a saber, que elas nao deixam espaço para uma psi¬_ cologia científica, ou melhor, que uma psicologia "posi¬ tiva" só será possível naquelas condições; mas surge en¬ tão a questão, legítima, de saber se uma tal ciência ainda será "psicológica", ou se Comte não tinha razão, afirmando que neste seu edifício a psicologia não cabe. Por conseguinte, ou a psicologia efetivamente não é uma ciência (positiva), ou então ela é uma ciência de um outro tipo, com outra metodologia que não a fisicalis¬ ta...

O fato de o positivismo - e toda a corrente me¬ todológica inspirada nele - recusar a psicologia como ciência, deve ter incomodado (e incomoda ainda) muitos psicólogos, receosos, sem dúvida, de "não serem levados a sério" pelos colegas de disciplinas "mais puras", mais objetivas - ou, ainda, menos complexas, como já indagou o próprio Comte. Reduzir a complexidade do objeto da psicologia não-restritiva (o ser humano) a alguns pou¬ cos componentes é, pois, uma tentação, se não uma pro¬ messa de reabilitação - como se fosse necessário se "reabilitar" deste modo, para readquirir a estima publi¬ ca do mundo científico, perdida por causa da não-cienti¬ ficidade do objeto e dos procedimentos da psicologia. Apresentar, em compensação, números, quantidades, cál¬ culos e estatísticas sobre este objeto poderia, neste sentido, bem ser encarado como a promessa de uma cienti¬ ficidade acima de qualquer suspeita...

O modelo o mais acessível - e o mais sedutor - era, na época (e é ainda) o modelo fisicalista, preconi¬ zado por Comte em geral e por John Stuart Mill (seu dis¬ cípulo) em particular, no que diz respeito às "ciências morais", das quais a psicologia faria parte. Assim Mill pronuncia, em 1843, a célebre frase segundo a qual "o atraso das ciências morais só pode ser superada recor¬

mantica (e mística), o mesmo entusiasmo, a mesma exalta¬ ção sentimental foram aplicados ao novo modelo, contri¬ buindo, desta maneira, mais a um novo movimento ideoló¬ gico (conhecido como cientismo) do que a uma ciência consciente de suas limitações e de seu objeto restrito. Estes pesquisadores ultrapassaram, destarte, a posição de Fechner, que já tinha professado um fisica¬ lismo (ou materialismo) metodológico, mas baseado ainda na aceitação de uma "vida interior", de uma consciência (concebida num enfoque especulativo, de dimensão quase cósmica). A este respeito, Fechner falou precisamente da "outra cena", inacessível à observação e à experimen¬ tação - termo que mais tarde foi utilizado por Freud pa¬ ra designar o inconsciente e sua "alteridade" radical.

Esta metodologia, contudo, evoluiu, sob a influ¬ encia do cientismo, para um certo absolutismo fisicalis¬ ta, do qual faz parte a negação de uma consciência ima¬ terial e não-metrificável, ou mesmo da mera possibilida¬ de de uma tal consciência existir como centro de experi¬ ência subjetivo. Sob o impacto deste fisicalismo, defi¬ niu-se progressivamente uma certa abordagem dos "fatos psíquicos", reduzidos de mais em mais a componentes ele¬ mentares, atomísticos - redução inevitável para satisfa¬ zer os critérios de exatidão e de repetição e que trou- xe, de fato, uma soma impressionante de descobertas so bre o funcionamento psíquico nos seus aspectos materi¬ ais, psicofísicos e psicofisiológicos. Não há dúvida, entretanto, de que esta investigação febril dos "fatos psíquicos" foi levada a cabo na esperança de poder, pau¬ latinamente, aumentar a "certeza" objetiva sobre este funcionamento, até finalmente alcançar a fórmula matemᬠtica pura e unívoca.

A psicofísica de Fechner e depois de Helmholtz exerceu um efeito muito grande, entre outros, sobre Wundt, que participou do mesmo entusiasmo e otimismo pa¬ ra criar a "psicologia exata". Sua ambição abertamente expressa era de fundamentar não mais a psicofisiologia, mas a psicologia como ciência exata, baseada na experi¬

mentação. Todavia, para distinguir a psicologia da físi¬ ca e da psico-fisiologia, Wundt ainda referiu-se à noção de vivência (ou de experiência), quer dizer, ainda reco¬ nheceu uma consciência subjetiva. Deste modo, quando uma estimulação sensorial atinge os nervos sensoriais, tra¬ tar-se-ia de um processo físico; mas quando esta estimu¬ lação dos nervos sensoriais produz uma sensação vivida, experimentada, estamos diante de um fenômeno psíquico.

Percebemos, pois, que Wundt não defendeu uma po¬ sição absolutista, como também não defendeu a psicologia experimental como fonte única de conhecimentos psicológi¬ cos. Segundo ele, outros métodos podem alcançar um grau elevado de certeza, como por exemplo o "método históri¬ co", aplicado por ele na sua "psicologia dos povos", cu¬ ja edição ultrapassou dez volumes. Todavia, não foi com esta obra que Wundt entrou na história da psicologia,mas como fundador da corrente experimental. Mueller (1979) lembra, aliás, a este propósito, que as contribuições propriamente cientificas de Wundt não merecem o mesmo destaque que a fundação do primeiro laboratório (e da primeira revista) de psicologia, o que testemunha mais uma vez o artefato do nascimento da nova ciência.

AS PREMISSAS DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA E SEUS MITOS

Wundt, com certeza, não pode ser considerado co¬ mo responsável pelos abusos ou ainda pela absolutização cometidos pelos defensores da "psicologia exata", mesmo que tenha participado ativamente em sua implantação. Ten¬ tarei em seguida uma abordagem menos histórica e mais sistemática, insistindo sobre certas premissas desta psi¬ cologia exata ou positiva, bem como sobre as implicações ideológicas desta "postura".

O positivismo, disse, substitui o cartesianismo, base da psicologia racional (ou introspectiva), acabando desta maneira com a visão essencialmente dualista do ser humano - dando ênfase então a um certo monismo, à preva¬

Tanto o ritual quanto o irracional, que o pri¬ meiro tem que mascarar, podem facilmente ser relaciona, dos com a noção de mito. O próprio edifício da psicolo¬ gia científica pode, de fato, ser comparado com uma no- va mitologia, destinada a apresentar em moldes novos um desejo antigo, a saber, o desejo de poder remontar as origens e transcender as falhas da propria existência, a própria fragilidade diante do universo circundante, através de representações seguras e estáveis de si -mas eventualmente auto-tapeadoras. Neste sentido, esta mito¬ logia baseia-se em três elementos, três mitos parciais, a saber:

  • a quantificação e o mito da sua possibilidade no estudo do homem;
  • a objetivação e o mito do seu ideal no estudo do homem;
  • a abstração e o mito de sua relevância no es¬ tudo do homem. Estes três princípios são reunidos na exigência da experimentação. Eles, evidentemente, não são míticos em si, mas formam um mito quando transpostos diretamen¬ te das ciências exatas para a exploração do homem. Vere¬ mos brevemente como estas características "ideais" de uma ciência positiva entram em choque com a realidade huma¬ na. Do aspecto quantitativo já falamos a propósito do modelo matemático e seu ideal de formalização, ina¬ plicável ao estudo do homem concreto, quer dizer, vivo e histórico, portador de significações. A evolução das ciências humanas dos últimos 30 ou 40 anos demonstrou, no entando, que uma formalização das descobertas sobre o ser humano (e suas produções, como, por exemplo, seus mitos) e possível sem referência à mera quantificação, a saber, a nível de certos sistemas relacionais levando em conta aspectos quantitativos e significantes. Utili¬ zados na lingüistica e na antropologia estrutural (ou até na psicanálise), uma tal formalização visa apreen¬

der os circuitos simbólicos (cf. Fraisse, 1976) e suas codificações e combinatórias transindividuais. Mas mes¬ mo esta formalização "estrutural" entra rapidamente em contradições insolúveis, quando aplicada ao homem con¬ creto; este representa um sistema essencialmente aberto

  • e é isolável, quando muito, do seu ambiente, mas não da sua história vivida. Por isso, o modelo quantitati¬ vo, baseado no princípio de causalidade (e, em seguida, da conservação da energia), é meramente reducionista quando aplicado a dimensões significantes e simbólicas
    • que não se deixam encerrar em perspectivas causalis¬ tas ou energéticas, como o próprio Freud já reconheceu, apesar de sua formação e crença positivistas. A abstração, em seguida, já foi considerada co¬ mo característica essencial da nossa civilização; na psicologia, ela seria decorrente de uma "concepção aris¬ tocrática do homem" (Politzer), desprezando os pormeno¬ res da sua existência. Ela se torna indispensável para a consecução de leis gerais do comportamento. Mas tra¬ ta-se então, necessariamente, do "homem geral" (ou ain¬ da do adulto normal e civilizado, que não tem "existên¬ cia", a não ser na ficção). A esta abstração, via obri¬ gatória de qualquer objetivação, opõe-se a implicação de toda relação humana, ou seja, o fato de o observador estar presente, estar implicado na relação com o obser¬ vado humano, com o qual se estabelecem logo relações de comunicação e de significação, transcendendo a pura ob¬ servação. A distância abstrativa é, pois, constitutiva do objeto, e isto tanto mais que ela se serve da obser¬ vação visual. Basta lembrar aqui a análise magistral feita por Sartre do olhar e da objetivação inerente à sua ação, em oposição à presença que, embora não imedia¬ ta, visa diminuir a distância, podendo utilizar para es¬ te fim a mediação da linguagem. Esta visa à vivência concreta do outro, mas mantém uma certa distância, res¬ peitando deste modo a alteridade do outro. A nível clínico, podemos lembrar ainda a impo¬ tância da verbalização, enquanto comunicação intersubje¬

que os dados das ciências do comportamento deveriam ser examinados sob três ângulos (interdependentes):

  • o comportamento do objeto;
  • as perturbações criadas pela existência e pe¬ la atividade do observador;
  • o comportamento do observador e suas expecta¬ tivas (que dependem, entre outros, de suas hipóteses!), suas angústias, suas estraté¬ gias, manobras (defensivas) e decisões. Estes aspectos tocam diretamente o problema da experimentação, bastião das três características cita¬ das e tabu sagrado da nossa psicologia positiva. A este propósito, e para resumir estas considerações, podemos lembrar um trabalho de Skinner, de 1958, intitulado "A fuga do laboratório". Alí, o grande behaviorista criti¬ ca a fuga rumo ao "homem interior" e as "pessoas concre¬ tas", como sendo uma tentação à qual devemos saber re¬ sistir... Mas antes de estigmatizar uma tal fuga do la¬ boratório, não deveríamos primeiro questionar-mo-nos so¬ bre a fuga para dentro do laboratório? A fuga para a abstração, objetivaçao, quantificação, diante das difi¬ culdades encontradas em frente à opacidade, à falta de transparência que nos oferece o homem concreto, subjeti¬ vo e histórico - opacidade esta que é também a nossa própria, coextensiva à condição humana e responsável pe¬ la incompreensão que manifestamos habitualmente diante de nós mesmos. A esta falta de transparência, podemos ser tentados a opor a "clareza" sedutora emanente do la¬ boratório; mas não será uma tal clareza positiva obtida ao preço de uma redução, de uma simplificação excessi¬ va, ou ainda de um empobrecimento da dimensão especifi¬ camente humana, considerada tantas vezes como um sim¬ ples "ruído", parasitário e incômodo, a ser eliminado para que os fatos possam ser encaixados nos moldes posi¬ tivos...? Entretanto, este ruído, esta opacidade poderiam conter elementos importantíssimos para a compreensão do

homem - apreensível nos seus aspectos qualitativos e subjetivos, desde então, somente através de uma intera¬ ção, de um movimento dialético complexo. Um tal movimen¬ to dialético é" imprescindível na abordagem deste homem subjetivo e qualitativo, porque este representa não um sistema fechado, como já foi lembrado, nem um sistema linear ou causalista, determinado por algumas poucas va riáveis, mas um "sistema crono-holístico" (Devereux), ou seja, uma globalidade determinada pelo conjunto de sua memória, sempre presente com todas as suas ramifica¬ ções. Esta característica - intimamente ligada, aliás, ao inconsciente e à sua atuação dinâmica - impossibili¬ ta, ainda, a predição exata de comportamentos futuros, o que significa que um outro critério importante das ciências exatas não se deixa aplicar ao estudo do ho¬ mem.

Diante desta rápida análise da ciência psicoló¬ gica e das suas premissas positivistas, devemos concor¬ dar com Koch (1977) , segundo o qual a psicologia, enca¬ rada deste ângulo, se tornava uma "ciência de imita¬ ção", uma vez que muitos dos seus conceitos emprestados de outras ciências têm uma significação diferente quan- do aplicados ao estudo do homem concreto. Uma tal ciên_ cia de imitação pode, na opinião deste autor americano, reunir muitos resultados numéricos de detalhe, mas leva inevitavelmente à fuga diante do objeto específico de sua pesquisa e, finalmente, à sua "desvaliação". A his¬ tória da psicologia científica testemunha suficiente¬ mente este aspecto, se pensarmos, por exemplo, no fato de a maioria dos grandes modelos teóricos de uma época não sobreviverem à geração de seus fundadores, sendo eles prontamente substituídos na geração seguinte. De sorte que a psicologia está longe de ser uma ciência cu¬ mulativa como o são as ciências exatas (pelo menos ao nível de um paradigma dado, no sentido de Kuhn).

Todavia, me parece que não precisamos seguir Koch quando conclui que a psicologia é uma "disciplina fraudulosa", baseada mais num "rigor científico de imi¬