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Estudo sobre a obra de Freud e suas articulações teóricas
Tipologia: Notas de estudo
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Freud: O Homem e sua Obra José Nazar
Sigmund Schlomo Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg (atualmente chamada Priborg), na Morávia (Eslováquia), e morreu em Londres, a 23 de setembro de 1939. Dados da História
No dia seis de maio de 2006, comemorou-se os cento e cinqüenta anos de nascimento de Freud. Passado um século e meio, Freud continua vivo. Pelo menos no que diz respeito às suas idéias, que vieram se escrever como uma autêntica descoberta, tanto na fundação de um método clínico específico de investigação e tratamento das enfermidades mentais quanto na construção de um corpo teórico abrangente a partir de uma construção de conceitos fundamentais. Esta descoberta, como uma verdadeira descoberta freudiana, diz respeito ao irredutível de um inconsciente que remete ao singular da vida desejante de cada um: todos os movimentos e ações do sujeito são determinados pelos efeitos do inconsciente. Freud viveu durante oitenta e três anos em uma constante luta e intensa ebulição intelectual. Seus últimos anos foram vividos sob o tormento de uma elaboração profunda daquilo que motiva as relações humanas em seus aspectos de amor e de ódio. A descoberta freudiana irá apresentar novas ferramentas no sentido de uma elaboração maior dos elementos inconscientes que estão presentes nos enlaces e desenlaces, no que une e que separa os homens. O sofrimento que Freud vivencia, nos seus últimos anos de vida, tem a ver com situações que concernem não somente ao avanço sistemático de sua doença cancerígena e sua desilusão com os psicanalistas e grupos analíticos, mas também, e muito mais, aos efeitos devastadores de uma pressa de concluir sua teoria, ainda em andamento, sobre a presença efetiva do inconsciente na construção dos laços sociais. Ele se encontra frente a frente com a problemática do conflito que está na raiz das relações entre os seres humanos. Se o homem caminha cegamente rumo ao princípio do prazer é porque a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento mais penoso que nos ameaça é, fundamentalmente, aquele que resulta do nosso relacionamento com o próximo. Ele constata que a subjetividade é tributária de uma incompletude essencial que é causa de desejo do falante. Esta tese magistral postula a presença efetiva dos elementos do inconsciente na constituição da cultura. E isso fervilhava dentro de Freud, que nesta época está vivendo e sofrendo, intimamente, os efeitos de uma presença efetiva e marcante de acontecimentos hediondos e bestiais que cresciam e avançavam em direção a uma Segunda Guerra Mundial. Mais do que nunca, ele tomará para si o adágio presente em
sua teoria que afirma, de alguma maneira, que para alguém suportar a vida tal como esta se apresenta, é fundamental poder levar em conta a presença da morte. Em maio de 1933, os nazistas queimaram as obras de Freud em praça pública. Os alemães identificavam em suas idéias uma presença inimiga e ameaçadora. Em 11 de março de 1938, ele escreve: “Finis Austriae”. Logo depois, o exército alemão entra em Viena – o Anschluss. Era o início da devastação do povo judeu que residia em Viena, tal como Freud. Uma violência sem limites que viria, uma vez mais, ratificar as idéias preconizadas por ele mesmo sobre a crueldade no humano. Tratava- se, então, de uma repetição de acontecimentos anteriores que já estavam presentes na humanidade e que se inscrevem como a essência mesma da agressividade no humano. Em seu belo ensaio sobre as considerações atuais sobre a guerra e a morte, Freud dirá “que o nosso inconsciente é tão inacessível à representação de nossa morte, tão ávido do assassinato do outro, tão dividido e ambivalente em relação à pessoa amada quanto o era em tempos originários”. A bestialidade humana novamente dá as cartas de uma insensatez. Insolência. O ser humano não é inocente. Menos ainda amoroso e cordial como muitas vezes ele se apresenta frente a ele próprio e a seus semelhantes. Ele é cruel, intolerante, culpado. A invasão alemã autoriza seus correligionários a exercerem uma verdadeira atrocidade sádica contra os direitos e os desígnios particulares dos judeus que ali faziam, como outros povos, sua morada. Os valores sociais, democráticos e familiares da minoria judaica foram cassados da maneira mais crua e violenta possível. O tom da crueldade migrava e paralisava a ordem institucional. O movimento assassino, cínico e insensato, caminhava de forma arrasadora em várias direções, por aqui e por ali, produzindo ranhuras na ordem simbólica e no estatuto da lei, com o objetivo de destituir as conquistas que eram criadas e tecidas no processo civilizatório. Os alemães militavam sob o fanatismo de uma perversidade fanática, como uma verdadeira ordem de lei que os autorizava a tal exercício. Praticavam atos e assassinatos políticos de maneira cruel e pública. Esse gesto hediondo de abortamento abrupto das legitimidades viria denotar, no real da vida, a tese freudiana sobre a raiz da agressividade humana, aquilo que o homem é capaz de produzir em si mesmo e no outro das mais diversas formas. A maldade no humano iria mostrar o máximo da arrogância indelével. Daquilo que o homem é capaz de realizar por ele mesmo e a despeito dele mesmo, daquilo que é capaz de realizar quando está identificado com os ideais de um grupo. A perda total da razão! Pura ação atroz, nada de pensamento. O fazer puro da agressividade sádica se fazia migrar, estando agora autorizado e identificado à ordem. Sem nenhum pensar, nenhuma reflexão. Cumprir a ordem! O agir bélico calava as vozes. Realmente, a única coisa que restava era o necessário silêncio aquiescente. A violência dos alemães contra os judeus evidenciava, de certa maneira, a recusa determinada de aceitar as diferenças. Freud, ele mesmo, já havia se antecipado e escrito o seu manifesto, denunciando que a maldade é inata no ser humano. A idéia de uma bondade humana, tão apregoada por algumas vertentes religiosas, seria, então, posta à prova. Uma crítica severa ao princípio judaico-
Nessa época, Freud conclui suas pesquisas sobre religião e cultura, constituindo sua trilogia: O futuro de uma ilusão (1927), Mal-estar na civilização (1929) e Moisés e o monoteísmo (1939). Uma verdadeira intervenção da psicanálise na cultura. A partir das noções que a psicanálise apresentava sobre os elementos do inconsciente, ele irá desenvolver uma tese que se tornou essencial para a compreensão da neurose e da subjetividade em geral, e que permite questionar as relações entre o sujeito e a sociedade. No dia vinte e três de setembro de 1939, morre Sigmund Freud. Ele estava pouco mais de um ano exilado em Londres, distante de sua terra natal. Morrerá de um câncer maligno na região maxilar, após trinta e uma cirurgias. A morte, que já espreitava Freud há alguns bons anos, não conseguiu detê- lo, e muito menos o impediu de avançar em seu trabalho, tanto de uma prática clínica de consultório quanto de caminhar, mais e mais, nas suas pesquisas e produções teóricas em curso na psicanálise. Sua doença e tantos outros infortúnios na vida – a certeza da eclosão da Segunda Guerra Mundial – não conseguiram opor-se a esse caminhante analítico. Frente às adversidades que se apresentavam, ele crescia e se tornava um verdadeiro gigante, fazendo progredir mais e mais a construção dos pilares da sua descoberta original. Freud insistia em avançar em suas elaborações sobre as causas dos sofrimentos da alma humana. Respondia com sabedoria e realidade e, até mesmo, com senso de humor – herdado de seu pai: “Não pode haver mais dúvida de que apresento uma nova recorrência do meu velho e querido câncer, com o qual venho compartilhando a existência ao longo de dezesseis anos. No momento não podemos predizer qual dos dois irá provar ser o mais forte”. Freud estava atento às notícias que escutava diariamente no rádio. Ao lhe perguntarem se esta seria a última guerra, ele irá dizer: esta será minha última guerra. Durante algum tempo ele se esforça para retirar suas quatro irmãs do jugo hitlerista, mas não obteve apoio e permissão do governo francês. Chegou a pagar para os alemães todo dinheiro que possuía – vinte e quatro mil dólares – para que eles as aliviassem dos maus tratos. Elas morreram assassinadas nos campos de concentração. Já tomado pelos efeitos de metástases do câncer, Freud inicia a leitura de um romance de Balzac que aborda a fragilidade humana e dirá aos seus: “É exatamente disso que preciso. Esse livro fala de definhamento e de morte por inanição”. Nos seus últimos dias, Freud quase não tem mais forças para suportar o peso do pouco de vida que ainda lhe resta. O tempo todo ele está recluso em seu gabinete de trabalho. O câncer já havia vencido sua batalha e hasteado bandeira, demarcando seu território de conquista. Era o golpe final. O odor de uma vida, agora tomada pelas agruras de uma decomposição, invadia de tal maneira aquele recinto, que o seu cãozinho – tão querido e tão companheiro – entra e logo corre para um canto, refugiando-se da morte que se anunciava. Era a sua chegada, que já o acompanhava havia bons anos, e já não cessava de espreitá-lo, impedindo qualquer esquecimento a seu respeito.
Ela, a morte, estava ali se insinuando e querendo para si o que era seu e de mais ninguém. Freud sabia que a morte não compartilha nada com ninguém, é voraz. É única, não dá uma segunda chance a ninguém. Ela já se mostrava pelos meios mais intragáveis e impossíveis de serem negados. A presença real da morte, sua cara, seu odor, seu silêncio. O contrato estava selado e não havia nenhuma possibilidade de revogação. Ela estava inteira ali, com a fatura na mão. Era chegada a hora. Em 21 de setembro de 1939, ele se dirige a seu médico e amigo, Dr. Schur, toca levemente suas mãos e reivindica o que lhe é de direito: “Meu querido Schur, você se recorda da nossa primeira conversa. Você prometeu-me, então, que me ajudaria quando eu não pudesse mais agüentar. Já agora não passa mais de tortura, e a coisa não tem mais sentido”. O que restou foi o peso da realidade. Nada mais! O corpo foi cremado em Golder’s Green, na manhã de 26 de setembro.
O Encaminhamento de uma Descoberta Freud nasceu a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, parte do império austro-húngaro e que é atualmente conhecida como Pribor, na República Tcheca. Filho do terceiro casamento de seu pai, o então comerciante de lãs e têxteis, Jacob Freud, que tem 41 anos na época e já é pai de dois filhos de um primeiro casamento. Amália, mãe de Freud, tem 21 anos. Ela se dirigia a esse filho adorado sempre de uma maneira carinhosa: “mein goldener Sig” – meu Sig de ouro. Muito amado pelo pai, que não se cansou de transmitir-lhe os ensinamentos e os valores do judaísmo clássico, foi circuncidado ao nascer e passou a receber uma educação judaica não tradicional e aberta à filosofia do iluminismo. É através de uma babá que ele irá transpor seus conhecimentos religiosos para além do judaísmo e de uma judeidade. O menino Schlomo – Salomo – Sigismund Freud é o primeiro de uma prole de oito filhos. O filho mais velho do primeiro casamento de Jacob, Emmanuel, tem um filho de um ano, John – seu sobrinho um ano mais velho que ele – , que se tornará o amigo, companheiro e cúmplice da pequena infância de Freud. Desta relação ele irá carregar sentimentos ambivalentes de amor e ódio que, no futuro, serão o suporte de um movimento competitivo com seus pares. Portanto, seu pai já era também avô quando de seu nascimento. Aos 22 anos, Freud transformará seu prenome Sigismund, em Sigmund. Este sobrenome Freud, escolhido de uma lista por seus antepassados, quer dizer alegria. Com isso, assinalam-se dois fatos no mínimo interessantes: ele nasce de um pai que já era avô e é tio de um sobrinho que é mais velho que ele. A irrupção de uma crise econômica – seu pai não incorporou a modernização no seu ramo de trabalho, a saber, a chegada de novos equipamentos e máquinas – faz com que a família Freud deixe Freiberg, em 1859, mude-se para Leipzig e se instale, em 1860, em Viena, alguns anos depois do início de uma política mais liberal para os judeus. Este fato será marcante na sua vida. A criança começa a sofrer algumas perdas. Uma vida mais difícil irá se apresentar à família Freud. O menino que via no pai a figura de um grande herói, inicia um processo de quebra das idealizações.
ela se tivesse acesso, não se poderia levá-la em conta”. De qualquer modo, a relação entre a técnica analítica e a arte biográfica é ambígua. Crer-se-ia que elas se assemelham e se complementam, mas existe entre ambas uma oposição irredutível. Cria-se, a partir daí, uma necessidade de deslocamento em relação a uma possível biografia de Sigmund Freud: que pudesse ser realizada por um biógrafo também psicanalista. Passados tantos anos, os verdadeiros discípulos de Freud reconhecerão que não será na sua biografia que encontraremos a raiz e o cerne da sua invenção, mas, sim, em sua obra. O caráter subversivo da sua obra realmente não está em seus dados biográficos. Em 1882, Freud encontra Martha Bernays, por quem se apaixona, tornando-se sua mulher alguns anos mais tarde. Um pouco entediado com a medicina geral – ele já está interessado em neurologia – , passa a se ocupar e a freqüentar o serviço de psiquiatria de Meynert, no qual prossegue trabalhos sobre a cocaína. Quando está a ponto de ser nomeado Dozent , obtém, graças a Brücke, uma bolsa para estudar na França.
O Momento de Abertura No outono de 1885, Freud irá a Paris em busca de novas aventuras no campo das neuropatologias. Era isso o que ele desejava, era para onde ele se dirigia. Uma inquietude inicial toma conta de seu espírito, e isto lhe permite que avance mais em direção ao campo do saber. Ele quer progredir no campo das pesquisas da subjetividade humana. Sabia que faltava algo que pudesse explicar as razões dos sofrimentos da alma humana, portanto, torna-se necessário que se dirija ao então berço dos estudos neurológicos. Já identificara o campo das doenças nervosas como o território a ser explorado, sabia em qual caminho seguir. Mas o problema estava em se questionar como e de que maneira isto poderia ser realizado. E nem por isso podemos afirmar que ele caminha às escuras, na medida em que, neste cenário, por vezes obscuro demais, algumas luzes se acendiam aqui e ali. De todo modo, ele não se contentava com as respostas que tanto as causas biológicas quanto as fisiológicas ofereciam. Alguma coisa nele palpitava e desejava outras respostas. Ao chegar a Paris, Freud acompanhará de perto os trabalhos do eminente médico e neurologista Jean Martin Charcot, visando saber mais sobre as pesquisas que se processavam em torno da histeria e do método hipnótico. No Hospital da Salpêtrière, junto ao mestre dos mestres das doenças nervosas, ele estava, de toda maneira, se sentindo em casa, à vontade para reiniciar uma nova etapa das suas pesquisas. Agora ele poderá desfrutar de tudo aquilo que o ensinamento de Charcot poderia lhe oferecer. Mas ele sabia também que ali era mais um entre tantos outros. Caberia portanto a ele, Freud, marcar uma diferença em relação aos seus colegas ali presentes. E ele estava aberto a um aprendizado que lhe dizia respeito, a se fazer ensinar pelo que emanava do ensino que emergia das apresentações do grande mestre francês. Freud participa intensamente das conferências de Charcot e, inclusive, propõe traduzir suas obras para a língua alemã. Freud sempre trouxe o germe de uma clínica dentro de si. Ele pressentia
que uma clínica que se fundamenta no paciente se baseia numa experiência única que diz respeito à singularidade em si mesma. Este fato permitia-lhe estar a um passo a mais dos outros pesquisadores. O mesmo se passava em relação àquilo que ele escutava das queixas de seus pacientes. Freud portava uma convicção de que uma clínica que se fundamenta no sofrimento humano, se baseia numa experiência única, que diz respeito à singularidade propriamente dita. Ele carregava consigo uma marca que poucos clínicos conseguiam alcançar, que era sua capacidade de se deixar ensinar, de se deixar surpreender pelo que o paciente dizia nas suas queixas. Esta seria a sublime posição de um verdadeiro clínico que opera com método, específico de uma construção de saber articulado. Um dom clínico de se fazer desarmar de preconceitos para se fazer surpreender pelo que está sendo apresentado pelo paciente. O corpo das histéricas é oferecido ao olhar dos espectadores durante as apresentações no teatro charcotiano, verdadeiros acontecimentos mundanos, mas é pela palavra, e sob hipnose, que Charcot trata o sintoma de suas pacientes. A iniciativa de Charcot o impressiona e, em particular, seu pragmatismo, sua desconfiança em relação às construções teóricas, de que é testemunha a resposta que ele dá a objeções teóricas durante um debate: “isso não impede de existir”. Freud irá retomar essa fórmula por sua conta e risco. Freud chega como neuropatologista, mas imediatamente seu interesse se desloca e se dirige para um outro lugar, ou seja, para o campo da clínica propriamente. O que realmente o impressionará será o que emana do ensino vivo que nasce do encontro entre o mestre e suas pacientes histéricas. Tudo se dirige para a personalidade de Charcot. Freud está tomado de um sentimento novo, que até então não havia experimentado em sua vida. Ele está aberto para mudanças e, por isso mesmo, vai mudar de direção e objetivos. Ou teria sido deslocado, a despeito dele mesmo, por forças que o ultrapassavam? Ele deixará pouco a pouco suas pesquisas iniciais para colocar-se em cheio no teatro de Charcot. Despojamento, esta a melhor palavra. Alguma coisa se passa entre ele e essa estranha presença, entre ele e o Mestre parisiense. Freud está fascinado, apaixonado pela presença viva deste homem, pelo que brotará de um ensinamento. Ele entra em contato não somente com as manifestações psíquicas das histéricas e a suscetibilidade destas ao tratamento pela hipnose, mas, também com o que se passa em termos de um atravessamento de novas emoções dentro dele mesmo. De certa maneira, Freud já pressentia que algo de novo poderia brotar desse contato, dessa relação de palavras e gestos recortados pelas estruturas psíquicas. Ele experimentava e nomeava as emoções desconexas que, muito depois, ele pôde nomear a partir do atendimento de pacientes histéricas. É realmente isso! Freud encontrava-se numa posição de abertura, numa posição histérica de um se fazer ensinar, frente ao mestre. Por isso mesmo é que ele irá desvelar-se, num júbilo transferencial, em relação à presença daquilo que emanava dos ensinamentos de Charcot. É o início de um novo caminhar.
conhecimentos científicos que há muito impregnavam sua alma. Sua busca se inicia, justamente, no ponto em que tantos outros pesquisadores das doenças nervosas não conseguiram alcançar, ou seja, sair de uma posição de saber, se deslocar, quebrar todo e qualquer preconceito intelectual, estar aberto e à altura do novo, de se fazer surpreender. Nada mais que isso! Freud assiste às apresentações de doentes que Charcot coordenava e verifica que alguma identificação com a presença do mestre francês está realmente se processando. Com entusiasmo, ele dirá à Martha: “Charcot, que é um dos maiores médicos e cujo bom senso toca a genialidade, está simplesmente a ponto de arruinar todos os meus desígnios e opiniões”. Freud saía das aulas de Charcot completamente transtornado, esburacado em sua divisão subjetiva. O teatro de uma subjetividade estava aberto, constituído a partir dos traços das doentes histéricas, com suas paralisias, convulsões, contraturas, crises, ataques. Ele se deixava penetrar e inseminar pela transmissão de saber inovador. Isso rompia e dilacerava o saber e o conhecimento que ele já trazia de alguns anos de pesquisas na área da medicina e, sobretudo, no campo da neuropatologia. Freud está colocado, aí, na posição de despojamento, fundamentalmente, de seus valores antecipados, de suas amarras a enigmas paralisantes, de suas identificações limitantes de um projeto. Sua presença neste teatro permitiu que ele lançasse a pedra de base de uma causa psíquica: junto das histéricas, mundanas e anônimas, Freud viverá, então, intimamente, os relatos de um tormento de traumas da infância, de abusos sexuais e estupros. As idéias novas brotavam em sua cabeça de uma forma fulgurante; ele segue dizendo a Martha: “Se a semente dará fruto um dia, não sei. Só sei que nenhum ser humano me afetou tanto assim”. As idéias que gestavam dentro dele salpicavam de uma forma louca, voraz. Ele não cessava de se ver frente às mensagens que escapavam, que eram sempre novas, paradoxais, fora de um consenso lógico comum. Estava Freud ali se fazendo desnudar de todo o invólucro de uma ciência estabelecida para se entregar a uma paixão pelo que emergia desses ensinamentos. Aqui, acolá, transitando, buscando se oferecer numa acomodação das estruturas psíquicas que dançavam entre ele, Freud, e o cenário que ali se descortinava, no cenário das histéricas.
Uma Reviravolta De volta a Viena, em 1886, Freud se casa com Martha. Os filhos homens recebem nomes de mestres que foram importantes em sua vida. Inicia sua clínica de consultório a partir do método hipnótico. A utilização da sugestão sob hipnose para fins de uma terapêutica orientará suas pesquisas. Qualquer abordagem sobre uma possível demarcação do início da psicanálise passa, necessariamente, pelos Estudos sobre a histeria , obra publicada, em 1895, por Joseph Breuer e Sigmund Freud. Encontraremos aqui os casos clássicos de pacientes histéricas (a exceção fica para o Caso Dora), que revelam não somente o traço que demarcaria uma condição desejante de todo ser
humano (um desejo insatisfeito), mas fundamentalmente os elementos que possibilitaram o nascimento do método analítico. O caso da paciente Anna O. (Bertha Pappenheim) permitiu uma abordagem da histeria como doença das reminiscências psíquicas. Foi a partir desse caso que surgiu um novo método de tratamento psíquico, um método de tratamento inédito até então, que era baseado na catarse e na ab- reação. A esta jovem de vinte e um anos de idade será atribuída, por alguns autores, a invenção da psicanálise. Freud nomeará esse método de talking cure , um tratamento que já era realizado pela fala, chamado, por uma paciente, chimney sweeping , para designar uma forma de rememoração por “limpeza de chaminé”. O termo empregado por Breuer foi “tratamento catártico”. Anna O. era uma jovem inteligente, falava diversas línguas e era dotada de uma enorme sensibilidade em relação aos pobres. Os sintomas histéricos surgiram após a doença do pai (tuberculose). Ela apresentava contraturas, alucinações, acessos de tosse, distúrbios da visão, da motricidade, da linguagem. Comunicava-se com o médico Breuer misturando várias línguas. Este caso ocupará um lugar de extrema importância na própria formação do analista, justamente por colocar questionamentos sobre seu lugar na direção do tratamento naquilo que se inscreverá como desejo do analista. Estamos em 12 de maio de 1889. O cenário é o próprio consultório de Freud. Ele está com sua paciente chamada Emmy von N. (Fanny Moser) e recebe, de forma intempestiva, da boca dessa senhora, o enunciado da regra fundamental que fundará o método analítico. Segue-se o relato, são as palavras de Freud, presentes nos Estudos sobre a histeria : “Por um desvio qualquer cheguei a lhe perguntar como as dores gástricas tinham acontecido e de onde provinham. Acho que essas dores eram sempre acompanhadas de acessos de zoopsia. Com muita reticência, ela me responderá que nada sabia disso ”. Este ponto irá demarcar algo interessante e que aponta para alguma coisa que emerge inesperadamente do inconsciente do sujeito, pois esta frase, que advém como resposta, demonstra, de certa maneira, que o sujeito sabe mais do que supõe saber e que, justo pelo fato de tanto saber, ele se esforça ao máximo por esquecer. “Dou-lhe até o dia seguinte, para se lembrar. Ela me diz, então, num tom muito mal-humorado, que não devo lhe perguntar sempre de onde provém isto ou aquilo, mas deixá-la contar o que ela tem a dizer ”. Aí está, certamente, o nascimento do método que viria ser aperfeiçoado e utilizado pela psicanálise, demarcando o início de uma nova descoberta, a saber, a Psicanálise. Freud se deixou reconhecer, aí, no caminho de uma outra cena. Ele irá sublinhar, para esta paciente, que realmente ela porta um outro saber , que ela sabe (de alguma maneira) de onde nasce e brota aquilo de que ela se queixa e que tanto a faz sofrer. Este movimento que abre para o diálogo analítico situará um saber no registro da lembrança. E, por outro lado, o fato de a paciente Emmy lhe responder que ela nada sabe disso, nada nesse nível da lembrança, mas – e isto é a única maneira de entender que há aí uma denegação – que efetivamente existe um saber que se constitui no que ela tem a dizer. O recorte dessa
e, portanto, difíceis de controlar; essa compulsão leva o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas, réplicas de experiências antigas. Há, aí, um caráter demoníaco na compulsão à repetição, o que permite avançar em seus estudos sobre o caráter destrutivo e auto-destrutivo tão presente no masoquismo do humano. As pulsões de morte se contrapõem às pulsões de vida, a Eros, e tendem para a redução completa das tensões, vale dizer, apresentam uma tendência de recondução do ser vivo ao estado inorgânico. Esta pulsão de morte, muito antes de se voltar para o exterior sob a forma de agressividade, volta-se para o interior do sujeito como uma pulsão de destruição. Será justamente esta a moção pulsional que permitirá a Freud explicar os paradoxos dos elementos do inconsciente que se apresentam nos conflitos do ser humano: os paradoxos do masoquismo, das auto- censuras, das resistências que se particularizam numa reação terapêutica negativa e dos sentimentos inconscientes de culpa. A formulação sobre os parâmetros de uma clínica, psicanalítica, é ampliada e colocada nestes termos: como pode a representação do sofrimento ser uma fonte de prazer, ou seja, como pode o sujeito se queixar justo daquilo que o faz gozar?
A prática freudiana
“Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha dessa perda”. Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
A psicanálise nasceu um dia a partir do desejo singular de seu fundador, Sigmund Freud. Este acontecimento, como um ato de criação, ele mesmo se escreverá como algo da ordem da grandiosidade de uma invenção porque abre caminho para um campo novo que advém como algo originário, inaudito. Mesmo que se afirme que a psicanálise passou a existir a partir de um corte com a clínica médica praticada pelo seu fundador, não poderíamos deixar de afirmá-la, em sua origem, como estando sob os auspícios desta. Houve aí, sim, uma ruptura, a partir destas raízes originárias do discurso médico. Freud era um jovem médico vienense que percorria o território traçado a partir de uma formação médica clássica, e praticava sua clínica sob o olhar e o viés do discurso médico. Discurso este que será regido por uma diretriz lógica próxima do discurso do mestre, o discurso do senhor, que será nomeado por Lacan como “avesso da psicanálise”. Freud segue, portanto, outro caminho. Um caminho distinto daquele a que se propõe inicialmente. Ele irá se desgarrando, pouco a pouco, de sua origem acadêmica, para fundamentar seus
passos rumo a um novo trilhamento. Essa mudança de rota será vital para sua descoberta. O próprio Freud irá afirmar, tempos depois, ter-se afastado da medicina e que não se via mais identificado a este discurso: “Durante esses anos de juventude, não mais, de resto, que posteriormente, não experimentei nenhuma predileção pelo status e a atividade de médico. Eu, antes, era movido por uma espécie de desejo de saber”. Freud rompe radicalmente com a ciência médica e busca as razões do sofrimento humano em outro lugar. O sofrimento, para ele, já havia se deslocado, nascia da boca do paciente. O sofrimento humano somente lhe interessava quando colocado em palavras, por uma via da fala. Esta clínica, que nasce realmente como algo novo, leva em conta a subjetividade do paciente, justo aquilo que estará para sempre recalcado na “relação” médico-paciente. A psicanálise é uma invenção de Freud. Portanto, ela é freudiana! A criação de Freud, como o que se escreve de um desejo fundador da psicanálise, está na ordem de um ato analítico: houve, aí, uma ruptura radical, e o novo, que daí pôde emergir, deu origem ao campo freudiano. Este campo advém como algo que é originário. Algo ficou, aí, para trás, não restando mais espaço para uma clínica, médica, que privilegia um olhar sobre um corpo em sofrimento. Esta clínica inicial, que tanto serviu a Freud durante algum tempo, restou no ninho. Ficou para trás. Ruptura, esta será a melhor palavra para definir este deslocamento. Trata-se de uma descoberta originária que inaugura, no seio do processo civilizatório, um verdadeiro corte epistemológico que faz emergir uma nova ordem discursiva que tem como objetivo emprestar um estatuto científico à psicologia e seus campos afins. O nascimento da psicanálise cria uma autêntica ruptura no seio das ciências até então chamadas positivas, as ciências ditas humanas, que constituíam o centro da reflexão filosófica da relação do homem com o mundo. O advento da psicanálise ultrapassa em muito todas as marcações de uma época. Pode-se dizer que a descoberta freudiana do campo do inconsciente abre as portas de uma nova era. Como descoberta germinal que opera pela via de uma tessitura inconsciente, a psicanálise está na ordem de uma criação que se articula pela via de uma produção de saber inconsciente. Sua operatividade consiste no trabalho de elaboração deste saber, ou seja, numa vertente que se demarca num não cessar da colocação em ato de uma experiência de discurso. Uma experiência real, da fala e da linguagem, a partir de uma inovação discursiva, que se escreverá como revolucionária. A partir daí emergirá uma clínica nova, isenta, despregada de todo e qualquer horizonte delimitador, social, político, cultural. Esta clínica está, portanto, divorciada dos parâmetros de uma moral vigente, desta ou daquela vertente, supostamente ética, que possa advir de preconceitos, de boas intenções, de uma simpatia. Pelo contrário, uma clínica antipática. Uma clínica sem cumplicidade alguma com outras já existentes. Uma clínica, portanto, do particular, do um por um. A psicanálise passa a existir, então, a partir do método inventado por Freud, sendo que esta clínica não se constituiu embalada num crescente de respostas rumo a uma nova formação. Não houve aí um caminhar tranqüilo e retilíneo. Pelo contrário, a angústia e o sofrimento estavam presentes, a
seguinte tônica: que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e que, na experiência psicanalítica, ele se constitui como um discurso pelo qual o sujeito irá se demarcar na sua relação com o Outro. O sujeito da experiência analítica se constitui graças a um movimento de conquista num trabalho sob transferência. Este sujeito poderá realmente se dizer a partir de um lugar distinto daquilo que ele teria sido em sua origem, naquilo que ele teria sido como objeto frente ao desejo do Outro. Este movimento permite que o sujeito venha se desembaraçar daquilo que realmente o constrange frente à vida. De todo modo, uma cura analítica pode acontecer a partir de um bom uso das palavras. Esta tese inaugural de Freud pode ser comprovada numa trajetória analítica enquanto tal. A tese lacaniana que vem afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e que numa experiência analítica se articula como discurso dirá, com clareza, o que se passa realmente no processo psicanalítico. Por isso mesmo pode-se afirmar que a psicanálise é uma experiência de discurso por onde se desvendam as verdadeiras estruturas que regem a vida do sujeito na sua relação com o Outro. Uma experiência real entre o paciente e o seu psicanalista pela via da fala e da linguagem, a partir de uma reversão inovadora dos discursos, e que se escreverá como uma operação revolucionária. A partir daí emergirá uma clínica nova, isenta, despregada de todo e qualquer horizonte delimitador, social, político, cultural. Esta clínica está, portanto, divorciada dos parâmetros de uma moral vigente, desta ou daquela vertente supostamente ética, uma simpatia. Pelo contrário, com a psicanálise o que teremos uma clínica antipática a todo e qualquer preceito dado antecipadamente. e que comparece muitas vezes carregada de preconceitos, de boas intenções, e, porque não dizer, de Uma clínica sem cumplicidade alguma com outras clínicas já existentes. Uma clínica, portanto, do singular. Freud não estava só no início desta descoberta. Após longa trajetória de estudos e pesquisas no campo da neurofisiologia e neuropatologia, como também estágios com personagens célebres no campo clínico das doenças nervosas, principalmente na França. Freud aproximoou-se, em todos os sentidos, de Joseph Breuer. Momento difícil e conturbado este de uma apreensão dos elementos do inconsciente. Uma descoberta paradoxal frente à ciência e seu discurso tão clássico e previsível, como também, e por que não, frente a todos os outros discursos que denotam o território do saber. Esta nova tomada de posição de Freud diante de suas pacientes, emerge gradualmente – isso de serem pacientes mulheres certamente quer dizer alguma coisa – , a partir de saltos e rupturas no campo do saber. Ela foi a resultante de um longo trabalho de pesquisa clínica e teórica através de uma profunda elaboração do que se processava na vida psíquica dos pacientes e de seu inventor, Freud. Por isso mesmo, por vezes se torna necessário o trilhamento pela maneira como as questões se colocaram a ele e, com isso, percorrer a estrutura pela qual ele as respondeu. O importante a enfatizar é que a psicanálise passa a existir a partir do método inventado por Freud – ou por uma paciente sua – , e este processo não poderá ser concebido como um movimento
crescente, progressivo, linear e cumulativo, embora ele jamais tenha abandonado uma só de suas idéias, até mesmo quando as ultrapassava. Importa marcar, como já fizemos, que embora os elementos biográficos apresentem alguma importância, não será daí que vamos extrair a raiz de subversão que esta descoberta veio trazer à luz. O encaminhamento de Freud rumo a esta descoberta germinal tinha um endereço certo: o conflito e a divisão que habita o ser humano, a relação louca e problemática que o sujeito mantém consigo mesmo e com o outro. Para Freud, não vai se tratar de modificar formas ou de se insurgir contra a ordem estabelecida. É a imagem que o homem tem de si mesmo – seja qual for o contexto cultural ou social – que será recolocada em questão. Por isso mesmo, na base da sua descoberta Freud estava às voltas muito mais com o sofrimento do homem, a saber, suas inibições, seus sintomas e suas angústias, ou seja, suas neuroses. Nada mais que isso! É lógico que daí emergiriam conseqüências inesperadas, que tanto Freud quanto seus discípulos somente puderam perceber depois. Isso é próprio das grandes descobertas, ou seja, estas resultantes que não cessam de promover o novo, das quais só se sabe depois: só-depois. Não é certo que Freud tenha sido sensível à eclosão de uma modernidade, embora o nascimento da psicanálise não pudesse ter aparecido sem o nascimento da ciência moderna no século XVI. Seus gostos o levavam bem mais para o classicismo cultural que para qualquer atualidade. Estava muito mais, para não dizer inteiramente, à espreita do novo que do moderno. A descoberta da análise se inscreve, assim, em contraponto ao advento de uma nova sensibilidade mundana. Freud não cessará de nos demonstrar que o homem terá, enfim, abandonado uma ilusão a mais: a de que seu eu [ moi ] era mestre em sua própria casa. Do amor ao desejo, enquanto condição de despojamento das amarras ilusórias, no sentido de uma proposição de uma maior liberdade do ser humano. Cada psicanálise será uma nova psicanálise, não há duas iguais. Isso fala muito em direção ao novo – o real do trauma psíquico – que, de maneira alguma, que dizer o mesmo. O ponto real do núcleo patógeno se repete sempre como o mesmo, mas sempre de uma maneira diferente! Freud descobre muito cedo o valor e o peso da palavra na direção de um tratamento analítico. Ele se deixava ensinar pelo paciente, se oferecia como um verdadeiro ninho às palavras e às questões que brotavam da boca das histéricas que a ele se endereçavam. As palavras que sempre passavam despercebidas por outros permaneciam em processo de gestação no próprio Freud. Aos poucos, e a cada vez mais, lá estava Freud se soltando das amarras de um saber já sabido, um saber constituído, e de uma posição e se oferecendo a partir de uma posição de não-saber. Não- saber, à espera de algo novo. O seu desejo estava voltado tão somente para o novo. Permitia que o paciente falasse livremente no sentido de que dali pudesse nascer um sujeito particular. O sujeito que se constrói na cura pela palavra irá se escrever como sujeito da experiência analítica. Daí poderá sair alguém que é menos pedinte, menos vítima do mundo. Teremos, certamente, um sujeito determinado e
representação subjetiva e social. Um verdadeiro golpe na moral clássica vigente e uma indelével ruptura epistemológica com a sexologia como ciência natural do comportamento sexual. Freud então começa a constatar aquilo de que já desconfiava: o inconsciente – que viria ser nomeado desta maneira – está presente e governa todos os atos da vida de qualquer ser humano, mesmo que não se queira saber: de uma vida amorosa – nos seus encontros e desencontros – , de uma história profissional – no âmbito de um sucesso, de sucessivos fracassos, de uma mera mediocridade – , dos laços afetivos que denotam as relações com o outro – os mais amorosos, os mais odientos, os mais injustificados – , na vida de cada um – os que gozam mais no sofrimento, os que criam filhos dependentes. Os desencontros vão mais além e podem percorrer áreas infindas da violência e da agressividade, ou seja, aqueles conflitos que se apresentam nas relações agressivas e destrutivas entre pais e filhos. São pais assassinados pelos próprios filhos, são filhos que matam seus próprios pais, são pais que fazem filhos indesejados, os que verdadeiramente não querem aquilo que desejam! Ou seja, mesmo que não queiramos saber do insensato e paradoxal que habita nossas vidas, ele é estrutural em cada um de nós. Puramente louco e paradoxal, o registro deste conflito permanente que carregamos em nossa vida. O inconsciente determina a vida do sujeito humano para esta ou para aquela direção, até mesmo para adoecimentos físicos. Hoje, mais do nunca, não necessitamos mais de exemplos de uma clínica para traduzir fatos de uma psicopatologia da vida cotidiana, pois temos a imprensa falada e escrita que pontua estes acontecimentos: o homem que naquele dia mudou sua rotina no trânsito esqueceu o filho – ainda bebê
dádiva, como um autêntico gesto de amor. Ele próprio se fez objeto de suas pesquisas, fazendo-se passar ao público sem se preocupar com isso ou aquilo! Ele, Freud, estava em cheio no relato de sua psicopatologia da vida cotidiana, com seus sonhos, seus temores, sua neurose. Tudo isso numa provação de angústia e sofrimento, como o mais íntimo de seu ser. Próprios a todo e qualquer ser humano, sem dúvida. O ensejo clínico exemplar se fazia acompanhar de atos de uma conquista freudiana que corriam na paralela de sua existência, ora numa complexidade profissional, ora nos seus transtornos pessoais, a saber, sua patologia mental. A emergência desta clínica deveu-se à incidência de um não cessar de rupturas, tornando este gênio criador alguém desprovido de pudor e constrangimento, distante de qualquer compaixão, comiseração e, até mesmo, qualquer juízo de valor. Esta boa perversão de um gênio criador. Por isso mesmo, pode-se dizer que a psicanálise ela mesma é única: ela nasce, e se estabelece, como um campo radicalmente distinto de todos os outros campos do saber. E este fato lógico deve ser levado às suas últimas conseqüências. Uma clínica psicanalítica tem como objetivo alcançar uma verdade sobre o verdadeiro, vale dizer, o que remete à sua implicação do estatuto particular da verdade. Verdade sobre o desejo inconsciente, fulgurante, irredutível a um enunciado, que o trabalho do analista – seja na prática ou em seu esforço de teorização da descoberta freudiana – busca transformar em saber. Verdade de um desejo inconsciente que somente será cercado, na medida em que há, nisso tudo, uma impossibilidade lógica de nomeação. Uma psicanálise, ela mesma vem para curar – é lógico que somente aqueles que se propõem e se oferecem ao método analítico – o ser humano de seus excessos. Excessos de amor e de ódio. Paixão! Talvez pudéssemos dizer que a verdadeira doença mental está no fato de alguém querer permanecer numa posição de querer ser amado. A herança freudiana reside justamente numa prática que é distinta de tudo o que já se viu ou existiu até então, ou seja, uma prática inaudita, que se instaura como regra fundamental: diga tudo o que vier à sua cabeça, simplesmente fale! Tome a palavra e experimente falar sem se preocupar com o que você está falando. O psicanalista e seu paciente, numa relação que é única e particular. Uma relação que se processa no um por um e que será selada pelo sigilo. Condição única, exemplar, de se criar com o outro um compromisso com a palavra. Uma cura pela palavra, como isso é possível? O paciente vai ao psicanalista porque há coisas que o fazem sofrer. São situações mais fortes, que estão além de seu controle. Coisas mais fortes que ele mesmo e frente às quais ele está dividido. Freud muito cedo observou a divisão do sujeito frente aos seus sofrimentos: é ele, mas ele contra si mesmo. Ele fala sobre aquilo de que ele sofre e que o atormenta e pede que o analista cuide dele. O analista – deslocado de seu campo visual – estará aí justo para acusar a recepção do que se ouve. Daí poderá sair um saber. A descoberta fundamental de Freud está justamente na constatação de uma exacerbada coerção da palavra, sob transferência. A palavra numa relação simbólica faz liga, faz milagres!