Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

A Importância Social e Cultural da Poesia Oral: Funções, Tradições e Comunicação, Notas de aula de Poesia

Um estudo sobre a importância social e cultural da poesia oral, demonstrando que ela não pode ser compreendida fora da estrutura social em que vive. O texto aborda as funções da poesia oral, as tradições, as espécies, a linguagem e o estilo, as circunstâncias da composição, transmissão e recepção de textos, e o papel da comunicação oral na sociedade. O documento também discute a importância da poesia oral na construção e manutenção de comunidades, na educação e na organização ético-política.

O que você vai aprender

  • Como a poesia oral afeta a educação e a organização ético-política?
  • Quais são as principais características da poesia oral tradicional?
  • Como a poesia oral influencia a construção e manutenção de comunidades?
  • Qual é a importância da poesia oral na compreensão da estrutura social em que ela vive?
  • Quais são as funções da poesia oral?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Miguel86
Miguel86 🇧🇷

4.8

(40)

221 documentos

1 / 19

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
24 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56
Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik
POESIA ORAL TRADICIONAL E
FUNCIONALIDADE
por
Carlos Nogueira1
Véronique Le Dü da Silva-Semik2
Resumo: A poesia oral não pode ser compreendida fora da estrutura social em que vive, nem o fun-
cionamento da comunidade pode ser integralmente apreendido sem um conhecimento da sua poesia
de transmissão oral. Por isso, neste estudo, influenciado pelo pensamento de José de Almeida Pavão
Júnior e Paul Zumthor, procuramos demonstrar que uma abordagem séria da poesia oral não pode
fixar-se unicamente no âmbito do literário, nem apenas nos seus aspectos culturais, antropológicos e
sociológicos. A poesia oral, como as tradições em geral, existe porque cumpre funções. Refletir
sobre este aspecto é também pensar sobre o contexto social e cultural da performance literária, a
idiossincrasia dos poetas-intérpretes e do grupo social, as diferentes espécies, a linguagem e o estilo,
as circunstâncias da composição, da transmissão e da recepção dos textos.
Palavras-chave: Poesia. Tradição oral. Funções.
Abstract: Oral poetry cannot be understood outside of the social structure in which they live, nor
the functioning of the community can be fully understood without a knowledge of its oral poetry.
Therefore, in this study, influenced by Paul Zumthor’s thought, we try to demonstrate that a serious
approach to oral poetry cannot fix solely in the literary, nor only in its cultural, anthropological and
sociological context. The oral poetry, as the traditions in general, only exists because it fulfills functions.
Reflecting on this aspect is also thinking about the social and cultural context of literary performance,
the idiosyncrasy of the poet-performers and the social group, the species, the language and style, the
circumstances of the composition, transmission and reception of texts.
Keywords: Poetry. Oral tradition. Functions.
Através da poesia oral (e da literatura oral e popular em geral), intimamente
ligada à vida social, podemos apreender os sentimentos, os desejos e o pensamento
de uma comunidade, entendida como um conjunto humano que partilha um espaço
territorial definido, um fundo cultural comum e estabelece relações de estreita
convivialidade e intimidade. Ao contrário do que acontece na literatura instituciona-
lizada, os textos poéticos orais só se realizam desde que enquadrados nas práticas
1 Universidade de Vigo - I Cátedra Internacional José Saramago. carlosnogueira@uvigo.es
2 IELT, FCSH, Universidade Nova de Lisboa. veroniquesemik@gmail.com
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13

Pré-visualização parcial do texto

Baixe A Importância Social e Cultural da Poesia Oral: Funções, Tradições e Comunicação e outras Notas de aula em PDF para Poesia, somente na Docsity!

24 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik

POESIA ORAL TRADICIONAL E

FUNCIONALIDADE

por

Carlos Nogueira^1

Véronique Le Dü da Silva-Semik^2

Resumo: A poesia oral não pode ser compreendida fora da estrutura social em que vive, nem o fun- cionamento da comunidade pode ser integralmente apreendido sem um conhecimento da sua poesia de transmissão oral. Por isso, neste estudo, influenciado pelo pensamento de José de Almeida Pavão Júnior e Paul Zumthor, procuramos demonstrar que uma abordagem séria da poesia oral não pode fixar-se unicamente no âmbito do literário, nem apenas nos seus aspectos culturais, antropológicos e sociológicos. A poesia oral, como as tradições em geral, só existe porque cumpre funções. Refletir sobre este aspecto é também pensar sobre o contexto social e cultural da performance literária, a idiossincrasia dos poetas-intérpretes e do grupo social, as diferentes espécies, a linguagem e o estilo, as circunstâncias da composição, da transmissão e da recepção dos textos. Palavras-chave : Poesia. Tradição oral. Funções. Abstract: Oral poetry cannot be understood outside of the social structure in which they live, nor the functioning of the community can be fully understood without a knowledge of its oral poetry. Therefore, in this study, influenced by Paul Zumthor’s thought, we try to demonstrate that a serious approach to oral poetry cannot fix solely in the literary, nor only in its cultural, anthropological and sociological context. The oral poetry, as the traditions in general, only exists because it fulfills functions. Reflecting on this aspect is also thinking about the social and cultural context of literary performance, the idiosyncrasy of the poet-performers and the social group, the species, the language and style, the circumstances of the composition, transmission and reception of texts. Keywords: Poetry. Oral tradition. Functions. Através da poesia oral (e da literatura oral e popular em geral), intimamente ligada à vida social, podemos apreender os sentimentos, os desejos e o pensamento de uma comunidade, entendida como um conjunto humano que partilha um espaço territorial definido, um fundo cultural comum e estabelece relações de estreita convivialidade e intimidade. Ao contrário do que acontece na literatura instituciona - lizada, os textos poéticos orais só se realizam desde que enquadrados nas práticas (^1) Universidade de Vigo - I Cátedra Internacional José Saramago. carlosnogueira@uvigo.es (^2) IELT, FCSH, Universidade Nova de Lisboa. veroniquesemik@gmail.com

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 25

Poesia oral tradicional e funcionalidade quotidianas dos seus intérpretes, seja nas ocupações laborais ou religiosas (como romarias e festas de índole religiosa), seja nos momentos de lazer ou nas ocupações edificantes. A necessidade de expressão não determina por si só a existência desta poesia, integrada numa rede de atividades pertencentes ao grupo. O conteúdo e a especificidade técnico-estilística não são suficientes para determinar a ocorrência do poema. Ao expressar as “vozes do passado” reatualizadas no presente, a poesia oral procura responder a uma série de necessidades individuais e comunitárias. Para melhor percebermos a poesia oral, devemos, por isso, na medida do possível, identificar as funções que ela cumpre no âmbito das experiências coletivas. De acordo com José de Almeida Pavão Júnior, “a função não deve confundir-se com uma simples motivação. Participando dos atributos desta, incentiva o ato criador, mas, mais do que ela, numa vinculação constante, acumula o papel de motor e finalidade do mesmo ato, constituindo-se em parte dum processo, segundo o qual a criação popular, nomeadamente a poesia, acusa as características duma arte compósita” (JÚNIOR, 1981, p. 26). A comunicação literária oral constitui um importante universo de socialização, ao facilitar, através da fruição estética do texto, o processo educativo que garante o equilíbrio social, a organização ético-política e a permanência de uma determinada visão do mundo. O texto oral incorpora o mundo no qual é (re)criado, e, quando vocalizado num espaço / tempo, manifesta a sua estabilidade e flexibilidade apoiada na tradição. José de Almeida Pavão Júnior distingue dois tipos de funções. As de natureza “vivencial ou anestética, manifestas nas atividades vitais, fonte perene de inspiração coletiva” (JÚNIOR, 1981, p. 26), que percorrem os domínios económico-social, religioso, laboral, familiar e materno e ecológico. Por exemplo: alguns temas ver - sados na poesia oral brasileira do Nordeste apresentam claramente as dificuldades das comunidades nordestinas quando enfrentam a carestia, as secas e as injustiças sociais. Os provérbios, os contos, as adivinhações, os cantos, as estórias, as qua - dras libertam as comunidades. Ao “pronunciarem”, “dizerem”, “cantarem” as suas emoções e as suas frustrações, as comunidades também preservam na memória a sua identidade, seus costumes, sua cultura. Reconhecendo embora a pertinência da formulação de Pavão Júnior, acrescen - taríamos o aspecto amoroso (cantigas amorosas e Abcs do amor), pela sua grande diversidade e representatividade. O outro tipo de funções apresenta um caráter predominantemente estético, em que a arte parece assumir a exclusividade, num processo em que poesia, música e dança se interligam. O texto oral é vocalizado, o corpo expressa a memória e a tradição, e a performance oral efetiva a teatralidade. Como afirma Paul Zumthor, “Ora, não somente o conhecimento se faz pelo corpo, mas ele é, em seu princípio,

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 27

Poesia oral tradicional e funcionalidade (...)

  • Quando casei com esta moça Parecia rosa branca, Agora depois de velha É muxiba e pelanca.
  • Parecendo genipapo Quando faz uma carranca. Rapaziada si soubesse O que é mesmo casamento… As despesas são dobradas Diminui o rendimento.
  • Tem que vestir a família Ainda comprar sustento. Senhora da Conceição Tirai-me do cativeiro Mulher como esta minha Já parece um desespero.
  • Um filho inda não tem ano Já está com outro no cueiro. (Brasil, 1925, p. 32-37) É muito comum o texto ou jogo de engenho anfigúrico, o qual, produzindo um riso gregário e socializador, manifesta uma postura saudavelmente risonha perante a vida e a linguagem. Mas é preciso não ignorar que «os anfiguris dizem que o único sentido possível é o da contingência (que pode ser absurda, inaceitá - vel) de tudo. Marcados por paradoxos que surpreendem a cada novo elemento do enunciado, estes textos representam, através da técnica do “mundo às avessas”, as multiplicidades e os absurdos simultaneamente cómicos e trágicos dos fenómenos da vida» (Nogueira, 2009, p. 20-21): Fui ao pinheiral às peras, Toda me enchi de pinhões, Veio o dono das castanhas:
  • Ó ladrão, deixa os feijões. (Nogueira, 2002, p. 139) A criação e a execução de um poema oral são, pois, como estamos a ver, atos estéticos, ligados a uma característica fundamental da linguagem literária: a

28 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik sua funcionalidade própria, que é imprescindível para a maior ou menor autonomia estético-discursiva do texto literário oral (e escrito). Partindo deste pressuposto, João David Pinto Correia aborda os textos da literatura oral “numa perspectiva funcio - nalista”, e propõe três classes de textos: “prático-utilitários, lúdicos e compósitos” (Correia, 1993, p 157). O recurso a esta taxionomia, que consideramos muito útil porque arruma um conjunto tão heterogêneo de textos, deve ser complementado com outras perspectivas de análise e classificação, tanto quanto possível informa - das por elementos contextuais objetivos (que deveriam ser reunidos em todos os processos de recolha dos textos). Compreende-se: estes textos não se prestam a classificações rígidas. É, por exemplo, demasiado abrangente inserir as “cantigas” no grupo dos “lúdicos”: por um lado, porque essas composições podem servir intenções muito diversas, percorrendo as três perspectivas mencionadas; por outro lado, porque assim não se considera (pelo menos explicitamente) a relevância do estético. Uma cantiga amorosa, ligada ou não ao canto e à música instrumental, pode ser evocada num momento de lazer, não só para ilustrar uma determinada situação e desencadear um determinado comportamento, mas também para criar um paroxismo de poeticidade e intersubjetividade. O mesmo deve dizer-se da inclusão das “cantigas de ninar” apenas nos textos “prático-utilitários”, na medida em que o aspecto lúdico não desempenha por certo um papel irrelevante, apesar de ligeiramente subordinado, na perspectiva do emissor, à vertente utilitária; obviamente, o envolvimento estético, tanto na enunciação como na recepção, não é aqui menos essencial enquanto con - tínuo de combinações entre o dito e o não dito, o comunicável e o incomunicável, o partilhável e impartilhável. A performance, neste caso, é fundamental. Através do corpo que transporta o texto, a poesia será reconhecida, vivenciada, e poderá expressar-se através da sua musicalidade. A sua execução num espaço e num tempo únicos fará multiplicar os seus sentidos. Há poemas orais que nos dizem de modo muito expressivo que a poesia oral cantada cria dinamismo e prazer estético numa audiência participativa que esteja a realizar um trabalho monótono e pesado: Ai, ai, a gente bem canta, Para ver se isto vai, Ai, ai, a gente bem canta, Mas isto não vai. (Nogueira, 2002, p. 222) Durante as atividades coletivas ainda existentes, as canções criam uma atmos - fera de encantamento e de maior predisposição para o trabalho a que dificilmente

30 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik dormia, fazendo-se passar pelo seu marido. O autor deste poema tê-lo-á dirigido publicamente à mulher visada, em tom de desafio: Eu já dormi na tua cama, E já conheci o teu brio; Lembra-te quando disseste:

  • Ó ladrão que vens tão frio. ( Nogueira, 1996, p. 143) Da mesma forma, no Nordeste brasileiro, os Abc poéticos – poemas compostos em ordem alfabética – noticiam os acontecimentos e instruem as comunidades. São poemas enumerativos, descritivos, que oferecem aos ouvintes informações essenciais para a compreensão da sua realidade, da sua cultura e da sua linguagem. Vejamos, respectivamente, excertos do A.B.C. da moça queimada e do A.B.C. da revolta de 1912 na Paraíba : A trinta do mês de outubro Do ano de trinta e um, Ardi em chamas de fogo Sem haver remédio algum. Ai! de mim triste coitada, Que truce tão cruel sina De passar pela desgraça Neste mundo tão menina! (Romero, 1985, p. 128-129)

Agora se revoltou Herme em Rio de Janeiro, Com muita força e talento, Como chefe verdadeiro; Valente ou morre ou arriba, No Estado da Paraíba Que acabar cangaceiro! Batalhão vive subindo A cada hora e a cada instante. Já hoje contra o Governo Não há mais quem se levante,

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 31

Poesia oral tradicional e funcionalidade Nem os valentes guerreiros, Quem foi ou é cangaceiro Já hoje está sem garante. Combinaram dois estados, Paraíba e Pernambuco, Irem de encontro a esta gente E seu revate tem suco! Vai-se ver um bom serviço, Quem entende menos disso Ou está doido ou maluco! (Perreira, Laurindo, 1949, p. 385) A necessidade de evasão é certamente um dos fatores que mais contribuem para o sucesso da maioria dos poemas orais. Recebidos como lenitivos ou solu - ções catárticas para os desencantos e dramas gerados pelo quotidiano, estes textos instituem-se como veículos de expressão que combinam o emocional, o sonhado e o ideal com o vivido ou pressentido, e o artístico com o concreto. Assimilado a partir de um folheto, o poema seguinte reúne todos os tópicos que fazem o suces - so deste tipo de textos: dois jovens namorados (que lembram Simão e Teresa da obra camiliana Amor de Perdição ) morrem tragicamente, depois de a sua prevista união matrimonial ter sido contrariada por desentendimentos entre as duas famílias: Num intento de família, A linda Maria Emília E o Luís namoravam. Um do outro eram primos E já desde pequeninos Os dois muito bem se davam. Eram ricos, mas sem vaidade, Amavam-se com lealdade, Num amor puro e forte. Combinando o casamento, Os dois fizeram um juramento De se amar até à morte. (...)

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 33

Poesia oral tradicional e funcionalidade Toda Mãe que nega o peito ao filho que o Amor lhe deu, é uma mãe desnaturada que o filho não mereceu, nem merecia beber o leite que ela bebeu… (Batista, Paulo, p. 95-98) É óbvio que muitas das composições que hoje ouvimos já não causam o impacto que lhes era característico. Em muitos casos, já perfeitamente desajustadas das circunstâncias atuais, servem, todavia, para estudarmos ideologias que deram lugar a outros procedimentos sociais. Esta função coesiva e estabilizadora assumida pela voz poética enquanto ele - mento de união é extremamente importante para o equilíbrio do grupo social. Em virtude do nomadismo de alguns intérpretes e, por conseguinte, da própria poesia oral, a coesão que ela transporta transmite-se a comunidades mais ou menos afas- tadas geograficamente. A repetição do discurso poético oral implica a formação de normas de conduta encaradas como imutáveis, o que não impede, como veremos, que se processem mudanças sociais inevitáveis, também elas capitais para a orga - nização e a evolução dos grupos sociais. A “ mouvance ” do poema, para usarmos o termo de Paul Zumthor (1987, p. 160), expressa-se através da voz do passado que a visão contemporânea adapta. O texto é recriado e adquire uma nova histo - ricidade, e, portanto, “Ma propre voix m’importe ici, et le sentiment que j’en ai: importe à ce que je peux dire de cette autre voix, perdue ( Zumthor, 1987, p. 25). A poesia oral é memória individual e coletiva, uma memória humana que se mantém porque é literatura, poesia. Esta questão é particularmente visível na religio- sidade popular, património cuja transmissão cabe, em primeira instância, à família. A ação pedagógica de âmbito familiar reforça a eficácia do trabalho especializado de formação e de reprodução da crença religiosa. No espaço doméstico da família das zonas mais rurais, multiplicam-se as mensagens com intenção catequética deliberada, traduzidas na profusão de símbolos e instrumentos de devoção, nas noções de natureza mítico-religiosa incorporadas nos circuitos de socialização e nos rituais de consagração de certos momentos de trabalho ( benzedura do pão , por exemplo) e de lazer (santos populares, em especial o São João de Ovil). Neste processo, a crença no caráter sagrado das palavras desempenha uma função capital, como se conclui pela grande importância atribuída aos ritos verbais populares. A recolha que efetuámos desde 1993, como dizíamos acima, permite-nos afirmar que foi (e ainda é) notável em Baião a circulação de orações tradicionais e de ensalmos, cuja linguagem e estrutura literárias são em grande parte responsáveis pela sua força encantatória e funcional.

34 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik O prestígio destas fórmulas decorre, antes de mais, da sua forma e da sua organização. É um discurso poético-narrativo que se afasta parcialmente da lin - guagem quotidiana, um discurso que oculta e simultaneamente revela um saber considerado poderoso. A linguagem, a que se juntam jogos paramusicais, suscitados pela crença de que os sons, entoados de determinada forma, apresentam poderes sobrenaturais, oscila no equilíbrio entre o hermetismo e a clareza, prestando-se assim mais eficazmente à expressão do desconhecido. No responso de Santo António a seguir reproduzido, sobressaem elementos característicos do discurso poético: uma arquitetura fónica que compreende recur - sos como a rima final, emparelhada, pobre, que, associada à litania típica destas composições, facilita a memorização e a transmissão do texto; a rima interna (vs. 8-9); a aliteração da sibilante (vs. 2-3, por exemplo) e a assonância (principalmente em /o/ e /u/, nos vs. 1, 5 e 7), elementos musicais que instauram uma atmosfera algo dolente, solene, vinculada ao tema tratado; a repetição do /s/ nos quatro primeiros versos, construção que reforça a estrutura sonora, mnemónica, do poe - ma; a métrica, com o predomínio do heptassílabo, metro frequente na poesia oral portuguesa por favorecer o andamento contínuo dos versos (8-7-7-7-7-7-7-8-8); e o ritmo intensivo e silábico: Santo Antoninho precioso Se vestiu e se calçou, Suas santas mãos lavou, Seu cajadinho pegou, Encontrou o bom Jesus:

  • Aonde vais tu, António?
  • Ó Senhor, Convosco vou. O perdido será achado, O esquecido será lembrado. (Nogueira, 2011, P. 102) Trata-se, por outro lado, de um texto construído com um léxico corrente, popular (“Antoninho”, “cajadinho”), numa sintaxe simples, com orações justapostas, sem subordinações (nem sequer coordenações, neste caso) que travem o rápido fluxo discursivo. Relevante para a produção, memorização, evocação e recepção do texto é ainda o absoluto paralelismo sintático dos dois últimos versos, reforçado pela anáfora (“O perdido será achado,/ O esquecido será lembrado”). Esta oração é também uma breve narrativa carregada de evocações e co - notações religiosas, psicológicas e antropológicas: Santo António encontra Jesus Cristo, acompanha-o, e, por isso, achar-se-á aquilo que se perdeu. Bem conhecidos

36 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik Eu pedi a morte a Deus, E logo fiquei doente; Seja o que Deus quiser, Eu não posso durar sempre! (Nogueira, 2002, p. 24)

Quem quiser orar a Deus, Num diga que num tem tempo; É andar no seu trabalho Com Jesus no pensamento. (Nogueira, 2002, p. 30) Esta adesão incondicional aos desígnios divinos e à necessidade de comu- nicação permanente, pela oração, com o divino, vê-se também, na poesia popular brasileira, nos Abc poéticos marianos que versam, de “A a Z”, as qualidades e virtudes da Virgem Maria. Cada letra assemelha-se à conta de um terço, como neste A.B.C. das Virtudes de Nossa Senhora : Diz um A Ave Maria Diz um B bondosa, bela Diz um C caríssima e graça Diz um D divina estrela Diz um E esperança nossa Diz um F fonte de amor Diz um G gênio do bem Diz um H honesta flor Incenso d’alma Jota mimosa Koro de anjo Luz formosa Diz um M mãe dos mortais Diz um N nuvem de brilho Diz um O orai por nós Diz um P por vossos filhos

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 37

Poesia oral tradicional e funcionalidade Querida das virgens Remédio nos dais Socorrei-nos sempre Todos mortais Ultimo dia Vida fecunda Xiro mistérios Zelai pelo mundo (Santos; Batista, 1993, p. 278-279). A poesia oral constitui para o grupo cultural um campo de experimentação sobre si mesmo, possibilitando desse modo o domínio e o conhecimento do mun- do. A autoridade do passado institui-se como programa do futuro e a produção poética individual ultrapassa a sua contingência na medida em que incorporar a tradição. Ao poema oral vincula-se a ideia de eterno retorno, isto é, o desejo de identidade do grupo. O emissor dá forma, através do poema declamado ou cantado, a um determinado conhecimento que o receptor, num processo de recepção que se inscreve num modelo que é reconhecimento (rede de convicções, hábitos mentais que formam a consciência do grupo), tornará também seu. À força vocal, que intervém no quotidiano como poder e como verdade, cabe a transmissão e legitimação dos hábitos e dos costumes da comunidade, concentrando em si energia capaz de fecundar todos os sectores da vida social. Uma cantiga conceituosa possui um poder demonstrativo suficientemente forte para funcionar como argumento decisivo capaz de encerrar uma discussão. Aqueles que dispuserem de um repertório considerável destes textos pacificadores e regularizadores têm potencialmente vantagens argumentativas sobre os que não podem servir-se deste saber. A linguagem de muitos baionenses é uma espécie de mosaico formado por este tipo de aforismos de grande energia significativa e argumentativa. A correlação com o presente atribui ao poema um dinamismo muito forte que o torna extremamente importante sob o ponto de vista funcional. Como todos os géneros da tradição oral, a poesia oral vincula-se abertamente à vida, instituindo-se, em larga medida, numa linguagem de ação e numa referencialidade externa. A poesia oral, todavia, embora menos frequentemente, equaciona e propaga ideias subversivas relativamente às normas de conduta estabelecidas pela própria comunidade. Uma capacidade fundamental da comunicação literária oral consiste na possibilidade de coagir na formação de novas imagens do mundo, de provocar e desenvolver correntes de opinião, através dos efeitos emotivos, cognitivos e volitivos gerados nos seus receptores. Quadras como as que apresentamos a seguir

Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56 | 39

Poesia oral tradicional e funcionalidade Willy Fó foi dar a volta, A volta ó mundo, Oitenta dias, Oitenta noites. Conheceu princesa Arrós, Visitou Norte, Sul, Este, Oeste. A Holanda, Holanda ó é, Meu amor partiu um pé, Ó lá quiqui, Ó lá quiqui. Quem ficar com as pernas abertas Vai fazer chichi. (Nogueira, 2002, p. 276) Também não é por acaso que as chamadas “dedicatórias”, com frequência quadras tradicionais ou de tipo tradicional, circulam intensamente entre os nossos alunos, que às vezes as usam nas capas dos seus cadernos diários. O sucesso da “dedicatória”, de que já recolhemos algumas centenas de exemplares, vem das características do cancioneiro popular e da lírica em geral: a concisão, a clareza discursiva, o ritmo, a métrica, a rima, a primazia dos motivos líricos e a conse - quente facilidade de memorização dos seus poemas. Se as quadras tradicionais sobrevivem com a função de dedicatória, muito adaptadas, com pequenas variações ou mesmo reproduzindo totalmente o texto tradicional, é porque correspondem a uma representação simbólica de sentimentos e de situações que fazem parte do tecido sociocultural e idiossincrásico dos seus utilizadores. Veja-se esta declaração amorosa: “Tudo o que tenho na vida/ Cabe na minha mão/ O teu retrato cortado/ Em forma de coração” (Nogueira, 2002, p. 325). Como aqueles, há inúmeros textos modernos, muito sugestivos em propostas de análise literária, psicológica, psicanalítica, psicolinguística, sociológica e lúdica, que não têm merecido a devida atenção por parte de estudiosos de diversas áreas. Podemos procurar compreender o que subjaz a este esquecimento detendo-nos na oposição literatura oral / popular / tradicional e literatura culta, criada por preconceitos sociais que têm a ver com a alegada nobreza do escrito e dos seus autores e com a suposta pobreza do oral e dos seus intérpretes ditos populares. Nas duas literaturas o texto existe graças aos efeitos que consegue criar no receptor. A literatura oral , contudo, porque mais utilitária, tem na comunidade um efeito mais facilmente mensurável ou pelo menos visível do que a segunda. A literatura institucionalizada, e agora também a oral e popular, ressente-se de um acentuado mal-estar numa sociedade cada vez mais dominada pela ciência e pela técnica. Do

40 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik ponto de vista da função social, as ciências gozam de uma considerável supremacia em relação às letras (ou às ciências humanas), cuja utilidade socioeconómica parece mais difícil de justificar. Nos debates sobre a importância das ciências exatas e das ciências humanas, salienta-se a irrelevância social e cultural da obra literária, a ausência de efeitos (imediatamente visíveis, acrescentaríamos nós), o que conduz ao isolamento do escritor e ao triunfo dos meios de comunicação visual sobre a literatura, mesmo nos domínios que eram tradicionalmente não visuais, como o drama e a prosa de ficção, hoje substituídos pelos produtos visuais correspondentes (o telefilme e a telenovela). Mas a verdade é que, ao lermos, ou ouvirmos, um texto literário, não po - demos perder de vista que se trata de um objeto estético, apto a seduzir-nos a sensibilidade e a estimular-nos o pensamento, a criar e a aprofundar uma mun- dividência marcada por articulações constantes entre a identidade e a alteridade, entre a memória literária e a experiência direta. A vivência pessoal de captação das letras (e das artes) corresponde a algo que antes de mais se sente; ora, sem essa fruição individual, sem a carga emocional que o constitui, o texto literário não atinge minimamente o seu objetivo. No confronto com as ciências, a vertente estética deve ser reclamada pelas letras, mesmo que essa assunção implique que o estudo do fenómeno literário nunca venha a designar-se, com total segurança, Ciência da Literatura , em vez de Teoria da Literatura. A qualidade que torna literário um determinado texto – a literariedade – é um efeito subjetivo que varia de leitura para leitura ou de audição para audição. Para a literatura, não dispomos de provas conceptuais irrefutáveis, restando-nos a prática de uma argumentação sempre virtualmente falível e a consciência de que há um resíduo inexplicável, responsável pelo caráter provisório das teorias. Com ela, e, muito em particular, na obra poética oral, que “flotte dans l’indétermination d’un sens qu’elle ne cesse de défaire et de recréer” (Zumthor, 1983, p. 259), aprende-se em profundidade algo que não é fácil de definir ou quantificar. Na literatura, o fator pessoal assume uma importância muito maior do que no domínio das ciências, provavelmente porque nela, além de se ensinar a pensar, aprende-se a sentir. Toda a literatura dota os indivíduos de mecanismos que os vão definindo en - quanto sujeitos e aos quais podem recorrer em situações muito diversas. Na poesia oral, os efeitos são mais visíveis e susceptíveis de avaliação, como vimos, a partir dos próprios poemas, que espelham mais diretamente a comunidade e interagem com ela. Utilizada com o objetivo de despertar, mais ou menos voluntariamente, determinados efeitos nos emissores e nos receptores, sejam pessoas individuais ou instituições sociais, instaura a regulação dos fenómenos sociais através da força ilocutória da palavra, que faz com que a fala se transforme em ato. O caráter oral

42 | Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56

Carlos Nogueira & Véronique Le Dü da Silva-Semik Pereira, Laurindo (Piá). A.B.C. da revolta de 1912 na Paraíba. In: Barroso, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: 1949, p. 385-393. Romero, Sílvio. Folclore brasileiro. Cantos populares do Brasil. São Paulo / Belo Hori- zonte: USP / Itatiaia, 1985. Santo, Moisés Espírito. A Religião Popular Portuguesa. Prefácio de Emile Poulat. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990. Santos, Idelette Muzart Fonseca dos; Batista, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita (org.). Cancioneiro da Paraíba. João Pessoa: GRAFSET, 1993. Semik, Véronique Le Dü da. De L’Abc poétique à l’A.B.C. de cordel au Brésil: une forme poétique traditionnelle de “A à Z”. Paris: l’Harmattan, 2012. Semik, Véronique Le Dü da. Lições em poesia. O A.B.C. De Cordel no Brasil: um Abc poético em Folheto. Lisboa: Edições Colibri, 2013. Teixeira, Fausto. O livro das adivinhas brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes,

Zumthor, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris: Éditions du Seuil, 1983. Zumthor, Paul. La lettre et la voix. Paris: Éditions du Seuil, 1987. Zumthor, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.