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A Recherche do Tempo Perdido: Os Signos e a Essência, Exercícios de Materiais

Neste documento, o autor aborda a importância dos signos na compreensão do mundo e da verdade, utilizando a obra de marcel proust como base. Ele discute a relação entre os signos e o tempo, a natureza dos signos na arte e no amor, e a importância da essência na constituição do signo e do sentido. O texto também aborda a complexidade dos signos sensíveis e a relação entre a memória, a imaginação e a arte.

O que você vai aprender

  • Como os signos sensíveis se relacionam com a memória e a imaginação?
  • Qual é a importância dos signos na compreensão da verdade, de acordo com o autor?
  • Qual é a importância da essência na constituição do signo e do sentido?
  • Como os signos se relacionam com o tempo, de acordo com o texto?
  • Quais são as diferenças entre os signos na arte e nos signos do amor?

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jose92
Jose92 🇧🇷

4.6

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bg1
DELEUZE, Gilles (2003) Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
Proust e os signos
GILLES DELEUZE
2.ed
Forense Universitária – RJ
2003
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Baixe A Recherche do Tempo Perdido: Os Signos e a Essência e outras Exercícios em PDF para Materiais, somente na Docsity!

DELEUZE, Gilles (2003) Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

Proust e os signos

GILLES DELEUZE

2.ed Forense Universitária – RJ 2003

Capítulo I

Os Tipos de Signos

Em que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?

Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tampouco na

lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Recherche não está na

madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é

simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a

palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da

verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passa-

do; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É

certo que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais

profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não

é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase

musical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembrança, nenhuma

ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a

madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso,

remetem ainda a uma "explicação material".l

Não se trata de uma exposição da memória involuntária, mas do relato de um

aprendizado – mais precisamente, do aprendizado de um homem de letras.^2 O

caminho de Méséglise

l.P321.

  1. TR 150.

de uma especialidade, mas continuar idiota em tudo o mais, como o caso de

Cottard, grande clínico. Além disso, num domínio comum, os mundos se

fecham: os signos dos Verdurin não funcionam entre os Guermantes;

inversamente, o estilo de Swann ou os hieróglifos de Charlus também não

funcionam entre os Verdurin. A unidade de todos os mundos está em que eles

formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se

descobre nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e

interpretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes

signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem

ser decifrados do mesmo modo, não mantêm com o seu sentido uma relação

idêntica. Que os signos formam ao mesmo tempo a unidade e a pluralidade da

Recherche, esta é a hipótese que devemos verificar ao considerarmos os

mundos de que o herói participa diretamente.

O primeiro mundo da Recherche é o da mundanidade. Não existe meio que

emita e concentre tantos signos em espaços tão reduzidos e em tão grande

velocidade. Na verdade, estes signos não são homogêneos. Em um mesmo

momento eles se diferenciam, não somente segundo as classes, mas segundo

"famílias espirituais" ainda mais profundas. De um momento para outro eles

evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros signos. Assim, a tarefa

do aprendiz é compreender por que alguém é "recebido" em determinado

mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos

e quem são seus legisladores e seus papas. Na obra de Proust, Charlus é o mais

prodigioso emissor de signos, pelo seu poder mundano, seu orgulho, seu senso

teatral, seu rosto e sua voz. Mas Charlus, movido pelo amor, não é nada nos

salões dos Verdurin; mesmo no seu próprio mundo, acabará por não ser mais

nada quando as leis implícitas tiverem mudado. Qual é, então, a unidade dos

signos mundanos? Um cumprimento do duque de Guermantes deve ser

interpretado e, neste caso, os riscos de erro são tão grandes quanto num

diagnóstico. O mesmo acontece com uma simples mímica da Sra. Verdurin.

O signo mundano surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento,

ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que não remete a

nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que

usurpou o suposto valor de seu sentido. Por esta razão a mundanidade, julgada

do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do

pensamento, estúpida. Não se pensa, não se ag, mas emitem-se signos. Nada

engraçado é dito em casa da Sra. Verdurin e esta não ri, mas Cottard faz sinal

de que está dizendo alguma coisa engraçada, a Sra. Verdurin faz sinal de que ri

e este signo é tão perfeitamente emitido que o Sr. Verdurin, para não parecer

inferior, procura, por sua vez, uma mímica apropriada. A Sra. de Germantes dá,

muitas vezes, mostras de um coração duro e de pouca inteligência, mas emitirá

sempre signos encantadores. Ela nada faz por seus amigos, não pensa como

eles, emite-lhes signos. O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a

"substitui", pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula

pensamento e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e sua

vacuidade, embora não se possa concluir que esses signos sejam desprezíveis.

O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por

eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual,

como que um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os

signos mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa,

exprimindo sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los.^3

  1. CG 426-431.

pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja

que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do amado, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedicados,

exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de

preferência; mas, como esses signos são os mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada preferência que nós usufruímos delineia a imagem do mundo possível onde outros seriam ou são preferidos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe dirigira naquela mesma noite – e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela, cada carícia inventada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar, cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam enriquecer de novos instrumentos o seu suplício."^5 A contradição do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independência, com relação ao nosso amor. A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do

que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na

interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os "expliquemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular do amado, mas em razão de uma contradição mais profunda, que provém da natureza do amor e da si-

  1. CS 232·233.

tuação geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentiroros que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um

aprofundamento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos

signos amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está

contido no lema "Amar sem ser amado". Que esconde a mentira dos signos amorosos? Todos os signos mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto: o mundo de Gomorra, que também não depende desta ou daquela mulher (embora determinada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a possibilidade feminina por excelência, como

um a priori que o ciúme descobre. O mundo expresso pela mulher amada é sempre

um mundo que nos exclui, mesmo quando ela nos dá mostras de preferência. Mas, de todos os mundos, qual o mais exclusivo? "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da realidade que nos submerge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas suposições, era por elas pressentido (...) o rival não era semelhante a mim, suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, proporcionar a Albertina os mesmos prazeres, nem mesmo concebê-los de modo exato."^6 Nós interpretamos todos os signos da mulher amada, mas no final dessa dolorosa decifração nos deparamos com o signo de Gomorra como a expressão mais profunda de uma realidade feminina original.

  1. SG 405-409.

to, mas como o signo de um objeto completamente diferente, que devemos tentar

decifrar através de um esforço sempre sujeito a fracasso. Tudo se passa como se a qualidade envolvesse, mantivesse aprisionada, a alma de um objeto diferente daquele que ela agora designa. Nós "desenvolvemos" esta qualidade, esta impressão sensível, como um pedacinho de papel japonês que se abre na água e liberta a forma aprisionada. 10 Exemplos como esse são os mais célebres da Recherche e aumentam no final (a revelação final do "tempo redescoberto" é anunciada pela multiplicação desses

signos). Mas, quaisquer que sejam os exemplos – madeleine, campanários, árvores,

pedras do calçamento, guardanapo, barulho de colher ou do cano d'água – , trata-se sempre do mesmo desenvolvimento. No princípio, uma intensa alegria, de tal modo que estes signos já se distinguem dos precedentes por seu efeito imediato. Depois, uma espécie de sentimento de obrigação, necessidade de um trabalho do pensamento: procurar o sentimento do signo (acontece, entretanto, que nós nos furtamos a esse imperativo, por preguiça ou porque nossas buscas fracassam por impotência ou azar: como acontece no caso das árvores). Finalmente, o sentido do signo aparece, revelan-

do-nos o objeto oculto – Combray para a madeleine, as jovens para os campanários,

Veneza para as pedras do calçamento...

É duvidoso que o esforço de interpretação termine aí. Falta ainda explicar a razão pela

qual, através da solicitação da madeleine, Combray não se contenta de ressurgir tal

como esteve presente (simples associação de idéias), mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua "essência", na sua eternidade. Ou, o que vem dar no mesmo, resta explicar por que sentimos uma alegria tão intensa e tão particular. Em um texto importante, Proust cita a madeleine como um fracasso: "... de cujos (sic!) causas profundas adiara até então a busca."^11 10.CS 47. 11.TR 121.

Entretanto, a madeleine, de determinado ponto de vista, aparece como um verdadeiro

sucesso: o intérprete encontra seu sentido, não sem esforço, na lembrança inconsciente de Combray. As três árvores, pelo contrário, são um fracasso total, pois seu sentido nunca é elucidado. Deve-se portanto pensar que, ao escolher a madeleine como exemplo de insuficiência, Proust visa a uma nova etapa da interpretação, uma etapa final. As qualidades sensíveis ou as impressões, mesmo bem interpretadas, não são ainda em si mesmas signos suficientes. Não são mais signos vazios, provocando-nos uma exaltação artificial, como os signos mundanos. Também não são signos enganadores que nos fazem sofrer, como os do amor, cujo verdadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São signos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum, signos plenos, afirmativos e alegres. São signos

materiais. Não simplesmente por sua origem sensível. Seu sentido tal como é desen-

volvido significa Combray, as jovens, Veneza ou Balbec. Não é apenas sua origem, mas sua explicação, seu desenvolvimento, que permanece material.^12 Sentimos perfeitamente que Balbec, Veneza... não surgem como produto de uma associação de idéias, mas em pessoa e em essência. Todavia, não estamos ainda em estado de poder compreender o que é essa essência ideal, nem por que sentimos tanta alegria. "O gosto da madeleine lembrava-me Combray. Mas, por que me tinham, num como noutro momento, comunicado as imagens de Combray e de Veneza uma alegria semelhante à da certeza e suficiente para, sem mais provas, tornar-me indiferente a idéia da morte?"^13

No final da Recherche, o intérprete compreende o que lhe escapara no caso da

madeleine ou dos campanários: o sentido 12.P 321.

  1. TR 121.

Capítulo II

Signo e Verdade Na realidade, a Recherche du temps perdu é uma busca da verdade. Se ela se chama busca do tempo perdido é apenas porque a verdade tem uma relação essencial com o tempo. Tanto no amor como na natureza ou na arte, não se trata de prazer, mas de verdade.^1 Ou melhor, só usufruímos os prazeres e as alegrias que correspondem à descoberta da verdade. O ciumento sente uma pequena alegria quando consegue decifrar uma mentira do amado, como um intérprete que consegue traduzir um trecho complicado, mesmo quando a tradução lhe revela um fato pessoalmente desagradável

e doloroso.^2 É preciso então compreender como Proust define sua própria busca da

verdade, como a contrapõe a outras buscas, científicas ou filosóficas. Quem procura a verdade? E o que está querendo dizer aquele que diz "eu quero a verdade"? Proust não acredita que o homem, nem mesmo um espírito suposmente puro, tenha naturalmente um desejo do verdadeiro, uma vontade de verdade. Nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca. Quem procura a verdade? O ciumento sob a pressão das mentiras do amado. Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, 1.RF 10. 2.CS 238.

que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade,

ela se trai por signos involuntários.^3

O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam. "As idéias formadas pela inteligência pura só pos- suindo uma verdade lógica, uma verdade possível, sua seleção torna-se arbitrária."^4 Elas são gratuitas porque nascidas da inteligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a autenti- cidade. As idéias da inteligência só valem por sua significação explícita, portanto convencional. Um dos temas em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pen- samento. As significações explícitas e convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior.

À idéia filosófica de "método" Proust opõe a dupla idéia de "coação" e "acaso". A

verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado. Fortuito e inevitável, como diz Proust. "E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio."^5 O que quer aquele que diz "eu quero a verdade"? Ele só a quer coagido e forçado. Só a quer sob o império de um encontro, em relação a determinado signo. Ele quer interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o sentido do signo. 3.CG 46. 4.TR 130. 5.TR 130.

outros flácidos ou vincados. O Tempo, para tornar-se visível, "vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica".^7 No

final da Recherche surge um desfile de rostos no salão dos Guermantes; mas, se ti-

véssemos tido o necessário aprendizado, teríamos sabido desde o início que os signos mundanos, em razão de sua vacuidade, deixavam transparecer alguma coisa de precário, ou então já se cristalizavam, se imobilizavam, para esconder sua alteração, pois a mundanidade é, a todo instante, alteração, mudança. "As modas mudam, visto

elas mesmas nascerem da necessidade de mudança."^8 No final da Recherche Proust

mostra a profunda modificação da sociedãde, motivada não só pelo caso Dreyfus como pela guerra e, principalmente, pelo próprio Tempo. Ao invés de ver nisso o fim de um "mundo", ele compreende que o mundo que havia conhecido e amado era em si mesmo alteração e mudança, signo e efeito de um Tempo perdido (até mesmo dos Guermantes nada permaneceu além do sobrenome). Proust não concebe absolutamente a mudança como uma duração bergsoniana, mas como uma defecção, uma corrida para o túmulo. Com mais razão, os signos do amor antecipam, de certo modo, sua alteração e sua anulação; são eles que implicam o tempo perdido no estado mais puro. O envelhecimento dos freqüentadores de salões não é nada comparado ao inacreditável e genial envelhecimenento de Charlus, que é simplesmente uma redistribuição de suas almas múltiplas, já presentes no modo de olhar ou no tom de voz de Charlus ainda

jovem. É por uma simples razão que os signos do amor e do ciúme trazem consigo a

própria destruição: o amor não pára de preparar seu próprio desaparecimento, de figurar sua ruptura. Assim é no amor como na morte. Do mesmo modo que imaginamos estar ainda vivos 7.TR 162. 8.RF 3.

para ver a cara que farão aqueles que nos perderam, também imaginamos estar ainda

suficientemente apaixonados para gozar a tristeza daquele que não mais amamos. É

bem verdade que repetimos nossos amores passados, mas também é verdade que nosso amor atual, em toda a sua vivacidade, "ensaia" o momento da ruptura ou antecipa seu próprio fim. Esse é o sentido do que chamamos uma cena de ciúme. Nós encontramos essa repetição voltada para o futuro, esse ensaio do desfecho, no amor de Swann por Odette, no amor por Gilberta ou por Albertina. Diz Proust, a respeito de Saint-Loup: "Sofria de antemão. Sem esquecer uma só, todas as dores de uma ruptura que em outros momentos julgava poder evitar."^9

É mais espantoso que os signos sensíveis, apesar de sua plenitude, possam também ser

signos de alteração e de desaparecimento. Entretanto, Proust cita um caso, o da botina

e da lembrança da avó, que, em princípio, não difere da madeleine e das pedras do

calçamento, mas nos faz sentir uma ausência dolorosa e constitui o signo de um Tempo perdido para sempre, ao invés de nos dar a plenitude do Tempo que redescobrimos.^10 Inclinado sobre sua botina, ele sente algo de divino; tem, entretanto, os olhos marejados de lágrimas, pois a memória involuntária traz-lhe a lembrança desesperadora da avó morta. "Não era senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse anacronismo que tantas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos – que eu acabava de saber que ela estava morta. (...) que a havia perdido para sempre." Por que a lembrança involuntária, ao invés de uma imagem da eternidade, nos traz o sentimento agudo da morte? Não basta invocar o caráter particular do exemplo em que ressurge um ser amado, nem a culpa que o

herói sente em relação à avó. É no próprio signo sensível que devemos encontrar uma

  1. CG 91.
  2. SG 127-132.

muitas vezes sua decepção, e a de seus pais, diante de sua impotência para trabalhar, para iniciar a obra literária que ele anuncia.^12 A revelação final de que há verdades a serem descobertas nesse tempo que se perde é o resultado essencial do aprendizado. Um trabalho empreendido pelo esforço da vontade não é nada; em literatura ele só nos pode levar a essas verdades da in- teligência., às quais falta a marca da necessidade, e das quais se tem sempre a impressão de que elas "teriam podido" ser outras e ditas de forma diferente. Do mesmo modo, o que diz um homem profundo e inteligente vale por seu conteúdo manifesto, por sua significação explícita, objetiva e elaborada; tiraremos pouca coisa disso, apenas possibilidades abstratas, se não soubermos chegar a outras verdades por meio de outras vias, que são precisamente as do signo. Ora, um ser medíocre ou mesmo estúpido, desde que o amemos, é mais rico em signos do que o espírito mais profundo, mais inteligente. Tanto mais uma mulher é incapaz, limitada, mais ela compensa por meio de signos – que às vezes a traem e denunciam uma mentira – sua incapacidade de formular julgamentos inteligentes ou de ter um pensamento coerente. Proust assim se refere aos intelectuais: ''A mulher medíocre, que nos espantávamos ao ver preferida por eles, enriquece-lhes bem mais o universo do que o teria feito uma mulher inteligente."^13 Existe uma embriaguez provocada pelas matérias e naturezas rudimentares por serem ricas em signos. Com a mulher amada medíocre nós voltamos às origens da humanidade, isto é, ao tempo em que os signos sobrepujavam o conteúdo explícito, e os hieróglifos substituíam as letras: essa mulher não nos "comunica" nada, mas não deixa de produzir signos que devem ser decifrados. 12.RF 121·122. 13.F 156.

Por isso, quando pensamos que perdemos nosso tempo, seja por esnobismo, seja por dissipação amorosa, estamos muitas vezes trilhando um aprendizado obscuro, até a revelação final de uma verdade desse tempo que se perde. Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente "bom em latim", que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende. Quem sabe como se tornar um grande escritor? Diz Proust, a propósito de Otávio: "Não me impressionei menos ao refletir que talvez as obras-- primas mais extraordinárias de nossa época tenham saído, não dos concursos universitários, de uma educação modelar e acadêmica, no estilo de Broglie, mas do contato com as 'pesagens' e com os grandes bares."^14 Mas perder tempo não é o suficiente. Como vamos extrair as verdades do tempo que se perde, e mesmo as verdades do tempo perdido? Por que Proust chama essas verdades de "verdades da inteligência"? De fato, elas se opõem às verdades que a inteligência descobre quando trabalha de boa vontade, põe-se em ação e recusa-se a perder tempo. Vimos, sob esse ponto de vista, a limitação das verdades propriamente intelectuais: falta-lhes "necessidade". Em arte ou em literatura, quando a inteligência

intervém, é sempre depois , nunca antes: ''A impressão é para o escritor o mesmo que a

experimentação é para o sábio,

  1. F 148.