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POLÍTICAS SOCIAIS E AUSTERIDADE FISCAL, Manuais, Projetos, Pesquisas de Saúde Pública

Este texto busca contribuir e interferir no debate que se trava atualmente no Brasil sobre as políticas sociais e os desafios em termos de sua sustentabilidade e sobrevivência, tendo em vista as tendências atuais dos Welfare States/Estados de bem-estar social (Ebes), no mundo e no Brasil, de enfrentamento do déficit público decorrente da crise econômica por meio da diminuição das políticas sociais tanto pelo corte dos gastos como de seu escopo e abrangência.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2020

Compartilhado em 21/01/2020

inara-lima-8
inara-lima-8 🇧🇷

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Políticas sociais e austeridade fiscal
Documento preparado por Fabiola Sulpino Vieira, Isabela Soares Santos, Carlos Ocké Reis e Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, como
subsídio para debate no Seminário sobre Austeridade e Gasto Social organizado pela parceria Cebes-Fiocruz-ABrES.
Versão preliminar 29 de setembro de 2017. Página 1 de 29
POLÍTICAS SOCIAIS E AUSTERIDADE FISCAL
Como as políticas sociais são afetadas pelo austericídio da agenda neoliberal no Brasil e no mundo
Introdução
Este texto busca contribuir e interferir no debate que se trava atualmente no Brasil
sobre as políticas sociais e os desafios em termos de sua sustentabilidade e sobrevivência,
tendo em vista as tendências atuais dos Welfare States/Estados de bem-estar social (Ebes), no
mundo e no Brasil, de enfrentamento do déficit público decorrente da crise econômica por
meio da diminuição das políticas sociais tanto pelo corte dos gastos como de seu escopo e
abrangência
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Desde 1988, o Brasil adotou políticas sociais de caráter universal e vinha logrando
reduzir o contingente de miseráveis, além de ter ampliado o acesso da população aos serviços
de educação, saúde, previdência, saneamento e assistência social. Durante a primeira década
do século XXI também aumentou a proporção de brasileiros com vínculos formais de
trabalho, o que contribuiu para melhorar os salários e o acesso dos trabalhadores à previdência
social e a benefícios como o seguro desemprego, entre outros.
Apesar desses avanços, a receita para enfrentamento da crise econômica que tem sido
amplamente implantada no Brasil e em diversos outros países do mundo é a denominada
austeridade fiscal que, como mostraremos a seguir, quando aplicada, limita os avanços
obtidos com as políticas sociais de caráter universal e pode retardar a retomada do
crescimento das economias dos países, afetando drasticamente o presente e as perspectivas
futuras dessas sociedades.
1
É um trabalho de continuidade de parceria inicialmente estabelecida entre o Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (CEBES) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para fortalecer o debate sobre tema das políticas sociais
no país, parceria que progressivamente foi ampliada com outras instituições mais, como ABrES e Abrasco.
Iniciou-se com o Seminário Internacional “Tendências recentes de Welfare State”, realizado no Rio de Janeiro
em 2015, o qual gerou o livro “Políticas e riscos sociais no Brasil e na Europa: co nvergências e divergências”,
publicado no início de 2017 ( http://cebes.org.br/biblioteca/politicas-e-riscos-sociais-no-brasil-e-na-europa-
convergencias-e-divergencias/ ), ambos realizados pelo Cebes com apoio da OnG alemã Medico International. A
partir desses eventos, de reuniões internas no Cebes e em seus núcleos regionais, bem como com parceiros de
diversas outras entidades da sociedade civil, identificou-se a necessidade de elaboração de texto que pudesse
subsidiar a produção de outros materiais e formatos que possam aprimorar e disseminar o conhecimento
produzido sobre o tema na defesa das políticas sociais universais. O texto deveria ter conteúdo e linguagem
acessível e o objetivo de qualificar o debate sobre o tema das políticas sociais e austeridade fiscal na sociedade
civil, entre instituições acadêmicas e de movimentos sociais.
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Documento preparado por Fabiola Sulpino Vieira, Isabela Soares Santos, Carlos Ocké Reis e Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, comosubsídio para debate no Seminário sobre Austeridade e Gasto Social organizado pela parceria Cebes-Fiocruz-ABrES.

POLÍTICAS SOCIAIS E AUSTERIDADE FISCAL

Como as políticas sociais são afetadas pelo austericídio da agenda neoliberal no Brasil e no mundo

Introdução

Este texto busca contribuir e interferir no debate que se trava atualmente no Brasil sobre as políticas sociais e os desafios em termos de sua sustentabilidade e sobrevivência, tendo em vista as tendências atuais dos Welfare States/Estados de bem-estar social (Ebes), no mundo e no Brasil, de enfrentamento do déficit público decorrente da crise econômica por meio da diminuição das políticas sociais tanto pelo corte dos gastos como de seu escopo e abrangência^1. Desde 1988, o Brasil adotou políticas sociais de caráter universal e vinha logrando reduzir o contingente de miseráveis, além de ter ampliado o acesso da população aos serviços de educação, saúde, previdência, saneamento e assistência social. Durante a primeira década do século XXI também aumentou a proporção de brasileiros com vínculos formais de trabalho, o que contribuiu para melhorar os salários e o acesso dos trabalhadores à previdência social e a benefícios como o seguro desemprego, entre outros. Apesar desses avanços, a receita para enfrentamento da crise econômica que tem sido amplamente implantada no Brasil e em diversos outros países do mundo é a denominada austeridade fiscal que, como mostraremos a seguir, quando aplicada, limita os avanços obtidos com as políticas sociais de caráter universal e pode retardar a retomada do crescimento das economias dos países, afetando drasticamente o presente e as perspectivas futuras dessas sociedades.

(^1) É um trabalho de continuidade de parceria inicialmente estabelecida entre o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para fortalecer o debate sobre tema das políticas sociais no país, parceria que progressivamente foi ampliada com outras instituições mais, como ABrES e Abrasco. Iniciou-se com o Seminário Internacional “Tendências recentes de Welfare State”, realizado no Rio de Janeiro em 2015, o qual gerou o livro “Políticas e riscos sociais no Brasil e na Europa: convergências e divergências”, publicado no início de 2017 ( http://cebes.org.br/biblioteca/politicas-e-riscos-sociais-no-brasil-e-na-europa- convergencias-e-divergencias/ ), ambos realizados pelo Cebes com apoio da OnG alemã Medico International. A partir desses eventos, de reuniões internas no Cebes e em seus núcleos regionais, bem como com parceiros de diversas outras entidades da sociedade civil, identificou-se a necessidade de elaboração de texto que pudesse subsidiar a produção de outros materiais e formatos que possam aprimorar e disseminar o conhecimento produzido sobre o tema na defesa das políticas sociais universais. O texto deveria ter conteúdo e linguagem acessível e o objetivo de qualificar o debate sobre o tema das políticas sociais e austeridade fiscal na sociedade civil, entre instituições acadêmicas e de movimentos sociais.

Documento preparado por Fabiola Sulpino Vieira, Isabela Soares Santos, Carlos Ocké Reis e Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, comosubsídio para debate no Seminário sobre Austeridade e Gasto Social organizado pela parceria Cebes-Fiocruz-ABrES.

O que são políticas sociais?

Os direitos e as políticas sociais podem abranger a sociedade de diferentes formas, mais igualitária ou mais restrita, atingindo desigualmente cada cidadão. As diferenças de como os direitos e políticas sociais são organizados em cada país, se para todos cidadãos ou para alguns ou para grupos populacionais, têm suas origens na relação entre os cidadãos e o Estado, construídas ao longo da história de cada país. O conjunto desses direitos e políticas sociais é chamado de Estado de bem-estar social (Ebes). Os direitos sociais fazem parte da ideia de cidadania, sobre a qual Marshall elaborou uma conceituação que ficou amplamente conhecida. O elemento social se refere ao direito de os cidadãos terem acesso a um conjunto de políticas e serviços – como saúde, educação, aposentadoria – que lhes possa assegurar um mínimo de bem-estar e dignidade. Parte da premissa do reconhecimento pelo Estado de que para haver maior igualdade social é preciso que uma série de necessidades básicas dos cidadãos seja atendida mediante políticas públicas. O desenvolvimento dos direitos de cidadania vem prosseguindo nos últimos quatro séculos. As primeiras conquistas, relativas aos direitos civis, ocorreram ao longo dos séculos XVII e XVIII. O início da conquista e do estabelecimento dos direitos políticos se deu no século XIX. Finalmente, os direitos sociais começaram a ser estabelecidos apenas no século XX. Entre os direitos humanos, os direitos sociais são os mais recentes e se desenvolveram efetivamente ao longo do século XX, acompanhados de grande tensão política e social no seu estabelecimento, por exemplo Alemanha no século XIX, México e Rússia no início do século XX, que foram os primeiros países a implantarem direitos e políticas sociais abrangentes. Após a IIª Guerra Mundial, muitos passaram a adotar sistemas amplos de proteção social para toda ou grande parte de sua população, como a Inglaterra que em sua reconstrução nacional implantou o Plano Beveridge , o qual organizou o National Health Service (NHS), o primeiro sistema de saúde público de acesso universal do Ocidente, além de um amplo sistema público de aposentadorias e pensões. A tipologia mais comumente usada para distinguir os sistemas de proteção social desenvolvidos pelos Ebes dos países capitalistas é a de Esping-Andersen (1990). Esta tipologia organiza os modelos em três tipos ideais – o liberal, o conservador corporativo e o social democrata – que decorrem de entendimentos diferentes sobre o direito social e correspondem às relações entre o público e o privado na provisão dos serviços, ao grau de

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O que é o neoliberalismo e como ele afeta as políticas sociais? Diversas mudanças originaram o que se convencionou chamar de “crise” do Ebes, que se iniciaram na década de 1970 e resultaram em reformas de Estado a partir do final da década de 1970 e, sobretudo, nos anos 1980 e 1990. Tais mudanças ocorreram em relação ao contexto em que o Ebes foi desenvolvido, como mostra Esping-Andersen, quando eram outros os valores que vigoravam: “nas economias abertas e globalmente integradas de hoje (...) muitas das premissas que guiaram a construção desses welfare states não são mais vigentes” (Esping-Andersen, 1995: 73). Embora a transformação industrial tenha se iniciado logo depois de finda a IIª Guerra Mundial, é a partir da década de 1970, junto à crise econômica, que começaram a se fazer sentir os impactos do aumento dos gastos derivado do avanço tecnológico. A crise econômica iniciada na década de 1970 – cujo estopim foi o choque do petróleo, sobretudo após a segunda alta do preço em 1979 – expôs o limite de recursos como um problema para as economias dos países. Os reflexos da crise econômica foram muitos, como o aumento das taxas de desemprego, o desenvolvimento de novas formas de emprego, mais flexíveis, a redução da jornada de trabalho e o trabalho no âmbito do lar. A crescente incorporação da mulher no mercado de trabalho que demandou novas estruturas de apoio ao cuidado da família e repercutiu nas taxas de fertilidade. O envelhecimento da população, associado à menor fertilidade, contribuiu (e ainda contribui) fortemente para o desequilíbrio da seguridade, a qual passa a ter sua sustentabilidade como uma questão preocupante. Ademais, foram feitas pressões sociais e políticas por modificações no sentido “de uma utilização mais humana, racional e democrática dos recursos” (Perrin, 1981 apud Draibe, 1988: 56). E é nesse contexto que demandas orientadas por valores exclusivamente individuais vêm, desde então, questionando o welfarianismo e ganhando força. As mudanças acima foram fortemente usadas para embasarem propostas de políticas de enfrentamento do déficit público e da inflação, feitas por estudiosos e equipes das áreas econômicas de cada país. Na segunda metade da década de 1980, começou a ser implantada a agenda liberal elaborada para realizar o ajuste macroeconômico. Tinha como eixo central estabilizar as economias e intervir nas políticas sociais, tomadas como instrumento de ajuste (Ugá, 1997). Foi nesta década que começaram a cair muitos dos governos socialistas e a serem desfeitos os modelos de sociedade que estes haviam construído. O liberalismo se fortaleceu, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, com nova roupagem, como o neoliberalismo, termo que começou a ser utilizado nos anos 1930 mas que foi fortemente

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representado algumas décadas depois, sobretudo a partir dos anos 1980, pelos projetos dos defensores da política do governo Ronald Reagan, expressa pelo Reagonomics , e da primeira ministra do Reino Unido Margaret Thatcher com correntes similares de não intervenção do Estado no mercado. O paradigma do neoliberalismo pode ser organizado em três eixos, os quais sustentam as propostas de (a) privatização, pela ideia de “superioridade do livre mercado como mecanismo de alocação eficiente de recursos”, (b) do individualismo e (c) da liberdade, em detrimento da igualdade (Ugá e Marques, 2005:196). São disseminadas e fortalecidas as ideias de que o investimento em uma seguridade social generosa implica em menor crescimento econômico e da oferta de emprego, e de que o Estado tende a ser menos eficiente que o mercado. A propagação dessas ideias neoliberais gerou uma menor confiança na capacidade de gerenciamento do Estado e, como consequência, corroborou-se a crença nos valores individuais e em soluções de mercado, sob o argumento de que, para combater as deficiências identificadas na gestão feita pelo Estado, é preciso reformá-lo e retirá-lo da execução, expondo a execução de serviços à concorrência entres entes privados. São questionados a eficiência e o escopo das atividades dos Ebes e são supervalorizados o indivíduo e a liberdade individual. As ideias do neoliberalismo se fortaleceram paulatinamente, no Brasil sobretudo a partir da década de 1990. As propostas de privatização de programas sociais e de redução das ações sociais do Estado às populações mais pobres, são comumente apresentadas como solução para a necessidade de diminuição do gasto público e como resposta às demandas “mais diferenciadas e individualistas da sociedade pós-industrial” (Esping-Andersen, 1995: 106). Com a difusão da agenda neoliberal “o lema passa a ser a redução das atividades welfarianas do Estado, (...) consideradas como elementos de estímulo à falta de responsabilidade individual, além de serem vistas como o grande fardo financeiro carregado pelo setor produtivo da economia” (Ugá e Marques, 2005:197). Essa agenda se torna ainda mais forte como guia para a implantação das políticas de austeridade, como será mostrado na seção “O que é austeridade e quais têm sido suas consequências para a economia?”. De todo modo, o contexto da agenda neoliberal tornou imperativo desenvolver políticas que não desconsiderassem os desafios impostos pela conjuntura macroeconômica e fiscal dos Estados, mas que mantivessem o foco na garantia do bem-estar de suas populações sob uma lógica de investimento social.

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Contudo, os tempos mudaram e, na sociedade pós-industrial ideal típica, a taxa de crescimento econômico é mais baixa e incerta. Além disso, os avanços tecnológicos reduziram drasticamente a necessidade de mão-de-obra em grande escala, gerando dificuldades para a manutenção do emprego, especialmente para os trabalhadores pouco qualificados, enquanto o aumento da concorrência internacional com a globalização levou ao avanço da flexibilização do mercado de trabalho. Adiciona-se a esse contexto complexo, o fato de as mulheres terem alcançado maiores níveis de escolaridade e de emprego, o que contribuiu para o aumento da pressão sobre as famílias no tocante aos cuidados não remunerados que até então ficavam sob a responsabilidade delas. Ainda de acordo com Taylor-Gooby, essas mudanças resultaram em novos riscos sociais e na necessidade de uma agenda de reforma para o Ebes.

Novos riscos sociais São os riscos que as pessoas enfrentam no curso de suas vidas como resultado de mudanças econômicas e sociais associadas à transição de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial, em que as evoluções tecnológicas implicam menor estabilidade e menor uso da força de trabalho na indústria, com implicações para a segurança do emprego dos trabalhadores pouco e não qualificados, bem como para a estrutura das classes sociais e para os interesses políticos. Esta transição se acentua a partir dos anos 1970 (Taylor-Gooby, 2004).

Quanto aos novos riscos sociais, quatro processos foram identificados: 1) elevado número de mulheres que entram no mercado de trabalho (trabalho remunerado); 2) aumento do número absoluto e relativo de pessoas idosas demandando assistência social e com impactos para o sistema tradicional de previdência social e de serviços de saúde; 3) mudanças no mercado de trabalho, estreitando a relação entre educação e emprego, com grandes implicações para os trabalhadores pouco qualificados; e 4) expansão dos serviços privados, podendo gerar novos riscos quando os cidadãos-consumidores fazem escolhas que não são satisfatórias para atendimento de suas necessidades e quando a regulação da provisão privada não é efetiva (Taylor-Gooby, 2004). Chiodi (2015) destaca como parte desses processos e desafios relevantes para os Estados, as entradas e saídas mais frequentes no mercado de trabalho, a precarização do trabalho dos jovens, a obsolescência ou a falta das competências para o desempenho laboral, assim como as novas realidades sociais como, por exemplo, o envelhecimento da população (com aumento das demandas por serviços de cuidado); a demanda por serviços de qualidade; as mudanças no padrão da família, com incorporação das mulheres no mercado de trabalho; o

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desemprego estrutural e a falta de proteção social para grupos específicos, com pouca história contributiva no mercado de trabalho (jovens, imigrantes e mulheres). O surgimento e a consciência sobre os novos riscos sociais motivaram os países da União Europeia (UE) a discutir uma agenda social compartilhada em março de 2000, visando à convergência futura das políticas sociais em seu território, considerando o trânsito dos trabalhadores entre os países (Rodrigues e Santos, 2017). Os compromissos assumidos foram registrados no documento que ficou conhecido por Agenda ou Estratégia de Lisboa. Na temática sobre emprego, reforma econômica e coesão social, reconhecem-se como desafios para a UE as transformações causadas pela globalização e pela nova economia baseada no conhecimento. Foram definidos os seguintes objetivos estratégicos no âmbito da política social: i) educar e formar as pessoas para a vida e o trabalho na sociedade do conhecimento; ii) gerar mais e melhores empregos para a Europa, por meio do desenvolvimento de uma política de emprego ativa; iii) modernizar a proteção social; e iv) promover a inclusão social (Conselho Europeu, 2000). O entendimento de que um novo Ebes era necessário ganha força em um contexto em que se identificam os novos riscos sociais decorrentes do desemprego de longo prazo e juvenil, da insuficiência de cobertura da seguridade social, da precariedade do emprego e da pobreza no trabalho, da instabilidade familiar e da conciliação insatisfatória entre trabalho e cuidados (Bonoli, 2013, apud Hemerijck, 2017). Já não basta proteger os indivíduos nos momentos de dificuldades, mas sim pensar soluções para as questões sociais em um horizonte temporal mais longo, garantindo ao mesmo tempo a sustentabilidade do Ebes. Surge, então, a proposta da política de investimento social.

Política de investimento social É pensada e definida como a oferta de bem-estar com o objetivo de preparar os indivíduos, as famílias e as sociedades para o enfrentamento dos novos riscos sociais, sem desconsiderar a orientação das políticas de caráter universal implementadas pelo Ebes (Hemerijck, 2017).

Segundo Hemerijck (2017), a justificativa para essa mudança do Ebes, como alternativa ao esgotamento do modelo keynesiano e às ideias neoliberais para a proteção social, foi reforçada por Esping-Andersen e colaboradores em seu livro publicado em 2002 “Por que precisamos de um novo Estado do bem-estar social?”. Três razões são apresentadas por estes autores. A primeira é chamada de capacidade de carga. O que se quer dizer com isso

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ii) Estoque: elevação da qualidade do estoque de capital humano e de capacidades. Está ligada à produtividade futura, à melhoria e manutenção do capital humano, desde a infância, passando por todo o processo de aprendizagem ao longo da vida; e iii) Amortecedor ( buffer ): para manutenção de redes sólidas de estabilização econômica no envelhecimento das sociedades. Esta função tem por objetivo assegurar a proteção e a distribuição de renda, além da estabilização econômica, ajudando a reduzir a desigualdade social.

Na figura 2, apresentam-se de forma esquemática os objetivos e as funções de uma política de investimento social.

FIGURA 2 Objetivos e funções da política de investimento social.

Na perspectiva do curso da vida, Hemerijck e Vydra (2017) destacam a complementariedade entre as políticas em cada estágio. Por exemplo, se são implementadas políticas para combater a pobreza infantil e a transmissão da pobreza entre gerações, a consequência no futuro será menor probabilidade de os adultos que foram beneficiados por estas políticas na infância dependerem de políticas para a garantia de renda mínima e de outras políticas de proteção social. Os objetivos da política de investimento social diferem daqueles da política de proteção social, pois não se limitam a reparar os danos das crises econômicas e pessoais para

pré-escolarCriança Criança^ Adulto jovem Adulto^ mais velhoAdulto

OBJETIVOS 1. Capacidade de carga - gerar mais recursos fiscais para a manutenção do Ebes e para a implementação de políticas sociais mais proativas e produtivistas;

  1. Segurança no curso da vidaconsiderando que os riscos sociais mudam ao longo do tempo; – estabelecer barganha redistributiva entre os cidadãos e a provisão de bem-estar nas diferentes fases e situações de suas vidas,
  2. Mudança no papel do gênero e da família - apoiar as famílias, a fim de que se promova o equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar.

FUNÇÕES: 1. Fluxo: facilitação do fluxo do mercado de trabalho contemporâneo e de transições do curso da vida, para uso mais eficiente dos recursos do trabalho a fim de

  1. garantir elevada participação no mercado;Estoque: elevação da qualidade do estoque de capital humano e de capacidades, garantindo a produtividade futura; e
  2. Amortecedor (buffer): manutenção de redes sólidas de estabilização econômica no envelhecimento das sociedades, assegurando a proteção e a distribuição derenda, além da estabilização econômica. Fonte: Elaboração própria com base nos trabalhos de Hemerijck (2017), de Hemerijck e Vydra (2017) e Esping-Andersen (2002 apud Hemerijck, 2017).

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os indivíduos. O propósito da política de investimento social não desconsidera o da proteção social, mas vai além, centrando-se no investimento nas pessoas. Prepara-as, acima de tudo, para os desafios advindos de uma economia globalizada e competitiva, em uma sociedade do conhecimento, em que as tecnologias suprimem a necessidade de grandes contingentes de mão-de-obra. Implica a indução ao desenvolvimento pessoal e a implementação de mecanismos de apoio para que os indivíduos em idade ativa possam se manter no mercado de trabalho, sem que o Estado descuide das situações ao longo da vida e dos estágios da vida que demandam proteção social. Na União Europeia, como já mencionado, os Estados reconheceram a emergência de novos riscos sociais e a necessidade de mudar o curso de suas políticas sociais no documento que ficou conhecido por Estratégia ou Agenda de Lisboa, de 2000. Entretanto, a crise econômica de 2008 foi utilizada como motivação para a mudança de rumo das políticas sociais em vários países europeus, com consequências importantes para parcela expressiva da população, e a palavra “austeridade” ganhou força nos discursos e prescrições de ajuste fiscal por parte das instituições credoras dos países mais fortemente afetados pela crise. O termo passou a ser bastante utilizado pela Troika , cooperação entre o Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Europeia, para a negociação de crédito para os países membros da EU, bem como pelos governos que decidiram pela implementação das políticas prescritas por esta tríade. Mas, afinal, o que significa austeridade?

O que é austeridade e quais têm sido suas consequências para a economia? Segundo Canterberry (2015), três definições são atribuídas ao termo austeridade. A primeira se refere à severidade ou simplicidade, severidade de disciplina, regime, expressão ou desenho. A segunda diz respeito a uma medida econômica, como uma poupança, economia ou ato de autonegação, especialmente em relação a algo que é considerado um luxo. E a terceira está relacionada a uma poupança forçada, como política de um governo, com acesso ou disponibilidade restritos ao consumo de bens. O uso do termo austeridade e de seu valor moral pelo neoliberalismo foi criticado recentemente por Bastos (2017). Segundo o autor, na lógica do neoliberalismo, a concorrência é o instrumento de mercado que dirige os indivíduos para uma disciplina rígida de trabalho e as empresas para a busca da eficiência. No discurso neoliberal, a austeridade assume sentido diverso daquele considerado justo no campo da moral privada, em que é vista como virtude, pois está associada à ideia do comedimento nos desejos, evitando-se desperdícios de recursos

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nos jovens diminuirá o potencial de crescimento do capital humano, além dos investimentos que os governos devem fazer em educação, infraestrutura, transporte, comunicações e dando possibilidade às mulheres de trabalharem, investimentos que aumentarão a oferta de emprego. Seu argumento é que esse investimento gera resultados que são melhor não só para a sociedade, mas também para a economia. Alguns estudos têm demonstrado o efeito multiplicador do gasto com políticas sociais para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Por exemplo, em uma análise dos dados de 25 países europeus, incluindo os Estados Unidos e o Japão, verificou-se que os gastos com educação e saúde têm multiplicadores fiscais superiores a três, o que significa que para cada gasto de uma unidade monetária nessas áreas o aumento esperado do PIB seria de três unidades monetárias (Stuckler e Basu, 2013). Em trabalho realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou-se em 1,7 o multiplicador do PIB para o gasto com saúde no Brasil, ou seja, para um aumento do gasto com saúde de R$ 1,00, o aumento esperado do PIB seria de R$ 1,70. Neste estudo, o multiplicador do PIB também foi calculado para o gasto com educação (1,85), o Programa Bolsa Família (1,44), o Benefício de Prestação Continuada (1,38) e o Regime Geral de Previdência Social (1,23), resultando em efeito positivo para a economia, ao contrário das despesas com pagamento dos juros da dívida pública, que resultaram em multiplicador de 0,71 (Abrahão et al., 2011). Recentemente, em novo estudo sobre o assunto, os achados de Orair e colaboradores (2016) reforçam que o gasto do Estado em determinadas políticas é particularmente importante em momento de recessão econômica. Segundo esses autores, os multiplicadores fiscais associados aos investimentos, benefícios sociais e despesas com pessoal durante as recessões são significativos e maiores do que a unidade (1,68, 1,51 e 1,33 respectivamente), ao invés do multiplicador das despesas com subsídios (0,60). Para eles, o fato de que o multiplicador dos subsídios e de outros gastos é insignificante em qualquer situação econômica produz evidências de que a escolha de política fiscal do período de 2011-2014 no Brasil, caracterizada pela redução dos investimentos e expansão dos subsídios, tenha sido uma opção ruim e explique em parte a baixa resposta da economia aos estímulos dados pelo governo. Os limites da austeridade para a retomada da economia já vêm sendo assumidos até mesmo por trabalhadores vinculados ao FMI com altos cargos. De acordo com recente artigo de Ostry e colaboradores (2016), não só as políticas neoliberais existem, como têm provocado

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o aumento da iniquidade social e colocado em risco uma trajetória de crescimento durável da economia. Segundo eles, as políticas de austeridade não só têm custos para o bem-estar social, mas também afetam a demanda, aumentando o desemprego, havendo forte evidência de que a iniquidade pode reduzir significativamente o nível e a durabilidade do crescimento econômico, o que indica que os resultados positivos de tais medidas ao reduzir a dívida pública, aumentar a confiança e o investimento privado parecem ter sido exagerados. Apesar dessas evidências, as renúncias de receitas do governo brasileiro continuam em patamares muito elevados. Para se ter uma dimensão dos valores envolvidos, em 2016, essas renúncias atingiram o montante estimado de R$ 377,8 bilhões, sendo constituída por: R$ 213,1 bilhões de benefícios tributários e R$ 57,7 bilhões de benefícios tributários- previdenciários, que são os chamados gastos tributários, além de R$ 106,9 bilhões de benefícios financeiros e creditícios (subsídios), valor este apenas 0,8% menor do realizado em

  1. As despesas com subsídios se referem a operações de crédito realizadas por instituições financeiras com recursos próprios ou do Tesouro, com taxas e prazos mais favoráveis do que os praticados pelo mercado, destinadas a setores específicos a fim de incentivar seu desenvolvimento (Tribunal de Contas da União, 2017). Além disso, em meio a uma importante recessão econômica, o governo fez a opção pela austeridade fiscal.

Como a austeridade fiscal está sendo empregada no Brasil?

As despesas com investimentos empenhadas do Poder Executivo federal caíram significativamente entre 2012 e 2016, passando de R$ 87,2 bilhões em valores de 2016 para R$ 37,3 bilhões no último ano, com redução de 57% (figura 3). Em relação aos valores pagos, a queda foi de 42% no mesmo período. Neste caso, é melhor tomar por referência as despesas pagas porque boa parte das despesas com investimentos acaba inscrita como restos a pagar, os quais vêm sendo rolados ao longo dos últimos anos. Como já mencionado na seção anterior, há evidências de que a opção de corte de despesas com investimentos não é uma boa escolha de política em momento de recessão econômica, considerando o multiplicador fiscal dessas despesas para o PIB. Em outras palavras, os investimentos poderiam ajudar a alavancar a economia no presente momento, mas ao invés de mantê-los ou até mesmo aumentá-los, a medida adotada tem sido de sua redução.

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Teto de gasto Valor fixo definido para as despesas com as políticas públicas financiadas pelo governo federal (chamadas de despesas primárias), o qual será corrigido apenas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), anualmente, de 2017 a 2036. Esta forma de congelamento em termos reais das despesas primárias (pagas e dos restos a pagar pagos) foi chamada de Novo Regime Fiscal e foi estabelecida por meio da Emenda Constitucional nº 95, de 2016.

As aplicações mínimas com saúde e educação também ficarão congeladas por vinte anos nos mesmos termos. O saldo futuro de receitas, decorrente de aumento da arrecadação em razão da retomada do crescimento econômico, não poderá ser utilizado para investir nas políticas públicas, dada a regra do teto de gasto.

Cenário de crescimento econômico → ↑ da arrecadação → Receitas crescem e despesas primárias permanecem congeladas → ↑ Receitas – Despesas primárias congeladas = ↑ Saldo → os recursos adicionais não poderão ser investidos nas políticas públicas (mas poderão ser utilizados para pagar despesas financeiras ou poderão constituir reservas monetárias).

Argumentou-se durante a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que deu origem à EC 95, PEC 241 na Câmara e PEC 55 no Senado Federal, que a regra proposta e que foi aprovada não impede que a cada ano recursos adicionais à aplicação mínima sejam alocados à saúde e à educação. De fato, não há impedimento legal a este respeito. Contudo, a restrição existente é de ordem orçamentária e impõe limites muito rígidos a cada ano. O crescimento vegetativo médio anual estimado dos benefícios previdenciários será de 3,17% ao ano entre 2017 e 2020 (Brasil, 2016b). Mesmo que aprovada uma reforma da previdência, seus impactos dificilmente serão observados no curto ou médio prazos, o que significa que as despesas com benefícios previdenciários crescerão nos próximos anos, ganhando maior participação no teto das despesas primárias ao longo dos anos. Como as aplicações mínimas com saúde e educação estarão congeladas, duas conclusões são óbvias. Primeiro, que as demais áreas de políticas públicas como assistência social, cultura, habitação, trabalho, transporte, segurança pública, pesquisa e desenvolvimento, entre outras, terão de disputar recursos que serão reduzidos a cada ano. Segundo, que dificilmente neste contexto, dadas as restrições orçamentárias para as demais áreas, será possível alocar mais recursos para a saúde e para a educação além da aplicação mínima (Vieira e Benevides, 2016a; 2016b). Os impactos da aprovação da EC 95 para a aplicação mínima em saúde em comparação com a regra anterior, dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015, foram estimados, demonstrando-se que sob a vigência da EC 95 e, em cenários de crescimento econômico, as perdas para o SUS poderão variar de R$ 168 bilhões em valores de 2016 à taxa

Documento preparado por Fabiola Sulpino Vieira, Isabela Soares Santos, Carlos Ocké Reis e Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, comosubsídio para debate no Seminário sobre Austeridade e Gasto Social organizado pela parceria Cebes-Fiocruz-ABrES.

de crescimento anual média do PIB de 1% a R$ 738 bilhões com taxa de crescimento anual média de 3% do PIB até 2036 (Vieira e Benevides, 2016b). Caso a EC 95 estivesse em vigor no período 2003-2015, as perdas acumuladas no período chegariam a R$ 135 bilhões (Funcia, 2016).

Congelamento da aplicação mínima em saúde

Com a EC 95 passa a valer a seguinte regra para a aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde:

  • 2017 = 15% da receita corrente líquida (RCL) de 2017 = aplicação mínima de 2017
  • 2018 = 15% da RCL de 2017 + IPCA (acumulado de julho/2016 a junho/2017) = aplicação mínima de 2018
  • 2019 = aplicação mínima de 2018 + IPCA (acumulado de julho/2017 a junho de 2018)
  • ...
  • 2036 = aplicação mínima de 2035 + IPCA (acumulado de julho/2034 a junho/2035).

De acordo com a Secretaria do Tesouro Nacional,* a RCL estimada para 2017 é de R$ 764,4 bilhões, o que resulta em uma aplicação mínima em saúde estimada de R$ 114,7 bilhões. Logo, sob a vigência da EC 95, a aplicação mínima em saúde será de R$ 114,7 bilhões em valores de 2017 até 2036.

  • Demonstrativo da Receita Corrente Líquida. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/series-historicas. Acesso: 25 set. 2017.

As implicações da EC 95, ainda na sua fase de proposta, também foram analisadas para a assistência social. Segundo as estimativas feitas, já no primeiro ano de sua vigência, mantido o orçamento estimado do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário em R$ 79 bilhões, este valor não seria suficiente para fazer frente às responsabilidades socioprotetivas do órgão, que demandariam R$ 85 bilhões (redução de 8%), podendo chegar à queda de 54% até 2036. A perda em vinte anos totalizaria R$ 868 bilhões e a redução da participação dos gastos com as políticas assistenciais alcançaria patamares inferiores ao observado em 2006 (0,89%), passando de 1,26% em 2015 para 0,70% em 2036 (Paiva et al, 2016). Outra questão importante que precisa ser considerada é o quanto a opção pela austeridade no Brasil, especialmente com a adoção do teto do gasto para as despesas primárias, afeta o tamanho do Estado por meio da política fiscal. Nesse ponto, deve-se considerar que um dos efeitos práticos imediatos da EC 95 com a retomada do crescimento econômico será a redução da participação das despesas primárias do governo federal no PIB, de cerca de 20% em 2016 para cerca de 16% a 12% do PIB até 2026, a depender do desempenho da economia (Fórum 21 et al, 2016). Esta é uma clara reforma do Estado feita de

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Já existem muitas evidências sobre os efeitos negativos das crises econômicas e da austeridade para os indivíduos, especialmente os socioeconomicamente vulneráveis. Com base na literatura científica, as consequências das crises e da austeridade para as condições sociais e de saúde das populações afetadas já podem ser minimamente relacionadas, chegando-se à conclusão de que as crises podem agravar os problemas sociais, aumentar as desigualdades sociais e piorar a situação de saúde da população. Também é possível concluir que as medidas de austeridade fiscal, que estabelecem a redução do gasto com programas de proteção social agravam os efeitos da crise sobre a situação de saúde, em particular, e as condições sociais, de forma mais geral (Vieira, 2016). A Figura 4 ilustra as relações, de acordo com os estudos publicados sobre o tema. FIGURA 4 Consequências sociais, sobre o estado de saúde e para o sistema de saúde das crises econômicas e da austeridade.

Em países de alta renda, membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a crise financeira de 2008 e a consequente perda do emprego foi associada à piora da saúde mental, aumentando a prevalência de depressão e ansiedade, especialmente entre desempregados e aqueles que acabaram de perder o emprego. Outras consequências da recessão econômica identificadas pelos pesquisadores foram o aumento das taxas de suicídio, redução na auto-avaliação do estado de saúde como bom, aumento de doenças crônicas não transmissíveis e de algumas doenças infectocontagiosas, aumento da dificuldade de ter acesso aos serviços de saúde por barreiras econômicas e aumento do consumo de bebidas alcóolicas em grupos de alto risco, constituídos por pessoas que já consomem álcool rotineiramente e desempregados (Karanikolos, 2016). A recente crise

Crise econômica Medidas de austeridade fiscal

Consequências sociais mais amplas

para a situaçãoConsequências de saúde

Consequênciaspara o sistema de saúde

Aumento das desigualdades^ Empobrecimento sociais, dos divórcios e da violência

Perda do emprego e aumentoda taxa de desemprego Perdas financeiras e aumentodo endividamento

aumento da incidência e^ Piora da saúde mental: depressão, estresse, abuso deprevalência de ansiedade, drogas (álcool e outras)

Aumento dos casos de suicídio

geral: aumento de doençasPiora no estado de saúde crônicas e infecciosas Diminuição da capacidade depagamento do bolso e de planos privados de saúde Aumento da demanda porserviços públicos de saúde Diminuição da capacidade deresposta do sistema de saúde:acesso e qualidade dos serviços

políticas de proteção social^ Redução do gasto com

manutenção do emprego^ Insegurança quanto à^ Redução do gasto com saúde

Fonte: Vieira, 2016.

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econômica foi considerada um importante estressor, com impactos negativos sobre a saúde dos trabalhadores e da população em geral (Mucci et al, 2016). O efeito de eventos financeiros negativos sobre a mortalidade foi avaliado por Stuckler e colaboradores (2009) para 26 países europeus, chegando-se à conclusão de que 1% de aumento no desemprego provoca a elevação de 0,79% nos casos de suicídio de menores de 65 anos. Os autores atribuíram ao sistema de proteção social da Finlândia e da Suécia o fato de que embora a taxa de desemprego nesses países tenha aumentado, não foi acompanhada de aumento dos casos de suicídio, o que revela a importância dos programas sociais para a mitigação dos efeitos das crises econômicas. Quanto ao abuso de bebidas alcóolicas, há evidências de que as crises financeiras reduzem o consumo dessas bebidas de uma maneira geral, mas também que ocorre abuso em subgrupos sociais mais vulneráveis, estando entre os fatores de risco a perda do emprego e o desemprego de longa duração, além de suscetibilidades pré-existentes como doenças mentais (Dom et al., 2016). Além dos impactos negativos diretos da crise econômica, a austeridade tem sido apontada como responsável pelo aumento do número de pessoas na União Europeia que não tiveram as suas necessidades de cuidados de saúde atendidas no período pós-2008. Entre as medidas adotadas pelos governos, encontram-se o aumento do copagamento pelo uso de serviços de saúde, corte de gastos (que provocam fechamento de serviços, redução de horas de funcionamento e da força de trabalho), assim como a realização de reformas que restringem o acesso por imigrantes, moradores de rua e usuários de drogas (Reeves et al, 2015; Legido-Quigley et al, 2016; Lopez-Valcared e Barber, 2017). As reformas implementadas pela Alemanha, Espanha e Inglaterra em seus sistemas de saúde seguiram os caminhos iniciados nos anos 1990, com a realização de mudanças voltadas ao mercado de trabalho, intensificação da competição regulada e separação entre o financiamento e a prestação de serviços. Embora tivessem partilhado o objetivo de conter os gastos públicos e controlar o deficit, as políticas adotadas por esses países foram diferentes. A Espanha, que foi mais afetada pela crise, estabeleceu cortes significativos no orçamento, aumentou o copagamento, excluiu cobertura e fez cortes de despesas com pessoal. Por sua vez, a Inglaterra promoveu reforma mais profunda no seu sistema de saúde. Reorganizou as relações entre financiadores e prestadores, separando-os; reduziu as funções gerenciais e abriu o sistema para a participação de prestadores privados. E, por fim, a Alemanha, que menos sofreu os impactos da crise, congelou a contribuição dos empregadores, adiando os aumentos