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Guias e Dicas
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A Cantoria: Formação de Cantadores, Habilidades Poéticas e Disputas Ritualizadas, Provas de Poesia

Este documento aborda a cantoria, uma tradição oral nordestina de improvisação poética, explorando temas como a formação de cantadores, habilidades improvisadas, o ritual da disputa entre cantadores e a evolução da prática. O autor relata suas conversas e entrevistas com cantadores e ouvintes em diversos municípios, oferecendo análises sobre a estruturação da performance, organização social e a construção da imagem da cantoria como disputa. Além disso, o texto discute a influência da urbanização na cantoria e as estratégias profissionais dos cantadores.

O que você vai aprender

  • Quais são as habilidades improvisadas necessárias para se tornar um cantor?
  • Como a urbanização afeta a cantoria e os cantores?
  • Como a disputa poética é uma parte fundamental da cantoria?
  • Como a formação de cantadores ocorre na tradição da cantoria?
  • Quais são as estratégias profissionais dos cantores diante das transformações na cantoria?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Botafogo
Botafogo 🇧🇷

4.5

(118)

218 documentos

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A POÉTICA DO IMPROVISO:
prática e habilidade no repente nordestino
João Miguel Manzolillo Sautchuk
Orientador: Prof. Wilson Trajano Filho
Brasília
2009
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Baixe A Cantoria: Formação de Cantadores, Habilidades Poéticas e Disputas Ritualizadas e outras Provas em PDF para Poesia, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE DE B RASÍLIA

I NSTITUTO DE C IÊNCIAS S OCIAIS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE P ÓS -GRADUAÇÃO EM A NTROPOLOGIA S OCIAL

A POÉTICA DO IMPROVISO :

prática e habilidade no repente nordestino

João Miguel Manzolillo Sautchuk

Orientador: Prof. Wilson Trajano Filho

Brasília

UNIVERSIDADE DE B RASÍLIA

I NSTITUTO DE C IÊNCIAS S OCIAIS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE^ P^ ÓS^ -GRADUAÇÃO EM^ A^ NTROPOLOGIA^ S^ OCIAL

A POÉTICA DO I MPROVISO:

prática e habilidade no repente nordestino

João Miguel Manzolillo Sautchuk

Tese apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, no dia 06 de agosto de 2009, como um dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia.

Banca Examinadora:

Prof. Wilson Trajano Filho – DAN/UnB (Presidente)

Prof. Rafael José de Menezes Bastos – UFSC

Profa.Elizabeth Travassos Lins – UNIRIO

Profa. Juliana Braz Diaz, DAN/UnB

Profa. Marcela Stockler Coelho de Souza, DAN/UnB

RESUMO

O presente estudo aborda o repente ou cantoria , modalidade de poesia cantada e improvisada praticada na região Nordeste do Brasil, especialmente nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Seus praticantes são chamados de repentistas , cantadores ou violeiros e cantam sempre em dupla, alternando-se na composição de estrofes de acordo com parâmetros rígidos de métrica, rima e coerência temática. Há um conjunto de regras formuladas nesse sentido, mas os repentistas improvisam seus versos a partir de fundamentos práticos como o ritmo poético incorporado. O improviso coloca o repentista em relação com modelos estéticos como o ritmo da poesia, os padrões melódicos e as regras da cantoria, ao mesmo tempo em que o põe em diálogo com o outro cantador e com as demandas e reações da platéia. O improviso, portanto, não é apenas a criação poética, mas também o desenrolar de um jogo de interação dos poetas com os outros sujeitos na situação da cantoria. O elemento central da cantoria é a disputa entre dois cantadores, que se pauta em valores relativos à construção da masculinidade, e pela qual os poetas constroem sua imagem pessoal e seu prestígio. O caminho escolhido para a análise dessa arte é a antropologia da prática, buscando compreender a relação entre ação e estrutura, e a reprodução das formas da vida social por meio das práticas. Um ponto metodológico relevante na realização desta pesquisa foi o aprendizado da cantoria como estratégia etnográfica. Dessa maneira, são abordados o campo social da cantoria, a diferenciação e a reciprocidade entre cantadores, a formação do cantador, as habilidades do improviso poético e o ritual da disputa entre cantadores.

ABSTRACT

This study concerns the singing called repente or cantoria , a modality of improvised sung poetry, practiced in the Northeast region of Brazil, especially in the states of Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte and Ceará. Its practitioners are called repentistas , cantadores or violeiros , and they always sing in duets, alternating in the composition of strophes according to strict parameters of meter, rhyme and thematic coherence. There is a set of rules formulated for this purpose, but the repentistas improvise their verses on a practical basis, such as the poetic rhythm incorporated. The improvisation places the repentista in relation to aesthetic models, such as the rhythm of the poetry, the melodic patterns and the singing rules, at the same time it puts him into a dialogue with the other singer and with the expectations and reactions of the audience. The improvisation, therefore, is not only the poetic creation, but also the unfolding of a game of interaction between the poets and the other participants in the singing situation. The central element of the singing is the dueling between two singers, based on values regarding the construction of masculinity, and on which the poets build their personal images and prestige. The path chosen for analysis of this art is the anthropology of the practice, seeking to understand the relation between action and structure, and the reproduction of the forms of social life by means of the practices. The significant methodological point in the carrying out of this research was the learning of the singing as an ethnographic strategy. Thus, it deals with the social field of the singing, the differentiation and reciprocity among singers, the personal development of the singer, the skills of poetic improvisation and the ritual of the dueling between the singers.

AGRADECIMENTOS

À Universidade de Brasília, minha segunda casa nos últimos onze anos.

A Wilson Trajano Filho, pela orientação dedicada e decisiva.

A Rosa e Adriana, funcionárias do Departamento de Antropologia da UnB.

Às professoras Mariza Peirano e Carla Teixeira pelas valiosas sugestões e questionamentos na ocasião da defesa do projeto desta tese.

A Anthony Seeger e Terry Agerkop pelas contribuições e indicações bibliográficas.

A Elizabeth Travassos, Marco Antônio Gonçalves, Marcos e Maria Ignez Ayala, Elba Braga Ramalho, Ernesto Donas, Luciano Py de Oliveira, Simone Oliveira, Aleixo Leite Filho, Asthier Basílio, Siba Veloso e Verônica Moreira pelos diálogos sobre poesia nordestina.

Aos colegas de turma de doutorado: Giovana Tempesta, Gonzalo Crovetto, Marcus Cardoso, Gustavo Meneses, Márcia Leila e Luis Cayon. A todos companheiros da Catacumba de Antropologia, especialmente: professor Carlos Alexandre, Homero Martins, Júlio Borges, Carol Hoffs, Lívia Vitenti, Aina Guimarães, Eduardo Di Deus, André Rego, Marquinhos Garcia, Odilon e Cris.

Aos amigos Francisco Siqueira, Pini, Ellyne, Roger, Mário Bolacha e Martiniano. A Pedro João, Cíntia Sasse, Inês Nassif e suas famílias.

A Julius, Maria do Carmo e Gabriela.

A Jaime, meu pai. A Dina ( in memorian ). A Zé e Simony.

Vittorio, Grazia e Anna; Rosa e Marcelo; Sayuri e Miguel.

A Vera, minha mãe, e Carlos, meu irmão, pela ajuda constante.

A Beth, Clara e Gabriel, pelos sacrifícios que pareciam não ter fim.

Aos repentistas Luiz Antônio (Luiz Gonzaga da Silva – in memorian ), João Santana, Neildo Rodrigues, João Bernardo, Chico Ivo, João Borges, Diniz Vitorino, João Lourenço, Rogério Meneses, Hipólito Moura, Luciano Leonel, Ivanildo Vila Nova, Raimundo Caetano, Josenildo França, Zito Alves, Antônio Barbosa, Arlindo Costa, Antônio da Cruz, todos os cantadores da Feira de Caruaru, Barbeirinho, Roberto Silva, Heleno Rosa, Zé Galdino, Edmilson Ferreira, Sebastião Dias, João Paraibano, Valdir Teles, Zé Catota, Daniel Olímpio, Louro Branco, Mocinha de Passira, Santinha Maurício, Severino Feitosa, Oliveira de Panelas, Daudeth Bandeira, Raimundo Nonato, Nonato Costa, Acrísio de França, Santino Luís, Moacir Laurentino, Antônio Alves, Zé Viola, Chico Mota, Sebastião da Silva, Miro Pereira, Sebastião Marinho, Luzivan Matias, Antônio Nunes Fernandes, Antônio Nunes de França, Zé Cardoso, Jonas Bezerra, Pedro Bandeira, Silvio Granjeiro, Ismael Pereira, Dimas Mateus, Rubens Ferreira, Horácio Custódio, Raimundo Adriano, todos os freqüentadores das Noites das Violas da Associação dos Cantadores do Nordeste, Zé Eufrásio, Antônio Jocélio, Marcos Rabelo, Alberto Porfírio, Evandro, Aloísio Tavares, Luiz Batista, Messias Bento, Ari Teixeira, João Teixeira, Raimundo Girão, Roberto Macena, Zilmar do Horizonte. Aos declamadores Raudênio Lima e Iponax Vila Nova. Aos cordelistas Rouxinol do Rinaré, Arievaldo

S UMÁRIO

  • I NTRODUÇÃO ,
  • Capítulo
  • O REPENTISTA E SUAS HABILIDADES , - I. Modelos poéticos / Modelos de ação , - II. Voz e viola: a música da cantoria , - a. Toada , - b. Baião-de-viola , - III. Habilidades do improviso , - a. Ritmo e poesia , - b. Imagens poéticas , - c. Outras habilidades e recursos de apresentação , - d. Método de composição , - IV. Improviso , - V. O repente e o cantador ,
  • Capítulo
  • TORNAR- SE POETA , - I. Como as crianças chegam à cantoria / Como a cantoria chega às crianças , - II. Aprendizado , - a. Fundamentos poéticos , - b. O etnógrafo aprendiz , - c. Brincadeiras e desafios , - VI. Sobre o dom ,
    • VII. Abraçando a profissão ,
  • Capítulo
  • A PROFISSÃO DA VIOLA , - I. Cantadores , - II. Status, conhecimento e discriminação , - III. Público , - imagem) , IV. Pé-de-parede: profissionalização e controle das variáveis do ofício (tempo, dinheiro, - a. Poetas e promoventes: avisos, convites e viagens , - b. Dinheiro, comportamento, tempo e profissão , - V. Feira , - VI. Mídias, cidades e outras adaptações , - a. Ares, ondas, antenas e plugs , - b. Gravações comerciais , - c. Urbanização , - d. Revés da urbanização: a praia e o cantar de mesa em mesa ,
    • VII. Congressos e festivais ,
  • Capítulo
  • AS RECIPROCIDADES NO CAMPO DA CANTORIA , REMUNERAÇÃO , ALIANÇAS E INTRIGAS : - I. Alianças , - meio das intrigas , II. Prosas e cantigas de escárnio e maldizer: a dinâmica das relações profissionais por - a. Intrigas , - b. Prosas , - c. Cantigas ,
  • Capítulo
  • POESIA E D ISPUTA , - I. A disputa no ritual da cantoria , - II. Festivais ,
    • III. Masculinidade nos versos ,
    • IV. Homem vs. mulher: gênero e disputa , - V. Disputa e conhecimento , - a. Violência e disputa poética , - b. O conhecimento na disputa poética hoje em dia ,
  • CONCLUSÃO ,
  • I NFORMANTES CITADOS ,
  • BIBLIOGRAFIA ,
  • ANEXO I – ALGUNS ESTILOS DE CANTORIA ,
  • ANEXO II – CD DE ÁUDIO , - Índice de faixas do CD ,

cantadores e promotores de cantoria. No vale do rio Pajeú^1 , em Pernambuco, a cantoria constitui uma espécie de cultura oficial em municípios como São José do Egito e Afogados da Ingazeira, e os descendentes de grandes cantadores dali formam uma elite cultural local. As capitais desses estados (Recife, João Pessoa, Natal e Fortaleza) também possuem intensa atividade de cantadores, em decorrência da grande presença ali de migrantes sertanejos. Embora o cantador seja um dos emblemas da “cultura nordestina”, a maioria dos brasileiros, e mesmo boa parte dos nordestinos, tem apenas uma idéia vaga do que seja o repente. É comum que se confunda a cantoria de viola com o coco de embolada e com a poesia escrita do cordel. Embora sejam semelhantes quanto a alguns aspectos formais e entrelaçadas em sua história e em sua prática, tratam-se de gêneros artísticos distintos. Os folhetos de cordel, escritos quanto a seu modo de composição, podem ser orais quanto à propagação e fruição – visto que eles costumam ser declamados, e não apenas lidos. Muitas modalidades de estrofes utilizadas na cantoria são também comuns no cordel, que compartilha com a cantoria as mesmas regras de métrica e rima. Ambos têm como temática recorrente o Nordeste pastoril (valorizando a vida no sertão e a perspectiva do sertanejo diante do universo urbano) e são simbolicamente identificados com esse universo social. Muitos cantadores afirmam uma superioridade da cantoria em relação ao cordel, argumentando que fazem de improviso algo que os cordelistas necessitam mais tempo para escrever, e que, por isso, todo cantador seria também capaz de fazer cordéis. Não é verdade: o cordel exige a habilidade de criação de uma narrativa extensa “com começo, meio e fim”, um sentido e uma moral da história. Esta capacidade não está dada na habilidade do repentista para improvisar estrofes coerentes com um assunto, mas que constituem unidades em si mesmas, tendo caráter mais lírico e trovadoresco. Há cantadores que são também cordelistas. Geraldo Amâncio, afamado cantador cearense, escreveu cordéis sobre temas históricos como a Guerra de Canudos, e diz ter encontrado enorme dificuldade para construir as narrativas desses poemas. Por isso, boa parte dos cordéis escritos por cantadores é de textos curtos e de caráter dissertativo (de comentário sobre algum tema), e não narrativo. O coco de embolada é uma forma de desafio poético em dupla, com acompanhamento instrumental de pandeiros. A embolada utiliza algumas modalidades de estrofes comuns na cantoria, mas suas regras de rima são mais tolerantes. Trata-se de um espetáculo de rua, realizado principalmente em praças de grandes cidades ou nas feiras do interior, em que os espectadores formam uma roda em torno da dupla. O principal atrativo é o humor

(^1) O prestígio da cantoria não é igualmente distribuído em toda a extensão desses vales. No Vale do Jaguaribe, é mais intenso entre Iguatu e o Baixo Jaguaribe (onde se situa Limoeiro do Norte); no Vale do Pajeú, em sua parte setentrional. 2

Figura 1: mapa da região estudada com indicação de locais relevantes.

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de cururu, enquanto um cantador improvisa versos, seus oponentes (um ou dois) ficam sentados ao fundo do palco ouvindo as estrofes e depois o sucedem respondendo suas provocações. (Oliveira, 2007). Uma forma mais recente de desafio poético é o freestyle , uma modalidade de rap em que dois cantores improvisam versos de desafio e na qual não há modelos fixos de estrofe nem padrões métricos estipulados. Além da estrutura do canto em desafio, as semelhanças das formas poéticas, como a predominância da redondilha maior (o verso de sete sílabas, na versificação de língua portuguesa) e a ampla difusão da quadra e da décima, motivam tentativas de estabelecimento de vínculos de “herança”, segundo os quais a maioria dessas práticas teria sua “origem” remontada ao trovadorismo medieval^2. Entretanto, não se pode afirmar vínculos históricos com base somente em semelhanças formais, e desconheço a existência de estudos historiográficos bem fundamentados que analisem possíveis permanências e mudanças dessas práticas. Sobretudo, é necessário olhar criticamente as idéias de “origem” e “herança”, e identificar com rigor quais processos sociais estariam envolvidos na atualização dessas práticas de poesia cantada no transcorrer dos séculos. Para mim, a idéia de que a cantoria e tantas outras formas de poesia improvisada sejam desdobramentos históricos do trovadorismo provençal e ibérico é instigante, mas permanece como hipótese. Todas essas artes apresentam arranjos e variações da estrutura do canto em desafio, com dois poetas que se enfrentam diretamente no conteúdo dos versos, ou por meio dos versos, para demonstrar maior capacidade de criação poética que o parceiro-oponente. Uma vez que a maioria dos estudos sobre elas limita-se à descrição dos versos e esquiva-se da análise do fazer poético propriamente dito, a comparação entre esses arranjos da prática do improviso poético, bem como dos processos e estratégias de composição e apresentação dos repentistas de diferentes tradições, é um campo ainda pouco explorado^3. Meu interesse é justamente a prática do improviso e seus aspectos sociais. Nesse sentido, embora não invista em um esforço comparativo abrangente, beneficio-me de análises sobre formas de improviso poético na América e na Europa. Minha abordagem é centrada nas situações sociais da cantoria. Os cantadores nordestinos costumam considerar a chamada cantoria de pé-de-parede (ou simplesmente cantoria ou pé-de-parede^4 ) como o modelo completo e tradicional da cantoria. De fato, é o arranjo mais freqüente da prática, e reúne regras, seqüências e padrões fundamentais que são

(^2) Uma exceção à esse discurso seria o freestyle , uma vez que as bases estéticas do rap se constituem de década de 1970 nos Estados Unidos. 3 4 Díaz-Pimienta (2001) dá alguns passos nesse sentido. Utilizarei o itálico sempre na primeira vez que mencionar categorias nativas. Após a primeira aparição, esse destaque será empregado quando não ficar claro que se trata de um conceito próprio do meio social da cantoria. 5

selecionadas ou rearranjadas noutros contextos de apresentação – festivais, feiras, o cantar de mesa em mesa em praias e bares^5 , shows, programas de rádio e o disco. Em todos esses contextos de apresentação, a voz é o elemento central. A cantoria de pé-de-parede caracteriza-se pela interação face a face entre cantadores e platéia, enquanto nos festivais, a interação com o público é bem menos intensa e direta. Neles, cantam-se modalidades de estrofe predefinidas e assuntos escolhidos pelo júri, com tempo cronometrado. Em linhas gerais, a performance duma cantoria de pé-de-parede segue uma estrutura seqüencial. Os cantadores sentam-se de frente para o público em cadeiras encostadas a uma parede^6 (pode ou não haver um pequeno tablado e aparelhagem de amplificação sonora). Verificam a afinação das violas. Na maior parte das cantorias, os ouvintes pagam aos cantadores colocando o dinheiro sobre uma bandeja que fica em frente à dupla. Há também cantorias em que se paga ingresso na entrada do recinto. Os repentistas começam tocando as violas por alguns minutos (nesse momento, a fisionomia grave indica concentração), após os quais iniciam o canto da poesia. As primeiras seções de versos de uma cantoria são sempre de Sextilha (estrofe de seis versos setessílabos), e os cantadores costumam, nesse momento, fazer uma louvação ao lugar em que cantam, aos ouvintes conhecidos e a quem promove aquele pé-de-parede ou falam da situação daquela cantoria. Nas cantorias de bandeja (em que os ouvintes pagam nos primeiros momentos da apresentação), canta-se o elogio, em que os repentistas tecem versos, normalmente com gracejos, sobre os espectadores. Não se trata aí meramente de uma poesia sobre os ouvintes, mas de uma poesia com os ouvintes, que pode prolongar-se mais ou menos, de acordo com as reações destes. Trata-se fundamentalmente de um convite à interação. Após esse momento inicial, a dupla segue escolhendo os assuntos e gêneros (modalidades de estrofe) e atendendo pedidos do público (motes, gêneros e assuntos para o improviso, além de poemas e canções, que são de repertório memorizado). As cantorias costumam durar quatro horas. Em meio ao público, há os apologistas , ouvintes contumazes e conhecedores de detalhes do repente; uma espécie de críticos da cantoria. São os que mais realizam pedidos, e os que mais contribuem financeiramente. Normalmente a disputa entre os cantadores é sutil e não declarada. Num pé-de- parede, não costuma haver um vencedor óbvio. É comum assistir um cantador não acompanhar o outro à altura em um assunto ou gênero (gaguejando e demorando a concluir as estrofes) e sobressair-se em seguida. Somente nos festivais há a proclamação de

(^5) O cantar de em praias e de mesa em mesa é menosprezado por grande parte dos cantadores, que o equiparam com o pedir esmolas – uma vez que não é o público que vai ao cantador quando se anuncia com antecedência uma cantoria, mas este que aborda o ouvinte. 6 Daí, certamente, a expressão “pé-de-parede”. 6

Assim, parto do questionamento sobre o papel de corpos de saberes, habilidades e padrões estéticos, como os da cantoria, na reprodução das formas da vida social. A principal inspiração teórica nesse sentido é a teoria da prática de Pierre Bourdieu. Esse autor argumenta em favor de uma análise das relações dialéticas entre as estruturas lógicas dos sistemas sociais e as disposições pelas quais tais estruturas são reproduzidas. Trata-se de uma tentativa de integrar a verdade do modelo abstrato teorizado pelo antropólogo e a verdade do modo prático de conhecimento. No seu entender, as ações das pessoas são dirigidas por um habitus , um conjunto de disposições cultivadas e inscritas nos corpos e mentes dos sujeitos, uma forma internalizada das estruturas sociais (as quais Bourdieu chama de estruturas objetivas) constantemente reforçada e chamada à prática pela coletividade. Essas disposições são esquemas gerais de percepção e pensamento que permitem aos agentes agir de forma consistente com a lógica das relações sociais em questão, funcionando como um conjunto de esquemas gerativos automaticamente aplicáveis (ou inconscientes, pode-se dizer), mas raramente explicitados enquanto princípios formais (Bourdieu, 1977). Para o mesmo autor, a ação não é mera execução de um modelo estruturado. Há uma estrutura da prática que reproduz tais modelos estruturados, ao mesmo tempo em que possui poder estruturante sobre eles. Tomando a língua (Saussure, 1971) como exemplo, Bourdieu afirma que a passagem da estrutura para as funções revela que o conhecimento do código fornece uma destreza incompleta para as interações lingüísticas. O significado dos atos de linguagem depende tanto de elementos propriamente lingüísticos quanto de fatores extralingüísticos – o contexto em que o discurso tem lugar, as inferências conversacionais, elementos de prosódia, gestos etc. As interações exigem o conhecimento prático de uma semiologia espontânea (decodificação das ações) e da capacidade de improvisar e desenvolver estratégias, a partir da leitura imediata da situação. Na cantoria, há regras detalhadas de rima, métrica e coerência temática para a poesia, mas os repentistas dependem muito mais de uma maestria prática, baseada em padrões incorporados, do que de conhecimentos poéticos explícitos, para improvisar seus versos. O modelo analítico proposto por Bourdieu é fecundo no que diz respeito ao modo como as estruturas incorporadas (o habitus ) dão coerência, estabilidade e inteligibilidade às ações das pessoas, pois mostra o papel desse “senso prático” na internalização da realidade social e na estruturação desta pela ação dos sujeitos. Contudo, não o sigo, às últimas conseqüências, em sua teoria do poder simbólico, por causa do peso que ela coloca sobre a disputa por aquisição de capital simbólico como fator constitutivo das estruturas sociais, dos agentes e das práticas. Recorro ao conceito de capital simbólico (e também cultural e

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lingüístico), na medida em que estes apontam para a dinâmica de reconhecimento coletivo de atributos socialmente instituídos, mas considero necessário tomar esse tipo de traço distintivo contextualmente. Esses capitais (como o domínio da “norma culta” da língua portuguesa e outros índices de distinção social) não são inequívocos; estão sujeitos a negociações e não determinam por si sós as desigualdades de poder nas relações sociais concretas. Assim, considero o conceito de habitus e a teoria da prática de Bourdieu adequados para entender o fazer dos repentistas no que se refere tanto à criação poética em si e às formas de interação no momento das cantorias, quanto na constituição de seu campo social. As habilidades dos repentistas na criação poética e interação no momento das cantorias são parte de um habitus. Elas englobam técnicas^7 e estratégias de relação com as regras da poesia, com modelos poético-musicais incorporados, com o tempo e com outros agentes, suas ações e expectativas. Nesse ponto, o questionamento empírico deve ser dirigido ao que os cantadores fazem durante a performance – que envolve a pergunta “o que eles pensam que estão fazendo?” Pretendo aqui explorar a idéia de improviso (que é um conceito nativo), e entender o que de fato eles improvisam (e entendem que improvisam) e quais as suas principais estratégias para tal. A reflexão sobre a habilidade deve centrar-se na experiência dos cantadores, articulando-a com os outros elementos envolvidos no repente. Isto é, para analisar a prática dos cantadores, suas técnicas e estratégias, é preciso levar em conta seu contexto de ação, enfatizando a interação com outros personagens além do cantador; em especial o público, que constitui referência para o diálogo poético – o terceiro ponto a definir o plano e o sentido do improviso. Costuma-se definir o repente como poesia criada no ato de sua exposição oral. A idéia de improviso, do canto poético gerado de repente – e submetido a regras de métrica, rima e coerência – faz parte do entendimento que têm da cantoria os cantadores e seu público. E é justamente o improviso que faz a cantoria um objeto de estudo interessante para a discussão antropológica da relação entre prática e estrutura social. O termo “improviso” deriva do latim in (negação) + provideo (antecipar, prever, planejar), tendo portanto sentido negativo. Contudo, os atos de improvisação na música e nas artes verbais não podem ser vistos como aleatórios ou assistemáticos nem se caracterizam por uma ausência de informação para os outros participantes, inclusive para a platéia, sobre o

(^7) Para Marcel Mauss (2003[1935]), as “técnicas do corpo” são maneiras aprendidas socialmente pelas quais as pessoas, em cada sociedade ou tradição, servem-se de seu corpo e relacionam-se com ele em situações diversas

  • maneiras essas que integram um conjunto de técnicas e de séries de ações corporais socialmente adquiridos, que Mauss chama de habitus. 9

entre o pensado e o vivido na ação ritual (que é também performativa), relação que pretendo abordar empiricamente. Porém, é necessário explorar como os participantes de atos performativos convencionais reproduzem esses padrões. Pode-se dizer que a eficácia das ações rituais depende da capacidade dos atores de reconhecer seus padrões, mas também sua capacidade de recriá-los. Entendo que esses padrões são incorporados, assim como as habilidades para sua reconstrução e interpretação. Nesse sentido, olhar para as habilidades (de composição de mensagens, de manipulação de códigos, de interação, de adequar-se à estrutura do evento etc.) e para como as pessoas constroem e vivenciam esses padrões permitirá uma abordagem da eficácia de ações, no que diz respeito não apenas à fundamentação das concepções sociais que classificam e ordenam os fenômenos do mundo, mas também sobre a constituição de seus participantes. Para a análise das ações rituais, tomo como referência também o interacionismo simbólico de Goffman, pois entendo que a eficácia simbólica da cantoria se fundamenta na sua estrutura de relações entre os participantes. O primeiro ponto é que a disputa poética se apropria de elementos de outras formas de disputa, como a briga, para construir uma outra forma de enfrentamento, que é em parte o fingimento de uma briga, em parte um confronto poético real entre dois cantadores. E essa disputa ocorre em frente a uma platéia, ou melhor, ela ocorre em função de uma platéia. Cada cantador procura se sobrepor ao colega de modo a construir uma representação de si mesmo como mais forte, mais inteligente, mais corajoso e mais poderoso que os parceiros. Essas representações atualizam valores coletivos que transcendem a cantoria. Assim, a cantoria produz uma experiência de valores acerca do enfrentamento como forma de construção e manutenção de imagens pessoais. Definido o encaminhamento teórico deste trabalho em termos de uma antropologia da prática, apostei no aprendizado da cantoria como uma estratégia de pesquisa etnográfica. Minha idéia era menos fazer o que os cantadores fazem e mais participar de alguma forma do seu fazer. Com isso, não queria imitar ou fingir ser um cantador, mas construir meios de ter uma percepção prática da dinâmica de sua arte e buscar formas privilegiadas de interação com os poetas e seu público. Improvisar versos junto a eles me permitiu ocupar lugares mais interessantes que o de “pesquisador” e surtiu bons resultados. A compreensão que tenho hoje das minúcias técnicas, dos julgamentos sobre qualidade dos versos, da disposição dos cantadores para a disputa e de como essa disputa ocorre deve-se muito a isso. Na etnomusicologia, o aprendizado prático da arte que se analisa é um método de pesquisa recomendado desde a década de 1960 (Hood, 1960). Mais recentemente, Baily

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(2001) argumentou que apenas por meio da execução musical se apreendem elementos essenciais da música em questão, pois se percebe operacionalmente sua estrutura. Quer dizer, passa-se a entender a música em termos daquilo que se faz e do que se deve saber fazer, e se chega, por meio da prática, aos conhecimentos operacionais que diferenciam o conhecimento do músico e o do ouvinte sem habilidades específicas. Ou ainda, a pergunta sobre como determinados músicos ou artistas fazem o que fazem não pode ser respondida somente em termos de regras e padrões estéticos. A explicação do “como se faz” passa por influências situacionais, tomadas de decisão em fração de segundos, e uma diversidade de capacidades incorporadas e automatizadas difíceis de verbalizar (Brinner, 1995). Entendo que essa metodologia de pesquisa permite adquirir uma maestria prática a partir da qual o pesquisador pode deduzir conhecimentos analíticos sobre as competências exigidas por uma atividade musical ou poético-musical como a cantoria. Com relação às destrezas artísticas, a prática permite diferenciar elementos que devem ser interiorizados, automatizados, como o ritmo poético na cantoria, e outros que são mais acessíveis ao aprendizado pela explicação, como as regras de rima. Oferece também oportunidade de executar estratégias de criação e apresentação e uma noção da hierarquia de cada tipo de maestria no desempenho da arte. Num outro plano, a prática do repente me permitiu assumir lugares específicos nas interações do campo e, como decorrência, uma perspectiva privilegiada sobre a lógica dessas interações. Segundo Favret-Saada, quando o etnógrafo participa da vida nativa assumindo papéis em seu sistema social, ele é “afetado”, isto é, submete-se às situações que propõe estudar em intensidades específicas, e pode perceber minúcias das relações sociais que geralmente não são passíveis de expressão pelos nativos. Participar e ser afetado não tem a ver com assumir o ponto de vista nativo, com uma experimentação indireta das sensações e pensamentos de outro, nem com uma fusão com o outro que permitiria conhecer seus afetos. Ao contrário, “ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu próprio estoque de imagens (…)” (Favret-Saada, 2005:159). Aceitar ocupar esse lugar abre uma comunicação baseada nas intencionalidades do campo em que se pesquisa, convive e interage, comunicação esta que é freqüentemente arredia às intencionalidades etnográficas e à divisão de papéis que se possa querer estipular entre pesquisador e informante^9. Uma vez que todo lugar nativo sujeita a pessoa a uma ordem específica de eventos e maneiras pelas quais se pode ser afetado, cada lugar apresenta uma espécie particular de objetividade que só pode ser descoberta quando se ocupa aquela posição. Sujeitar-se a um lugar nas relações sociais que se pretende analisar permite compreender a hierarquia, assentada em um senso

(^9) Por isso a autora a qualifica como comunicação “involuntária” ou “não intencional”.

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