



















Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
5). Po- rém, embora a entrevista estruturada tenha boas características psicométricas, a questão diagnostica, ainda que em situação melhor,.
Tipologia: Notas de estudo
1 / 27
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Livre-docente em Psicologia Clínica. Doutora em Filosofia. Professora aposentada dos Cursos de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisadora associada ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
5^ edição revisada e ampliada
Reimpressão 2008
2000
s sementes da avaliação psicológica, que hoje constitui uma das funções do psicó- logo, foram lançadas numa fase que abrangeu o fim do século XIX e o início do século XX, época que marcou a inauguração do uso dos testes psicológicos. Historicamente, portanto, justifica-se a imagem que o leigo formou do psicólogo, como um profissional que usa tes- tes, já que principalmente testólogo é o que ele foi, na primeira metade do século XX (Gro- th-Marnat, 1999). Atualmente, o psicólogo uti- liza estratégias de avaliação psicológica, com objetivos bem definidos, para encontrar res- postas a questões propostas com vistas à solu- ção de problemas. A testagem pode ser um passo importante do processo, mas constitui apenas um dos recursos de avaliação possíveis. Psicodiagnóstico é uma avaliação psicológica, feita com propósitos clínicos; portanto, não abarca todos os modelos de avaliação psicoló- gica de diferenças individuais (Cunha eí alii, 1993; Cunha, 1996). Estratégias de avaliação psicológica, como expressão cada vez mais utilizada na literatura específica, aplicam-se a uma variedade de abor- dagens e recursos à disposição do psicólogo no processo de avaliação. Em primeiro lugar, estratégia de avaliação pode-se referir ao enfoque teórico adotado pelo psicólogo. A avaliação psicológica foi fun-
damentalmente influenciada, durante o sécu- lo XX, pelas principais correntes de pensamen- to que salientaram, cada uma, a primazia do comportamento, do afeto e da cognição, na organização e no funcionamento do psiquis- mo humano. Na primeira metade do século XX, predo- minaram "conceituações com porta menta is e psicanalíticas", enquanto a segunda metade foi assinalada pela chamada "revolução cogniti- va" (Mahoney, 1993, p.8). A tais linhas de pensamento corresponde- ram, originariamente, estratégias de avaliação específicas, isto é, métodos e instrumentos tí- picos. Mas, já nas últimas décadas, foi toman- do corpo uma tendência para a integração, que já vinha se esboçando há algum tempo. Desse modo, a estratégia da avaliação comportamen- tal foi abdicando da simples identificação de comportamentos-alvo, perfeitamente distin- guíveis e observáveis, mas numa abordagem muito idiossincrásica, para começar a incorpo- rar modalidades cognitivas e, mesmo, afetivas, apesar das fortes objeções iniciais. Por outro lado, até psicólogos da mais tradicional orien- tação dinâmica têm, muitas vezes, recorrido a estratégias de outra orientação conceituai, devido a razões práticas ou científicas, neste caso, por vezes, pressionados por membros da comunidade académica para serem mais efi-
PSICODIAGNÓSTICO - V 19
Aqui, é o momento de lembrar o outro sen- tido em que pode ser empregada a expressão estratégias de avaliação, agora com referência específica às medidas do psicólogo. Embora, como no caso da entrevista, elas tenham sido algo desacreditadas, durante certo período, em vários países, estão numa fase de ascensão, não só por apresentarem, cada vez mais, melhor qualidade metodológica, mas porque, especial- mente do ponto de vista clínico, tornaram-se mais necessárias para resolver questões diag- nosticas, mormente após a valorização cien- tífica dos quadros de co-morbidade psiquiá- trica. Tais casos somente passaram a se consti- tuir em objeto de investigação por parte da co- munidade científica a partir de 1987, porque antes disso, nas classificações nosológicas, ha- via regras de exclusão hierárquica, que leva- ram a uma considerável perda de informações clínicas (Di Nardo & Barlow, 1990}. Um dos problemas observados teve relação com transtornos de ansiedade que, apesar da incidência mais tarde verificada, ocupavam uma posição hierarquicamente inferior ao transtorno de depressão maior, no DSM-III (APA, 1980), e, então, mesmo preenchendo critérios diagnósticos de um ou outro trans- torno de ansiedade específico, eram excluídos como diagnóstico adicional. Ora, como a con- dição de co-morbidade desses transtornos com o episódio de depressão maior, hoje, é reco- nhecidamente muito comum, é possível ima- ginar os reflexos de tal exclusão, como de ou- tras, não só para a compreensão do caso clíni- co e de sua etiologia, como, também, para a determinação de focos de intervenção clínica. Entretanto, as mudanças que ocorreram nas classificações, apesar de resolverem uma série de dificuldades, trouxeram complexas implica- ções não só para questões diagnosticas e tera- pêuticas, como também tiveram profundos re- flexos em modelos teóricos (Boulenger & La- vallée, 1993; Cloninger, 1990; Cunha & Streb, 1998; Hiller, Zandig & Bose; 1989; Lydiard, 1991; Mineka, Watson & Clark, 1998). Dessa maneira, pode-se afirmar que, com o decorrer do tempo, houve, indiscutivelmen- te, refinamentos nos sistemas de classificação,
como, da mesma forma, ficou mais abrangen- te o conceito de co-morbidade, com conse- quente melhoria das estratégias de avaliação. Mas estas sofrem, também, reflexos de ques- tões pendentes, tanto no que se refere à in- tensidade de sintomatologia, clinicamente im- portante para definir a situação de co-morbi- dade (Boulenger & Lavallée, 1993), como na caracterização de síndromes e na formulação diagnostica. Por exemplo, se, por um lado, a classificação do transtorno misto de ansieda- de e depressão foi proposta aparentemente para resolver um problema diagnóstico rela- cionado com co-morbidade, por outro lado, "carrega consigo o ónus dessa situação, isto é, confronta a questão de se determinar que ca- racteristicas distinguem tal categoria nosoló- gica, que sintomas se superpõem e em que medida" (Cunha, Streb & Serralta, 1997b, p.237). Em pesquisa, tal problemática pode ser fasci- nante, mas, na avaliação psicológica do caso individual, pode resultar em dúvidas cruciais, se está em jogo uma formulação diagnostica. Por outro lado, o psicólogo, muitas vezes, identifica sintomas subclínicos ou não, reco- nhecendo a necessidade de definir níveis de psi- copatologia, uma vez que estes costumam di- ferir se o examinando é um caso que está em tratamento psiquiátrico na comunidade, é um sujeito que recorre a centros de atenção médi- ca primária ou é um paciente de uma unidade psiquiátrica (Katon & Roy-Byrne, 1991). Consi- derando a importância de definirtaís níveis de psicopatologia, vem se observando um cres- cente interesse por um modelo dimensional, relacionado com instrumentos psicométricos, na avaliação de pacientes, que provavelmente terá reflexos no formato do DSM-V (Brown & Barlow, 1992). Tais estratégias de avaliação incluem instru- mentos de auto-relato e podem ser considera- das como medidas de sintomas ou de síndro- mes (Clark & Watson, 1991), Um exemplo do primeiro caso é o Inventário de Depressão de Beck, que é uma escala sintomática, e do se- gundo caso, um dos instrumentos mais usa- dos no mundo, o MM PI. Outras estratégias desse tipo podem diferir conforme a orienta- ção teórica do examinador, de acordo com as
PsiCODIAGNOSTICO - V 21
características do examinando e a questão pro- posta. Com tais perspectivas do ponto de vista clí- nico, salienta-se a importância do psicólogo bem se instrumentalizar, principalmente no que se refere a recursos psicométricos, já que a ne- cessidade principal, em nível de contribuição para o diagnóstico, tem sido definida como di- mensional (Brown & Barlow, 1992). Escalas, in- ventários e check-lists estão na ordem do dia. As escalas Wechsler e muitos outros instrumen- tos vêm sendo constantemente revisados, re- normatizados ou reapresentados (Hutz & Ban- deira, 1993), e intensificam-se os esforços para adaptações no Brasil. As chamadas WiS (We- chsler Intelligence Scales), cada vez menos empregadas para a determinação de nível in- telectual, constituem-se em importantes ins- trumentos para atender necessidades muito es- pecíficas no diagnóstico de psicopatologias e na avaliação neuropsicológica, e são um bom exemplo de tais esforços. Quanto às técnicas projetivas, também po- dem ser consideradas estratégias de avaliação. Historicamente caracterizadas por seu estilo de avaliação impressionista (Cronbach, 1996), que causa pruridos em académicos mais compro- metidos com uma posição científica sofistica- da, tiveram um declínio de seu uso em pesqui- sa, apesar de continuarem populares. "A maio- ria dos autores que defendem o seu uso o faz visando à exploração de aspectos dinâmicos da personalidade, que adquirem significado sob a ótica de um referencial teórico ao qual há difícil acesso via psicométrica" (Cunha S Nu- nes, 1996, p.341). Isso significa que não se pode simplesmente transformar uma técnica projetiva num teste psicométrico, embora mui- tas delas suportem o uso de procedimentos que permitem avaliar sua qualidade como medida. As razões pelas quais conservam sua popu- laridade são variadas. Hutz e Bandeira (1993) acham que, dentre as técnicas projetivas, se mantêm aquelas que "receberam refinamen-
tos em seus sistemas de avaliação e interpre- tação" (p.98). Já Dana (1984) comentava, com certo senso comum, que também se mantêm os instrumentos que aprendemos a usar em nossos cursos de graduação. É difícil substituí- los por instrumentos mais sofisticados e, as- sim, permanecem como herança académica de professor a aluno. As substituições, em seu modo de ver, ocorreriam por razões pragmáti- cas ou éticas. De nossa parte, acreditamos que um dos mais importantes fatores para a inova- ção e renovação, na área de testes, é a partici- pação em encontros ou em congressos de psi- cólogos. De alguma forma, pode-se pensar que as técnicas projetivas ambicionam medir o que Herman van Praag (1992) chamou de "psico- patologia subjetiva", que, embora considere, "por definição", mensurável, verificável e ex- tremamente importante para o diagnóstico, ao mesmo tempo, acha que tais recursos virtual- mente inexistem (p.255). Na realidade, ainda que as técnicas projeti- vas não tenham justificado todo o entusiasmo com que foram recebidas por muitos psicólo- gos, nem mereçam se constituir como meros estímulos para interpretações subjetivas, bas- tante literárias, e sejam suficientemente com- plexas para serem manejadas apenas numa base quantitativa, cientificamente muitas de- las possuem o seu status indiscutível como re- cursos importantes de avaliação psicológica e, segundo Gabbard (1998), especialmente, na avaliação psicodinâmica. Estratégias de avaliação é, pois, uma expres- são com uma abrangència semântica muito ampla e flexível, ainda que possa ser usada de maneira muito específica. Psicólogos lançam mão de estratégias quando realizam avaliações. Numa perspectiva clínica, a avaliação que é fei- ta comumente é chamada de psicodiagnósti- co, porque procura avaliar forças e fraquezas no funcionamento psicológico, com um foco na existência ou não de psicopatologia.
22 JUKEMA ALCIDES CUNHA
problemas. O psicometrista "utiliza testes para obter dados", e, em sua abordagem, "o pro- duto final é muitas vezes uma série de traços ou descrições de capacidades". Mas é impor- tante lembrar que "essas descrições tipicamen- te não estão relacionadas com o contexto to- tal da pessoa e nem se voltam para os proble- mas singulares que ela possa estar enfrentan- do" (p.3). Por outro lado, ainda no século passado, a comunidade científica foi muito marcada pe- las descobertas ocorridas no campo da biolo- gia, com início na verificação da "correlação de sindromes clínicas com modificações mor- fológicas observadas na autópsia" (Klerman, 1990, p.15) e continuada por outra série de descobertas, como pelas "tentativas feitas para correlacionar sindromes mentais com achados de autópsia e dados bacteriológicos" (p.16). A base científica fornecida à medicina pela bio- logia levava psiquiatras a buscarem as causas da doença mental no organismo e, em espe- cial, no sistema nervoso central. Em consequên- cia, "os pacientes psiquiátricos, não mais con- siderados lunáticos, se tornaram 'nervosos' (...) ou 'neuróticos'" (Wolman, 1965, p. 1121 >. Dessa época data a divisão dicotômica dos transtornos psiquiátricos em "orgânicos" e "funcionais". Foi nessa escola pré-dinâmica da psiquiatria que surgiu Kraepelin, que se nota- bilizou por seu sistema de classificação dos transtornos mentais e, especialmente, por seus estudos diferenciais entre esquizofrenia e psi- cose maníaco-depressiva. Em consequência, as classificações nosológicas e o diagnóstico di- ferencial ganharam ênfase. Não obstante, mesmo no período entre as duas grandes guerras, a classificação das doen- ças mentais pressupunha uma hierarquia, con- forme o modelo médico, em grandes classes: "transtornos mentais orgânicos, psicoses, neu- roses, transtornos de personalidade e estados reativos/transitórios". Quando se evidenciava uma condição orgânica, esta "tomava prece- dência sobre todos os outros diagnósticos" (Klerman, 1990, p.18). Neste cenário, tiveram especial importância as obras de Freud e Krae- pelin, caracterizando bem a diferença entre estados neuróticos e psicóticos, dentre os trans-
tornos classificados como funcionais (não-or- gânicos). Tal distinção foi considerada muito ade- quada porque "parecia combinar cinco aspectos da psicopatologia, simultaneamente: 1) sintomas descritivos; 2) causação presumida; 3) psicodi- nâmica; 4) justificação para hospitalização; 5) recomendação sobre tratamento" (p.18-19). Deste modo, Freud, que provinha da me- lhor tradição neurofisiológica, representou o primeiro elo de uma corrente de conteúdo di- nâmico, logo seguido pelo aparecimento do teste de associação de palavras, de Jung, em 1906, e fornecendo lastro para o lançamento, mais tarde, das técnicas projetivas. Nesse cenário, Rorschach publicou sua mo- nografia, em 1921, que teve maior divulgação na década seguinte. O teste passou a ser utili- zado como um passo essencial (e, às vezes, único) do processo de diagnóstico. A grande popularidade alcançada nas décadas de qua- renta e cinquenta é atribuída ao fato de que "os dados gerados peio método eram compa- tíveis com os princípios básicos da teoria psi- canalítica" (Vane & Guarnaccia, 1989, p.7). Esse foi o período áureo das técnicas de personalidade. Embora o Rorschach e o TAT fossem os instrumentos mais conhecidos, co- meçaram a se multiplicar rapidamente as téc- nicas projetivas, como o teste da figura huma- na, o Szondi, o MPAS e tantos outros. 0 entusiasmo que cercou o advento das técnicas projetivas pode ser, em grande parte, explicado por dois fatores de peso: 1) o fato de que os testes, tão valorizados na época an- terior, principalmente na área militar e da in- dústria, já não pareciam tão úteis "na avalia- ção de problemas da vida (neurose, psicose, etc.)" (Groth-Marnat, 1999, p.4), e 2) a valori- zação atribuída pela comunidade psiquiátrica ao entendimento dinâmico. Entretanto, a partir de então, as técnicas projetivas começaram a apresentar certo de- clínio em seu uso, por problemas metodológi- cos, pelo incremento de pesquisas com instru- mentos alternativos, como o MMPI e outros inventários de personalidade, por sua associa- ção com alguma perspectiva teórica, notavel- mente a psicanalítica (Goldstein & Hersen, 1990), e pela ênfase na interpretação intuitiva
24 JUREMA ALCIDES CUNHA
apesar dos esforços para o desenvolvimento de sistemas de escore (Vane & Guarnaccia, 1989). Apesar disso, essas técnicas ainda são bastante utilizadas, embora com objeções, por parte dos psicólogos que propugnam por avalia- ções de orientação com porta mental e biológica. Atualmente, há indiscutível ênfase no uso de instrumentos mais objetivos, interesse por entrevistas diagnosticas mais estruturadas, notadamente com o incremento no desenvol- vimento de avaliações computadorizadas de per- sonalidade, que vêm oferecendo novas estraté- gias neste campo (Butcher, Keller & Bacon, 1985). Também, as necessidades de manter um embasamento científico para oferecer respos- tas adequadas e compatíveis com os progres- sos de outros ramos da ciência, especialmente em termos de questões diagnosticas, criadas por modificações introduzidas nas classifica- ções oficiais, têm levado à revisão, renormatiza- ção e criação de novas estratégias de avaliação. Aliás, Zacker, já em 1989, afirmava que o reconhecimento da qualidade do psicodiag- nóstico tem que ver, em primeira lugar, com um refinamento dos instrumentos e, em segun- do lugar, com estratégias dçmarketing de que o psicólogo deve lançar mão para aumentar a utilização dos serviços de avaliação pelos re- ceptores de laudos. Na mesma década, Groth- Marnat (1984) salientava a importância do pro- fissional se familiarizar com as reais necessida- des do usuário, observando que, muitas vezes, psicólogos competentes acabam por "fornecer uma grande quantidade de informações inú- teis para as fontes de encaminhamento" (p.20) por falta de uma compreensão adequada das verdadeiras razões que motivaram o encami- nhamento ou, em outras palavras, por desco- nhecimento das decisões que devem ser toma- das com base nos resultados do psicodiag- nóstico. Recentemente f 1999), insistiu na mes- ma ideia, afirmando que o psicólogo clínico deve "entender o vocabulário, o modelo con- ceituai, a dinâmica e as expectativas da fonte de encaminhamento*" <p.31).
*N. da A. Em inglês, referral setting, para o que é difícil encontrai equivalência precisa em português.
As sugestões apontadas, de conhecer as necessidades do mercado e de desenvolver es- tratégias de conquista desse mercado, pare- cem se fundamentar na pressuposição de que o psicólogo, sobrecarregado com suas tarefas, não está avaliando a adequabilidade de seus dados em relação ao público usuário. Mas que público é esse? Que serviços ou profissionais podem ter necessidade de solici- tar psicodiagnósticos? Primeiramente, vejamos onde costuma trabalhar um psicólogo que lida com psicodiagnóstico. Segundo Groth-Marnat (1999), o psicólogo clínico mais frequentemen- te exerce suas funções numa instituição que presta serviços psiquiátricos ou de medicina geral, num contexto legai ou educacional, bem como em clínicas psicológicas. Em termos de Brasil, embora cada vez mais se encontrem pro- fissionais da psicologia trabalhando nesses ambientes, especialmente em instituições de cuidados com a saúde, é muito comum que o psicodiagnóstico se realize em clínicas ou em consultórios psicológicos, em que ele recebe encaminhamento principalmente de médicos psiquiatras ou de outra especialidade (pedia- tras, neurologistas, etc), da comunidade es- colar, de juizes ou de advogados, ou atende casos que procuram espontaneamente um exa- me, ou são recomendados a fazê-lo por algum familiar ou amigo. A questão básica com que se defronta o psicólogo é que, embora um encaminhamen- to seja feito, porque a pessoa necessita de sub- sídios para basear uma decisão para resolver um problema, muitas vezes ela não sabe clara- mente que perguntas levantar ou, por razões de sigilo profissional, faz um encaminhamen- to vago para uma "avaliação psicológica". Em consequência, uma das falhas comuns do psi- cólogo é a aceitação tácita de tal encaminha- mento, com a realização de um psicodiag- nóstico, cujos resultados não são pertinentes às necessidades da fonte de solicitação. É, pois, responsabilidade do clinico manter canais de comunicação com os diferentes ti- pos de contextos profissionais para os quais trabalha, familiarizando-se com a variabilida- de de problemas com que se defrontam e co- nhecendo as diversas decisões que os mesmos
PstCOOIAGNOSTICO - V 25
QUADRO 2.1 Objetivos de uma avaliação psicológica clinica Objetivos
Classificação nosotógica
Prognóstico
Especificação Classificação O exame compara a amostra do comportamento do examinando com os resultados de outros simples sujeitos da população geral ou de grupos específicos, com condições demográficas equivalen- tes; esses resultados são fornecidos em ciados quantitativos, classificados sumariamente, como em uma avaliação de nível intelectual. Descrição Ultrapassa a classificação simples, interpretando diferenças òe escores, identificando forças e fraquezas e descrevendo o desempenho do paciente, como em uma avaliação de déficits neu- ropsicológicos. Hipóteses iniciais são testadas, tomando como referência critérios diagnósticos
Diagnóstico São investigadas irregularidades ou inconsistências do quadro sintomático, para diferenciar diferencial alternativas diagnosticas, níveis de funcionamento ou a natureza da patologia. Avaliação É determinado o nível de funcionamento da personalidade, são examinadas as funções 6o ego, compreensiva em especial a de insight, condições do sistema de defesas, para facilitar a indicação de recur- sos terapêuticos e prever a possível resposta aos mesmos. Entendimento Ultrapassa o objetivo anterior, por pressupor um nível mais elevado de inferência clínica, ha- dinãmico vendo uma integração de dados com base teórica. Permite chegar a explicações de aspectos com porta mentais nem sempre acessíveis na entrevista, à antecipação de fontes de dificulda- des na terapia e à definição de focos terapêuticos, etc. Prevenção Procura identificar problemas precocemente, avaliar riscos, fazer uma estimativa de forças e fraquezas do ego. de sua capacidade para enfrentar situações novas, difíceis, estressantes. Determina o curso provável do caso. Perícia forense Fornece subsídios para questões relacionadas com "insanidade", competência para o exercício das funções de cidadão, avaliação de incapaciòades ou patologias que podem se associar com infrações da lei, etc. Fonte: Cunha, in Taborda. Prado-Lima & Busnello, 1996, p.51 (reproduzido com autorização da Editora).
suscetíveis de interpretação. Então, teria con- dições de identificar forças e fraquezas no fun- cionamento intelectual. No caso, o objetivo do exame seria de descrição. Mas, se se detivesse a examinar certos erros e desvios, poderia le- vantar pistas que servissem de base para hipó- teses sobre a presença de déficits cognitivos. O objetivo ainda seria o de descrição, mas o processo seria mais complexo. Também seria descritivo o exame do esta- do mental do paciente ou o exame das fun- ções do ego, frequentemente realizados sem a administração de testes, pelo que não são de competência exclusiva do psicólogo. O exame do estado mental do paciente, por exemplo, é um tipo de recurso diagnóstico que envolve a exploração da presença de sinais e sintomas, eventualmente utilizando provas muito sim- ples, não-padronizadas, para uma estimati- va sumária de algumas funções, como aten-
ção e memória. Este constitui um exame sub- jetivo de rotina em clínicas psiquiátricas, muitas vezes complementado por um exame objetivo. Frequentemente, dados resultantes desse exame, da história clínica e da história pessoal permitem atender ao objetivo de classificação nosológica. Essa avaliação com tal objetivo é realizada pelo psiquiatra e, também, pelo psi- cólogo, quando o paciente não é testável. Nes- se caso específico, pode-se dizer que ambos usam preferencialmente um modelo categóri- co para analisar a psicopatologia, isto é, de- vem fazer um julgamento clínico sobre a pre- sença ou não de uma configuração de sinto- mas significativos (Dobson & Cheung, 1990). Dessa maneira, estariam verificando o que o paciente tem de similar com outros pacientes na mesma categoria diagnostica. Se o traba- lho se restringisse a chegar a um código classi-
PsicoDIAGNÓSTICO - V 27
ficatório, não caberia a sua qualificação como psicodiagnóstico propriamente dito. Não obstante, quando o paciente apresen- ta condições para testagem, é possível se de- senvolver um psicodiagnóstico em estrito sen- so: o psicólogo organiza seu plano de avalia- ção e lança mão de uma bateria de testes, para verificar cientificamente suas hipóteses, ou, ainda, para levantar outras a serem analisadas, conforme a história e o contexto de vida do paciente. A classificação nosológica, além de facilitara comunicação entre profissionais, con- tribui para o levantamento de dados epidemio- lógicos de uma comunidade. Assim, deve ser usada, mas, num psicodiagnóstico, a tarefa não se restringe a conferir quais os critérios diag- nósticos que são preenchidos pelo caso. Outro objetivo praticamente associado a esse é o de diagnóstico diferencial. 0 psicólo- go investiga irregularidades e inconsistências do quadro sintomático e/ou dos resultados dos testes para diferenciar categorias nosológicas, níveis de funcionamento, etc. Naturalmente, para trabalhar com tal objetivo, o psicólogo, além de experiência e de sensibilidade clínica, deve ter conhecimentos avançados de psico- patologia e de técnicas sofisticadas de diag- nóstico. 0 objetivo de avaliação compreensiva con- sidera o caso numa perspectiva mais global, determinando o nível de funcionamento da personalidade, examinando funções do ego, em especial quanto a insight, para indicação terapêutica ou, ainda, para estimativa de pro- gressos ou resultados de tratamento. Não che- ga necessariamente à classificação nosológica, embora esta possa ocorrer subsidiariamente, uma vez que o exame pode revelar alterações psicopatológicas. Mas, de qualquer forma, envolve algum tipo de classificação, já que a determinação do nível de funcionamento é especialmente importante para a indicação te- rapêutica, definindo limites da responsabilida- de profissional. Assim, um paciente em surto poderia requerer hospitalização e prescrição farmacológica sob os cuidados de um psiquia- tra. Um paciente que enfrenta uma crise vital pode se beneficiar com uma terapia breve com um psicoterapeuta. Pressupõe-se que certas
funções do ego estejam relativamente intac- tas para que haja uma resposta terapêutica adequada para determinados tipos de trata- mento. Basicamente, podem não ser utilizados tes- tes. Esse é um objetivo explícito ou implícito nos contatos iniciais do paciente com psiquia- tras, psicanalistas e psicólogos de diferentes linhas de orientação terapêutica. Entretanto, se o objetivo é atingido por meio de um psico- diagnóstico, obtêm-se evidências mais objeti- vas e precisas, que podem, inclusive, servir de parâmetro para avaliar resultados terapêuticos, mais tarde, através de um releste. O objetivo de entendimento dinâmico, em sentido lato, pode ser considerado como uma forma de avaliação compreensiva, já que enfo- ca a personalidade de maneira global, mas pressupõe um nível mais elevado de inferência clínica. Através do exame, procura-se enten- der a problemática de um sujeito, com uma dimensão mais profunda, na perspectiva his- tórica do desenvolvimento, investigando fato- res psicodinâmicos, identificando conflitos e chegando a uma compreensão do caso com base num referencial teórico. Um exame desse tipo requer entrevistas muito bem conduzidas, cujos dados nem sem- pre são consubstanciados pelos passos especí- ficos de um psicodiagnóstico, não sendo, por- tanto, um recurso privativo do psicólogo clíni- co. Frequentemente, combina-se com os obje- tivos de classificação nosológica e de diagnós- tico diferencial. Porém, quando é um objetivo do psicodiagnóstico, leva não só a uma abor- dagem diferenciada das entrevistas e do ma- terial detestagem, como a uma integração dos dados com base em pressupostos psicodinâ- micos. Um psicodiagnóstico também pode ter um objetivo de prevenção. Tal exame visa a identi- ficar problemas prococemente, avaliar riscos, fazer uma estimativa de forças e fraquezas do ego, bem como da capacidade para enfrentar situações novas, difíceis, conflitivas ou ansio- gências. Em sentido lato, pode ser realizado por outros profissionais de uma equipe de saú- de pública. Muitas vezes, é levado a efeito uti- lizando recursos de triagem, procurando atin-
28 JUREMA ALCIDES CUNHA
talizados, e eram identificados sinais e sinto- mas que compunham as síndromes. No período freudiano, a abordagem mu- dou. Os pacientes atendidos não apresentavam quadros tão severos, não estavam internados, e, embora fossem levados em conta os seus sintomas, estes eram percebidos de maneira compreensiva e dinâmica. Esta tendência de considerar os pacientes em termos de duas grandes categorias de trans- tornos de certa forma persiste. Os pacientes que apresentam transtornos mais graves e que podem precisar de hospitalização tendem a ser encaminhados para psiquiatras, enquanto os casos menos graves costumam ser encaminha- dos para psicólogos ou psiquiatras, de acordo com o conceito de transtorno mental e da ava- liação da gravidade dos sintomas pela pessoa que identifica o problema e faz o encaminha- mento. Na realidade, a atribuição da respon- sabilidade pelo diagnóstico tradicionalmente vem se baseando numa avaliação sumária do caso e numa expectativa do tipo de tratamen- to necessário. Mas essa posição vem tenden- do a mudar pela consideração do tipo de exa- me que o caso individual requer. Atualmente, com possível exceção das urgências psiquiátri- cas, os encaminhamentos começam a ser fei- tos tendo em vista a complexidade do caso e não a sua gravidade, e, conseqúentemente, a necessidade de que o diagnóstico seja feito por meio de um exame mais ou menos sofisticado. A definição mais explícita dos casos, cujo diagnóstico deve ser da responsabilidade do psicólogo, pelos membros da sociedade em geral, vai depender essencialmente da atua- çâo profissional do psicólogo e da adequabi- lidade das respostas que puder dar ás necessida- des reais do mercado. Sua identidade se associa, portanto, à qualidade do seu desempenho.
OPERACIONALIZAÇÃO
Em termos de operacionalização, devem ser considerados os comportamentos específicos do psicólogo e os passos para a realização do diagnóstico com um modelo psicológico de natureza clínica.
Comportamentos específicos
Os comportamentos específicos do psicólogo podem ser assim relacionados, embora possam variar na sua especificidade e na sua seriação, conforme os objetivos do psicodiagnóstico: a) determinar motivos do encaminhamen- to, queixas e outros problemas iniciais; b) levantar dados de natureza psicológica, social, médica, profissional e/ou escolar, etc. sobre o sujeito e pessoas significativas, solici- tando eventualmente informações de fontes complementares; c) colher dados sobre a história clínica e his- tória pessoal, procurando reconhecer denomi- nadores comuns com a situação atual, do pon- to de vista psicopatológico e dinâmico; d) realizar o exame do estado mental do paciente (exame subjetivo), eventualmente complementado por outras fontes (exame ob- jetivo); e) levantar hipóteses iniciais e definir os objetivos do exame; f) estabelecer um plano de avaliação; g) estabelecer um contrato de trabalho com o sujeito ou responsável, h) administrar testes e outros instrumentos psicológicos; i) levantar dados quantitativos e qualitati- vos; j) selecionar, organizar e integrar todos os dados significativos para os objetivos do exa- me, conforme o nível de inferência previsto, com os dados da história e características das circunstâncias atuais de vida do examinan- do; I) comunicar resultados (entrevista devolu- tiva, relatório, laudo, parecer e outros infor- mes), propondo soluções, se for o caso, em be- nefício do examinando; m) encerrar o processo.
Passos do diagnóstico (modelo psicológico de natureza clínica)
De forma bastante resumida, os passos do diag- nóstico, utilizando um modelo psicológico de natureza clínica, são os seguintes:
30 JUREMA ALCIDES CUNHA
a) levantamento de perguntas relacionadas com os motivos da consulta e definição das hipóteses iniciais e dos objetivos do exame; b) planejamento, seleção e utilização de instrumentos de exame psicológico; c) levantamento quantitativo e qualitativo dos dados;
d) integração de dados e informações e for- mulação de inferências pela integração dos dados, tendo como pontos de referência as hipóteses iniciais e os objetivos do exame; e) comunicação de resultados, orientação sobre o caso e encerramento do processo.
PSICODIAGNÕSTICO - V 31
mento [coping] e defesas psicológicas do pa- ciente" (Yager & Gitlin, 1999, p.692). Esta pré-história de um estudo de caso é importante porque a percepção da dificulda- de, a gravidade maior ou menor atribuída a um ou a vários sintomas, as dúvidas sobre a existência de patologia, a confiabilidade de quem possa ter sugerido urna avaliação psico- lógica, para não falar em atitudes preconcei- tuosas sobre a possibilidade de doença men- tal, além de outros fatores, tudo pode influir na dinâmica da interação clínica, na maior ou menor atitude de colaboração durante a tes- tagem e na seletividade das informações pres- tadas. Conseqúentemente, se a consulta foi precedida de uma fase tumultuada e crítica, com forte sobrecarga emocional, pode haver uma facilitação da ocorrência de percepções distorcidas, de fantasias variadas e de um in- cremento de defesas dificultando a coleta de dados. Cabe, pois, ao psicólogo examinar as cir- cunstâncias que precederam a consulta, ava- liar as maneiras de perceber o problema e de- limitá-lo, atribuindo a sinais e sintomas sua sig- nificação adequada. Esta não é uma tarefa fá- cil, principalmente para o psicólogo iniciante.
SINAIS E SINTOMAS
Fala-se em sinais e sintomas na psicologia e na psiquiatria, mas tal terminologia é oriunda da medicina. Em sentido lato, tais termos têm uma acepção comparável nas três áreas. Em geral, referem-se a sinais, para designar comporta- mentos observáveis, "achados objetivos" (Ka- plan & Sadock, 1999b, p.584), enquanto os sin- tomas são experiências do sujeito, são por ele sentidos. Entretanto, essa diferenciação se tor- na vaga ou praticamente inexistente no âmbi- to da doença mental, porque esta envolve es- tados internos, psicopatologia subjetiva, difí- cil de descrever. E, "em comparação com os transtornos médicos" - salientam Yager e Git- lin (1999) - "os transtornos psiquiátricos não podem ser entendidos sem uma completa ava- liação e compreensão do amplo contexto das queixas do paciente" (p.694). Por outro lado,
os medos, por exemplo, sao sentidos pelo su- jeito, mas também podem se expressar atra- vés de comportamentos observáveis. Parece que, se tomarmos num sentido am- plo, a distinção torna-se uma questão de pon- to de vista. 5haw (1977), por exemplo, afirma- va que "sintoma é um sinal" (p.8), porque se torna significativo na medida em que eviden- cia uma perturbação. Então, é considerado como um sinal de perturbação, que pode pre- cocemente servir de alerta, mesmo que não tenha sido registrada qualquer queixa explíci- ta, isto é, mesmo que não tenha se verificado a identificação de um sintoma. Por outro lado, na prática, fala-se em sin- toma quando parece possível atribuir-lhe uma significação mais clínica. Pode-se, en- tão, afirmar "que os sintomas estão presen- tes quando os limites da variabilidade nor- mal são ultrapassados" (Yager & Gitlin, 1999, p.693).
CRITÉRIOS USUAIS DE DEFINIÇÃO DE UM PROBLEMA
Um problema é identificado quando sào reco- nhecidas alterações ou mudanças nos padrões de comportamento comum, que podem ser percebidas como sendo de natureza quantita- tiva ou qualitativa. Se, corno observam Kaplan e Sadock (1999b), a maioria das manifestações de trans- tornos psiquiátricos representa variações de di- ferentes graus de um continuum entre saúde mental e psicopatologia, então, na maior par- te das vezes, as mudanças percebidas são de natureza quantitativa. Pode-se falar, em primeiro lugar, em altera- ções autolimitadas, que se verificariam pela presença de um exagero ou diminuição de um padrão de comportamento usual, dito normal. Tais mudanças quantitativas podem ser obser- vadas em várias dimensões, como na ativida- de (motora, da fala, do pensamento), no hu- mor (depressão vs. euforia), em outros afetos (embotamento, excitação), etc. Frequentemen- te, esse tipo de alterações surge como respos- ta a determinados eventos da vida, e a pertur-
PSICODIAGMÓSTICO - V 33
baçao é proporcional às causas, ficando cir- cunscrita aos efeitos estressantes dos mesmos. Não obstante, se sua intensidade for despro- porcional às causas e/ou tal alteração persistir além da vigência normal dos efeitos das mes- mas (por exemplo, no luto patológico), já pode ter uma significação clínica. Naturalmente, deve ser considerada a possibilidade de outras variações, quando uma alteração aparentemen- te pareceu ser autolimitada, mas reaparece sob diferentes modalidades, numa mutação sinto- mática, ou da mesma maneira, repetitivamen- te, de forma cíclica, Por certo, esses critérios de intensidade e/ ou persistência podem ser também aplicados à dimensão desenvolvimento, considerando os limites de variabilidade para a aprendizagem de novos padrões de comportamento, para certos comportamentos imaturos serem supe- rados, em determinadas faixas etárias. Por exemplo, o controle definitivo do esfíncter ve- sical deve ser alcançado, no máximo, ao redor dos três anos. Então, um episódio de aparente fracasso em fase posterior não teria maior sig- nificação, se fosse uma reação a uma situação estressante. Mas sua persistência já pode re- presentar um sinal de alerta, justificando-se uma avaliação clínica. Note-se que aqui estamos utilizando um julgamento clínico. Entretanto, sobre questões de desenvolvimento, há muita coincidência entre o senso comum e o que é sancionado pela ciência. A expectativa social, porém, às vezes, não é corroborada pelas normas e cos- tumes de uma ou outra família. Nota-se que, na prática, as famílias podem diferir na deter- minação de quais são os limites da variabilida- de normal, por rigidez ou, pelo contrário, por protecionismo. Isso faz com que determinado comportamento pareça sintomático num de- terminado ambiente familiar, mas não em ou- tro. Por outro lado, nem sempre os problemas que chamam a atenção ás família são clinica- mente os mais significantes. Num estudo de 80 crianças, realizado por Kwitko (1984), hou- ve diferença quanto à média dos sintomas in- formados e a registrada pelos técnicos duran- te o exame. Por outro lado, as queixas de fami- liares referiam-se mais a sintomas que pertur-
bavam a rotina da vida cotidiana, ignorando alguns sintomas mais graves. Quando as mudanças percebidas são de natureza qualitativa, habitualmente chamam a atenção por seu cunho estranho, bizarro, idi- ossincrásico, mapropriado ou esquisito e, en- tão, mesmo o leigo tende a associá-las com dificuldades mais sérias. Apesar disso, ainda que sejam geralmente tomadas como sinal de perturbação, eventualmente poderão ser expli- cadas em termos culturais ou subculturais. Pode-se afirmar que "um comportamento ou experiência subjetiva definidos como sintomá- ticos em um contexto podem ser perfeitamen- te aceitáveis e estar dentro dos limites normais em outro contexto" (Yager 8 Gitlin, 1999, p.694). Uma manifestação inusitada, do pon- to de vista qualitativo, deve, assim, ser julgada dentro do contexto em que o indivíduo está e, como sintoma, será tanto mais grave se for compelida mais por elementos interiores do que pelo campo de estímulos da realidade, que é praticamente ignorada. Entretanto, é preci- so ficar bem claro que um sintoma único não tem valor diagnóstico por si, o que vale dizer que nenhum sintoma é patognomônico de uma determinada síndrome ou condição reconhe- cida. Assim, "todos os sintomas psiquiátricos devem ser considerados como inespecíficos - vistos em uns poucos e, mais provavelmente, em muitos transtornos" (Yager & Gitlin, 1999, p.694). Dada a relatividade dos critérios usuais na definição de um problema, a abordagem cien- tífica atual para a determinação diagnostica advoga o uso de critérios operacionais. É, pois, necessário que o paciente apresente um certo número de características sintomatológicas, durante um certo período de tempo, para ser possível chegar a uma decisão diagnostica.
PROBLEMAS PSICOSSOCIAIS E AMBIENTAIS: ACONTECIMENTOS DA VIDA
O conceito de estresse, termo cunhado no âmbito da pesquisa endocrinológica, pela me- tade do século XX, teve o seu sentido extrema- mente expandido para explicar, de um modo
34 JUREMA ALCIDES CUNHA
cada vez mais não ignore a importância do modelo dimensional. Já o psicólogo, na práti- ca, costuma dar ênfase ao modelo dimensio- nal. Na realidade, avaliar diferenças individuais envolve algum tipo de mensuração. Além dis- so, o enfoque quantitativo oferece fundamen- tos para inferências com um grau razoável de certeza. Mas o psicólogo utiliza, também, o modelo categórico. Na maioria das vezes, po- rém, associa o enfoque quantitativo e o quali- tativo, no desenvolvimento do processo psico- diagnóstico, utilizando estratégias diagnosti- cas (entrevistas, instrumentos psicométricos, técnicas projetivas e julgamento clínico) para chegar ao diagnóstico. É evidente que, conforme o objetivo, o pro- cesso diagnóstico terá maior ou menor abran- gência, adotará um enfoque mais qualitativo ou mais quantitativo, e, conseqúentemente, o elenco de estratégias ficará variável no seu número ou na sua especificidade. Embora o psicodiagnóstico tenha um do- mínio próprio, o seu foco na existência ou não de psicopatologia torna essencial a manuten- ção de canais de comunicação com outras áreas, precisando o psicólogo estar atento para questões que são fundamentais na determina- ção de um diagnóstico.
TRANSTORNOS MENTAIS E CLASSIFICAÇÕES NOSOLÓGICAS
Se abrirmos o Novo Dicionário Aurélio (Ferrei- ra, 1986), na página 1.703, vamos encontrar que transtorno é sinónimo de perturbação mental. Entende-se que se pode categorizar, como tal, uma diversidade de condições, que se situam entre o que se costuma caracterizar como nor- malidade e patologia. Portanto, é uma expres- são menos compatível com a antiga concep- ção de doença mental. Não obstante, temos de convir que, semanticamente, bastaria o ter- mo transtorno, embora a sua significação não modificasse a crítica feita à expressão transtorno mental, que, "infelizmente, implica uma distin- ção entre transtornos 'mentais' e transtornos 'fí- sicos', que é um anacronismo reducionista do dualismo mente/corpo" (APA, 1995, p.xx).
No DSM-ÍV (APA, 1995), é reapresentada a definição de transtorno mental que foi incluí- da no OSM-III e no DSM-III-R, não por parecer especialmente adequada, mas "por ser tão útil quanto qualquer outra definição disponível" (p.xxi). Na tradução brasileira dessa ciassificação, consta que transtorno mental pode ser con- ceituado "como uma síndrome ou padrão com- portamental ou psicológico clinicamente im- portante, que ocorre no indivíduo", registran- do-se, a seguir, "que está associado com sofri- mento (...) ou incapacitação ( .) ou com um risco significativamente aumentado de sofri- mento atual, morte, dor, deficiência ou perda importante da liberdade" e, ademais, "não deve ser meramente uma resposta previsível e culturalmente sancionada a um determinado evento, por exemplo a morte de um ente que- rido". Além disso, independentemente da cau- sa original, "deve ser considerada no momen- to como uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo" (p.xxi). Comportamentos socialmen- te desviantes não são considerados transtor- nos mentais, a não ser que se caracterizem como sintoma de uma disfunção, no sentido já descrito. A partir dessa conceituação, vê-se que é cla- ra a exigência de uma associação com sofri- mento ou incapacitação ou, ainda, com risco de comprometimento ou perda de um aspec- to vitalmente significante. Em segundo lugar, fica evidente que os sintomas devam ser com- portamentais ou psicológicos, embora possa haver uma disfunção biológica. Em terceiro lugar, esse conceito descaracteriza os serviços e os membros da comunidade de saúde men- tal como agentes de controle social, no mo- mento em que considera que um conflito en- tre indivíduo e sociedade pode ser identifi- cado como um desvio, condenável pelos pa- drões sociais, mas que, por si, não é tido como transtorno mental, a menos que, ao mesmo tempo, constitua o sintoma de uma disfunção. Essa caracterização de transtorno mental é apresentada pelo DSM-IV, que é a edição mais recente da classificação oficial nos Estados
36 JUREMA ALCIDES CUNHA
Unidos. Depois de muitas modificações em re- lação à abordagem e classificação da pskopa- tologia, durante o século XX, o DSM-IV recapi- tulou o conceito de transtornos distintos, mas com um enfoque "ateórico com relação às cau- sas" (SadockS Kaplan, 1999, p.727). O mode- lo pode ser considerado categórico, mas a clas- sificação nosológica passou a se basear em cri- térios operacionais ou critérios diagnósticos es- pecíficos, que constituem "uma lista de carac- terísticas que devem estar presentes para que o diagnóstico seja feito" (Sadock & Kaplan, 1999, p.727). Isso não pressupõe "que todos os indivíduos descritos como tendo o mesmo transtorno mental são semelhantes em um grau importante" (APA, 1995, p.xxi). O DSM-IV prevê a possibilidade de uma ava- liação multiaxial, sendo que toda a classifica- ção dos transtornos mentais consta nos Eixos! e II. 0 Eixo III prevê a inclusão de transtorno físico ou condição médica adicional. 0 Eixo IV é reservado para o registro de problemas psicossociais e ambientais, e no Eixo V é fei- to o julgamento do nível geral de funciona- mento do paciente, conforme a Escala de Ava-
liação Global de Funcionamento (vide APA, 1995, p.33). 0 DSM-IV é compatível com a classificação utilizada na Europa, a CID-10, desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1993). "Todas as categorias usadas no DSM-IV são encontradas na CID-10, mas nem todas as categorias da CID-10 estão no DSM-IV" (Sado- ck & Kaplan, 1999, p.727). Para quem trabalha com psicodiagnóstico, é essencial a familiaridade com os sistemas de classificação nosológica, já que a nomenclatu- ra oficial dos transtornos é extremamente útil na comunicação entre profissionais, além do fato de que outros documentos, como atesta- dos, além de laudos, podem exigir o código do transtorno de um paciente. Confira cuidado- samente todos os critérios a partir de suas hi- póteses diagnosticas, pondere bem sobre todas as características do caso, examine o que diferencia o caso de outros transtornos e te- nha em mente critérios usados para a exclusão de outros diagnósticos (Consulte o capítulo Uso do Manual, no DSM-IV, bem como Sadock & Kaplan, 1999, p.737).