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Personalidade Interictal na Epilepsia do Lobo Temporal: Análise em 'O Idiota', Notas de estudo de Literatura

Este artigo discute as alterações comportamentais observadas no personagem principal de 'o idiota', prince liev nikoláievitch míchkin, de fiódor dostoevsky, em contexto da síndrome de personalidade interictal da epilepsia do lobo temporal. O documento explora as observações de neurologistas e epileptologistas sobre a relação entre epilepsia e alterações comportamentais, com ênfase na síndrome de geschwind-waxman.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucano15
Tucano15 🇧🇷

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Arq Neuropsiquiatr 2004;62(2-B):558-564
1Especializando em Neurologia do Hospital Madre Teresa, Belo Horizonte MG, Brasil;2Neurologista e Neurofisiologista do Hospital Madre Teresa, Mestre em
Neurologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto SP, Brasil.
Recebido 24 Novembro 2003. Aceito 19 Fevereiro 2004.
Dr. Leonardo Cruz de Souza - Hospital Madre Teresa - Avenida Raja Gabaglia 1002 - 30380-090 Belo Horizonte MG - Brasil. E-mail: leocruzsouza@uai.com.br
PRÍNCIPE LIEV NIKOLÁIEVITCH MÍCHKIN (“O IDIOTA”,
FIÓDOR DOSTOEVSKY) E A SÍNDROME DE PERSONALIDADE
INTERICTAL NA EPILEPSIA DO LOBO TEMPORAL
Leonardo Cruz de Souza
1
, Mirian Fabíola Studart Gurgel Mendes
2
RESUMO - A obra do romancista russo Fiódor Dostoevsky (1821-1881),além de seu extraordinário valor literário, reveste-se de
importância especial para neurologistas e epileptologistas. O escritor, que era portador da enfermidade, transmitiu através de seus
textos o universo do epiléptico e a maneira como esse é percebido pela sociedade. Seus livros tiveram grande influência na maneira
como a cultura ocidental percebe a doença. O romance
O Idiota
tem como protagonista o Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin,
um epiléptico com personalidade marcante. Considerando a proposta feita por Geschwind-Waxman (1975) de síndrome de
personalidade interictal na epilepsia do lobo temporal, este artigo pretende discutir as alterações comportamentais no paciente
epiléptico a partir de Míchkin, personagem principal de
O Idiota
, de Fiódor Dostoevsky.
PALAVRAS-CHAVE: epilepsia temporal, Dostoevsky,síndrome de personalidade interictal, síndrome de Geschwind-Waxman.
Prince Liev Nikoláievitch Míchkin (The Idiot,Fiódor Dostoevsky) and the interictal personality syndrome of
temporal lobe epilepsy
ABSTRACT - Russian romancist Fiódor Dostoevskys composition,besides its extraordinary literary value, has a special importance
for neurologists and epileptologists.The writer, who suffered of epilepsy, transmitted in his texts the epileptics universe and how
the pacient is perceived by the society.His novels had great influence on how epilepsy is perceived by western culture. The romance
The Idiot
has as protagonist Prince Liev Nikoláievitch Míchkin, a epileptic with remarkable personality. Considering the propose
made by Geschwind-Waxman (1975) of a interictal personality syndrome in temporal lobe epilepsy,this article intends to discuss
the behavioral alterations in epileptic patient, from Míchkin, the main character in Fiódor Dostoevsky
s The Idiot
.
KEY WORDS: temporal epilepsy, Dostoevsky, interictal personality syndrome, Geschwind-Waxman syndrome.
Aparentemente díspares e imiscíveis entre si, arte e ciência
compartilham em suas naturezas ampla interface de
similaridades: ambas só têm sentido quando situadas dentro
de contexto histórico específico; ambas podem abordar o
mesmo fenômeno, a mesma verdade, identificando-os,
descrevendo-os e interpretando-os, embora de maneira
essencialmente distintas.A relação entre arte e ciência pode
ser entendida como de complementaridade, e não de simples
antagonismo.A obra do romancista russo Fiódor Mikháilovitch
Dostoevsky (1821-1881) é emblemática em ilustrar o quanto
a arte pode complementar à ciência o nosso entendimento da
epilepsia. Os romances do autor, dentre os quais se destacam
Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázovi
e
O Idiota,
são marcados pela excelência na descrição psicológica dos
personagens, pelo profundo sentimento religioso e pelas
reflexões filosóficas.Há, ainda, um outro traço recorrente nos
textos do escritor: a epilepsia. O escritor, que sofreu da
enfermidade durante várias décadas, traduziu em sua
literatura o universo do epiléptico, sua personalidade e a
maneira como é percebido pela sociedade. Por isso, dada a
repercussão de seus livros, Dostoevsky teve grande influên-
cia no modo como a epilepsia é percebida no ocidente, sendo
objeto de dedicado estudo de epileptologistas proeminentes
com Gastaut e Alajounine.Alajounine1 sublinha o interesse
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Arq Neuropsiquiatr 2004;62(2-B):558-

(^1) Especializando em Neurologia do Hospital Madre Teresa, Belo Horizonte MG, Brasil; 2 Neurologista e Neurofisiologista do Hospital Madre Teresa, Mestre em Neurologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto SP, Brasil.

Recebido 24 Novembro 2003. Aceito 19 Fevereiro 2004.

Dr. Leonardo Cruz de Souza - Hospital Madre Teresa - Avenida Raja Gabaglia 1002 - 30380-090 Belo Horizonte MG - Brasil. E-mail: leocruzsouza@uai.com.br

PRÍNCIPE LIEV NIKOLÁIEVITCH MÍCHKIN (“O IDIOTA”,

FIÓDOR DOSTOEVSKY) E A SÍNDROME DE PERSONALIDADE

INTERICTAL NA EPILEPSIA DO LOBO TEMPORAL

Leonardo Cruz de Souza 1 , Mirian Fabíola Studart Gurgel Mendes 2

RESUMO - A obra do romancista russo Fiódor Dostoevsky (1821-1881), além de seu extraordinário valor literário, reveste-se de importância especial para neurologistas e epileptologistas. O escritor, que era portador da enfermidade, transmitiu através de seus textos o universo do epiléptico e a maneira como esse é percebido pela sociedade. Seus livros tiveram grande influência na maneira como a cultura ocidental percebe a doença. O romance “O Idiota” tem como protagonista o Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, um epiléptico com personalidade marcante. Considerando a proposta feita por Geschwind-Waxman (1975) de síndrome de personalidade interictal na epilepsia do lobo temporal, este artigo pretende discutir as alterações comportamentais no paciente epiléptico a partir de Míchkin, personagem principal de “O Idiota”, de Fiódor Dostoevsky. PALAVRAS-CHAVE: epilepsia temporal, Dostoevsky, síndrome de personalidade interictal, síndrome de Geschwind-Waxman.

Prince Liev Nikoláievitch Míchkin (“The Idiot”, Fiódor Dostoevsky) and the interictal personality syndrome of temporal lobe epilepsy ABSTRACT - Russian romancist Fiódor Dostoevsky’s composition, besides its extraordinary literary value, has a special importance for neurologists and epileptologists. The writer, who suffered of epilepsy, transmitted in his texts the epileptic’s universe and how the pacient is perceived by the society. His novels had great influence on how epilepsy is perceived by western culture. The romance “The Idiot” has as protagonist Prince Liev Nikoláievitch Míchkin, a epileptic with remarkable personality. Considering the propose made by Geschwind-Waxman (1975) of a interictal personality syndrome in temporal lobe epilepsy, this article intends to discuss the behavioral alterations in epileptic patient, from Míchkin, the main character in Fiódor Dostoevsky ’s “The Idiot”. KEY WORDS: temporal epilepsy, Dostoevsky, interictal personality syndrome, Geschwind-Waxman syndrome.

Aparentemente díspares e imiscíveis entre si, arte e ciência compartilham em suas naturezas ampla interface de similaridades: ambas só têm sentido quando situadas dentro de contexto histórico específico; ambas podem abordar o mesmo fenômeno, a mesma verdade, identificando-os, descrevendo-os e interpretando-os, embora de maneira essencialmente distintas. A relação entre arte e ciência pode ser entendida como de complementaridade, e não de simples antagonismo.A obra do romancista russo Fiódor Mikháilovitch Dostoevsky (1821-1881) é emblemática em ilustrar o quanto a arte pode complementar à ciência o nosso entendimento da epilepsia. Os romances do autor, dentre os quais se destacam

“Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázovi” e “O Idiota”, são marcados pela excelência na descrição psicológica dos personagens, pelo profundo sentimento religioso e pelas reflexões filosóficas. Há, ainda, um outro traço recorrente nos textos do escritor: a epilepsia. O escritor, que sofreu da enfermidade durante várias décadas, traduziu em sua literatura o universo do epiléptico, sua personalidade e a maneira como é percebido pela sociedade. Por isso, dada a repercussão de seus livros, Dostoevsky teve grande influên- cia no modo como a epilepsia é percebida no ocidente, sendo objeto de dedicado estudo de epileptologistas proeminentes com Gastaut e Alajounine. Alajounine 1 sublinha o interesse

na leitura dos textos do escritor russo porque neles estão pro- jetadas as experiências pessoais do autor (descritas com minúcia e sofisticação) e porque sua literatura teve papel fulcral na concepção ocidental da epilepsia. O presente estudo pretende discutir as alterações comportamentais no paciente epiléptico, a partir da personalidade do Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, personagem principal de “O Idiota”, de Dostoevsky.

EPILEPSIA E ALTERAÇÕES COMPORTAMENTAIS

Poucas afecções sofreram tanta estigmatização, pre- conceito e incompreensão quanto a epilepsia. Em minucioso artigo, Ozer 2 relata como a epilepsia e o epiléptico foram enxergados ao longo da história, desde os tempos bíblicos até os filmes e seriados televisivos atuais. A autora aponta pelo menos quatro maneiras pelas quais os pacientes epilépticos foram estigmatizados: como endemoniados, como santos, como gênios, como portadores de depressão suicida. O conceito de uma personalidade epiléptica remonta, portanto, há vários séculos de história. Contudo, foi a partir de meados do século XIX, quando a epilepsia passou a ser cientificamente estudada, que foram feitas as primeiras correlações entre epilepsia e alterações comportamentais. Segundo Devinsky e Najjar. 3 , Gowers reconheceu, em 1885, que muitos epilépticos tinham personali- dades dentro da normalidade, mas que muitos outros desenvolviam mudanças comportamentais interparoxísticas. Ainda, segundo Devinsky et al.^3 , Kinnier Wilson e Sjobring, em trabalhos separados, no início do século XX, apontaram a existência de alterações comportamentais “negativas” no paciente epiléptico. Em 1923, Kraeplin^4 observou que mais da metade dos pacientes epilépticos apresentava marcantes características de personalidade, dentre elas lentificação dos processos mentais, prolixidade, circunstancialidade e irritabilidade, além de alguns traços “positivos”, tais como tranqüilidade, modéstia, honestidade e religiosidade. Finalmente, em 1951, Gibbs 5 relata a associação entre mudanças de comportamento e epilepsia do lobo temporal. Em 1955, Gastaut 6 publicou um estudo sobre as alterações comportamentais em pacientes com epilepsia do lobo temporal, salientando que essas eram opostas àquelas observadas na síndrome de Kluver-Bucy. Os estudos de Norman Geschwind e de Stephen Wax- man^7 sugeriram, em 1975, a existência de um conjunto de características de personalidade semelhantes em pacientes com epilepsia do lobo temporal. A proposta sindrômica (que mais tarde foi denominada de síndrome de Geschwind-Waxman) reunia pacientes com epilepsia do lobo temporal que apresentavam: alterações do comportamento sexual (hipossexualidade), religiosidade e tendência a escrever compulsivamente (hipergrafia).A seguir, buscou-se identificar e quantificar tais características de personalidade. Para tanto,

Bear e Fedio^8 conceberam um inventário, que consiste em 90 questões referentes a 18 traços de personalidade supostamen- te característicos da epilepsia do lobo temporal, além de 10 outras extraídas do Minnesota Multiphasic Personality Inventory Scale (Tabela 1). O inventário foi aplicado a diversos grupos de pacientes em vários estudos clínicos que mostraram que pacientes com epilepsia (tanto as formas generalizadas quanto as do lobo temporal) atingiam maiores pontuações que controles normais, embora não distinguisse pacientes epilépticos de pacientes psiquiátricos 3. Devido a limitações metodológicas dos estudos, o inventário não teve a sua aplicabilidade validada a grandes e diversas populações e, assim, a existência de uma síndrome comportamental foi questionada3,9,10, embora ainda se defenda que determinadas manifestações comportamentais – notadamente o interesse por temas filosóficos e religiosos, a hipergrafia, alterações no comportamento sexual e a agressividade – são mais comuns em pacientes com epilepsia do lobo temporal 9,11,12^. Para Geschwind 11 , a presença da síndrome não é necessariamente patognomônica de um foco epiléptico no lobo temporal, assim como se admite que as alterações comportamentais possam ser encontradas em outras formas de epilepsias. No mesmo trabalho, contudo, o autor ressalta que o diagnóstico da síndrome deve motivar a investigação eletroencefalográfica do paciente. Ao empregar o inventário de Bear-Fedio,Weiser^13 observou diversas associações entre as determinadas características da personalidade (Tabela 2). A relação entre a epilepsia do lobo temporal e alterações de comportamento permanece assunto controverso na literatura 14.

A AURA DO PRAZER De acordo com Gastaut 15 , os estudos de J. Hughlings Jackson entre 1876 e 1890 propuseram a distinção das auras psíquicas em dois grupos: intelectuais ou emocionais. Para Jackson, as auras emocionais estariam restritas a sensações desagradáveis, como medo e angústia. Tanto Jackson quanto os estudiosos das auras psíquicas que se seguiram a ele não

Tabela 1. Características de personalidade inqueridas no inventário de Bear- Fedio.

  • Agressividade • Interesse sexual alterado
  • Viscosidade • Circunstancialidade
  • Senso de destino pessoal • Culpa
  • Dependência emocional; • Hipergrafia passividade • Hipo ou hipermoralismo
  • Depressão • Interesses filosóficos
  • Religiosidade • Paranóia
  • Comportamento obsessivo • Irritabilidade
  • Elação, euforia • Emocionalidade

São muitas as passagens que expressam sentimentos melancólicos em Míchkin. De modo recorrente, tais emoções mesclavam-se a idéias auto-punitivas (culpa exacerbada) e a baixa auto-estima. Nos trechos que se seguem, estão exemplifi- cados momentos de melancolia vividos pelo personagem:

“ Estava em uma tensão angustiante e intranqüilo e ao mesmo tempo sentia uma necessidade inusual de estar só. Queria estar só e entregar-se a essa tensão sofredora de modo absolutamente passivo, sem procurar a mínima saída.” “O príncipe estava muito contente por finalmente o terem deixado só; ele desceu a varanda, atravessou o caminho e entrou no parque; queria ponderar e decidir um passo a ser dado. Mas esse “passo” não era daqueles que se ponderam e sim daqueles que justamente não se ponderam e simplesmente se decide por ele: súbito sentiu uma terrível vontade de largar tudo ali e voltar para o lugar de onde viera, para algum lugar mais distante, para os confins, partir agora mesmo inclusive sem se despedir de nin- guém. Pressentia que se permanecesse ali, ao menos por alguns dias, forçosamente afundaria nesse mundo de modo irreversível, e mais tarde esse mesmo mundo acabaria sendo o seu destino. Mas ele não meditou nem dez minutos e resolveu imediatamente que “era impossível” fugir, que isso seria quase uma pusilanimidade, que tinha problemas pela frente e agora não tinha nenhum direito de fugir à sua solução ou ao menos de deixar de empreender todos os esforços para resolvê-los. Voltou para casa com esses pensamentos e é pouco provável que tenha passeado sequer quinze minutos. Nesse momento estava totalmente infeliz.” “Às vezes lhe dava vontade de ir para algum lugar, sumir inteiramente dali, e gostaria até de um lugar sombrio, deserto, contanto que ficasse só com os seus pensamentos e que ninguém soubesse onde ele se encontrava” “– (..) disse Rogójin – (...) por que não respondeste nada a ela? “Tu és feliz ou não”? Não, não, não! – exclamou o príncipe com um sofrimento infinito.”

Caráter anti-social Embora tenha mantido relações com amplo grupo de pessoas, Míchkin, em diversos momentos, demonstra preferir a solidão à companhia dos outros. Nos seguintes trechos, ex- pressam-se tal tendência e a sua atração pelas crianças:

“Eu sou insociável, e é possível que fique muito tempo sem visitá-las.(as filhas do General)” “No entanto existe aí apenas uma verdade; eu realmente não gosto de estar com adultos, com pessoas, com grandes

  • isso eu notei faz tempo – , não gosto porque não sei. O

“– E quanto ao sexo feminino, príncipe, és um grande apreciador? Dize antes!

  • Eu, n-n-não! É que eu... Talvez o senhor não saiba, mas por causa de minha doença congênita nunca conheci mulher!”

No trecho assinalado, Míchkin (que então contava com 27 anos) atribui à doença a sua castidade. Parece-nos que este comportamento não é resultado de impotência sexual propriamente, mas de um desinteresse pela atividade sexual em si. Mesmo ao aproximar-se afetivamente de Aglaia e de Nastássia Filíppovna, Míchkin parece impelido por um amor idealizado, quase platônico. Hipergrafia Após desembarcar na estação, Míchkin dirige-se à casa da família do General Iepántchin. É o primeiro contato de uma relação que se estreita ao longo de todo o romance. Embora tenha parentesco com a esposa do General, Míchkin é um des- conhecido para essa família. Na primeira conversa com o General, passa-se o seguinte diálogo:

“ (...) – Então sabe ler e escrever corretamente? Oh, muito. Ótimo, e a letra? A letra é magnífica. Eis aí onde, é de crer, eu tenho talento; nisso eu sou simplesmente um calígrafo. Deixe que eu escreva agora mesmo alguma coisa para teste – disse o príncipe com entusiasmo.” A seguir, o príncipe escreve uma mesma frase com diferentes caracteres (dentre eles, russos medievais, ingleses e franceses). Eis a impressão que Míchkin tem do que acabara de redigir: “– (...)Veja mais esses caracteres belos e originais (...) É a letra russa, letra de escrivão, ou, se quiser, de escrivão militar. É assim que se lavra papel oficial endereçado a uma pessoa importante, também com caracteres redondos, magníficos, em negrito, em negro, mas com um gosto notá- vel. (...) aqui aparece toda a alma da escrituração militar: a gente tem vontade de soltar-se, o talento pede passagem, mas a gola militar está fortemente presa a um gancho, a disciplina aparece até na caligrafia, uma maravilha! (...)”

A reação do General não é menos apaixonada:

“(...) o senhor, meu caro, não é simplesmente um calígrafo, o senhor, meu caro, é um artista (...)”

Esse talento para a caligrafia pode ser entendido como hipergrafia, embora esta se refira mais especificamente à tendência a escrever copiosamente. É de se observar que tal habilidade de Míchkin valeu-lhe um emprego como escrivão pessoal do General.

Melancolia

Hiperreligiosidade Em vários episódios da história, Míchkin defende de modo inflamado a fé genuinamente cristã, a crença em Deus e na Sua graciosa Providência. Repele com veemência a depravação moral do homem, o ateísmo e a corrupção que descaracterizou a igreja na Rússia. Os trechos em que o príncipe expressa sua fé em Deus constituem pontos altos da literatura de Dostoevsky. Aqui o escritor russo projeta o forte sentimento religioso que impulsionou sua vida. A passagem ora separada é o diálogo de Míchkin com Parfen Rogojín, no qual o príncipe refere-se ao encontro que teve com uma camponesa, que, com o filho no colo, lhe testemunha a fé na misericórdia divina.

“ (...) (a camponesa) expressou esse pensamento tão profundo, tão sutil e verdadeiramente religioso, esse pensamento em que toda a essência do Cristianismo foi expressa de uma vez, isto é, todo o conceito de Deus como nosso pai querido e da alegria de Deus com o homem como a alegria do pai com o seu filho querido – a idéia central de Cristo! (...) escuta Parfen, há pouco me fizeste uma pergunta e eis a minha resposta: a essência do sentimento religioso não se enquadra em nenhum juízo, em nenhum ato ou crime ou nenhum ateísmo; aí há qual- quer coisa diferente e que vai ser sempre diferente. Aí há qualquer coisa sobre a qual irão escorregar eternamente os ateísmos e da qual irão dizer eternamente coisas diferentes.”

Outras características O príncipe Míchkin demonstra também outras características que o aproximam da proposta sindrômica de Geshwind. A circunstancialidade (viscosidade) e a prolixidade manifestam-se nos longos discursos do personagem, sobre os mais diferentes temas, desde lembranças de sua infância, suas viagens, até as reflexões filosófico-religiosas. O interesse pelos temas filosóficos e religiosos também é marcante em Míchkin, que ao longo da novela expõe seus pensamentos acerca da religiosidade, reflete sobre a questão da culpa e sobre as motivações morais do homem – nesses momentos, sobressaía-se mais uma peculiaridade do príncipe que o aproxima da proposta de Geshwind: o hipermoralismo, que é sublinhado pelo contraste com a impulsividade de Rogojín e a ganância de Gânia. A emocionalidade de Míchkin permeia toda a obra e, uma vez mais, Dostoevsky a ressalta através do contraponto com as personalidades de Nastássia Filipóvna e, especialmente, com a de Aglaia Iepántchkin, notória por sua fleuma impenetrável.A sensibilidade com que o príncipe reage aos diversos episódios com que se depara reforçam no leitor a impressão da complexa delicadeza da alma de Míchkin, o que era a clara intenção do romancista ao compor o perso-

que quer que eles conversem comigo, por mais bondosos que sejam comigo, mesmo assim a companhia deles é sempre pesada para mim sabe-se lá por quê, e eu fico terrivelmente feliz quando posso sair o mais rápido para a companhia dos companheiros, e meus companheiros sempre foram as crianças, não porque eu sempre fui uma criança e sim porque as crianças sempre me atraíram.”

Durante toda a trama, a ética e o humanismo de Míchkin contrastam-se fortemente com a sociedade que o rodeia. Essa contraposição adquire um caráter anti-social – Míchkin repudia o que há de anti-ético e imoral no meio social. Daí, ser o príncipe atraído pelo universo infantil, pela pureza, pela do- ce ingenuidade das crianças.

Baixa auto-estima Idéias negativas acerca de sua própria pessoa recorrentemente afligem Míchkin. O sentimento de inferioridade vincula-se à culpa excessiva e ao humor depressivo, compondo um perfil que caracterizará o príncipe durante toda a estória, como é exemplificado a seguir:

“(...) Não dê importância (...) vou me retirar agora. Eu sei que eu... fui ofendido pela natureza. Passei vinte e quatro anos doente, do nascimento aos vinte quatro anos. Interprete isso como de alguém doente também neste momento. (...) em sociedade eu estou sobrando (...) Eu não tenho modos convenientes, não tenho senso de medida; eu tenho palavras diferentes e não pensamentos cor- respondentes, e isso é uma humilhação para esses pensamentos. É por isso que eu não tenho o direito... e ainda por cima sou cheio de cismas, eu... eu estou con- vencido de que nesta casa não poderão me ofender e gostam de mim mais do que eu mereço (...)” “Eu sempre temo comprometer com meu aspecto ridículo o pensamento e a idéia principal. Eu tenho gesto sempre oposto, e isso provoca o riso e humilha a idéia. Tampouco tenho senso de medida, e isso é o principal; é até o mais importante... Sei que para mim é melhor ficar sentado e calado. Quando teimo e calo, pareço até muito sensato, e ainda por cima pondero.” Culpa excessiva Ideações de culpa – na maioria das vezes injustificada e exacerbada – assolavam o príncipe com freqüência tal a originar nele sentimentos melancólicos e de baixa auto-estima. A passagem seguinte ilustra tal característica de Míchkin.

“Eu devia ter esperado e feito a proposta amanhã a sós com ele – pensou imediatamente o príncipe – , mas pelo visto agora não vou conseguir consertar! Sim, eu sou um idiota, um verdadeiro idiota!” – decidiu ele de si para si num acesso de vergonha e excepcional amargura.”

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  2. Amâncio EJ, Zymberg ST, Pires MFC. Epilepsia do lobo temporal e aura com alegria e prazer: relato de dois casos e revisão de literatura. Arq Neuropsiquiatr 1994;52:252-259.
  3. Cabrera-Valdivia F, Jiménez-Jiménez FJ, Tejerio J, Ayuso-Peralta I, Vaquero A, Garcia-Albea E. Dostoevsky´s epilepsy induced by television. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1996;61:653.
  4. Tanuri FC, Thomaz RB, Tanuri JA. Epilepsia do lobo temporal com aura do prazer: relato de caso. Arq Neuropsiquiatr 2000;58:178-180.
  5. Dostoéivski, Fiódor. O Idiota. Tradução de Paulo Bezerra, desenhos de Oswaldo Goeldi. São Paulo: Ed. 34, 2002.
  6. Dostoiévski: obra completa. Versão anotada, de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro Ed Nova Aguilar, 1995.
  7. Dostoievskaia, Anna Grigorivena. Meu marido Dostoeivski. Tradução de Zoia Prestes. Rio de Janeiro Ed Mauad, 1999.
  8. Frank J. Dostoiévski: as sementes da revolta (1821 a 1849). São Paulo, Edusp, 1999.
  9. Frank J. Dostoiévski: os anos de provação (1850 a 1859). São Paulo: Edusp,
  10. Frank J. Dostoiévski: os efeitos da libertação (1860 a 1865). São Paulo: Edusp, 2002.
  11. Freud S. Obras completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1996.